Baixe 1 Thoreau, a wilderness e o detetive: leituras cruzadas Luiz Carlos ... e outras Notas de estudo em PDF para História, somente na Docsity! Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 1 Thoreau, a wilderness e o detetive: leituras cruzadas Luiz Carlos Sereza1 Resumo O termo wilderness já vem sendo motivo de análises há muito tempo pelos interpretes da América. A polissemia deste termo foi associada à democracia Norte Americana e também a necessidade de deslocamentos a territórios “incivilizados”, já foi compreendido com um elemento simbólico capaz de significar e justificar as mais controversas ações. Seja de indivíduos ou mesmo de um Estado. Um elemento fundamental para perceber o imperialismo Norte Americano. No entanto, a noção de wilderness quase sempre remonta a Henry David Thoreau e ao texto Walden ou a vida nos bosques. Esta comunicação tem como objetivo evidenciar outro sentido ao termo, buscando na pulp fiction, e em romances policias noir, um significado diferente para wilderness e o homem que nela vive. Objetivando as personagens, assim como, seus cenários, veremos o quanto a pulp fiction e romance noir interpretou seu tempo e seu lugar, as cidades americanas nos anos de1920, ao modo de Thoureau. Subvertendo a noção de wilderness a: uma cidade escura e fria, onde, apenas um homem em total relacionamento com ela pode se considerar um homem. Para que possamos realizar uma analisa das significação da wilderness na produção policial é necessário antes de mais nada a analisar a tipologia destes textos literários que é a do romance negro2 ou romance noir, a qual nasceu nos Estados Unidos e teve como fundador o autor Dashiell Hammett. Este gênero tendeu para uma linha de escrita realista, talvez inspirada na própria figura de Hammett que havia sido detetive antes de se tornar escritor. Este estilo surgiu em um momento em que o imaginário de época guiava a percepção dos autores para a formação de um crime organizado. Foi o período, nos Estados Unidos, da Lei Seca (pretensa lei de segurança pública norte-americana que tentava reduzir a violência das 1 Mestre em história, UFPR,
[email protected]. 2 Foi na década de 1930 que surgiu nos EUA uma produção conhecida como Dime-detect. Estas publicações realizavam interpolação de discursos que remetiam a antigas histórias da conquista do oeste americano, publicadas em baixa qualidade e vendidas a preços baixos – daí a utilização do termo Dime – e, ao mesmo tempo, citavam o gênero policial fundado pelos três textos clássicos de Edgar Alan Poe, “Os crimes da Rua Morgue”, “A carta roubada” e “O mistério de Marie Roget”. Estas produções se materializavam em revistas como a Black Mask onde diversos escritores enviavam textos aos editores. Mediante a aceitação do trabalho, os editores pagavam os autores por palavras, o que representa inicialmente um interesse por textos longos, que pudessem ser seriados e fizessem com que o leitor comprasse o número do mês seguinte. Dashiell Hammett, o fundador do romance negro ou romance noir, iniciou sua carreira de escritor nesta revista. Foi nela que Sam Spade, seu detetive, ganhou forma, assim como o seu estilo que seria copiado por diversos autores posteriormente. Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 2 grandes metrópoles atacando a produção, transporte e venda de bebidas alcoólicas no país) e da formação de vários “sindicatos do crime” que lutavam pelo monopólio do mercado clandestino de álcool.3 Sobre este processo um dos grandes analistas de romances policiais Ernest Mandel diz (...) Chandler, na realidade, teorizou sobre a mudança, datando-a como iniciada com a obra de Hammett. Foi uma quebra abrupta da delicadeza do romance policial clássico, especialmente do crime baseado em razões psicológicas individuais como a avareza e a vingança. A corrupção social, especialmente entre os ricos, tornou-se então o tema central junto com a brutalidade, um reflexo não só da mudança dos valores burgueses provenientes da Primeira Guerra Mundial como do impacto do banditismo organizado.4 Desta maneira, o romance policial moderno – o romance negro – transferiu o problema da criminalidade do individual ao coletivo. Esta modificação constituiu um ponto fundamental, pois o romance policial é um gênero literário que se apropria dos medos e sentimentos do imaginário de época. E são/foram estas transformações históricas as principais motivações para a confecção de novas formas de representação dentro deste estilo. Contudo, há um outro elemento que temos de mencionar. Uma das questões que impressionam na estrutura do romance policial encontra-se na sua capacidade de moldar-se a variados formatos e suportes. As estruturas do romance, em certa medida, a partir do século XX, moldaram-se a diferentes tipos de produções culturais, influenciando as mais diferentes áreas como o cinema, as histórias em quadrinhos e a televisão, meios de comunicação que também foram responsáveis por um aumento do número de leitores do romance policial e pela re-configuração dos modelos expostos acima. No romance noir, houve uma re-significação da maneira de ver, a preocupação seria, a partir de então, com a realidade. Nos textos de Hammett, assim como nos de Chandler, havia uma preocupação constante com a simplicidade dos personagens e das ações e, também, em transmitir a idéia de uma narrativa totalmente realista. Isso não impedia, entretanto, a publicação deles em conjunto com textos, despreocupados com o real. 3 MANDEL, op. cit... p. 61, ver principalmente capítulo 4 “De volta às ruas”. 4 MANDEL, op. cit… p. 64. Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 5 uma identidade coletiva entre os diferentes grupos da cidade industrial, o romance policial contribuiu para a construção de aparatos de contenção, indicadores e sistemas de naturalização do crime, da criminalidade e do combate a eles. Diferentemente da relação estabelecida entre o romance policial clássico e os textos de jornais, o romance negro teve grande relação com o folhetim, principalmente os parisienses. Acreditamos que o realismo incorporado ao romance noir, aproximam estes textos e este aspecto não deve ser percebido como uma simples influência ou um rito de apropriação. O romance folhetim criou identidade entre leitores e escritores, assim como o romance noir. Raymond Chandler deu forma a esta sensibilidade quando escreveu sobre o que é o realismo no romance negro. Para ele, o Hard-boiled (a queima-roupa), como foi nomeado o romance noir nos Estados Unidos, é a expressão do realista em relação a assassinatos que (...) escreve sobre um mundo de em que gângsteres podem governar nações e quase governam cidades, em que hotéis e edifícios de apartamentos e restaurantes famosos são propriedade de homens que fizeram suas fortunas com bordéis, em que um astro de cinema pode ser o informante de uma família de mafiosos, e o vizinho simpático é o chefe de uma rede de extorsões; um mundo onde um juiz com uma adega cheia de bebida contrabandeada pode mandar um homem para a cadeia por ter meio litro de uísque no bolso, onde o prefeito de sua cidade pode ter feito vistas grossas a um assassinato como um instrumento para levantar verbas, onde nenhum homem pode andar por uma rua escura em segurança porque a lei e a ordem pública são coisas das quais falamos mas que nos abstemos de praticar; um mundo onde você pode testemunhar um assalto em plena luz do dia e ver quem o praticou, mas você vai mais que ligeiro misturar-se à multidão e não contar a ninguém, porque os caras do assalto podem ter amigos que carregam trabucos, ou a polícia pode não gostar de seu depoimento, e de qualquer jeito aquele advogado de porta de cadeia, quando fizer a defesa, vai poder maltratá-lo e aviltá-lo em pleno tribunal, ante um júri de idiotas selecionados, sem a menor interferência de um juiz político.8 A leitura pessimista do romance negro, lançou mão a uma crítica generalizada acerca das relações sociais no mundo moderno, principalmente aquelas realizadas após a Primeira Grande Guerra. A vida das grandes cidades americanas neste período foi dura. Chevalier apontou uma nota referente a isto em seu estudo, dizendo que apenas três lugares, até onde conseguiu analisar, tinham referências tão claras e abundantes quanto ao crime. Esses locais 8 CHANDLER, Raymond. A simples arte de matar. Porto Alegre: L&PM, 1997, p. 411. Texto originalmente publicado em 1944. Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 6 eram Londres, Paris (onde concentrou seu estudo) e Chicago nos anos vinte. Mas poderíamos dizer que as grandes cidades dos Estados Unidos tinham algo em comum nesta época e que: Este mundo não é perfumado, mas é o mundo em que vivemos, e certos escritores de mentes vigorosas e espírito frio de distanciamento podem criar padrões muito interessantes e até mesmo divertidos a partir dessa matéria prima. Não é engraçado a idéia de um homem ser assassinado, mas às vezes é engraçado que ele seja assassinado por tão pouco, e que sua morte seja a moeda-corrente do que chamamos de civilização. E tudo isso não é o bastante.9 As diferentes fases do folhetim indicavam para um lugar impreciso, que podia ser visto de perto nas grandes cidades: a desordem. Foi com a construção do romance policial que a figura da ordem se rearticulou e foi na representação do personagem do detetive que a imagem de ordem se personificou. Das narrativas clássicas as narrativas noir, o detetive introduziu uma noção de ordem moral maior que uma noção de ordem legal. Talvez por este motivo as primeiras representações destes investigadores foram definidas pela crítica como máquinas de pensar, personagens sem emoções, já que a emoção havia sido a culpada pela desordem. E mesmo quando os personagens foram imbuídos deste sentimento, como no caso dos detetives do romance noir, eles foram construídos a partir de fortes princípios morais que tendiam a mantê-los distantes do submundo do crime, deste mundo sem perfume. O romance noir desenvolveu-se como uma contraposição a narrativa clássica e de enigma. O detetive, nesses romances, era representado como um homem duro e amargo que enfrentava o crime de maneira direta. Essa personagem, neste tipo de narrativa, apareceu quase sempre como um perdedor e um trabalhador, um profissional da investigação. A imagem de Hammett era o protótipo do detetive. Tratava-se de uma modificação também na esfera de percepção do crime, pois se a imagem do detetive era de um profissional, as representações relativas aos criminosos também se profissionalizaram, como observamos por meio de algumas expressões típicas dos anos de 1920-1930 e dos romances noir, como por exemplo, os sindicados do crime, a máfia, o crime organizado, etc. O aparecimento do crime organizado que preocupou Chandler foi, em certa medida, a percepção de que os crimes nas cidades modernas eram provenientes das próprias relações 9 Id. Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 7 sócio-culturais estabelecidas entre as pessoas. Poderíamos dizer que no romance noir, através do encontro de diversas linhas de força. Entre elas, as mudanças na maneira de compreender o crime, a influência do realismo, as apropriações das práticas e sentidos vividos nas grandes cidades e, por fim, uma tradição intelectual/cultural dos Estados Unidos. Neste ponto juntavam-se paradigmas que mostravam caminhos a serem seguidos. O fato de, na constituição do romance policial os criadores estarem tão interligados às utopias científicas, possibilitou o aparecimento de gigantescas coleções de indícios e pistas que, quando comparadas por meio de um raciocínio lógico e científico, conduziam à detecção dos culpados e à resolução dos problemas. Por meio das paixões exacerbadas, as multidões desordenadas tornavam-se perigosas. As atrocidades cometidas em nome de sentimentos deveriam ser combatidas por métodos científicos. Assim, espanto ou surpresa não estavam no metier dos detetives dos fundadores do gênero, assim como seus corpos estavam garantidos pelas defesas da ciência moderna. Para que isto fosse realmente efetivado, o romance policial fundador teve uma estratégia de narração que era compreendida dentro da dinâmica de um memorialista (lembremos do Dr. Watson). Esta estrutura envolvia uma ausência de ação no romance, pois como já vimos havia uma divisão entre as histórias, a primeira era definida pela a construção do crime, podendo variar entre assassinatos e roubos; a segunda era a história do inquérito, onde os personagens não agiam, mas descobriam. O processo era arquitetado para fazer com que o detetive não tivesse contato com o mundo do crime; afinal, as representações deste universo tinham características orgânicas quase sempre ligadas à idéia de doenças transmissíveis. Holmes, por exemplo, foi um personagem que travou vários duelos com vilões. Não obstante, mesmo estes combates que o detetive realizava, eram regrados e hierarquizados, pois o fabuloso investigador era perito em um tipo de luta com a bengala, que havia sido criado logo depois que as pessoas foram proibidas de carregar espadas. Ao mesmo tempo, a narrativa aludia a um esporte nobre e o representava como um cavalheiro, lutando com um homem comum. O uso da bengala o protegia de contaminação. De fato, a criminalidade foi observada, durante muito tempo, com características orgânicas. Somavam-se a isto certas capacidades de metaforizá-la com criaturas monstruosas. Os desvios sociais ganharam com o romance policial um lugar privilegiado. E quando a pulp Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 10 acontecimentos e citações encontravam-se as discussões sobre temas como civilização, barbárie, natureza, fronteira, perspectiva, indícios e identificação. A literatura representava e se apropriava do emaranhado de tramas que o mundo moderno construía e com as quais as pessoas do século XX tiveram que conviver. E neste aspecto a literatura noir é surpreendente, com técnicas de escrita pouco elaboradas e um estilo direto. Os temas citados acima eram recorrentes embora nem sempre estivessem dentro das suas concepções usuais ou tradicionais. Essas idéias são correntes em praticamente todas as pulps magazines, e mesmo passando por um processo de tradução os temas citados acima são comuns. Poderíamos buscar referências destas imagens logo após a Independência, na qual o povo americano, imbuído de um ethos puritano, iniciou a transformação de sua origem comunal para a formação de território imperial. Poucos anos se passaram da primeira geração dos pais fundadores para Henry David Thoureau criticar seus concidadãos no notório escrito conhecido como A desobediência civil. Este texto foi produzido entre 1845-1847, enquanto Thoreau encontrava-se em uma cabana às margens do lago Walden, nas proximidades de Concord, em Massachusetts. Nesse local, ele registrou a sua experiência com a natureza; processo que gerou um dos principais livros americanos do século XIX, o Walden; ou a vida nos bosques. O autor também redigira um apêndice, o texto sobre a desobediência civil. Neste texto, Thoreau explicava qual a posição dos EUA em relação à escravidão, assim como afirmava que a guerra contra o México13 era um abandono dos princípios legados pela democracia comunal dos fazendeiros do século anterior. Em seu texto afirmou “Este povo deve deixar de manter escravos e de fazer guerra ao México, embora isso custe sua existência como povo”14. O que Thoreau observou neste texto encontrava-se em total relevância com a história dos EUA nesse momento. No século XIX, este país se tornou continental, os colonos americanos alcançaram o oeste e a nação americana orgulhava-se em lembrar disto. Contudo, o autor de A desobediência civil percebeu que este momento representava, também, um rompimento com o passado da democracia comunal, pois a inversão do processo de governo havia ligado os EUA à prática de um imperialismo. Além 13 A guerra a que Thoreau se refere foi travada em 1846 entre o México e os EUA, quando este invadiu o território mexicano. Como resultado deste confronto, os Estados Unidos anexou os estados da Califórnia, Novo México e Texas. 14 THOREAU, Henry David. A desobediência civil e outros escritos. São Paulo: Cultrix, 1993, p. 22. Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 11 dessas reflexões Thoreau percebeu que o fim das duas ações – a escravidão e a guerra imperial contra o México – significavam o fim da própria nação americana, pois esta já não poderia viver sem o processo imperial. Durante o século XIX, os EUA lançaram-se à conquista e colonização de novos territórios e por meio deste processo alcançaram um desenvolvimento rápido, tornando a economia, a política e a cultura deste país, dependentes dos avanços territoriais. Estas constatações puderam ser observadas em um rápido exame das condições econômicas anteriores ao avanço para o oeste e à situação em que este país encontrava-se após alcançar o Oceano Pacífico. No entanto, constatar que o movimento de colonização deixou o país dependente de tal processo não explicou o porquê deste agir de tal maneira. Neste ponto, outros fatores tornaram-se necessários para a percepção de tal situação. A formação dos EUA teve uma constituição a partir de determinadas idéias provindas do protestantismo. Havia um imaginário que percebia as mudanças de maneira otimista e este [...] pensamento se relaciona também com as imagens mitificadas do processo histórico norte-americano, que destacava a oportunidade de uma nova vida alcançada pelos peregrinos nos primeiros anos das Colônias. Estes, após ficarem livres das perseguições religiosas e de uma sociedade estamental, que privilegiava as classes aristocráticas, trouxeram a promessa de liberdade e prosperidade, alcançadas através do trabalho árduo e da fé na recompensa dada por Deus. A própria Declaração da Independência dos Estados Unidos justificava a procura pela felicidade, servindo de fonte de otimismo e inspiração para o estabelecimento de uma nova sociedade. A fundação e a ocupação do território dos Estados Unidos receberam, igualmente, uma interpretação especial. Os mitos da Eleição Divina e o Destino Manifesto referiam-se à fundação deste país por um grupo de protestantes que encontrou um lugar para praticar a sua religião livremente.15 Apareceu neste momento uma articulação que se tornou um fenômeno de longa duração nos EUA: a crença de serem os americanos um povo eleito e terem a missão de colonizar e de propagar a liberdade na qual viviam; nas palavras de um dos pais fundadores. Outro mito americano pôde ser observado em um texto de Thomas Jefferson, de 1786. 15 BEGHETTO, Lorena. O Pesadelo comunista ameaça o Ocidente: O anticomunismo nas revistas Seleções do Reader’s Digest, (1946-1960). Curitiba: Dissertação de Mestrado, 2004, p. 30. Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 12 Segundo ele “nossa confederação tem de ser vista como um ninho a partir do qual toda a América, Norte e Sul, deve ser povoada”16, este destino manifesto proferia a crença que para promover a “grande lei da autopreservação” [os EUA], a natureza lhes havia conferido um direito especial à expansão. Eram, como os antigos israelitas, uma “raça escolhida”, representando uma ordem social mais elevada, levando o progresso aonde quer que fossem. Não estavam pisoteando outros povos, mas abrindo-lhes novas perspectivas; ser parte dos Estados Unidos era um privilégio, não um jugo.17 Desta forma, a auto-imagem norte-americana se projetou em um fundo de moralidade que protegia, assim, sua unidade, fazendo com que suas práticas imperialistas fossem interpretadas como o desenvolvimento de seu destino natural. Assim, embargos ou ações militares não deveriam ser consideradas relações imperialistas; mas, ao contrário, deveriam ser compreendidas como mais uma causa do humanismo ianque. A produção mítica ressaltava que desde a origem até os anos da Guerra Fria, os EUA apenas haviam se utilizado da força para promover a paz, a liberdade ou em atos de legítima defesa da pátria. É preciso observar que os mitos tinham a capacidade de articular e convergir energias do grupo que dele se utilizavam para significar suas ações. Ao contrário do que vulgarmente se pensava, o mito não era uma mentira nem mesmo encontrava-se em uma dissonância entre verdade ou não verdade. Estes elementos que provieram de um reordenamento do passado estenderam-se dentro de um sistema narrativo composto por variados dispositivos, fossem eles os textos religiosos ou profanos, fossem mensagens políticas ou revistas de entretenimento. Ao que pareceu (...) no mito existem dois sistemas semiológicos, um deles deslocado em relação ao outro: um sistema lingüístico, a língua (ou os modos de representação que lhe são assimilados), a que chamarei linguagem-objeto, porque é a linguagem de que o mito se serve para construir o seu próprio sistema; e o próprio mito, a que chamarei metalinguagem, porque é uma segunda língua, na qual se fala da primeira.18 16 Citado por LENS, Sidney. A fabricação do império americano: da Revolução ao Vietnã uma história do imperialismo dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 22. 17 Ibid., p. 23. 18 BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Difel, 2003, p. 206. Luzi Felipe Miguel fornece uma bela explicação para este conceito de mito em um sistema semiológico. Segundo ele: “Um exemplo, extraído do Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 15 Nós temos cerca de 50% da riqueza mundial, mas somente 6,3% de sua população... Nesta situação não podemos deixar de ser alvo de inveja e ressentimento. Nossa verdadeira tarefa, na próxima fase, é planejar um padrão de relações que nos permitirá manter esta posição de desigualdade... Para agir assim, teremos de dispensar todo sentimentalismo e devaneio; nossa atenção deve concentrar-se, em toda parte, em nossos objetivos nacionais imediatos... Precisamos parar de falar de vagos e... irreais objetivos, tais como direitos humanos, elevação do padrão de vida e democratização. Não está longe o dia em que teremos de lidar com conceitos de poder direto. Então, quanto menos impedidos formos por slogans idealistas, melhor.22 Esta comparação, entretanto, não devia ser considerada uma continuidade das ações políticas, pois não o foram e não tivemos a intenção de naturalizar o processo imperial ianque. O que pretendemos ao comparar dois textos distintos que remetiam à idéia de continuidade, foi perceber que o complexo que se manteve encontrava-se na latência de um imaginário que significou e (re)significou uma série de discursos e representações por meio de uma construção simbólica que tendeu a reafirmar o povo americano como povo eleito, justificando assim as mais diferentes práticas de intervenção na política externa, sem o mínimo de crítica por parte das instâncias estatais. Ao que parecia, a política do pós-guerra apoderou-se destes dispositivos. As tramas do envolvimento da produção mítica dentro da política se equipararam de tal forma na mídia que chegou um momento em que não se conseguia pensar a política desvencilhada de tal prática. Tal prática atingiu seu ápice em 1950, quando a comunicação política passou a ser instrumento usual. A América Latina teve, dentro do imaginário ianque, uma relação tensa. Muitas vezes foi representada como jardim da pátria da liberdade ou como fronteira a ser conquistada. Foi preciso observar que este era um processo histórico, que tendia a ser de média a longa duração. Lúcia Lippi Oliveira, ao analisar as representações de identidade nacional americanas, observou que a formulação de fronteiras teve uma importância ímpar no desenvolvimento da identidade nacional norte-americana e que 22 Citado por CHOMSKY, Noam. O que o Tio Sam realmente quer. Brasília: UNB, 1999, p. 12-13. Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 16 Lidar com a fronteira é lidar com um tema-mito da história norte- americana. Nele estão imbricadas questões relativas à democracia versus aristocracia, e à natureza ou barbárie versus civilização. Fronteira é um tipo de junção de espaço simbólico, ideológico e material. Representa a primeira onda de modernidade a quebrar na terra intocada, e é caracterizada como selvagem, primitiva, não regulada. Como se encontra à margem do poder do Estado, ela cria sua própria lei e (des)ordem. Ideologicamente, a fronteira passa a representar o local onde se encontra, onde se desenvolve o mais típico, o mais primitivo da identidade nacional, já que seus habitantes não tiveram ainda contatos com outros povos. Neste sentido, a fronteira e o Oeste possuem um poder mitológico fundamental.23 Este lugar mítico teve um nome específico em inglês: wildernes e, em muitos aspectos, assemelhava-se a nossa noção de sertão. No entanto não houve um termo que traduzisse em nossa língua a definição para wilderness. Um dos sentidos encontrava-se na associação entre democracia comunal e espaços selvagens. Durante o século XIX, os norte americanos buscaram diferentes espaços para tentar se aproximar novamente com o mito de fundação. Thoreau – assim como Conrad, embora de maneira e com intensidades diferentes – também representou um núcleo de discursos que influenciaram as representações veiculadas na pulp literatura, assim como uma nova fase de romances policiais americanos. Foi uma das principais correntes de pensamento que insistiam que não poderia haver uma democracia sem o contato com a natureza. Como vimos anteriormente, este autor era contrário às investidas imperialistas dos EUA. Não obstante, uma inversão do sentido dado a wilderness por ele seria responsável pelo entendimento da América Latina como um dos novos espaços a serem desbravados. A constituição destes textos dentro de revistas policiais revelava também a ligação com núcleos discursivos que retornariam a um lugar comum. O detetive dos contos noir tinha certas características dos cowboys. Afinal eram durões e conheciam como ninguém o selvagem espaço das cidades. A definição desta estrutura tinha em si mesma uma constatação: representava uma imagem de desejo e obedecia a uma carga simbólica norte-americana. A wilderness foi uma importante metáfora para simbolizar a construção da nação, esteve presente em diversos textos e narrativas de formação, em um processo de significação e re- 23 OLIVEIRA, Lucia Lippi. Americanos: representação da identidade nacional no Brasil e nos Estados Unidos. São Paulo: UFMG, 2000, p. 117. Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 17 significação. Ao serem justapostas às narrativas policiais, fazia saltar aos olhos a imagem do detetive como o homem que se nutria da wilderness e que a domava, mostrava a necessidade de transformar a cidade em um espaço inteligível, mesmo que este fosse um lugar misterioso por excelência. Independente dos gêneros, as citações entre as obras literárias apareciam em grande volume. Os textos das pulp magazines serviam de catalisadores, filtrando tudo que passasse pelos autores, tanto materiais considerados de alta qualidade como elementos de uma cultura desqualificada. Das pulp fiction nada escapava; tudo era apropriado e re-significado. Logo, a distinção entre cultura popular e cultura erudita não tem muita utilidade para nosso trabalho, pois não podemos inserir uma simples divisão entre os textos, balizando-os como eruditos ou populares. Neste caso, não nos interessa a técnica de escrita ou a aceitação do autor X ou Y pelo campo literário, mas sim, a permanência de temas. Em um exemplo prático pudemos observar essa questão quando nos referimos ao escritor Jack London. Ele dedicou grande parte de sua obra à natureza24 e às idéias de civilização versus barbárie, temas recorrentes em variados autores nas pulp magazines. Não seria difícil citar histórias em que os temas e cenários são apropriações das florestas de Jack London. Entretanto, a trama nestas histórias é quase sempre policial e, na maioria das vezes, com tendências ao romance negro. A idéia de natureza era encontrada em vários literatos, sobretudo a noção de wilderness, específica aos Estados Unidos. Base de vários romances, contos e novelas norte-americanas, a idéia de wilderness, embora imbricada nas representações sobre a sociedade estadunidense, é difícil de precisar. Mary Anne Junqueira chegou a constatar que: 24 A idéia de natureza foi um desses catalisadores. É preciso lembrar que a representação sobre a natureza foi extremamente importante para os colonizadores norte-americanos quanto a constituição de sua identidade. A natureza serviu para a constituição de mitos na formação da América no Norte, quando os colonizadores chegaram a região estavam imbuídos de um imaginário que os assemelhava ao hebreus que haviam se libertado do cativeiro do Egito. A travessia do Atlântico no Mayflower e a chegada em uma região de “natureza virgem” como a simbolizaram, serviu de mito de fundação aos EUA, logo que perceberam os problemas que enfrentariam vivendo em uma região inóspita, com ataques freqüentes de grupos indígenas. Assim, preocuparam-se com a dominação da natureza. De alguma maneira este mito se solidificou e permaneceu na auto-imagem dos norte-americanos. Com o passar dos anos, esta característica desta sociedade foi se reformulando e se constituindo em projeções, sejam elas em relação a si mesma ou em relação a outras. Este mito e imaginário permitiu a constituição de processos imperialistas, assim como alimentou uma preocupação com o controle da natureza, sejam elas as paisagens naturais agrestes ou as construídas pela própria sociedade, como as cidades. Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8 20 BEGHETTO, Lorena. O Pesadelo comunista ameaça o Ocidente: O anticomunismo nas revistas Seleções do Reader’s Digest (1946-1960). Dissertação (Mestrado em História) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, UFPR. Curitiba, 2004. BEIRED, José Luis Bendicho. Tocqueville, Sarmiento e Alberdi: três visões sobre a democracia nas Américas. História., Franca, v. 22, n. 2, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101- 90742003000200004&lng=pt&nrm=iso>. 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