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Historia Hoje - Roger Chartier, Notas de estudo de História

Historia hoje: duvidas, desafios e propostas

Tipologia: Notas de estudo

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Baixe Historia Hoje - Roger Chartier e outras Notas de estudo em PDF para História, somente na Docsity! Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113. 1 A HISTÓRIA HOJE: dúvidas, desafios, propostas Roger Chartier "Tempo de incerteza", "epistemological crisis", "tournant critique": estes são os diagnósticos, geralmente inquietos, feitos sobre a história nos últimos anos. Basta lembrar duas declarações que abriram o caminho para uma ampla reflexão coletiva. De um lado, aquela estampada no editorial do número de março-abril de 1988 da revista Annales, que dizia: "Hoje, parece ter chegado o tempo das incertezas. A reclassificação das disciplinas transforma a paisagem científica, questiona as primazias estabelecidas, afeta as vias tradicionais pelas quais circulava a inovação. Os paradigmas dominantes, que se ia buscar nos marxismos ou nos estruturalismos, assim como no uso confiante da quantificação, perdem sua capacidade estruturadora (...) A história, que havia baseado boa parte de seu dinamismo em uma ambição federativa, não é poupada por essa crise geral das ciências sociais."1 A segunda declaração, inteiramente diferente em suas razões mas semelhante em suas conclusões, foi feita em 1989 por David Harlan em um artigo da American Historical Review que suscitou uma discussão que se prolonga até hoje: "A volta da literatura mergulhou os estudos históricos numa extensa crise epistemológica. (questionou nossa crença num passado fixo e determinável, comprometeu a possibilidade da representação histórica e minou nossa capacidade de nos localizarmos no tempo."2 O que indicam esses diagnósticos, que parecem ter algo de paradoxal numa época em que o movimento editorial na área de história demonstra uma vitalidade invejável e uma inventividade renovada, traduzidas na continuidade das grandes obras coletivas, no lançamento de coleções européias, no aumento do número de traduções, no eco intelectual de algumas obras importantes? Eles denotam, creio, essa grande mutação que representa para a história o desaparecimento dos modelos de compreensão, dos princípios de inteligibilidade que foram de modo geral aceitos pelos historiadores (ou ao menos pela maior parte deles) a partir dos anos 60. A história dominante baseava-se então em dois projetos. Primeiro, a aplicação ao estudo das sociedades antigas ou contemporâneas do paradigma estruturalista, abertamente reivindicado ou implicitamente praticado. Tratava-se antes de mais nada de identificar as estruturas e as relações que, independentemente das percepções e das intenções dos indivíduos, comandam os mecanismos econômicos, organizam as relações sociais, engendram 1 "Histoire et sciences sociales. Un tournant critique?", Annales ESC, 1988, p. 291-293 (citação p. 291-292). 2 David Harlan, "Intellectual history and the return of literature", American Historical Review, 94, jun 1989, p. 879-907 (citação p. 881). Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113. 2 as formas do discurso. Daí a afirmação de uma separação radical entre o objeto do conhecimento histórico propriamente dito e a consciência subjetiva dos atores. Segunda exigência: submeter a história aos procedimentos do número e da série ou, melhor dizendo, inscrevê-la num paradigma do conhecimento que Carlo Ginzburg, em artigo célebre,3 designou como "galileano". Tratava-se aí de, graças à quantificação dos fenômenos, à construção de séries e aos procedimentos estatísticos, formular rigorosamente as relações estruturais que eram o objeto próprio da história. Deslocando a fórmula de Galileu em Il Saggiatore, o historiador supunha que o mundo social "é escrito em linguagem matemática" e dedicava-se a estabelecer suas leis. Os efeitos dessa dupla revolução da história, estruturalista e "galileana", não foram pequenos. Graças a ela, a disciplina se afastou de uma simples cartografia das particularidades ou de um simples inventário, jamais concluído, aliás, de casos ou fatos singulares. A história pôde assim retomar a ambição que havia fundado no início deste século a ciência social, especialmente na sua versão sociológica e durkheimiana: identificar estruturas e regularidades, e portanto, formular relações gerais. Ao mesmo tempo, a história se libertava da "bien maigre idée du réel" expressão de Michel Foucault - que a havia durante muito tempo habitado, uma vez que ela considerava que os sistemas de relações que organizam o mundo social são tão "reais" quanto os dados materiais, físicos, corporais, percebidos na imediatez da experiência sensível. Essa "nova história" estava portanto fortemente ancorada, para além da diversidade dos objetos, dos territórios e dos costumes, nos mesmos princípios que sustentavam as ambições e as conquistas das outras ciências sociais. Nos últimos dez anos, foram essas certezas, longa e amplamente partiIhadas, que foram abaladas. De um lado, sensíveis a novas abordagens antropológicas ou sociológicas, os historiadores quiseram restaurar o papel dos indivíduos na construção dos laços sociais. Daí resultaram vários deslocamentos fundamentais: das estruturas para as redes, dos sistemas de posições para as situações vividas, das normas coletivas para as estratégias singulares. A "micro-história", inicialmente italiana, hoje espanhola,4 foi a tradução mais viva dessa transformação da abordagem histórica baseada no recurso a modelos interacionistas ou etnometodológicos. Radicalmente diferente da monografia tradicional, a microstoria pretende construir, a partir de uma situação particular, normal porque excepcional, a maneira como os indivíduos produzem o mundo social, por meio de suas alianças e seus confrontos, através das dependências que os ligam ou dos conflitos que os opõem. O objeto da história, portanto, não são, ou não são mais, as estruturas e os mecanismos que regulam, fora de qualquer controle subjetivo, as relações sociais, e sim as racionalidades e as estratégias acionadas pelas comunidades, as parentelas, as famílias, os indivíduos. Uma forma inédita de história social assim se afirmou, centrada nas distâncias e discordâncias existentes, de um lado, entre os diferentes sistemas de normas de uma sociedade e, de outro, dentro de cada um deles. O olhar se desviou das regras impostas para suas aplicações inventivas, das condutas forçadas para as decisões permitidas pelos recursos próprios de cada um: seu poder social, seu poder econômico, seu acesso à informação. Habituada a estabelecer hierarquias e a construir coletivos (categorias sócio-profissionais, 3 Carlo Ginzburg, "Spie. Radici di un paradigma indiziario", em Miti, emblemi, spie. Morfologia e storia (Turim, Eunaudi, 1986), p. 158-209. 4 Giovanni Levi, L'éredità, immateriale. Carriera di un esorcista nel Piemonte del Seicento (Turim, Einaudi, 1985); Jaime Contreras, Sotos contra Riquelmes. Regidores, inquisidores y criptojudíos (Madri, Anaya/Mario Muchnik, 1992). Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113. 5 No segundo caso, o de uma poética do conhecimento sensível às distâncias e às diferenças, colocar-se-ão os trabalhos que, como o recente livro de Philippe Carrard, Poetics of the new history,12 recuperam como diferentes historiadores, membros de uma mesma "escola" ou de um mesmo grupo, mobilizam de formas bastante diversas as figuras da enunciação, a projeção ou o apagamento do eu no discurso do conhecimento, o sistema dos tempos verbais, a personificação das entidades abstratas, as modalidades da prova: citações, quadros, gráficos, séries quantitativas etc. Assim abalada em suas certezas mais bem-ancoradas, a história também se defrontou com vários desafios. O primeiro, lançado sob modalidades diferentes, até mesmo contraditórias, de um lado e de outro do Atlântico, pretende romper todo e qualquer laço entre a história e as ciências sociais. Nos Estados Unidos, a investida tomou a forma do linguistic turn que, dentro da estrita ortodoxia saussuriana, toma a linguagem como um sistema fechado de signos cujas relações produzem por si só significação. A construção do sentido é assim separada de qualquer intenção ou controle subjetivos, já que ela é atribuída a um funcionamento lingüístico automático e impessoal. A realidade não mais deve ser pensada como uma referência objetiva, exterior ao discurso, pois que ela é constituída pela e dentro da linguagem. John Toews claramente designou (sem aceitar) essa posição radical para a qual "a linguagem é concebida como um sistema autocontido de 'signos' cujos significados são determinados por suas relações uns com os outros, mais do que por sua relação com algum objeto ou sujeito 'transcendental' ou extra-lingüístico" - uma posição que considera que "a criação do sentido é impessoal, operando 'pelas costas' dos usuários da linguagem, cujos atos lingüísticos podem apenas exemplificar as regras e procedimentos das linguagens que eles habitam mas não controlam".13 As operações históricas mais corriqueiras ficam então sem objeto, a começar pelas distinções fundadoras entre texto e contexto, entre realidades sociais e expressões simbólicas, entre discursos e práticas não-discursivas. Donde, por exemplo, o duplo postulado de Keith Baker, que aplica o linguistic turn aos problemas das origens da Revolução Francesa: de um lado, os interesses sociais não têm nenhuma exterioridade em relação aos discursos, pois que constituem "uma construção simbólica e política", e não "uma realidade pré-existente"; de outro, todas as práticas devem ser compreendidas na ordem do discurso, pois "as pretensões de delimitar o campo do discurso em relação às realidades sociais não-discursivas que lhe são subjacentes invariavelmente indicam um domínio da ação que é ele próprio constituído discursivamente. Elas distinguem, na verdade, entre práticas discursivas - diferentes jogos de linguagem - mais do que entre fenômenos discursivos e não-discursivos".14 Do lado francês, o desafio, tal como o vimos se cristalizar nos debates travados em torno da interpretação da Revolução Francesa, assumiu o aspecto inverso. Longe de postular a automaticidade da produção do sentido, além ou aquém das vontades individuais, enfatiza-se ao contrário a liberdade do sujeito, a parte refletida da ação, as construções conceituais. A um só tempo são recusados os procedimentos clássicos da história social que visavam a 12 Philippe Carrard, Poetics of the new history: French historical discourse from Braudel to Chartier (Baltimore e Londres, The Johns Hopkins University Press, 1992). 13 John E. Toews, "Intellectual history after the linguistic turn: the sutonomy of meaning and the irreductibility of experience"; American Historical Review, 92, out 1987, p. 879-907 (citação p. 882). 14 Keith Michael Baker, Inventing the French Revolution: essays on French political culture in the eighteenth century. (Cambridge, Cambridge University Press, 1990), p. 9 e p. 5. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113. 6 identificar as determinações desconhecidas que comandam os pensamentos e as condutas, e é afirmado o primado do político, entendido como o nível mais abrangente e mais revelador de toda sociedade. É essa ligação que Marcel Gauchet coloca no centro da recente mudança de paradigma que ele crê discernir nas ciências sociais: "O que parece se desenhar ao cabo da problematização da originalidade ocidental moderna, é uma recomposição do projeto de uma história total. Segundo dois eixos: pelo acesso, através do político, a uma chave nova para a arquitetura da totalidade, e pela absorção, em função dessa abertura, da parte refletida da ação humana, das filosofias mais elaboradas aos sistemas de representação mais difusos."15 Os historiadores (entre os quais me incluo) para quem permanece essencial o pertencimento da história às ciências sociais tentaram responder a essa dupla, e por vezes rude, interpelação. Contra as formulações do linguistic turn ou do semiotic challenge, segundo a expressão de Gabrielle Spiegel,16 eles consideram ilegítima a redução das práticas constitutivas do mundo social aos princípios que comandam os discursos. Reconhecer que as realidades passadas só são acessíveis (maciçamente) através dos textos que pretendiam organizá-las, submetê-las ou representá-las nem por isso significa postular a identidade entre duas lógicas: de um lado, a lógica letrada, logocêntrica e hermenêutica que governa a produção dos discursos; de outro, a lógica prática que regula as condutas e as ações. Toda história deve levar em conta a irredutibilidade da experiência ao discurso, prevenindo-se contra o emprego descontrolado da categoria "texto", com muita freqüência indevidamente aplicada a práticas (ordinárias ou ritualizadas) cujas táticas e procedimentos não são em nada semelhantes às estratégias discursivas. Manter a distinção entre umas e outras é o único meio de evitar "dar como princípio da prática dos agentes a teoria que se deve construir para explicar sua razão", smundo a fórmula de Pierre Bourdieu.17 Por outro lado, deve-se constatar que toda construção de interesses pelos discursos é ela própria socialmente determinada, limitada pelos recursos desiguais (de linguagem, conceituais, materiais etc.) de que dispõem os que a produzem. Essa construção discursiva remete portanto necessariamente às posições e às propriedades sociais objetivas, exteriores ao discurso, que caracterizam os diferentes grupos, comunidades ou classes que constituem o mundo social. Em conseqüência, o objeto fundamental de uma história cujo projeto é reconhecer a maneira como os atores sociais investem de sentido suas práticas e seus discursos parece-me residir na tensão entre as capacidades inventivas dos indivíduos ou das comunidades e os constrangimentos, as normas, as convenções que limitam - mais ou menos fortemente, dependendo de sua posição nas relações de dominação - o que lhes é possível pensar, enunciar e fazer. A constatação vale para uma história das obras letradas e das produções estéticas, sempre inscritas no campo dos possíveis que as tornam pensáveis, comunicáveis e compreensíveis - e não se pode senão concordar com Stephen Greenblatt quando ele afirma que "a obra de arte é o produto de uma negociação entre um criador ou uma classe de 15 Marcel Gauchet, "Changement de paradigme en sciences sociales?", Le Débat, 50, 1988, p. 165-170 (citação p. 169). 16 Gabrielle M. Spiegel, "History, historicism, and the social logic of the text in the Middle Ages", Speculum. A Journal of Medieval Studies, vol. 65, nº 1, jan. 1990, p. 59-86 (citação p. 60). 17 Pierre Bourdieu, Choses dites (Paris, Les Editions de Minuit, 1987), p. 76. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113. 7 criadores e as instituições e práticas da sociedade".18 Mas vale igualmente para uma história das práticas ordinárias que são, também elas, invenções de sentido limitadas pelas determinações múltiplas que definem, para cada comunidade, os comportamentos legítimos e as normas incorporadas. Contra o "retorno ao político", pensado dentro de uma autonomia radical, é preciso, parece-me, colocar no centro do trabalho do historiador as relações, complexas e variáveis, estabelecidas entre os modos da organização e do exercício do poder em uma dada sociedade e, de outro lado, as configurações sociais que tornam possível essa forma política e que são por ela engendradas. Assim, a construção do Estado absolutista pressupõe uma diferenciação forte e prévia das funções sociais, ao mesmo tempo que exige a perpetuação (graças a diversos dispositivos dos quais o mais importante é a sociedade da corte) do equilíbrio das tensões existentes entre os grupos sociais dominantes e rivais. Contra o retorno à filosofia do sujeito que acompanha ou fundamenta o retorno ao político, a "história ciência social" lembra que os indivíduos estão sempre ligados por dependências recíprocas, percebidas ou invisíveis, que moldam e estruturam sua personalidade e definem, em suas modalidades sucessivas, as formas da afetividade e da nacionalidade. Compreende-se então a importância atribuída por muitos historiadores a uma obra por muito tempo não-reconhecida, cujo projeto fundamental é justamente articular, na longa duração, construção do Estado moderno, modalidades da interdependência social e figuras da economia psíquica: a obra de Norbert Elias.19 O trabalho de Elias permite, em especial, articular as duas significações que sempre se embaralham no uso do termo cultura tal como o manejam os historiadores. A primeira designa as obras e os gestos que, em uma sociedade, estão ligados ao julgamento estético ou intelectual. A segunda refere-se às práticas ordinárias, "sem qualidades", que tecem a trama das relações quotidianas e exprimem a maneira como uma comunidade, em um determinado tempo e lugar, vive e reflete sua relação com o mundo e a história. Pensar historicamente as formas e as práticas culturais é portanto necessariamente elucidar as relações alimentadas por essas duas definições. As obras não têm sentido estável, universal, congelado. Elas são investidas de significações plurais e móveis, construídas na negociação entre uma proposição e uma recepção, no encontro entre as formas e motivos que lhes dão sua estrutura e as competências ou expectativas dos públicos que delas se apoderam. Por certo, os criadores, ou as autoridades, ou os "clérigos" (pertençam eles ou não à Igreja) sempre aspiram a fixar o sentido e a enunciar a interpretação correta que deve constranger a leitura (ou o olhar). Mas sempre, também, a recepção inventa, desloca, distorce. Produzidas em uma esfera específica, em um campo que tem suas regras, suas convenções, suas hierarquias, as obras se evadem e ganham densidade peregrinando, às vezes na longuíssima duração, através do mundo social. Decifradas a partir de esquemas mentais e afetivos que constituem a cultura própria (no sentido antropológico) das comunidades que as recebem, elas se tornam em troca um recurso 18 Stephen Greenblatt, "Towards a poetics of culture", em The new historicism, sob a direção de H. A. Veeser (Nova York e Londres, Routledge, 1989), p. 1-14 (citação p. 12). 19 Sobre a obra de Norbert Elias, ver Materialen zu Norbert Elias'Zivilisationstheorie, sob a direção de P. Gleichmann, J. Goudsblom e H. Korte (Frankfurt-am-Main, Surkamp, 2 vol., 1977 e 1984); Hermann Korte, Uber Norhert Elias. Das Werden eines Menschenwissenschaftlers (Frankfurt-am-Main, Surkamp, 1988); Stephen Menell, Norbert Elias. Civilization and the human self-image (Oxford, Basil Blackwell,1989), e Roger Chartier, "Formation sociale et économie psychique: la société de cour dans les procès de civilisation", prefácio a Norbert Elias, La société de cour (Paris, Flammarion, 1985, p. I-XXVIII), e "Conscience de soi e lien social", prefácio a Norbert Elias, La société des individus (Paris, Fayard, 1991, p. 7-29). Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113. 10 do próprio consentimento, reutilizando a linguagem da dominação para fortalecer a insubmissão. Definir a submissão imposta às mulheres como uma violência simbólica ajuda a compreender como a relação de dominação, que é histórica e culturalmente construída, é sempre afirmada como uma diferença de natureza, irredutível, universal. O essencial não é opor termo a termo uma definição biológica e uma definição histórica da oposição masculino/feminino, mas antes identificar, em cada configuração histórica, os mecanismos que enunciam e representam como "natural" (portanto biológica) a divisão social (portanto histórica) dos papéis e das funções. A leitura natural da distância entre o masculino e o feminino é ela mesma historicamente datada, ligada ao esvaecimento das representações médicas da similitude entre os sexos e à sua substituição pelo indefinido inventário de suas diferenças biológicas. Como constata Thomas Laqueur, a partir do fim do século XVIII, ao "discurso dominante [que] via nos corpos machos e fêmeas versões hierarquicamente, verticalmente ordenadas de um único e mesmo sexo" sucedem "uma anatomia e uma fisiologia da incomensurabilidade".25 Inscrita nas práticas e nos fatos, organizando a realidade e o quotidiano, a diferença sexual é sempre construída pelos discursos que a fundam e a legitimam. Mas estes se enraizam em posições e interesses sociais que, aliás, devem garantir a submissão de umas e a dominação de outros. A história das mulheres, formulada nos termos de uma história das relações entre os sexos, ilustra bem o desafio lançado hoje aos historiadores: ligar construção discursiva do social e construção social do discurso. Existe ainda outro desafio que não é o menos temível. A partir da afirmação, absolutamente fundamentada, de que toda história, qualquer que seja ela, é sempre uma narrativa organizada com base em figuras e fórmulas que as narrações imaginárias mobilizam, alguns concluíram pela anulação de qualquer distinção possível entre ficção e história, já que esta é, e não passa de, uma "fiction-making operation", segundo a expressão de Hayden White. A história não traz mais (nem menos) um conhecimento verdadeiro do real do que o faz um romance, é absolutamente ilusório querer classificar e hierarquizar as obras dos historiadores em função de critérios epistemológicos indicando sua maior ou menor pertinência para dar conta da realidade passada que é seu objeto: "Tem havido uma relutância em considerar as narrativas históricas como o que elas mais manifestamente são: ficções verbais, cujos conteúdos são tão inventados como descobertos, e cujas formas têm mais em comum com suas contrapartidas na literatura do que na ciência."26 Os únicos critérios que permitem uma diferenciação dos discursos históricos provêm de suas propriedades formais: "Uma abordagem semiológica do estudo de textos permite-nos deixar de lado a questão da confiabilidade do texto como testemunha de eventos ou fenômenos extrínsecos a ele, passar ao largo da questão da `honestidade' do texto e sua objetividade, e ver seu aspecto ideológico mais como um produto (seja de interesse próprio ou de interesse do grupo, seja de impulsos conscientes ou inconscientes) do que como um processo (...) Isto significa deslocar o interesse hermenêutico do conteúdo dos textos sob investigação para suas propriedades 25 Thomas Laqueur, Making sex: body and gender from the Greeks to Freud (Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1990). 26 Hayden White, Tropics of discourse, op. cit., p. 82. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113. 11 formais, consideradas não em termos da noção relativamente vaga de estilo, mas antes como um processo dinâmico de alternância de códigos pelo qual uma subjetividade específica é evocada e estabelecida no leitor, que deve admitir essa representação do mundo como realista em virtude de sua congenialidade com a relação imaginária que o sujeito traz para sua própria situação social e cultural."27 Contra uma tal abordagem ou um tal shift, é preciso lembrar que a ambição de conhecimento é constitutiva da própria intencionalidade histórica. Ela funda as operações específicas da disciplina: construção e tratamento dos dados, produção de hipóteses, crítica e verificação de resultados, validação da adequação entre o discurso do conhecimento e seu objeto. Mesmo que escreva de uma forma `literária", o historiador não faz literatura, e isto pelo fato de sua dupla dependência. Dependência em relação ao arquivo, portanto em relação ao passado do qual ele é vestígio. Como escreve Pierre Vidal-Naquet, "O historiador escreve, e essa escrita não é nem neutra nem transparente. Ela se molda sobre as formas literárias, até mesmo sobre as figuras de retórica. (...) Que o historiador tenha perdido sua inocência, que ele se deixe tomar como objeto, que se tome ele próprio como objeto, quem o lamentará? Resta que se o discurso histórico não se ligasse, através de quantos intermediários se queira, ao que chamaremos, na falta de nome melhor, de real, estaríamos sempre dentro do discurso, mas este discurso deixaria de ser histórico."28 Dependência, continuando, em relação aos critérios de cientificidade e às operações técnicas que são as do seu "ofício". Reconhecer suas variações (a história de Braudel não é a de Michelet) nem por isso implica concluir que esses constrangimentos e critérios não existem, e que as únicas exigências que refreiam a escrita da história são as que governam a escrita da ficção. Empenhados em definir o regime de cientificidade próprio de sua disciplina, a única que pode manter sua ambição de enunciar aquilo que foi, os historiadores escolheram diversos caminhos. Alguns se voltaram para o estudo daquilo que tornou e ainda torna possível a produção e a aceitação das falsificações na história. Como mostraram Anthony Grafton29 e Julio Caro Barolo,30 são estreitas e recíprocas as relações entre as falsificações e a filologia, entre as regras a que devem se submeter os falsários e os progressos da crítica documental. Por isso, o trabalho dos historiadores sobre a falsificação, que cruza com o dos historiadores das ciências, ocupados com o maxilar de Moulin-Quignon ou com o crânio de Piltdown, é uma maneira paradoxal, irônica, de reafirmara capacidade da história de estabelecer um conhecimento verdadeiro. Graças a suas técnicas próprias, a disciplina está apta a fazer reconhecer as falsificações como tais, portanto a denunciar os falsários. É voltando sobre seus desvios e suas perversões que a história demonstra que o conhecimento que ela produz se inscreve na ordem de um conhecimento controlável e verificável, portanto que ela está armada para resistir àquilo que Carlo Ginzburg designou como a "máquina de 27 Hayden White, The content of form, op. cit., p. 192-193. 28 Pierre Vidal-Naquet, Les assassins de la mémoire. Un Eichamann de papier et autres études sur le révisionisme (Paris, La Découverte, 1987), p. 148-149. 29 Anthony Grafton, Forgers and critics: creativity and duplicity in Western scholarship (Princeton, Princeton University Press, 1990). 30 Julio Caro Baroja, Las falsificaciones de la historia (en relación con la de España) (Barcelona, Saix Barral, 1992). Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113. 12 guerra céptica" que recusa à história toda possibilidade de dizer a realidade que foi e de separar o verdadeiro do falso.31 Entretanto, não é, ou não é mais, possível pensar o conhecimento histórico, instalado na ordem do verdadeiro, nas categorias do "paradigma galileano", matemático e dedutivo. O caminho é portanto forçosamente estreito para quem pretende recusar, ao mesmo tempo, a redução da história a uma atividade literária de simples curiosidade, livre e aleatória, e a definição de sua cientificidade a partir unicamente do modelo do conhecimento do mundo físico. Em um texto ao qual é sempre preciso voltar, Michel de Certeau formulou esta tensão fundamental da história. Ela é uma prática "científica", produtora de conhecimentos, mas uma prática cujas modalidades dependem das variações de seus procedimentos técnicos, dos constrangimentos que lhe impõem o lugar social e a instituição de saber onde ela é exercida, ou ainda das regras que necessariamente comandam sua escrita. O que também pode ser dito de maneira inversa: a história é um discurso que aciona construções, composições e figuras que são as mesmas da escrita narrativa, portanto da ficção, mas é um discurso que, ao mesmo tempo, produz um corpo de enunciados "científicos", se entendemos por isso "a possibilidade de estabelecer um conjunto de regras que permitem `controlar' operações proporcionais à produção de objetos determinados".32 O que Michel de Certeau nos convida a fazer aqui é pensar no específico da compreensão histórica. Em que condições se pode considerar coerentes, plausíveis, explicativas, as relações instituídas entre os índices, as séries e os enunciados que a operação historiográfica constrói, e, de outro lado, a realidade referencial que eles pretendem `representar "adequadamente? A resposta não é fácil, mas é certo que o hisforiador tem por tarefa oferecer um conhecimento apropriado, controlado, sobre a "população de mortos -personagens, mentalidades, preços" que são seu objeto. Abandonar essa intenção de verdade, talvez desmesurada mas certamente fundadora, seria deixar o campo livre a todas as falsificações, a todas as falsidades que, por traírem o conhecimento, ferem a memória. No exercício de seu ofício, cabe aos historiadores serem vigilantes. Nota: Este texto foi lido por Roger Chartier no Seminário "CPDOC 20 Anos". A tradução é de Dora Rocha. 31 Carlo Ginzburg,"Prefácio" a Lorenzo Valla, La donation de Constantin, texto traduzido e comentado por J. B. Giard (Paris, Les Belles Lettres,1993), p. IX-XXI (citação p. XI). 32 Michel de Certeau, "L'opération historiographique", em L'Ecriture de I'histoire, op. cit., p.63-120.
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