Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

2002 2007 brasil venezuela, Exercícios de Relações Internacionais

Brasil diante da crise na Venezuela

Tipologia: Exercícios

2015

Compartilhado em 06/09/2015

gabriele_ciapparella
gabriele_ciapparella 🇮🇹

1 documento

1 / 55

Documentos relacionados


Pré-visualização parcial do texto

Baixe 2002 2007 brasil venezuela e outras Exercícios em PDF para Relações Internacionais, somente na Docsity! Universidade de Brasília Instituto de Relações Internacionais Brasil e Venezuela Aproximação e afastamento nos governos Lula e Chávez — 2003 a 2008 Aluna: Denize A. Bacoccina Matrícula 2007/58558 Orientadora: Professora Maria Helena de Castro Santos Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de especialista em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília pelo IX Curso de Pós-Graduação lato sensu em Relações Internacionais da UnB. Brasília Março de 2008 Agradecimentos Aos professores do curso de Relações Internacionais da UnB que me fizeram redescobrir o gosto pelo estudo e me ajudaram a ver com mais clareza e profundidade o que antes só conhecia pela face mais visível e contemporânea. A Celi Rodrigues, pelas dicas sobre as temidas regras de formatação. À professora Elsa Cardozo, da Universidade Metropolitana da Venezuela pelas sugestões de leituras. Aos amigos que me ajudaram com informações e sugestões valio: Carlos Chirinos, amigo e companheiro de ofício, responsável pelo meu interesse inicial pela Venezuela e fonte inesgotável de informações sobre o país, e Angela Pimenta, que com seu rigor de editora me ajudou a tornar o trabalho mais abrangente e atualizado. E a Bonifácio Magalhães, pelo incentivo e comentários sempre generosos. avançou nas duas reuniões para este fim realizadas em setembro e dezembro do ano passado. A relação é cordial, mas os dois já não falam a mesma língua. Brasil e Venezuela ainda têm uma agenda comum de integração regional, mas o restante de suas políticas externas e sua inserção internacional são bastante diferentes. Embora o Brasil ainda advogue a favor de uma política externa e comercial Sul-Sul, é certo que tampouco quer abrir mão de uma boa relação com os Estados Unidos e outros países desenvolvidos, enquanto Chávez intensifica os laços com o Irã do presidente Mahmoud Ahmadinejad e compra armamentos russos. Apesar do distanciamento político, é certo que a relação comercial não está sofrendo com os revezes da menor sintonia política. Ao contrário. Neste caso, o Brasil se beneficia de um distanciamento muito maior — que chegou a um rompimento, embora com idas e vindas — da Venezuela com a Colômbia. O vizinho andino é o segundo maior parceiro comercial da Venezuela, depois dos Estados Unidos, seguido de perto pelo Brasil. As exportações brasileiras para a Venezuela não param de crescer. No ano passado, as empresas brasileiras exportaram US$ 4,7 bilhões, com um superávit de US$ 4,3 bilhões na balança comercial entre os dois países, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. O perfil venezuelano de exportador de petróleo e importador de alimentos e manufaturados interessa ao Brasil. No entanto, há limites para este descasamento. Fatores externos não previstos podem acelerar os fatos e obrigar os atores a tomar decisões que não estavam contempladas nos cenários anteriores. Um exemplo disso é a crise entre Colômbia, Equador e Venezuela, que começou com o ataque colombiano a um acampamento das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) em território equatoriano, em março de 2008, e resultou, por um breve período, no rompimento das relações da Venezuela e Equador com Colômbia. O Brasil conseguiu se manter neutro e dialogando com todas as partes, mas não é difícil supor que se houvesse um aprofundamento da crise o país poderia se ver obrigado a escolher um lado. O processo de aproximação em um grau nunca visto, seguido de distanciamento num período total de apenas cinco anos, é o tema deste trabalho. Na falta de ampla literatura acadêmica para fato tão recente e dinâmico, é intenso o uso de material jornalístico, discursos oficiais, entrevistas com atores importantes e ainda a observação direta de alguns eventos na qualidade de jornalista. O texto está dividido em cinco capítulos e a conclusão. No primeiro, é traçado um pequeno histórico das relações entre os dois países: o panorama político no qual se deu, em 1998, a eleição do tenente-coronel Hugo Chávez Frias, um dos líderes de uma tentativa frustrada de golpe de Estado em 1992; a atuação do Brasil — ainda no governo Fernando Henrique Cardoso — rejeitando o golpe que tirou Chávez do poder por dois dias em abril de 2002; o envio de gasolina ao país em dezembro do mesmo ano durante a greve geral promovida pelo empresariado; a eleição de Lula no Brasil, em 2002, e as negociações ainda da equipe de transição para a formação de um Grupo de Amigos para ajudar a Venezuela a superar a di ão interna e promover a reconciliação entre governo e oposição. No segundo capítulo, é analisada a aproximação entre os presidentes Lula e Chávez, a partir da posse de Lula em primeiro de maio de 2003 — o venezuelano foi o primeiro chefe de Estado a ser recebido pelo novo presidente brasileiro, já no dia 2 de janeiro — e os projetos que unem os dois: a política Sul-Sul, a integração energética e de infra-estrutura na América do Sul, o fortalecimento da região para negociar com os países ricos em melhores condições e o discurso de esquerda e de justiça social. O terceiro capítulo trata do distanciamento, que tem seu momento mais claro na nacionalização dos hidrocarbonetos na Bolívia, apoiada pela Venezuela — que forneceu ainda apoio técnico para a mudança dos contratos em termos menos favoráveis às empresas estrangeiras. Também ficaram estancados ou avançaram lentamente os projetos conjuntos das duas petroleiras e a entrada da Venezuela no Mercosul, patrocinada por Brasil e Argentina e cuja aprovação pelo Congresso brasileiro foi prejudicada por declarações de Chávez contra a instituição. O atual estado das relações entre os dois países é abordado no capítulo quatro. Os encontros recentes mostraram poucos avanços e evidenciaram as dificuldades para a retomada da agenda comum. No plano político, ela se distanciou mais: enquanto Chávez aumenta as agressões aos Estados Unidos e se aproxima do Irã e das Farc, Lula se distancia da guerrilha colombiana e tenta se mostrar ao mundo como um fator de moderação na região. O capítulo cinco fala das relações comercia s nunca estiveram tão s. Nesta área, as col bem. Neste caso, porém, o aprofundamento das relações comerciais com o Brasil se dá de forma coerente com a política externa de Chávez em relação a outros parceiros: a Venezuela está comprando mais do Brasil e menos dos Estados Unidos e da Colômbia, seus parceiros mais tradicionais, agora transformados em desafetos políticos. A conclusão mostra que o futuro das relações entre os dois países — especialmente no plano político — depende também da dinâmica regional, e de o Brasil conseguir administrar, como tem feito até agora, uma boa relação com Caracas e com Washington ao mesmo tempo. A crise regional deste início de março, envolvendo Colômbia, Equador e Venezuela, indica que o Brasil ignorou a Venezuela nas suas gestões diplomáticas para mediar o conflito, referindo-se diretamente apenas à Colômbia e Equador. 10 entre Brasil e Venezuela foi a Iniciativa Amazônica, lançada pelo Presidente Itamar Franco em Buenos Aires, durante o encontro do Grupo do Rio (Dezembro de 1992)”. Mas apesar dos movimentos anteriores, foi a partir de 2003, com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que o discurso venezuelano encontrou uma retórica semelhante do lado brasileiro, não apenas no tocante à integração regional, mas também na ambição de construir uma nova ordem mundial questionando o mundo unipolar dos Estados Unidos. A intensidade da relação estabeleceu-se logo nos primeiros dias de mandato do novo presidente brasileiro. Chávez foi o primeiro mandatário a ser recebido em audiência privada por Lula já na manhã do dia 2 de janeiro de 2003. A partir daí as visitas seriam frequentes nos meses seguintes, especialmente do presidente venezuelano a Brasília em busca de apoio num momento de forte crise interna. 1.2- A eleição de Chávez A eleição do tenente-coronel Hugo Rafael Chávez Frias, no dia 6 de dezembro de 1998, com 56,2% dos votos, mudou a história da Venezuela. Uma mudança ardentemente desejada pelos venezuelanos, depois de 40 anos de alternância no poder de dois partidos que apesar de adversários pouco se diferenciavam: a Ação Democrática (AD), social-democrata, e o Comitê Eleitoral Independente (Copei), democrata-cristão. “Em 1998, todos os venezuelanos, incluindo os que não votaram em Hugo Chávez, desejavam uma mudança” (Marcano e Tyszka, 2006:16)*. O lema de Chávez naquelas eleições é mudar, “acabar com 40 anos de democracia corrupta” (Marcano e Tyszka, 2006:15)). + MARCANO, Cristina e TYSZKA, Alberto Barrera. Hugo Chávez sem uniforme: uma história pessoal. Rio de Janeiro: Gryphus, 2006. * Idem q Nas últimas quatro décadas, a política venezuelana havia sido dominada pelo chamado Pacto de Punto Fijo, acordo de respeito aos resultados das urnas e divisão do poder firmado entre AD, Copei e União Republicana Democrática (URD). O acordo permitiu que a AD elegesse o presidente venezuelano por seis vezes e o Copei em outras duas neste período. Além disso, até 1993, os dois partidos elegeram a maioria dos deputados e dominaram também o Congresso. Em contraste, em 1999 a AD não conseguiu eleger um único parlamentar para a Assembléia Nacional Constituinte e na eleição de 2000 obteve apenas 18,2% das cadeiras na Câmara dos Deputados. O desempenho do Copei foi ainda pior: nenhuma cadeira em 1999 e apenas 4,2% em 2000, a primeira eleição após a promulgação da nova constituição bolivariana. (Amorim Neto, 2003) $ Chávez surgiu na cena política venezuelana em fevereiro de 1992, quando junto com outros comandantes militares liderou um fracassado golpe contra o presidente Carlos Andrés Perez, da AD. O golpe fracassou, mas Chávez ficou famoso porque foi o encarregado de ler diante das câmaras o boletim pedindo a rendição dos rebeldes. Disse que o golpe não havia sido bem-sucedido “por enquanto” e que os companheiros deveriam entregar as armas. Oppenheimer (2005:292) relata o clima daquela época numa viagem a Caracas em 1992: “Recuerdo que lo que más me impresionó de mi viaje a Venezuela después del intento de golpe de 1992 fue la pasividad — casi complacência — con que reaccionó la mayoría de los venezolanos ante la intentona golpista... Y en lugar de repudiar el sangriento intento de golpe, muchos venezolanos se encogían de hombros, o decían que el gobierno se lo merecia”? $ AMORIM NETO, Octavio. De João Goulart a Hugo Chávez: A política venezuelana à luz da experiência brasileira. In GUIMARÃES, Samuel Pinheiro e CARDIM, Carlos Henrique (Orgs.). Venezuela: visões brasileiras. Brasília: IPRI, 2003. 7 OPPENHEIMER, Andrés. Cuentos Chinos: el engaão de Washington, la mentira populista y la esperanza de América Latina. Buenos Aires: Debolsillo, 2007. 12 Julgado e condenado, Chávez foi anistiado em 1994 pelo sucessor de Perez, Rafael Caldera, que já havia sido presidente nos anos 60. Chávez deixa a cadeia convencido a não participar da vida política venezuelana de forma institucional, ainda acreditando que a única maneira de mudar as coisas no país era através de uma mudança radical. Aos poucos, porém, vai mudando de idéia e concorre às eleições presidenciais de 1998 pelo partido que ele mesmo criou, o Movimento Quinta República (MVR), apoiado por um grupo de partidos reunidos numa coalizão denominada Pólo Patriótico. A eleição de Chávez marca uma profunda divisão no país, afetado por uma prolongada crise econômica que levou a um sentimento de desesperança em relação ao modelo político que vigorou até então. Segundo Maringoni (2004:165), “o ex-militar não foi eleito no bojo de um crescimento vigoroso do movimento de ma: s, mas foi caudatário de uma formidável e espontânea onda de descontentamento e rebelião”. Em 11 de dezembro de 1998, Hugo Chávez Frias é proclamado presidente da Venezuela pelo Conselho Nacional Eleitoral, o sétimo do período democrático iniciado em 1958. Em pouco mais de seis anos, desde que se tornou conhecido dos venezuelanos ao admitir o fracasso do golpe de 1992, transformou-se de oficial militar obscuro no mais famoso presidente que a Venezuela já teve. “Mais do que uma vitória dos partidos coligados sob o manto do Pólo Patriótico, aquela era uma vitória de sua liderança pessoal, que conseguiu catalisar vastos interesses prejudicados em meio às turbulências de um país em ebulição. Esta característica tornar- se-ia determinante, para o bem e para o mal, nos anos seguintes.” (Maringoni, 2004:166)* 8 MARINGONI, Gilberto. A Venezuela que se inventa. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. 15 interferir nos assuntos internos do país. A oposição chegou a reclamar oficialmente na embaixada brasileira em Caracas, classificando o ato de ingerência em assuntos internos da Venezuela. No Brasil, no entanto, a ajuda a Chávez foi vista com naturalidade, e até elogiada em editorial do jornal Folha de S. Paulo de 29 de dezembro de 2002, que lembrou que, apesar das críticas, Chávez era o presidente constitucional do país.!º O futuro ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, disse em entrevista à época que “o Brasil mantém relações cordiais e respeitosas com o governo constitucional da Venezuela, um governo eleito democraticamente. Essas relações implicam cooperação mútua.” Amorim também explicou o interesse brasileiro na estabilidade do país: “A Venezuela é um parceiro muito importante, porque tem muitas afinidades com o Brasil. São afinidades culturais, de clima, até o povo é muito parecido com o nosso. Também tem uma larga fronteira com o Brasil e é um país rico em fontes de energia. O Brasil, portanto, tem interesse em manter relações próximas e produtivas com a Venezuela. O nosso partido é o da constitucionalidade e da democracia.”!! Após a posse, a atuação presidencial brasileira se intensificou. O Brasil articula a formação do Grupo de Amigos do Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) para a Venezuela, com o objetivo de promover o diálogo e a reconciliação entre o governo e a oposição, rompidos depois do breve golpe de Estado sofrido por Chávez em abril de 2002 e agravado com a greve geral ainda em curso. Chávez pede a ajuda de Lula para enfrentar a crise, e ouve do presidente brasileiro que deve ser mais flexível, conversar com a oposição e que tem todo o respaldo do governo brasileiro. “º Disponível em http://www! folha uol.com.br/fsp/opiniao/fz2912200202.htm, acesso em janeiro de 2008. u CANTANHÊDE, Eliane. Brasil é contra ruptura, diz chanceler de Lula. Folha de S. Paulo, São Paulo, 27 de dezembro 2002. Disponível em http://www folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2712200202.htm, acesso em janeiro de 2008. 16 No dia 15 de janeiro, Lula e Chávez almoçam juntos em Quito, no Equador, durante a posse do presidente Lúcio Gutierrez. No mesmo dia, o Brasil anuncia a criação do Grupo de Amigos. Além do Brasil, o grupo é integrado por Chile, México, Portugal, Estados Unidos e Espanha. Chávez não queria a participação dos dois últimos, a quem acusa de terem apoiado o golpe contra ele em 2002. Mas Lula, segundo contaria depois, insistiu que era fundamental ter países que contassem com a confiança da oposição para que fosse possível um acordo. Numa reunião em Washington, em 24 de janeiro, o Brasil recebe o aval dos Estados Unidos para liderar o grupo. Em abril daquele mesmo ano, em aula magna no Instituto Rio Branco, o chanceler Amorim faz um relato do esforço brasileiro em torno do Grupo de Amigos: “Desde que assumi minhas funções, tenho dedicado considerável tempo às tentativas de contribuir para um encaminhamento positivo da situação na Venezuela, tendo sempre presente o postulado básico da não-intervenção”, afirmou.” Em maio, é assinado enfim em Caracas o acordo entre governo e oposição, com o aval dos embaixadores dos seis países do Grupo e da OEA. Em nota oficial, o Itamaraty elogia a “expressão inequívoca de boa vontade política de seus signatários com vistas ao encaminhamento das diferenças que subsistem, sempre sob a égide da democracia e do Estado de Direito”. O acordo entre governo e oposição dá início ao processo que culminaria no referendo revocatório do mandato de Chávez, realizado em agosto de 2004, quando os eleitores teriam a chance de revogar o mandato de Chávez, eleito até 2007. A vitória de Chávez no referendo 2 Disponível em http://www.mre.gov.br/portugues/politica externa/discursos/discurso detalhe3.asp?ID DISCURSO= 2108, acesso em 16 de fevereiro de 2008. É Disponível em http:/Awww.mre.gov br/portugues/imprensa/nota detalhe3.asp?ID RELEASE=223, acesso em 16 de fevereiro de 2008. 17 legitima o poder do presidente, especialmente perante a opinião pública internacional, mas, como previa o Itamaraty, permanecem as diferenças internas, e a sociedade venezuelana cada vez mai se divide entre partidários e adversários do presidente, melhor definidos como entre os que adoram e os que odeiam Chávez. A oposição, que desde a greve geral criticou o governo brasileiro por exportar gasolina ao país, vê uma aproximação cada vez maior entre os dois governos. Questionado sobre a desconfiança, o chanceler Celso Amorim deixou clara a posição brasileira: “Nós não fizemos nenhuma intervenção. A nossa preocupação é institucional. É preciso deixar isso muito claro. Na Venezuela há uma crise política, mas não há um estado de beligerância. Não se pode tratar a oposição como se fosse um movimento insurgente e obviamente desejamos que jamais vl4 chegue a isso. Então temos relação com o governo constituído. e Disponível em http://www. mre.gov.br/portugues/noticiario/nacional/selecao detalhe3.asp?ID RESENHA=273726, acesso em fevereiro de 2008 20 América do Sul. O processo de fortalecimento da América do Sul e de substituição do conceito de América Latina por este é anterior aos presidentes Lula e Chávez. Ele se inicia nos anos 90, mas ganha um novo impulso com os dois presidentes atuais. A primeira tentativa concreta de integração sul-americana aconteceu ainda durante o governo Itamar Franco (1992-1994), quando o então chanceler Celso Amorim propôs a criação da Área de Livre Comércio Sul- Americana (Alcsa), já então um contraponto à Área de Livre Comércio das Américas (Alca) dos americanos, que incluia todo o hemisfério. Já existia, desde 1991, o Mercosul, integrado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. No governo Fernando Henrique Cardoso foi realizada em Brasília em 2000 a reunião de presidentes da América do Sul, que deu origem à Iniciativa para Integração da Infra-Estrutura Regional da América do Sul (IIRSA), plano para desenvolver a infra-estrutura física estabelecendo as conexões entre estes países. Com Lula, o conceito de América do Sul ganhou mais força, a começar pela criação de uma subsecretaria dedicada à região no Itamaraty. “Nossa prioridade é indiscutivelmente a América do Sul"!8, afirmou Amorim em aula magna no Instituto Rio Branco em abril de 2003, quatro meses após assumir o cargo. A prioridade à região já havia sido declarada desde a primeira entrevista do novo chanceler, logo depois de empossado no cargo, no dia primeiro de janeiro. Do lado venezuelano, a prioridade à integração latino-americana — o país não pode adotar o mesmo discurso sul-americanista brasileiro, já que tem parte do seu território banhado "Disponível em http://www mre. gov.br/portugues/politica externa/discursos/discurso detalhe3.asp?ID DISCURSO=2108, acesso em 17 de fevereiro de 2008. 24 pelo Caribe e intensas relações com estes países — consta até do novo texto constitucional aprovado por Chávez em 1999, um ano após assumir o governo pela primeira vez. Artículo 153. º La República promoverá y favorecerá la integración latinoamericana y caribeiia, en aras de avanzar hacia la creación de una comunidad de naciones, defendiendo los intereses económicos, sociales, culturales, políticos y ambientales de la región. La República podrá suscribir tratados internacionales que conjuguen y coordinen esfuerzos para promover el desarrollo común de nuestras naciones, y que garanticen el bienestar de los pueblos y la seguridad colectiva de sus habitantes. Para estos fines, la República podrá atribuir a organizaciones supranacionales, mediante tratados, el ejercicio de las competencias necesarias para levar a cabo estos procesos de integración. Dentro de las políticas de integración y unión con Latinoamérica y el Caribe, la República privilegiará relaciones con Iberoamérica, procurando sea una política común de toda nuestra América Latina. Las normas que se adopten en el marco de los acuerdos de integración serán consideradas parte integrante del ordenamiento legal vigente y de aplicación directa y preferente a la legislación interna. o Lula e Chávez lançaram ou apoiaram vários projetos de integração regional, principalmente ligados a energia. Em abril de 2003, numa visita de Chávez ao Recife nasce a primeira parceria nesta área, com a assinatura da ata para a construção da Refinaria Abreu e Lima, anunciada como um empreendimento conjunto entre a Petrobras e a estatal venezuelana PDVSA. A refinaria receberia petróleo pesado do campo de Carabobo, na Faixa do Rio Orinoco, no sul da Venezuela, que também seria explorado em conjunto pelas duas empresas. Foi anunciada como o início de uma estreita parceria entre as duas empresas, que daria ainda origem ao Gasoduto do Sul, um ambicioso projeto para levar ao Cone Sul gás da Venezuela, ando pela Amazônia, Nordeste brasileiro e Bolívia, até chegar à Argentina. Na ocasião, Lula descreveria assim sua relação com Chávez: “Disponível em http://www .constitucion.ve/documentos/ConstitucionRBV 1999-ES.pdf, acesso em 17 de fevereiro de 2008. 22 “As reuniões que mantive com o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, corresponderam às nossas melhores expectativas. (...) Compartilhamos de uma grande desafio comum, que é o de governar, com visão e mão reformadoras, países marcados por profundas desigualdades econômicas e sociais. Temos a disposição de estreitar ainda mais as relações entre os nossos países. Concordamos em atribuir a mais alta prioridade à integração da América do Sul”? Lula também falou sobre a prioridade aos projetos de integração física entre os dois países, a coincidências nas posições em relação a uma Alca “equitativa e equilibrada, levando em conta os diferentes níveis de desenvolvimento econômico dos países do Hemisfério” e os planos de uma zona de livre comércio entre a Comunidade Andina de Nações (CAN) e o Mercosul, para a criação de um espaço econômico integrado em toda a região antes de 31 de dezembro de 2003. No mesmo ano, a Venezuela assina com o Mercosul um Acordo de Complementação Econômica (ACE), ponto de partida para o rápido crescimento das exportações brasileiras ao país andino. Um ano depois, a Venezuela pa: a integrar o Mercosul como membro associado e, em 2005, formaliza seu pedido de adesão como membro pleno, que seria aprovado pelos quatro membros do bloco em 2006, sujeito ainda à aprovação dos Congressos dos países. Os dois presidentes compartilhavam também a prioridade à relação Sul-Sul, e ambicionavam “mudar a geografia comercial do mundo”, como afirmou o presidente Lula em diversos discursos no Brasil e no exterior. No primeiro ano de governo, Lula visitou a maioria dos países da América do Sul e cinco da África. Foram ainda recebidos em Brasília, no Planalto ou no Itamaraty, dezenas de presidentes e chanceleres da América Latina, África é Oriente Médio. ?htyp://w ww mre.gov br/portugues/politica externa/discursos/discurso detalhe3.asp?ID DISCURSO =2093, acesso em 23 de fevereiro de 2008. 25 Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) de elevação do preço do petróleo — principal fonte de renda do país. No início de 2007, o presidente venezuelano faz duras críticas ao etanol, especialmente após o acordo entre Brasil e Estados Unidos para promover a produção do biocombustível na América Central e Caribe, região sob influência de Chávez com acordos de fornecimento de petróleo e derivados a preços subsidiados. As críticas são reforçadas por Fidel Castro, amigo de Lula desde os anos 80. Cuba é um produtor de açúcar que poderia se beneficiar da produção de etanol, mas neste momento tem na Venezuela uma importante fonte de ingressos, com o fornecimento de petróleo a preços subsidiados e acordos para o envio de médicos, professores e outros profissionais cubanos ao país. As críticas ao etanol criaram um desgaste, mas o ponto de inflexão na relação ão Brasília-Caracas no início do cooperativa e de interesses comuns que caracterizava a reli governo Lula parece ter sido o apoio da Venezuela ao processo de nacionalização dos hidrocarbonetos na Bolívia, país que tem na brasileira Petrobras seu maior investidor estrangeiro. Cumprindo uma lei já aprovada antes de sua eleição como presidente, Evo Morales tomou posse em janeiro de 2006 e endureceu o controle sobre as empresas estrangeiras do setor de hidrocarbonetos, obrigando as petroleiras a entregar o controle de suas operações à estatal boliviana YPFB (Yacimientos Petroliferos Fiscales de Bolivia). Tropas do Exército boliviano chegaram a cercar refinarias da Petrobras em maio de 2006 e técnicos da estatal venezuelana deram apoio ao governo boliviano na nacionalização, que atingiu as operações da Petrobras no país. Logo depois, ocorreu o mais ruidoso momento na relação entre os dois países e seus presidentes, acompanhado de perto pela imprensa e pela população brasileira: as declarações 26 de Chávez sobre o Congresso brasileiro, chamado de “papagaio de Washington” pelo presidente venezuelano, e sua repercussão na aprovação da entrada da Venezuela no Mercosul. Depois do impulso inicial, com a adesão como membro pleno em 2005, apenas um ano após a entrada como membro associado, o processo de convergência econômica que pode colocar o acordo em prática está atualmente paralisado tanto na instância técnica quanto política. Embora muitas das promessas de parceria feitas nos primeiros anos tenham sido colocadas no papel, a maioria não deixou a condição de letra impressa. É o caso do acordo para a exploração de petróleo na Faixa do Orinoco — só uma parte dela, a refinaria em Pernambuco, saiu do papel depois de muitas reuniões e de uma iniciativa unilateral da Petrobras. Outras, como o Banco do Sul, avançaram até o limite da constituição formal, mas permanece a indefinição sobre o formato e os objetivos da instituição. No caso da Alca, embora os dois presidentes concordassem que a área de livre comércio proposta pelos americanos seria ruim para a parte sul do hemisfério, Lula nunca se entusiasmou com o bloco proposto por Chávez: a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), integrada por Venezuela, Cuba, Bolívia, Nicarágua e República Dominicana. 3.1- O caso Bolívia Como indicado, a nacionalização dos ativos da Petrobras na Bolívia e o apoio de Chávez a Evo Morales em atitudes contrárias aos interesses brasileiros — embora Morales estivesse cumprindo promessa de campanha e defendendo o interesse dos bolivianos — pode ser considerado um ponto de inflexão na tolerância do governo brasileiro ao que até então eram apenas considerados “excessos verbais” do presidente venezuelano. 27 O processo de nacionalização começou em maio de 2005, com a aprovação da Lei de Hidrocarbonetos, que aumentava para 50% os impostos e royalties pagos pelas empresas privadas ao governo. O presidente era Carlos Mesa, vice que assumiu quando Gonzalo Sánchez de Lozada foi obrigado a renunciar, em outubro de 2003, também por manifestações populares relacionadas ao setor de hidrocarbonetos. A oposição, liderada pelo MAS (Movimento ao Socialismo) do então líder cocaleiro e deputado Evo Morales, exigia uma legis ão mais dura para as empresas estrangeiras. Mesa relutou em sancionar a lei aprovada pelo Congresso, argumentando que poderia afugentar investidores e levá-los a acionar o governo boliviano na Justiça, mas acabou cedendo à pressão política. A nova lei já previa a nacionalização do setor, mas havia um sentimento — talvez ingênuo — de que não seria rigorosamente cumprida. Morales se elegeu prometendo retomar, para os bolivianos, o controle sobre seus recursos naturais e usar as riquezas para desenvolver o país. No discurso de posse, em 22 de janeiro de 2006, já disse que iria nacionalizar o setor de hidrocarbonetos e que privilegiaria a segurança social em vez da segurança jurídica, numa clara afirmação de que poderia modificar a legislação vigente para aumentar a parcela do » 23 Estado nos ganhos das empresas. “A Bolívia quer sócios, não donos” “, afirmou. No dia seguinte, o ministro de Hidrocarbonetos da Bolívia, Andrés Solis Rada, disse que a relação com a Petrobras era especial e que a empresa brasileira teria um tratamento muito diferente do dispensado às outras petroleiras estrangeiras. ? Disponível em http:/Awww bbe.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2006/01/060122 morealespossemb.shtml, aceso em 24 de fevereiro de 2008. “Disponível em http:/Awww bbe.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2006/01/060123 petrobrasboliviams.shtml, acesso em 24 de fevereiro de 2008. 30 pedindo inclusive autorização para visitar refinarias e outras instalações da Petrobras da Bolívia? A presença de funcionários da PDVSA na Bolívia foi confirmada pelo ministro Celso Amorim em depoimento na Comissão de Relações Exteriores do Senado, em 9 de maio. O ministro disse que a política externa brasileira é “da boa vizinhança” e “não do porrete”, e admitiu que atitudes do presidente venezuelano às vezes causam “desconforto”. “Foi transmitido ao presidente Chávez nosso desconforto e o desconforto pessoal do presidente Lula com algumas dessas ações. A ponto de ele [Lula] dizer que isso colocava em risco o gasoduto [Argentina Brasil-Venezuela] e a própria integração sul-americana.” Na mesma audiência, Amorim reafirmou o interesse brasileiro pela integração. O governo venezuelano fez ainda um acordo com o governo boliviano que previa cooperação técnica da PDVSA, com envio de petróleo e derivados para prevenir um eventual desabastecimento no caso de paralisação das refinarias da Petrobras, responsáveis pelo abastecimento interno da Bolívia.” O decreto dava às empresas estrangeiras um prazo de seis meses para se adaptar à nova legislação ou deixar o país. O historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva descreve desta maneira a percepção brasileira: “Para grande parte da opinião pública, isso soava como um ato de felonia de Chávez contra o Brasil. O governo brasileiro sempre defendeu Chávez dos ataques norte-americanos e sempre 2” Disponível em http://www .folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi0405200612.htm, acesso em 24 de fevereiro de 2008. *º Disponível em http:/Awww .folha.uol.com br/fsp/dinheiro/fi 1005200620.htm, acesso em 24 de fevereiro de 2008. *! TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. O Brasil e a revolução boliviana. Carta Maior. 9 de maio de 2006 Disponível em http://www .cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna id=3065, acesso em 2 de março de 2008. 31 manteve as mais fraternas relações com “El Comandante”. A criação do Grupo de Países Amigos da Venezuela — um anteparo à intervenção norte-americana — e até o envio de combustível durante uma poderosa greve da oposição deveria ter aconselhado Chávez a moderar o ímpeto teatral e espetaculoso de seu colega boliviano... Aparentemente, nem Evo nem Chávez preocuparam-se com a situação do presidente Lula e com os sentimentos nacionais brasileiros. Sub-avaliaram, ou simplesmente não avaliaram, o impacto que suas ações teriam sobre a opinião E) pública brasileira. Em 27 de outubro de 2006, em plena reta final da campanha pela reeleição no Brasil, a Petrobras aceita as condições da Bolívia e concorda em permanecer no país recebendo uma remuneração menor. Em entrevistas, a Petrobras afirma que o negócio era vantajoso e que voltaria a investir no país. Nos meses seguintes, porém, os investimentos no país vizinho ficam congelados, assim como as relações entre Lula e Morales. Novos investimentos só seriam anunciados mais de um ano depois, numa visita do presidente Lula a La Paz em dezembro de 2007. 3.2 - O caso etanol O álcool combustível foi introduzido no Brasil em 1975, como resposta ao choque do petróleo de 1973. Com a queda no preço do petróleo, nos anos 1990, o etanol continuou a ser adicionado à gasolina, mas o carro a álcool praticamente desapareceu. O desenvolvimento do carro flex fuel, em 2003, marca a retomada do uso do etanol como combustível no Brasil. Ao mesmo tempo, cresce a preocupação mundial com a poluição, com o aquecimento do planeta e a condenação dos combustíveis fósseis como um dos principais causadores das mudanças climáticas. *? Idem 32 No Brasil, embora a preocupação com a poluição ambiental esteja presente nas grandes cidades, o desenvolvimento do etanol se deu por outros motivos. Num momento em que produção de petróleo era insuficiente para o consumo doméstico, o etanol permitiu economizar dólares com sua importação e desenvolver uma tecnologia brasileira envolvendo usineiros e fabricantes de veículos.” Mas no discurso do presidente Lula, a partir do fim de 2003 internamente e a partir de 2004 também no exterior, o etanol brasileiro seria o instrumento da nova “geografia comercial” que o Brasil pregava. Na retórica presidencial, o etanol iria ao mesmo tempo salvar o planeta dos males causados pela queima de combustíveis fósseis e desenvolver as regiões mais pobres do mundo, por coincidência com clima bom para o plantio de cana-de-açúcar. O que os impedia eram os países desenvolvidos, especialmente os Estados Unidos, que também utilizavam o combustível em seus veículos, mas preferiam o etanol americano, feito de milho, com elevados subsídios do governo. A retórica brasileira não parecia incomodar Chávez até a aproximação entre Brasil e Estados Unidos para a produção de etanol na América Central e Caribe, região de influência de Chávez através da Petrocaribe, iniciativa venezuelana de fornecimento de petróleo subsidiado aos países da região. Em visita ao Brasil em março do ano passado, o presidente americano George W. Bush elogiou os esforços do Brasil nesta área e fez um acordo de cooperação para que os dois países desenvolvessem o etanol na América Central e Caribe. Chávez reagiu dizendo que o etanol era um perigo e que cana-de-açúcar e milho deveriam ser usados como alimentos, e não para “alimentar os carros dos ricos”. Disse que a 3 PAIXÃO, Antonio Luiz e CASTRO SANTOS, Maria Helena de. O Álcool combustível e a pecuária de corte. Fragmentação e porosidade no Estado burocrático-autoritário. Disponível em http://www .anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbes 00 07/rbes07 03.htm, acesso em 9 de março de 2008. 35 sinais de cansaço. A estratégia do governo brasileiro era manter Chávez por perto e assim talvez conseguir exercer uma influência sobre ele, mas Chávez já não parece “controlável”. Em plena campanha pela reeleição, o presidente Lula ficou na cidade apenas o tempo suficiente para participar da cerimônia. Cancelou eventos políticos dos quais participaria com Chávez temendo ser punido pela lei eleitoral, e pediu ao colega que não interferisse nas eleições brasileiras. Chávez viu seus candidatos sagrarem-se vencedores na Bolívia, na Nicarágua e no Equador, mas também acredita-se que tenha contribuído para a derrota de Ollanta Humala no Peru e Lopez Obrador no México. Com a opinião pública dividida a respeito de Chávez, Lula só voltou a visitar a Venezuela depois de garantir sua própria reeleição, para aí sim participar de um evento de campanha de Chávez — a inauguração de uma ponte construída pela empresa brasileira Odebrecht. A entrada da Venezuela no Mercosul motivou críticas no Brasil desde o início. Mesmo a Confederação Nacional da Indústria (CND, associação de empresários que em tese se beneficiariam de uma maior integração comercial com um país importador como a Venezuela, se posicionou contrária à associação. Um estudo do Grupo de Negociações Internacionais da entidade diz que a entrada da Venezuela no Mercosul “não representa melhora substantiva nas condições de acesso dos produtos brasileiros ao mercado venezuelano” em relação ao acordo de livre comércio (ACE- 36 59), em vigor desde 2003.º O governo defendeu a entrada do novo sócio, ressaltando que agora o bloco deixava os limites do Cone Sul e se estendia “do Caribe à Patagônia” ” Mas os problemas não tardaram. Para entrar em vigor, o protocolo de adesão aprovado pelos Executivos dos cinco países precisava ainda ser aprovado pelos Congressos. No Brasil, o documento foi enviado ao Congresso em 26 de fevereiro de 2007, quase oito meses depois de assinado. Em maio, o presidente Chávez decide revogar a concessão do canal venezuelano RCTV, afirmando que a emissora apoiou o golpe contra ele em 2002. O Senado brasileiro aprova uma moção pedindo que ele reconsidere a decisão. Chávez responde que a instituição age “como papagaio de Washington”. O ataque dá início a uma crise diplomática entre os dois países, na qual o presidente Lula e o próprio Itamaraty se comportam ora tentando apaziguar os ânimos ora deixando que o assunto se resolvesse por seus próprios meios. Lula também lembrou a Chávez que a entrada da Venezuela dependia do Congresso e fugia à alçada do Executivo. Quando a crise parecia esquecida, Chávez voltou a criticar o legislativo, desta vez por demorar a aprovar a adesão da Venezuela, e em julho disse que retiraria o pedido se em três meses não tivesse sido aprovado. “O Mercosul tem regras”, respondeu Lula, ao mesmo tempo em que destacou como era importante a presença da Venezuela no bloco. Em setembro, durante o encontro de Lula e Chávez em Manaus, recrudesce a crise. O jornal O Estado de S. Paulo publica que Chávez teria criticado novamente o Congresso brasileiro, acusando-o de submisso aos interesses dos Estados Unidos. Embora a informação 36 qi Citado em http:/Awww bbe.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/11/071121 venezuelamercosuldb.shtml, acesso em 2 de março de 2008. E Disponível em http:/Awww bbe.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2006/07/060703 venezuelamercosul 1 .shtml, acesso em 2 de março de 2008. 37 fosse inverídica e Chávez não tenha de fato criticado o Congresso, apenas culpado “a mão do império” pela demora, a versão vira fato e o governo não se esforça para colocar as informações corretas sobre a mesa e nem mesmo em mobilizar a base aliada para garantir a votação. “Está por nossa conta na Câmara”, disse o relator do projeto, deputado Dr. Rosinha (PT-PR).* Em novembro, o projeto finalmente começou a andar, com a aprovação pela Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados. Mas as negociações técnicas estão paradas desde março do ano passado, quando houve a última reunião entre os grupos de trabalho que deveriam estar cuidando do cronograma de redução de tarifas. 3.4 - O estancamento dos projetos Petrobras-PDVSA A parceria entre Petrobras e PDVSA foi anunciada na primeira visita oficial de Chávez ao Brasil em 2003 após a posse, ainda em abril daquele ano. Pelos termos do acordo, seriam criadas duas empresas mistas, em sociedade entre a brasileira Petrobras e a estatal venezuelana PDVSA. Uma delas teria 60% de capital brasileiro e 40% venezuelano e iria construir em Pernambuco uma refinaria para processar o petróleo pesado extraído da Faixa do Rio Orinoco, uma região que segundo avaliações preliminares teria uma das maiores reservas do mundo, boa parte ainda não comprovada. A refinaria já tinha até nome, escolhido por Chávez: seria batizada em homenagem ao brasileiro Abreu e Lima, que lutou com Simon Bolívar na libertação da América espanhola. A outra empresa teria 60% de capital venezuelano e 40% brasileiro, e iria extrair petróleo do campo de Carabobo, no Orinoco. *Disponível em http://www .bbe.co. uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/09/070926 venezuelamercosuldb ac.shtml, acesso em 2 de março de 2008. 40 O Brasil, se não conseguiu evitar a criação do banco, como gostaria, pelo menos esteve presente desde o início, garantindo seu papel de destaque no processo de integração. Apesar do ato político de lançamento, com os seis presidentes, até agora o banco não tem estatuto e um capital anunciado de apenas US$ 7 bilhões, que não se sabe exatamente para que tipo de operação será utilizado. 41 4- O estado atual das relações A retórica do governo continua a mesma, mas o distanciamento entre Lula e Chávez é a. Na área comercial — como se verá claro, se comparado aos primeiros anos do governo petis no próximo capítulo — as relações nunca foram tão boas, com crescente importância do mercado venezuelano para as exportações brasileiras, mas os planos de investimento conjunto não avançam. O processo para a entrada da Venezuela no Mercosul está parado tanto na esfera política quanto técnica. No Brasil, a aprovação depende do Congresso, que precisa aprovar o tratado nas duas casas e até agora só votou o projeto nas comissões temáticas da Câmara, faltando ainda o plenário e as comissões do Senado. A situação é ainda pior na instância técnica, que vai decidir como e quanto acontecerá a eliminação de tarifas e barreiras entre a Venezuela e os quatro membros — Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. A última reunião do grupo de trabalho aconteceu em março de 2007 e não foram bem sucedidas as tentativas posteriores de retomar as negociações. A proclamada “amizade” entre Lula e Chávez também não é mais a mesma. Chávez fez ao Brasil sua primeira viagem internacional após a reeleição, em dezembro de 2006, mas o ano de 2007 foi ruim para as relações bilaterais. Chávez criticou o Congresso brasileiro, criticou o acordo do Brasil com os Estados Unidos para a produção de etanol e as tentativas do governo brasileiro de disseminar pela região a idéia de que o biocombustível é a salvação dos países pobres com clima adequado à produção de cana-de-açúcar. Chávez contra-argumentou que a Venezuela tem todo o petróleo e gás que a região precisa e afirmou que os biocombustíveis ameaçam a produção de alimentos. A reação de Lula às críticas não foi uniforme. O presidente brasileiro reagiu quando o venezuelano criticou diretamente o Brasil. E o etanol, mas defendeu Chávez quando este foi chamado de autoritário. Em novembro, após a 42 polêmica entre Chávez e o rei da Espanha, Lula defendeu o venezuelano. “Podem criticar o Chávez por qualquer outra coisa, inventem uma coisa para criticar o Chávez. Agora, por falta sse Lula”! de democracia na Venezuela, não é”, O diálogo bilateral entre os presidentes foi retomado em setembro de 2007 com uma reunião em Manaus. Nas palavras do porta-voz da Presidência, Marcelo Baumbach, o encontro deveria “estreitar a parceria com a Venezuela, acelerar as negociações e estabelecer prazos para as etapas dos projetos” e que estão sendo planejados entre os dois países. Mas os resultados foram modestos. Ao final, os dois presidentes, visivelmente pouco à vontade ao lado um do outro na declaração à imprensa, apenas reafirmaram as parcerias nos projetos de energia — exploração na Faixa do Orinoco e construção da refinaria em Pernambuco — e o interesse brasileiro pelo Banco do Sul (que foi finalmente lançado em dezembro daquele ano) e pelo gasoduto do sul (cujas discussões estão paradas). Nas palavras do presidente Lula, não havia divergência entre os dois, apenas falta de contato pessoal: “Em política quando dois dirigentes passam muito tempo sem se encontrar, começa a surgir entre eles uma série de inquietações, de insinuações. As pessoas começam a falar em divergência, as pessoas começam a falar em disputa de liderança, as pessoas começam a falar uma série de coisas que eu tenho consciência que não passam pela sua cabeça e não passam pela minha cabeça. Aqui não existe disputa entre dois países.” * De prático, porém, ficou decidido apenas que os dois se encontrariam a cada três meses, e a próxima reunião foi marcada para dezembro, em Caracas. Somente neste segundo encontro é que foi confirmada a parceria para a refinaria de Pernambuco, que já vinha sendo tocada pela *! Entrevista concedida no dia 14 de dezembro de 2007. Disponível em http://www info.planalto.gov.br/download/Entrevistas/pr424-2 O doc, acesso em 16 de março de 2008. e Disponível em http:/Awww bbe.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/09/070920 chavezluladb ac.shtml, acesso em 15 de março de 2008. *º Idem 45 Com um Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 285 bilhões, uma população de 28 milhões de pessoas e um PIB per capita de US$ 10 mil por ano”, a Venezuela tem um economia dominada pela exportação do petróleo, responsável por metade da receita do governo e um terço do PIB. Em 2006, era o sexto maior exportador mundial do produto.” O setor do petróleo é estatal, com parcerias minoritárias com empresas estrangeiras. A forte elevação do preço do petróleo nos últimos anos permite e até estimula o aumento das importações de não- derivados de petróleo. O barril passou de US$ 30,00 no início 2003 para US$ 95,00 em março de 2008, de acordo com a cesta da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) *” O domínio do petróleo desenvolveu na Venezuela uma economia rentista, que sempre buscou distribuir a renda do petróleo em vez de multiplicá-la. Por isso, o país era chamado de “Venezuela saudita” nos ano 70: enquanto os vizinhos sul-americanos sofriam as consegiiências do choque do petróleo, o governo venezuelano tinha dinheiro de sobra pra investir na modernização da infra-estrutura do país e em programas paternalistas para distribuir os recursos do “ouro negro”, como é chamado pela população.* Por outro lado, quando os preços do petróleo despencaram nos anos 80 e 90, o país estava despreparado para a economia de mercado, com um setor produtivo mais acostumado aos subsídios do que à busca de competitividade. *5 Dados do Fundo Monetário Internacional. Disponível em http://www imf org/external/pubs/ft/weo/2007/02/weodata/weorept.aspx?sy=2004&ey=2008 &scsm=1 &ssd=1 &sort=country&ds=. &br=1 &c=223%2C299&s=NGDP RPCH%2CNGDPD%2CNGDPDPC %2CLP&grp=0&a=&prl 1&prl.y=10, acesso em 8 de março de 2008. * Energy Information Administration — Official Energy Statistics from the US Government. Disponível em http://www .eia.doe. gov/emeu/cabs/Venezuela/Background.html, acesso em 9 de março de 2008. ” Disponível em http://www .opec.org/home/, acesso em 9 de março de 2008. “Em viagem de trabalho ao país no fim de 2006, época das eleições presidenciais, a expressão “ouro negro” ainda era ouvida nas ruas de Caracas por venezuelanos que esperavam do governo não a multiplicação, mas a divisão da riqueza que acreditavam já existir no país. 46 Embora a constituição venezuelana determine que o país seja auto-suficiente na produção de alimentos, dois terços da comida consumida no país vem de fora, o que mostra a dependência do país do comércio exterior e a abertura — embora com forte interferência do governo — da economia nos setores não relacionados a petróleo. Os Estados Unidos sempre foram os maiores parceiros comerciais da Venezuela, responsáveis por quase 30% de tudo o que o país comprou do exterior no ano passado. A Venezuela, por sua vez, é o quarto maior fornecedor de petróleo dos americanos. Além de petróleo, boa parte da economia venezuelana é controlada pelo governo, direta ou indiretamente. Sempre foi assim, através dos subsídios ao consumo e à produção nacional, mas o controle estatal aumentou no governo Chávez, com a criação de uma rede de supermercados estatais que vendem alimentos a preços subsidiados e competem com os pequenos comerciantes. Outra maneira de controlar a economia é através do câmbio: não apenas a cotação é fixada pelo governo, mas o procedimento para a compra de dólares a preço oficial também é complexa e sujeita a critérios políticos. No início de março, a cotação do dólar no mercado paralelo era mais do que o dobro do câmbio oficial. Com um controle tão grande da economia, o governo também pode decidir — numa escala muito maior do que o Brasil ou outro país com economia de mercado — de onde quer importar. Por isso, o presidente Chávez está certo quando diz que o estreitamento comercial dos dois países segue a “vontade política” dos governos. Apesar do distanciamento político entre Lula e Chávez em relação ao início do governo Lula, o crescimento constante do comércio segue a estratégia de Chávez de diversificar seus fornecedores para: 1) fazer frente ao forte crescimento do consumo com o boom dos preços do petróleo; 2) mandar um recado aos seus dois principais parceiros comerciais, Estados Unidos e Colômbia, de que pode 47 desviar as importações para outros países. No ano passado, porém, com o crescimento de 40% nas importações, todos os parceiros venderam mais para a Venezuela. Em setembro de 2007, ao chegar a Manaus para uma reunião com o presidente Lula, Chávez comentou com os jornalistas que o entrevistaram na porta do hotel que as exportações brasileiras haviam aumentado muito nos últimos anos e que isso não acontecia por acaso, mas “por vontade política”. Em dezembro, o governo venezuelano entregou ao brasileiro uma lista de 80 produtos que queria importar emergencialmente, substituindo fornecedores colombianos.” No início de fevereiro, em função da crise com a Colômbia por causa dos reféns das Farc, Chávez anunciou que estava reduzindo as importações do país vizinho e passaria a importar mais de “países amigos”, como Brasil e Argentina. Com a reaproximação da Venezuela com a Colômbia a partir de meados de março é possível que estas trocas de fornecedores não sejam cumpridas, embora com o crescimento da economia devido ao elevado preço do petróleo ainda existe espaço para aumento das exportações. O aumento do comércio também é estimulada pelo governo brasileiro. Em dezembro de 2007 o Itamaraty organizou um encontro empresarial que levou a Caracas 207 empresários brasileiros, acima da expectativa inicial, de 150º Seria de se esperar, portanto, que o potencial do mercado venezuelano levaria os empresários brasileiros a pressionar pela aprovação da entrada da Venezuela no Mercosul. Mas tem acontecido exatamente o contrário. As duas principais entidades industriais brasileiras, a CNI e a Federa ão das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), satisfeitas com o atual ritmo de crescimento das exportações, defendem maior rigor nas negociações técnicas antes da aprovação do acordo pelo Congresso brasileiro. O diretor-adjunto do Departamento Disponível em http://www .folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi 15 12200708.htm, acesso em 8 de março de 2008. * Disponível em http://www folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fil312200727.htm, acesso em 8 de março de 2008. 50 constrangimento, ou se apenas responde à pressão de forças políticas da sociedade brasileira — empresários, partidos de oposição e até membros da base aliada — que de um modo geral condenam o estilo Chávez de governar e especialmente o que apareceu, neste episódio, como um apoio do presidente venezuelano à guerrilha das Farc. Ou se trata-se simplesmente do aspecto pragmático da diplomacia brasileira, que deseja proximidade com Chávez para tentar exercer influência na região, mas não apoiaria a posição venezuelana em oposição aos Estados Unidos. No plano comercial, a aproximação entre Brasil e Venezuela parece ter vindo para ficar, e, pelo menos enquanto a economia venezuelana continuar crescendo no ritmo atual, deve ganhar importância como mercado consumidor dos produtos brasileiros. O próximo passo é uma maior integração produtiva, com a exportação para o Brasil de produtos venezuelanos e maior sinergia das cadeias produtivas, com produção complementar entre os dois países. Este é o plano do governo, mas investimentos diretos de empresas brasileiras na Venezuela, com instalação de plantas de produção, vão depender também de uma maior segurança jurídica. No momento parece precário, com os constantes anúncios de nacionalização de empresas pelo governo de Chávez. O modo mais seguro, e que vem sendo adotado pelas empresas brasileiras, é a simples exportação de produtos feitos no Brasil. O problema deste modelo é que gera resistências no setor produtivo e a longo prazo possivelmente até dos consumidores venezuelanos. Isso poderia levar a uma demanda da sociedade por mudanças e ao desenvolvimento de um sentimento protecionista e rejeição ao que poderia ser visto como excesso de influência brasileira, como já acontece em países menores, como Paraguai e Bolívia. A aprovação da adesão da Venezuela ao Mercosul enfrenta resistências no Congresso, especialmente no Senado, além das associações de representantes da indústria, e embora o 51 presidente Lula afirme que tem interesse na entrada do país no bloco, até agora os esforços do Executivo para colocar o assunto em pauta e garantir sua aprovação foram muito pequenos. A experiência da CPMF, rejeitada pelo Senado no final de 2007, mostra que nem todos os projetos de interesse do Executivo são automaticamente aprovados no Congresso. O futuro das relações entre Brasil e Venezuela vai depender também da dinâmica regional e de como Chávez administra seu discurso contra outros países da região ou mesmo o “fogo amigo” contra o próprio Brasil. Lula já deixou claro que não se incomoda com as críticas que Chávez recebe por governar de maneira pouco democrática e que não vai se juntar a elas. Mas também já mostrou que não vai se juntar a Chávez nas críticas ao governo americano. Por enquanto, o governo brasileiro tem conseguido manter boas relações com os dois país. sem ter que se envolver diretamente na disputa. Mas, se no futuro for obrigado a tomar partido, os fatos mostram que atualmente há mais convergência entre Brasília e Washington do que entre Brasília e Caracas. E é este o limite para o futuro das relações comerciais. Até agora, elas têm resistido sem problemas à menor afinidade política entre os dois presidentes e à rejeição política a Chávez por parte dos atores políticos brasileiro. Mas certamente não resistiram a um rompimento político — como se pode ver a partir da relação conturbada existente entre a Venezuela e a Colômbia. Este cenário é muito pouco provável na situação atual, mas pode surgir a partir de um “acidente” nas relações de equilíbrio regional. Um exemplo é a crise do início de março. Inicialmente um problema bilateral entre Colômbia e Equador, foi encampado e tratado como um problema regional por Chávez. O governo brasileiro foi habilidoso para tratar o problema na esfera multilateral e ao mesmo tempo insistir que a questão era bilateral, mantendo Chávez fora das negociações. 52 Poderia ter sido mais difícil se a crise se aprofundasse e de fato os países partissem para uma ação militar. Neste caso, o Brasil teria dificuldade em manter sua neutralidade por muito tempo e, mais uma vez, os fatos indicam que seu aliado natural, numa tentativa de manter ou restaurar a paz na região, não seria a Venezuela, mas os Estados Unidos. Embora o governo brasileiro não diga claramente, os “valores” historicamente defendidos pelo Brasil estão mais próximos dos Estados Unidos do que daqueles pregados pelo atual governo da Venezuela. Ao manter uma “proximidade segura” da Venezuela — um diálogo político mas não ideológico —, o Brasil mantém aberto o canal de comunicação ao mesmo tempo em que não se confunde com o vizinho, e se qualifica aos olhos dos Estados Unidos e da Europa como um contraponto importante à influência de Chávez na região. Depois de todo o esforço para ser aceito pela comunidade internacional como um interlocutor ouvido e respeitado, dificilmente o governo brasileiro colocaria este patrimônio em risco desta maneira. Siglas
Docsity logo



Copyright © 2024 Ladybird Srl - Via Leonardo da Vinci 16, 10126, Torino, Italy - VAT 10816460017 - All rights reserved