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Guias e Dicas
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Formação Política e Experiências na Assistência Psicológica em Presídios Gaúchos, Notas de estudo de Engenharia Unificada Básica

As experiências iniciais da autora na área de assistência psicológica no sistema penitenciário gaúcho, durante a consolidação da formação profissional e a participação em projetos humanistas durante o governo olívio dutra. O texto aborda a importância da participação popular na construção de mecanismos democráticos, a humanização das forças policiais e a intervenção na formação profissional.

Tipologia: Notas de estudo

2013

Compartilhado em 11/12/2013

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Pré-visualização parcial do texto

Baixe Formação Política e Experiências na Assistência Psicológica em Presídios Gaúchos e outras Notas de estudo em PDF para Engenharia Unificada Básica, somente na Docsity! 1 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA MESTRADO EM PSICOLOGIA A ARTE COMO ANTÍDOTO CONTRA OS VENENOS DO CÁRCERE LUIS EDUARDO RIBEIRO FERREIRA Niterói 2010 2 A ARTE COMO ANTÍDOTO CONTRA OS VENENOS DO CÁRCERE LUIS EDUARDO RIBEIRO FERREIRA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Psicologia. Orientadora: Profª. Drª. Cristina Mair Barros Rauter Niterói 2010 5 DEDICATÓRIA Dedico esta dissertação ao meu filho João Vítor, que com sua existência me fez entender a importância de se buscar uma vida virtuosa; a minha mãe Carmen Vera, mulher de fibra que me ensinou, com sua vida, a não aceitar as injustiças; e a minha amada esposa Ariadna que me oferece o fio da vida mais bela que pode ser vivida, com todo o seu amor. 6 AGRADECIMENTOS É difícil colocar em palavras o tanto que minha orientadora operou neste trabalho. Muito obrigado Cristina Rauter, pela intervenção clínica ao me ajudar no difícil exercício de dobra. Sempre cuidadosa com as questões e os momentos difíceis de ruptura que este trabalho exigiu, amiga muito mais que orientadora, e referência como psicóloga, pesquisadora, professora e militante, de uma suavidade inigualável. Cecília Coimbra pelo desvio na minha formação desde as primeiras leituras da graduação, acompanhando o trabalho no cárcere e o percurso deste trabalho, que com sua história revolucionária, escrita precisa, coragem e generosidade se constitui o maior modelo que um militante pode ter, de revolução permanente, instigando potentes questionamentos se fez, e se faz, presente até mesmo em meus diálogos imaginários, solilóquios, ante cada intervenção. Dedico agradecimentos muito especiais à Mirian Guindani que com trabalho, coragem e sensibilidade fez acontecer a virada política da psicologia no sistema penitenciário gaúcho, o que deu bom rumo à minha prática profissional, bem como pela honestidade com que conduz os projetos nos quais se envolve dando a cara e o coração, em especial o “PACIFICAR”. Obrigado por ter sido referência ética na SUSEPE, por ter me apoiado no início do mestrado, pela confiança na indicação para o projeto “Espírito Santo”. Ao meu amor e companheira Paty* pela parceria, paciência, dedicação e presença constante, determinantes neste processo. À minha mãe que nos cuidou dando retaguarda nos momentos mais críticos desta escrita, e à Dona Mira que na falta da minha mãe prestou cuidado sempre que as energias baixavam. Ao amigo Julião Hoenisch que me presenteou com o título deste trabalho e discutiu o projeto desde o embrião, mesmo pesando nossas diferenças teóricas. Meu irmão Otávio Brum atuante na revisão do texto e no apoio ao longo de todo o processo. Paula Kapp que fez minha inscrição no último minuto, como de costume, parceira de luta sempre presente no coração. Ao Alexandre Kapp amigão que 7 acompanhou a luta por este projeto e nunca me deixou na mão com a tecnologia. A toda a família Kapp pelo lugar no coração e a torcida. A amiga Fernanda da Guia que me ajudou a ficar no Rio de Janeiro me inscrevendo no concurso para a SEAP, momento fundamental deste percurso. Aos meus amigos Fabrício “cabeça”, Marco Antônio ”Ploc”, Cristiano “batata”, Konstantin, Rosangela, Ewelise e Marcos Planela que mesmo de longe sinalizam o continente para a minha nau nesta viagem. Companheiros de trabalho da SUSEPE, Gilmar “cavalo”, Ana Paula, Lili, Ivarlete, Magaly, Ângelo Régis, Taty La Bella e a Simone. Aos curingas do CTO-RIO Géo e Claudete. Ao Zaccone, Seu Júlio e a Fatinha que deixaram rolar o teatro na carceragem da 52ª DP. Ao Gringo Raphael Soifer parceiro de oficinas na 52ª DP que cedeu as imagens da apresentação da peça. As colegas de cachaça Lia Yamada, Claudia Camuri e Marina Vilar pela interlocução, e a turma 2007 como um todo que nunca deixou de discutir as questões que de mim transbordavam. Aos colegas de letras jurídicas Renata Tavares e Fernando Alves pelas dicas e pitacos. Minha coordenadora da SEAP Luciene Poubel sempre solidaria e a colega Beth Romano que segurou o trabalho quando o mestrado apertou. 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO_______________________________________________10 CAPÍTULO I – Cenário Político________________________________14 Caminhos / Descaminhos_________________________________________14 Aproximação com o Cárcere ______________________________________15 Oposição______________________________________________________18 Aposta________________________________________________________19 Lutas_________________________________________________________24 Solstício______________________________________________________28 CAPÍTULO II - Guerras Fratricidas_____________________________41 Reações do Sistema_____________________________________________41 O Excedente___________________________________________________44 Ainda a Mídia__________________________________________________55 CAPÍTULO III – Resistir, Criar Cenas___________________________64 Dispositivos Artísticos e o Cárcere: primeiras aproximações______________67 Propagando Dispositivos_________________________________________72 Teatro como resistência nos cárceres_______________________________73 Resistências da instituição penal___________________________________78 Dois passos atrás e um à frente____________________________________79 Cenas fora-palco________________________________________________81 A Arte nos Cárceres Fluminenses__________________________________83 Teatro na carceragem da 52ª DP (Polinter Nova Iguaçu)_________________90 Aliados em meio ao Caos_________________________________________93 CONSIDERAÇÕES FINAIS___________________________________97 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ___________________________101 ANEXO I – VÍDEO TEATRO NA 52ª DP_____________________________106 11 INTRODUÇÃO Escolhi abordar o campo de intervenção da psicologia no sistema prisional pela implicação ético-política que me é colocada, sistematicamente, em cada solicitação oficial, prevista ou “emergencial”, que me afeta desde meu ingresso, como psicólogo, no quadro de funcionários da Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE) do estado do Rio Grande do Sul, em 2001, até o momento, em que me encontro atuando com a mesma função e atividades na Secretaria Estadual de Administração Penitenciária (SEAP) do estado do Rio de Janeiro. O engajamento político que marcou meu percurso profissional também determinou a escolha do tema desta pesquisa que passou, dramaticamente, por uma mudança de estratégia de vida, buscando indicar outros caminhos pela necessidade de resistência. Assim, este trabalho é um investimento em voltar a viver a psicologia como afirmação da vida. Conseguir olhar o emaranhado das minhas pegadas, indicativas dos caminhos percorridos e escrever sobre este passado ainda vivo, pulsante em mim, que por vezes se atualiza suscitando afetos inebriantes e, noutras, aponta de maneira potente para o presente, levando-me a reinvestir e tornando ainda desejáveis algumas intervenções. Voltar o olhar para as parcerias e aliados, aos encontros que foram tecidos como redes e que, neste momento, com a distância segura, oferece uma outra condição de visibilidade. Pois outrora pouca coisa era possível e o sentimento de impotência causava obnubilação, o que tornava difícil a eleição de caminhos ou desvios que levassem às intervenções mais potentes. Parto de um terreno árido, bastante implicado com políticas em defesa da vida e redes de resistência, onde a tópica era a despotencialização para perguntar: pode a arte nos oferecer meios para resistir aos processos de mortificação e envenenamento a que estão submetidos tanto os presos como os “funcionários do cárcere”? Para responder a esta questão busco, em um exercício de memória, me ocupar da montagem de um diário rememorado retomando a história de minha intervenção profissional em cárceres gaúchos e fluminenses. Realizo este 12 mergulho de maneira bastante implicada com o objetivo de me situar naquilo que entendo ser a análise de uma prática que me oferece a possibilidade de reencontro com a potência criativa da arte. Abordo a trajetória de minha intervenção como psicólogo no cárcere, buscando acontecimentos desde o início do vínculo com o estado, trazendo à análise algumas implicações. Alguns conceitos que usarei são da análise institucional: implicação, analisador e sobreimplicação que desenvolverei ao longo do texto - e abrirei mão de outros conceitos, como o de instituição e institucionalização, que tomarei como palavras correntes com seus diferentes sentidos. Tomei o conceito de implicação como guia não somente para a pesquisa, mas para a intervenção diária que coloca o profissional em posição de ação e troca, contrário à idéia de neutralidade, que opera como “um processo de materialidade múltipla, complexa e sobre determinada, um processo econômico, político, psíquico heterogêneo por natureza, que deve ser analisado em todas as dimensões” (BAREMBLIT, 2002, p. 65). Servindo especialmente para a análise das relações de poder-saber que se apresentam como armadilhas e permeiam cada intervenção, bem como para deslocar o lugar de onde se mira os processos, traduzindo-se como importante ferramenta de auto-análise. Aquilo para o que as correntes institucionalistas chamam a atenção é a necessidade da análise das implicações com as instituições em jogo numa determinada situação. A recusa da neutralidade do analista/pesquisador procura romper, dessa forma, as barreiras entre sujeito que conhece e objeto a ser conhecido. (BENEVIDES DE BARROS, 2007a, p. 231) Na pesquisa, a análise da implicação opera como lente sensível para olhar movimentos de aproximação e afastamento entre pessoas, instituições e políticas, compondo com outros conceitos as ferramentas para esta expedição cartográfica pelas histórias de um percurso como profissional no cárcere. A aventura de desbravar estas memórias foi como entrar em uma selva densa, pois enquanto avançava marcando o caminho, deixando pontos como referências, o passado e as marcas foram mudando, pois deslocamos de lugar. Desta forma, analisar as implicações serviu como marcação para os lugares e pertenças na composição dos desenhos políticos, cenários de terror e campos 15 CAPÍTULO I – Cenário Político Caminhos / Descaminhos Minha formação e vinculação políticas, desde o movimento estudantil secundarista, no final dos anos oitenta, foi atravessada pela militância apaixonada e povoada pelo espírito revisionista e pela crítica ao socialismo real, assim como, pelo investimento na reforma do Estado. Era o momento da re-fundação de uma certa esquerda, uma babel polifônica e desejante de mudanças sociais. Por estes caminhos encontrei o movimento da reforma psiquiátrica, que pulsava dentre as pautas e teses da esquerda onde me encontrava militando, e cheguei à faculdade de psicologia de onde parti conduzindo outras bandeiras. Assim o texto de minha formação foi sendo escrito, sempre povoado pelo “espírito revolucionário”. Contudo, os vícios da formação política, adquiridos com as cartilhas da velha esquerda, cheias de truques, pouco democráticos, imprimiram marcas e determinaram práticas, não tão revolucionárias, como as disputas por espaços institucionais. Aparelhávamos1 entidades, capitalizávamos relações e, com isso, muita potência era diluida. Também tardamos à refletir sobre a onipotência do militante de esquerda, imbuído de um espírito pedagógico conscientizador, com a pretensiosa tarefa de produzir no “povo” o desejo pela luta de classe. Ocupei cargos majoritários em entidades representativas dos estudantes, no centro acadêmico (CAPsi) e no diretório central de estudantes (DCE), onde a pragmática, o centralismo democrático e a burocracia, mais afastavam os aliados do que garantiam a experiência da autonomia. Foram os bons encontros com alguns companheiros que me trouxeram os questionamentos, como “minhocas” oxigenadoras, do ideário da revolução permanente. O que outrora não passara de mero jargão, desde então tomou outro sentido em minha formação. Refiro-me especialmente ao momento do encontro com os 1 Aparelhar tem o sentido de ocupar cargo ou entidade pública, fazendo com que sua utilização sirva a serviço de interesses de grupo político, ou de partido político, de categoria ou subgrupo de partido político, procurando a manutenção do poder, mesmo para fins revolucionários, o que torna paradoxal a diferença entre os fins e os meios. 16 referenciais do movimento institucionalista, durante a faculdade de psicologia, quando iniciei leituras introdutórias dos textos de Lapassade e Lourau, para em seguida encontrar Foucault e Guattari, referencial teórico considerado absolutamente marginal nos círculos da psicanálise praticada na universidade onde realizava minha formação, o que tornava bastante difícil o diálogo e a busca por conhecimento. Assim, o rumo de minha formação acadêmica foi se conjugando, com os direitos humanos, herança das lutas sindicais, dos movimentos sociais e dos debates na construção partidária de esquerda. Também foram importantes os debates com a categoria “psi”, que se destinavam a incrementar os fóruns preparatórios para as deliberações dos psicólogos como categoria, reforçando o ideal da psicologia de pautar-se por intervenções ético-políticas. Após a consolidação da formação profissional, minha formatura, e a inscrição no órgão de classe, CRP-07 no Rio Grande do Sul, as primeiras experiências de trabalho se deram pelas vias da clínica/assistência psicológica, principalmente em estabelecimentos de ensino, até a vinculação por cargo comissionado na Superintendência dos Serviços Penitenciários-RS, durante o Governo Olívio Dutra, campo de intervenção no qual permaneço até hoje Aproximação com o cárcere O pleito para o governo do estado do Rio Grande do Sul, no ano de 1998, levou ao poder executivo uma coalizão de esquerda encabeçada pelo Partido dos Trabalhadores, cuja representação majoritária era exercida pela figura de Olívio Dutra. E, com ele, vinha a expectativa/esperança de viabilização dos projetos democráticos tão discutidos e ensaiados pelos inúmeros grupos, tendências e uma “certa esperança” de boa parte do povo gaúcho na reversão da política neoliberal começada pelo governo anterior. Neste ínterim, em meados do governo Olívio Dutra, no ano de 2001, fui convidado a compor, com colegas e companheiros, uma força profissional/política no sentido de empreender “projetos humanistas”2(ROLIM, 2002) que, embora tivessem muita identificação com os programas da esquerda governante, encontravam, no campo penitenciário, enorme boicote e 2 Composição de projetos de lei cunhados por princípios de justiça e liberdade, de autoria de Marcos Rolim em seu mandato de Deputado Federal PT/RS. 17 estavam recém sendo inseridos na agenda da nova gestão. Naquele momento, o poder executivo estadual norteara as políticas de segurança pública pela promoção e garantia aos direitos humanos. Conclamava os militantes dos movimentos sociais e a sociedade como um todo para a construção de mecanismos democráticos de participação popular, e de controle social. Criou o Conselho Estadual da Justiça e da Segurança, com a finalidade de fiscalizar, propor e avaliar políticas públicas para a área. “Tratar a segurança pública não como uma questão policial, mas como política pública e aliada à sociedade, é a proposta do Conselho Estadual da Justiça e da Segurança, instalado ontem pelo governo do Estado. O órgão, superior à Secretaria e integrado por representantes de diferentes setores da sociedade, será responsável pela realização de estudos técnicos e demais análises da área, além de estimular a participação dos cidadãos (...)” (Correio do Povo, 24/05/01. In: Relatório Azul, 2000/2001, p.442). O governo popular propunha promover a “humanização das forças policiais”, intervindo a partir da base dos funcionários públicos destes serviços, chamando as associações e sindicatos no sentido de ampliar o debate, encarando os históricos problemas das corporações polícia civil e brigada militar. Na pauta estavam planos de carreira e a mudança do regulamento da Brigada Militar3, ações dirigidas a diminuir as diferenças e o autoritarismo das polícias, em especial a militar. A mudança no foco de atuação das forças de segurança pública foi paradigmática, pois sempre estiveram em defesa do patrimônio, a serviço de poucos, o que fazia da polícia os “cães de guarda da burguesia”. No novo foco, eram demandadas ações mediadoras dos conflitos sociais e uma polícia que se queria comunitária e cidadã. O gestor público intervinha através de investimentos pontuais na formação dos profissionais reestruturando as academias de polícias civil e militar e promovendo cursos unificados, inserindo as disciplinas de direitos humanos, relações humanas e movimentos sociais nas grades curriculares. Com este clima de revolução na máquina pública, sob o signo de um governo de esquerda, fui convidado a integrar a equipe de psicólogos da 3 A Brigada Militar, instituição permanente e regular, organizada com base na hierarquia e na disciplina, nos termos da Lei 10.991, de 18 de agosto de 1997, é a Polícia Militar do Estado do Rio Grande do Sul, de acordo com o que dispõem o inciso V e os parágrafos 5º e 6º do artigo 144 da Constituição Federal, e dos artigos 129 a 132 da Constituição do Estado. 20 vencidas, tamanha a polarização do debate público. A partir de então, o campo da segurança pública se apresentou como terreno árido, tendo em vista a verticalidade com que o novo gestor impunha sua administração, de “rédeas curtas”, imprimindo como política o desmonte dos avanços democráticos alcançados até então, e deslegitimando todos os dispositivos de controle social constituídos. Fecharam-se as portas das instituições e afastava-se os operadores de direitos humanos da gestão estadual. Aposta No momento de meu ingresso no sistema prisional gaúcho havia uma proposta clara para a intervenção técnica e o convite que recebi foi no sentido de compor com o projeto em curso de mudança dos critérios utilizados nas entrevistas de avaliação psicológica praticadas na SUSEPE. Pretendia-se com isso provocar uma transformação radical no entendimento da psicologia, procurando transformar a prática “psi” que era preponderantemente pericial e especialmente investida do ideário da neutralidade em uma intervenção ético- política orientada para a assistência e o cuidado dos presos. Historicamente: ...o técnico foi assumindo uma função simbólica de ser o representante da sociedade controladora e punitiva; de ser o protetor desta sociedade e guardião da segurança externa. Ou seja, este profissional incorporou, no decorrer do tempo, a missão de ser aquele que detém o poder da avaliação e de retardar a saída de mais um ‘bandido que ameaça a sociedade’, mesmo não tendo competência técnica, legal e ética para tal missão decisória. (Relatório Azul 2000/2001, p. 517) Os referenciais teórico-ético-políticos que até então permeavam a confecção dos laudos e pareceres psicológicos eram da psiquiatria clássica e da psicologia do ego, em especial a de um certo discurso biologizante e classificatório (GUARESCHI & PACHECO, 2008) que se remete unicamente ao indivíduo do ato delitivo a análise da origem e prognose do transtorno. Os laudos criminológicos são alvo de muitas críticas dentro do sistema prisional, seja por basearem-se em teses ultrapassadas na ciência da psicologia e serviço social, seja pelo teor carregado de preconceito e estigmatização do preso. (Relatório Azul, 2000/2001 p.515) 21 O instrumento “psi” vinha servindo como dispositivo e principal gargalo do sistema prisional para a liberdade dos presos, tardando a obtenção dos benefícios ou o alcance da liberdade. Servindo ainda como mais uma etapa do processo de execução penal ou, de maneira mais enfática, por vezes se opondo veementemente a concessão dos pleitos, considerando os presos inaptos à vida em liberdade pelo risco que julgam representar para a sociedade. Podemos encontrar como marco de tais valores ou referenciais a pesquisa realizada pelos psiquiatras forenses Paulo Oscar Teitelbaum8 e Otávio Passos de Oliveira9. A pesquisa com aproximadamente mil detentos do sistema penitenciário apontou que 22,6% dos presos gaúchos eram considerados irrecuperáveis ou portadores de Transtorno de Personalidade Anti-social (TAS). Os pesquisadores afirmaram em entrevista publicada no jornal Zero Hora que: A sociedade tem dificuldades de entender que há irrecuperabilidade na conduta anti-social. É uma situação complexa de múltiplas causas, iniciada na infância (...).(Zero Hora, 18/11/01, p. 48/9) Embora este estudo não seja novo e já tenha sido apresentado à análise do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, conforme parecer do Conselheiro César Oliveira de Barros Leal, processo MJ nº 16.545/95, datado de 25/09/95, que o rechaçou tanto no método quanto na propositiva, seus resultados se atualizaram no ano de 2001 em espaços nobres da mídia sedenta por figuras monstruosas de “serial killers”. Este jogo retórico, que procura produzir verdade através da ciência, encontra lastro ao mesmo tempo em que corrobora as práticas políticas de exclusão, encaixando perfeitamente na engrenagem do sistema punitivo como peça motriz e produzindo justificativas para a sua operacionalidade. Vale salientar que os resultados da pesquisa de Teitelbaum e Oliveira, embora carentes de maior exame em sua metodologia e debate acadêmicos, foram apresentados pela mídia como “verdade” científica 8 Diretor do Departamento de Tratamento Penal desde o governo Britto (PMDB) 1995/1998, e durante os dois primeiros anos do governo Olívio Dutra (PT) 1999/2002, e posteriormente, durante os dois primeiros anos da gestão Germano Rigotto (PMDB) 2003/2004. 9 TEITELBAUM, Paulo Oscar e OLIVEIRA, Otávio Passos de. Delinqüência no RS: um estudo da população carcerária (prevalência de TASP e outros diagnósticos psiquiátricos). In: TAVARES DOS SANTOS, José Vicente (org.). Violências no Tempo da Globalização. São Paulo: Hucitec, 1999. 22 inconteste. tanto que suas propostas de maior controle e segregação dos anti- sociais, enquanto debate público, tiveram grande poder de reverberação, propagando um sentimento revanchista na opinião pública, que pede prisão perpétua e castração a tais “psicopatas”. Embora pareçam grotescos, o estudo e a proposta encontravam seguidores no quadro de psicólogos “peritos” da SUSEPE, em especial aos que investiam na tarefa de caça aos prováveis reincidentes. Os índices das avaliações psicológicas e do serviço social desfavoráveis aos benefícios pleiteados pelos apenados eram significativos. O que sem dúvida depunha sobre o funcionamento destas “ciências” do comportamento, em especial da psicologia, implicada com a demanda de defesa da sociedade, em detrimento dos sujeitos encarcerados, a quem deveriam se dirigir as ações de desinstitucionalização10. Com o ingresso da doutora Miriam Krenzinger Guindani na condição de coordenadora do COC (Centro de Observação Criminológica), de fevereiro a outubro de 2001, tomando frente na reformulação das diretrizes para a atuação dos peritos, psicólogos e assistentes sociais, as mudanças encontraram condições para se concretizarem. (...) a proposta apresentada pelo COC visa abrir espaço para um fazer técnico direcionado à humanização da Política Penitenciária do Estado do RS, bem como otimizar os recursos humanos e materiais existentes, integrando-os a outras Políticas Públicas de Saúde e Assistência Social, no sentido de tornar-se um garantidor dos direitos individuais e sociais, não só do homem preso, mas dos operadores das agências de controle. (Relatório Azul, 2000/2001 p. 517 ) Havia por boa parte dos técnicos, advogados, assistentes sociais e psicólogos, um esforço no sentido de participação e adesão na mudança paradigmática dos lugares, papéis e práticas a serem tomadas em função das demandas por avaliações criminológicas para concessão de benefícios aos presos. Assim as diretrizes foram compostas: 10 Pego emprestado da reforma psiquiátrica o termo desinstitucionalização, entendendo que o processo de prisonização produz marcas subjetivas muito parecidas com a institucionalização do manicômio, por se tratarem, ambas, de instituições totais. Rotelli et al (2001) ao abordar a desinstitucionalização em psiquiatria na Itália, a conceitua como um processo social complexo que tende a mobilizar como atores os sujeitos sociais envolvidos, que tende a transformar as relações de poder entre os pacientes e as instituições e produzir estruturas de saúde mental que substituam inteiramente a internação no hospital psiquiátrico e que nascem da desmontagem e reconversão dos recursos materiais e humanos que estavam ali depositados. 25 Assim sendo, a cada ação no sentido da desinstitucionalização do preso, mais nos deparávamos com um importante dilema. Estava bastante clara a necessidade de operarmos na redução dos males resultantes do aprisionamento e para isso nos empenhávamos na elaboração de projetos, por vezes bem sucedidos, de inclusão dos presos egressos no mercado de trabalho, ou na produção de parcerias com a iniciativa privada para a qualificação e aproveitamento da mão de obra prisional etc. Contudo, mesmo investidos das melhores intenções, e cuidadosos com a implicação política para não servir de engrenagem para a máquina prisional, nossas ações eram sistematicamente contabilizadas pelo discurso ressocializador, como se estivéssemos justificando o cárcere como lugar possível para a recuperação dos desajustados. Em meio ao emaranhado dos regramentos que constituem o campo da justiça penal, como a LEP, a Constituição Federal, e demais regimentos, estatutos e tratados, irrompem contra-sensos que nos impelem por linhas mais duras, por meios instituídos, ou mais flexíveis, em movimentos instituintes. Mas há também outras linhas, de fuga, que passam em qualquer lugar, afetadas por sinais positivos ou negativos, e que de qualquer forma escapam aos códigos, mas não à implicação. E a cada vez se apresenta o essencial da política. A política é uma experimentação ativa, porque não se sabe de antemão o que vai acontecer com uma linha. (DELEUZE & PARNET, 1998, p. 159) Lutas Os debates/lutas dos profissionais militantes dos direitos humanos estavam focados em frentes bastante duras e complexas. Em especial na análise da demanda da LEP, Lei de Execuções Penais, lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, como principal instituidora da prática psicológica no campo prisional. De acordo com a LEP, no título II, capítulo I, DA CLASSIFICAÇÃO, do artigo 5º ao 9º encontramos a previsão de no mínimo um psicólogo na composição da equipe da CTC (Comissão Técnica de Classificação). A CTC será responsável pela elaboração do programa de individualização da pena, classificando o condenado segundo os seus antecedentes e personalidade, elaborando uma estratégia terapêutica e acompanhando-o no curso da 26 execução da pena, devendo propor à autoridade competente as progressões e regressões dos regimes, bem como a conversão da pena em medida de segurança mediante a superveniência de doença mental do preso no decorrer da pena. Também o artigo 112 da LEP, quando prevê que a partir de determinado momento do cumprimento da pena, o apenado, preso em regime fechado ou semi-aberto, poderá requerer progressão para regime mais brando, com a possibilidade de trabalho externo e visitas periódicas ao lar, e assim ir aos poucos se reintegrando à sociedade, previa também que para a concessão desses direitos a decisão fosse motivada e precedida de parecer da Comissão Técnica de Classificação (CTC), avaliando a adesão do apenado ao programa individualizador de sua pena. Nesta ordem, o exame criminológico é o principal instrumento para a obtenção dos dados reveladores da personalidade do preso e deverá ser realizado no momento da entrada do apenado no sistema prisional, devendo ser o balizador para a individualização da pena. Sua importância é tamanha que os juízes de execução, via de regra, solicitam-no como subsídio para embasarem suas decisões quanto à concessão ou não dos benefícios pleiteados pelos presos. Embora o exame criminológico nunca tenha sido aplicado no início da execução da pena, nem a individualização da pena tenha sido levada a cabo nos moldes previstos pela legislação, ainda assim, o exame criminológico vem sendo solicitado pelos magistrados. Cabe salientar que, mesmo o preso não tendo sido classificado no momento de seu ingresso na prisão e sua condição pessoal ser desconhecida, o exame criminológico é solicitado em momento adiantado da execução da pena, com a finalidade de informar sobre a subjetividade do preso. Subsídio especialmente demandado à CTC, Comissão Técnica de Classificação, quando o preso se aproxima do lapso temporal para o pleito de abrandamento da pena ou livramento condicional. Condição inglória esta, em que era colocada a psicologia, a de buscar a periculosidade na essência do sujeito apenado e em seu futuro a prognose. Contudo, a mais terrível das constatações foi a de que não havia outra inscrição legal para o psicólogo, senão a de ocupar o lugar de “gerente da ordem” (COIMBRA, 1995), pois na LEP, CAPÍTULO II, DA ASSISTÊNCIA, 27 ou em qualquer outro não havia previsão de assistência psicológica. Acredito ser pertinente ressaltar que na LEP, a assistência consistirá em: assistência material no fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas, dispondo de instalações e serviços que atendam aos presos nas suas necessidades pessoais; assistência à saúde compreenderá atendimento médico, farmacêutico e odontológico; a assistência jurídica é destinada aos presos e aos internados sem recursos financeiros para constituir advogado; a assistência educacional compreenderá a instrução escolar e formação profissional; a assistência social tem por finalidade amparar o preso e o internado e prepará-los para o retorno à liberdade; a assistência religiosa, com liberdade de culto, será prestada aos presos e aos internados, permitindo- lhes a participação nos serviços organizados no estabelecimento penal, bem como a posse de livros de instrução religiosa; a assistência ao egresso consiste na orientação e apoio para reintegrá-los à vida em liberdade, e o serviço de assistência social colaborará com o egresso para a obtenção de trabalho. Para incrementar ainda mais nosso dilema como profissionais implicados na promoção da vida nos deparamos com o edital de concursos públicos N° 10/2002, ao qual corresponde meu ingresso no quadro da SUSEPE, que visava suprir os cargos de Monitor Penitenciário - psicólogo e assistente social. O edital trouxe no item 5.2 - Descrição sintética das atribuições do cargo de Monitor Penitenciário – o entendimento que a atividade é de grande complexidade e ratifica o compromisso com os processos de reeducação, reintegração social e ressocialização dentre outros. Bem como, no conteúdo ocupacional do cargo, item 5.3, encontramos as seguintes indicações: Instruir os presos sobre hábitos de higiene, de educação informal e de boas maneiras; despertar nos presos o senso de responsabilidade e dedicação ao cumprimento dos deveres sociais, profissionais e familiares; (...); programar e orientar práticas de formação cívica, ética, religiosa, cultural e profissional aos presos; (...); verificar as condições de limpeza e higiene das celas e instalações sanitárias de uso dos presos; (...).13 13 Http://www.faurgs.ufrgs.br/concursos/SJSSSP/SJSSusepeEdit, acessado em 13 de maio de 2008.
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