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Esse pensamento está claro na obra sobre a doutrina cristã, onde o Santo Pastor de Hipona diz expressamente: “Há algumas para serem fruídas, outras para serem ...
Tipologia: Notas de estudo
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Neste capítulo apresentar-se-á: as raízes familiares e o ambiente em que viveu e cresceu Aurelius Augustinus, as primeiras influências de sua existência; os primórdios de seu itinerário intelectual e religioso; a conversão ao cristianismo e seus desdobramentos; as razões que motivaram Agostinho a escrever a Cidade de Deus. Esta obra, apresenta a conotação da paz na cidade celeste e na terrestre; a paz justa e a injusta; o conceito de guerra justa e as suas condições; como a paz é abordada em algumas obras de Agostinho.
Ambiente familiar
A família e a formação
Alguns biógrafos de Agostinho, como Agostino Trapé e Hamman, são unânimes em dizer que o ambiente, em que ele nasceu e viveu, foi profundamente marcado pelo contraste religioso: de um lado, a marcante influência de sua mãe, Mônica, que tinha uma piedade personificada por uma grande fé e confiança absoluta em Deus e, por outro lado, a presença do pai, Patrício, homem rude, de caráter firme e violento, pagão, com costumes depravados, portanto, contrários à fé cristã de sua companheira. Foi, neste contexto, que nosso futuro Doutor da Graça viveu os primórdios de sua existência terrena. A mãe desejava e antevia, pela fé, que seu filho seria um cristão convicto e temente a Deus. O pai talvez nutrisse o sonho de ver o filho ocupando nobre posto no governo do Império Romano e levando uma vida de prazeres e aventuras vaidosas. Sabemos, porém, pela história, que o batismo e o desejo alimentado e gerido na oração silenciosa de Mônica acabaram vencendo, pois ambos, pai e filho, seriam mergulhados, um dia,
nas águas regeneradoras do batismo. E, em Agostinho, a fonte batismal culmina com a graça do sacerdócio e, mais tarde, do episcopado. Aurelius Augustinus nasceu em Tagaste, província romana da Numídia, na África romanizada atual Souk-Ahroz, na Argélia, norte da África em 13 de novembro de 354. Agostinho teve dois irmãos: Navígio, que se converteu juntamente com ele, e Perpétua, que, depois de enviuvar, tornou-se religiosa, chegando a ocupar a função de superiora em um convento agostiniano em Hipona 120. Uma das grandes influências na vida do Santo de Hipona foi, certamente, a pessoa de sua mãe, mulher de personalidade forte e, ao mesmo tempo, suave no trato com as pessoas, Mônica foi uma verdadeira cristã, que vivia sua fé com humildade e grande firmeza. Agostinho enaltece as virtudes humanas e religiosas de sua mãe, agradecendo a Deus a graça extraordinária que lhe havia sido concedida por ser filho de tão exemplar mulher^121. Mônica deu provas das suas virtudes cristãs já como filha, na submissão a seus pais, a quem, pela fé, aprendeu a amar e respeitar devotamente. Aliás, estes lhe haviam instruído, desde cedo, nos caminhos do Senhor. Como esposa, teve um vasto campo para exercitar as máximas da tolerância e da caridade fraterna^122. De fato, embora não compartilhasse com a mentalidade pagã da qual seu esposo era influenciado, ela conseguia, com paciência e suavidade, manter o clima de sua casa em perfeita serenidade^123. Vivia convicta de que o amor e a misericórdia de Deus converteriam Patrício e o libertariam de todos os seus vícios. Um outro traço da personalidade de Mônica, ao qual Agostinho faz referencia, era sua capacidade de desfazer discórdias, colaborando para a realização da paz entre as pessoas. Mônica era uma exímia reconciliadora. Pela serenidade com que vivia sua adesão aos preceitos do Evangelho, ela atraiu várias pessoas à fé. Sobre este aspecto, Agostinho declara:
120.Cf. RUBIO, Pedro. Toma e lê: Sintese agostiniana, São Paulo, Edições Loyola, 1995, p.
Cf. Conf.,,IX,21.
Cf. TRAPE, Agostino. Agostino, l’uomo, Il pastore, Il mistico, Roma, Città Nuova,1989, p.
Cf. Conf., IX,9.
Agostinho contou com a colaboração de seu amigo Romaniano, que possuía bens em abundância, cobrindo as despesas que Patrício não tinha condições de assumir. Agostinho, por ser o primogênito, teve o privilégio de desenvolver-se intelectualmente, mas seus irmãos não tiveram a mesma oportunidade, devido às dificuldades financeiras da família, pelas despesas oriundas da educação de Agostinho^128. Patrício, apesar de suas fraquezas de caráter e da rudeza de temperamento, teve o mérito de ter oferecido ao filho a possibilidade de adentrar na vida acadêmica, descortinando, para este, os caminhos do saber, que lhe conferiram o prestígio da cultura greco-romana, que marcou sua personalidade, deixando rastros de uma inteligência iluminada no horizonte do pensamento ocidental, que, apesar do tempo transcorrido, permanecem indeléveis até hoje. Agostinho faz uma sentida menção a seu pai, dedicando-lhe palavras de afeto e agradecimento pela cultura que o mesmo lhe proporcionou:
“Todos elogiavam muito meu pai, que gastava mais do que lhe permitia o patrimônio familiar, nas despesas necessárias para a permanência de seu filho longe de casa por motivo de estudo. Muitos outros cidadãos, bem mais ricos que ele, não se interessavam do mesmo modo pelos filhos”^129.
O Ilustre Africano se expressava em púnico ou cartaginês, língua de sua terra. Dominava, perfeitamente, o latim, implantado pelos romanos^130. Embora gostasse das poesias da mitologia grega, o Filho de Mônica não dominava bem o grego:
“Mas qual era a causa da aversão que tinha à língua grega que me ensinaram quando criança? É o que ainda hoje não sei explicar. É verdade que outrora, quando criancinha, também, não sabia nenhuma palavra latina e, contudo, instruí- me sem a pressão correcional dos instigadores, impelido só pelo meu coração desejoso de dar à luz os seus sentimentos” 131.
Quando Agostinho tinha cerca de onze anos, foi mandado para Madaura, uma cidade cerca de trinta quilômetros de Tagaste, que era um centro intelectual.
No programa dos estudos, constavam os seguintes autores: Terêncio, Plauto, Sêneca, Salústio, Horácio, Cícero, entre outros. Esses estudos, seguindo o costume da época, eram realizados, visando quatro aspectos: lectio (leitura à voz alta com ensino de dicção), enarratio (explicação dos textos), emendatio (análise gramatical e literária), judicium (estudo de conjunto). Ao mesmo tempo, estudava- se o grego^132. Mesmo que dotado de uma inteligência privilegiada, o Filho de Patrício deixou-se envolver, desde cedo, pela sedução dos prazeres e jogos, atrasando, de certa forma, sua ascensão intelectual. Somente em fins de 370 d.C., com 16 anos, ele partiu para Cartago a fim de fazer estudos superiores, graças à ajuda de um bem-feitor amigo da família, o mecenas Romaniano. Neste período, Santo Agostinho viveu, do ponto de vista moral, uma das fases mais críticas, entregando--se completamente aos vícios e paixões desordenadas, como ele mesmo irá declarar mais tarde:
“Vim para Cartago. De todos os lados ferviam criminosos amores. Ainda não amava e já gostava de amar impelido por uma necessidade secreta, enraivecia-me contra mim mesmo por não me sentir mais faminto de amor (...). Era para mim mais doce amar e ser amado se podia gozar do corpo da pessoa amada. Deste modo, manchava com torpe concupiscência aquela fonte de amizade. Embaciava a sua pureza com o fumo infernal da luxúria” 133.
Mas, apesar desta miséria moral em que estava mergulhado, Agostinho dedicava-se também aos estudos e fazia planos de formar-se em Direito, devido a sua facilidade de argumentação e de retórica. Foi durante sua estada em Cartago, que conheceu e leu a obra Hortensius de Cícero. A leitura deste livro despertou em Agostinho a paixão pela filosofia. Desde então, ele se voltou para a busca da verdadeira sabedoria que só encontrou muito mais tarde, quando abraçou definitivamente o cristianismo. O contato com a obra de Cícero o impressionou pelo estilo literário. Mas, para sua frustração, não mencionava uma única vez o nome de Cristo, único capaz de proporcionar autêntica felicidade para o ser humano, como ele dirá vários anos mais tarde, depois de sua conversão: “(...)
132.Cf. ROCHA, H. M. Pelos caminhos de Santo Agostinho, São Paulo, Edições Loyola, 1989, p. 19.
retórica de Cícero elevou o espírito de Agostinho na busca da sabedoria, única capaz de conduzir os homens à imortalidade. Para chegar a este estado de perfeição, eram necessários: a investigação intelectual, a orientação moral e o empenho ascético. Porém, Agostinho ansiava por algo maior, que ultrapassasse os discursos e palavras. Ele nutria o desejo de experimentar a plenitude da sabedoria:
“Como eu ardia, ó meu Deus, em desejos de voar para ti, abandonando as coisas terrenas! No entanto, eu ainda não sabia o que pretendias fazer de mim! Em ti reside a sabedoria. Ora, o amor da sabedoria, pelo qual eu me apaixonava com esses estudos, tem o nome grego de filosofia. Há quem seduza o próximo pela filosofia, colorindo e mascarando os próprios erros com nome de grandioso, fascinante e nobre. Quase todos os filósofos desta época e de épocas anteriores, que assim o fizeram, são censurados e denunciados neste livro. Aparece em suas páginas, o salutar conselho que deste por intermédio do teu servo fiel: «tomai cuidado para que ninguém Vos escravize pela filosofia e pela sua vã sedução, segundo a tradição dos homens, segundo os elementos desse mundo, e não segundo Cristo (Col 2, 8; 10)» Pois nEle habita corporalmente toda plenitude da divindade “^138.
Essas palavras de Agostinho já revelam, intuitivamente, a verdade encerrada nas palavras do apóstolo Paulo, que Agostinho só irá compreender anos mais tarde, no cristianismo. De fato, ao longo de seu itinerário de fé, Agostinho irá descobrir que a felicidade não está, simplesmente, num sistema filosófico, mas está em Deus que se fez homem para resgatar a humanidade, que jazia na ignorância do pecado e da morte. O princípio de todo conhecimento está em Deus, Suprema Inteligência e Sabedoria Infinita. Agostinho chegaria à conclusão de que não basta saber a origem das coisas, é preciso conhecer o seu autor. Após a sua conversão, ele se dirigirá a Deus com essa prece:
“Senhor, Deus da verdade, será suficiente conhecer estas coisas para te agradar? Infeliz o homem que conhece tudo isso e não te conhece. Feliz aquele que te conhece, ainda que ignore o resto. Aquele que conhece a ti e também as outras coisas não é mais feliz por este conhecimento, mas somente por conhecer a ti, e, conhecendo-te, te glorifica pelo que és, e te rende graças, e não se perde em vãs reflexões. De fato, aquele que se reconhece possuidor de uma árvore e te é grato pelo uso que dela pode fazer, ainda que não saiba qual a altura ou a largura dela, é melhor do que aquele que a mede; conta-lhe os galhos, mas não possui e não conhece nem ama o criador dela. Do mesmo modo, a pessoa de fé possui todas as riquezas do mundo e mesmo que nada tenha, é como quem tudo possui, pois está
unido a ti, Senhor de todas as coisas, pouco importando se nada sabe sobre o percurso da Ursa Maior!” 139.
O contato com a filosofia platônica instigará Agostinho a procurar a verdade dentro do seu próprio interior^140. Não basta o desprezo das vaidades terrenas e da ascese corporal, é necessário fazer uma viagem introspectiva. Daí, Agostinho inicia uma nova etapa do itinerário de sua conversão, que será determinante. Caindo em si, Agostinho encontra a luz da verdade, pela qual ansiava há muito tempo. Realmente, ele descobre que Deus é a verdade e, somente nele, se explica o mistério do mal, que consiste em abandonar o Sumo Bem, a Bondade por excelência, a fonte e origem de toda criação. A idéia do dualismo maniqueu fora desfeita. O mal não fora criado por Deus. Ele é o resultado da vontade má do homem, que prefere viver sem o esplendor da luz divina. Assim, contemplando essa realidade, Agostinho exclama:
“Em ti o mal não existe de forma alguma; e não só em ti, mas em quaisquer das criaturas tomadas em sua universalidade. Porque, fora da tua criação, nada existe que possa invadir ou corromper a ordem por ti estabelecida” 141.
Mergulhando em sua interioridade, Nosso Autor constata que, sem a luz que provém de Deus, o homem não pode encontrar o sentido da sua existência^142. Somente reconhecendo e escutando a voz da verdade, que habita em seu interior, a pessoa descobre o mistério acerca de si mesmo e do universo^143. Porém, ainda não estava tudo resolvido, era necessário um caminho para chegar à Deus. Essa via é Cristo. Mas Agostinho ainda relutava em aceitá-LO como Mediador entre Deus e os homens. O platonismo, de fato, atribuía a Cristo somente o papel de um sábio, possuidor de uma inteligência exuberante e singular^144. Agostinho não compreendia o senso das palavras: “o Verbo se fez carne”^145. Mas reconhecerá
somente iria encontrar nas leituras das epístolas de São Paulo, onde ele descobre, de fato, que, para tornar-se sábio, é preciso aprender a arte da humildade na escola de Cristo. A filosofia platônica mostrara-se incompleta, pois deposita muita confiança na autopurificação humana, que podia conduzir os homens ao cume da sabedoria. Mas Nosso Autor se desilude com essa concepção, pois carregava, em si, as marcas deixadas pelos vícios e paixões desregradas, cuja libertação reclamava uma força sobrenatural, que só o amor de um Deus poderia suplantar. A mensagem platônica não conseguiu atingir esse conhecimento que, para o Africano, tornou-se fundamental na superação de seus apegos terrenos. Sobre sua passagem pelo platonismo, ele afirma:
“Nada disso é mencionado nos livros platônicos. Sua página não contém a imagem de um amor tão grande, as lágrimas da confissão, o teu sacrifício, a alma abatida, o coração contrito e humilhado, a salvação do povo, a cidade desposada, o penhor do Espírito Santo, o cálice de nossa redenção. Lá ninguém canta: «Não estará a minha alma submissa a Deus? É dele que me vem a salvação. Pois ele é o meu Deus e a minha salvação, o meu apoio. Não vacilarei nunca mais». Naqueles livros ninguém ouve o convite: «Vinde a mim todos os que trabalhais». Desdenham aprender dele, porque é «manso e humilde de coração» “^150.
Agostinho concluiu que um dos erros principais do platonismo era o de não ter reconhecido, em Cristo, a única porta que pode levar o homem a uma realização completa e definitiva^151. Para desfrutar de seu auxílio e companhia, é necessário eliminar a auto-suficiência e a jactância. A soberba é inimiga daquilo que é simples e humilde. Cristo fizera-se pobre, despojara-se de tudo para compartilhar o destino dos homens, a fim de reconduzi-los a Deus, suprema aspiração da humanidade. Era esta a verdade que o platonismo ignorava. Durante seu percurso de conversão, Agostinho se aproxima das Sagradas Escrituras a procura daquilo que o platonismo não conseguira oferecer^152. Dessa forma, o próprio Agostinho descreve a riqueza fascinante que a leitura da Bíblia suscitou em seu coração sequioso de verdade:
“Lancei-me avidamente à venerável Escritura inspirada por ti, especialmente a do apóstolo Paulo. Desvaneceram-se em mim as dificuldades, segundo as quais me parecia, algumas vezes, haver contradição na Bíblia e incongruência entre o texto dos discursos dele e os testemunhos da Lei e dos profetas. Compreendi o aspecto único de sua fisionomia e aprendi a exultar com temor”^153.
Uma das primeiras constatações do Filho de Mônica é que a mensagem que brota das páginas do Livro Sagrado provém de Deus. Por isso, para descobrir o seu sentido é preciso deixar-se iluminar pela luz do alto, que está sempre à disposição daqueles que procuram a verdade com o coração puro e humilde. Guiado por esta luz, ele descobre que Jesus é a Sabedoria Eterna, única via que conduz a Deus. Na carta aos romanos, São Paulo apresenta um programa para crescer na intimidade com Cristo^154. Agostinho toma as palavras do apóstolo e inicia uma nova etapa do seu itinerário de conversão. Neste tempo, ele experimenta um duelo cruel entre duas vontades, que se rebelam mutuamente: uma impelia para o bem e a outra para o mal. O Filho de Patrício já começara a trilhar o caminho da verdade, no entanto, a fraqueza da carne o puxava para os antros do prazer e das seduções do orgulho. “Sentia-me ainda preso ao passado, e, por isso, gritava desesperadamente: «Por quanto tempo direi: amanhã, amanhã? Por que não agora? Por que não por fim, agora, à minha indignidade?»^155. Nosso Autor só encontrará o repouso e a paz para seus tormentos existenciais no coração de Cristo^156. Em Jesus, o Filho de Deus, Agostinho experimentará a doçura, a suavidade e a santa alegria que ultrapassa todas as satisfações mesquinhas e frívolas da carne. A doutrina de Cristo não se limita a mostrar o caminho da verdade, porque Ele mesmo se faz companheiro e amigo na caminhada, que leva ao monte da felicidade e da paz. Agostinho passa a gozar de uma alegria contagiante e inexplicável, que o mundo das paixões e as diversas escolas filosóficas não foram capazes de lhe proporcionar. A satisfação, que o cristianismo lhe trouxera, subjugara os rastros amargos que os deslizes da carne deixaram após suas aventuras no mundo dos prazeres e das comodidades terrenas.
fundamentos sobre os quais tal doutrina estava alicerçada, se deparou com diversas contradições, constatando que os membros da seita não dispunham de muita cultura, deixando-o decepcionado^159. Depois da sua conversão ele irá dizer:
“Caí, assim, nas mãos de homens orgulhosos e extravagantes, demasiados carnais e loquazes. Havia na sua boca laços do demônio e um engodo, preparado com a mistura das sílabas do Vosso Nome, do de Nosso Senhor Jesus Cristo e do Paráclito Consolador, o Espírito Santo (...). Exprimia-se falsamente não só de Vós, que verdadeiramente sois a verdade, mas ainda acerca dos elementos deste mundo, criaturas Vossas” 160.
Nesta mesma época, o Ilustre Africano entregou-se também ao magistério, percorrendo as cidades de Tagaste, Cartago e Roma. Depois de algum tempo, desiludido pela falta de interesse dos alunos, parte para Milão em busca de melhores condições para exercer seu ofício de professor, almejando reconhecimento intelectual no seio da sociedade milanesa. Nesta fase da vida, dando continuidade às aventuras amorosas, ele teve um filho, Adeodato, e, paralelamente à sua vida depravada, permanecia angustiado pelo problema da verdade. Como já mencionado, a leitura de Hortêncio, de Cícero introduziu Agostinho no itinerário da sabedoria. Contudo, este caminho o levou de Hortêncio a Manés, depois, a Plotino, em seguida, a Paulo e, finalmente, a Cristo^161. Nele, o Intelectual da África encontrou a verdade que tanto buscava. Bem diverso daquilo que pensava, ela não estava no exterior, mas como já dito, no seu íntimo: “Deus é mais íntimo que o nosso próprio íntimo”^162. Assim, Agostinho experimentou a verdadeira felicidade e atracou ao porto da paz, que tanto desejava. Atraído pela arte da oratória do grande bispo de Milão, Ambrósio, passou a ouvir seus sermões e começou a entender o sentido das Escrituras. Daí, resolveu pedir o batismo. Assim, depois de muita reflexão, estudo e silêncio, nos arredores de Milão, recebeu o batismo no sábado santo do ano 387 d.C., pelas mãos de Santo Ambrósio, como ele mesmo registrou vários anos depois nas Confissões:
“Chegada a ocasião em que convinha inscrever-me entre os catecúmenos, voltamos a Milão (...). Recebemos o batismo e abandonou-nos a preocupação da vida passada” 163. Deste momento em diante, iniciou-se uma nova etapa na vida do Santo. Vida voltada para a oração, a leitura, o conhecimento e mergulho no silêncio, até a sua escolha para o sacerdócio. Agostinho recebeu a indicação para o episcopado de Hipona tornando-se, mais tarde, sucessor de Valério, bispo de Hipona. Ao final desta perícope sobre o encontro definitivo de Agostinho com a graça de Deus, é válido citar o que ele mesmo deixou escrito nas suas Confissões:
“Tarde te amei formosura tão antiga e tão nova. Tarde te amei. Tu estavas dentro, e eu fora, e ali te buscava; e eu feio ia me sentindo em seguimento desta formosura visível, que tu fizeste. Tu estavas comigo, e eu não estava contigo. Aquelas coisas me tinham longe de ti, as quais não teriam ser se não estivessem em ti. Chamaste e clamaste e abriste meus ouvidos surdos. Resplandeceste e tirastes de mim a minha cegueira (...)” 164.
Maturidade teológica
Santo Agostinho deixou entrever, nos seus sermões e, de modo particular, na sua obra Cidade de Deus , as suas posições sobre a política e as injustiças, fruto de suas reflexões teológicas. Estas foram maturadas ao longo do seu processo de conversão que lhe possibilitou uma visão integrada do homem e da história. Nosso Autor foi sagrado bispo de Hipona em 395 d.C.. Neste ano, o Império Romano foi dividido entre os dois filhos de Teodósio, grande Imperador. O Oriente ficou com Arcádio e o Ocidente com Honório, a África ficou pertencente ao reino do Ocidente. A harmonia durou pouco. A paz foi ameaçada e desapareceu completamente, quando estes dois impérios começaram a lutar entre si, ocasionando, nas províncias de além-mar, revoltas e dissoluções. Em 397 d.C.,
são tantos os indigentes que pedem, gemem, nos suplicam, e nós deixamos muitos deles com sua tristeza, porque não temos o que dar para todos”^169. E acrescenta:
“Vindo até a basílica, fui parado na rua, pelos pobres. Eles me suplicaram que intercedesse em seu favor, pois nos últimos tempos não têm recebido nada da vossa parte. Evidentemente, eles esperam que nós, gente da Igreja, lhe demos alguma coisa. Nós mesmos fazemos aquilo que podemos, mas nossos meios são limitados. Mas nos fazemos seus mensageiros junto a vós” 170.
Destas palavras, depreende-se que o Bispo de Hipona estava atento a realidade de seus diocesanos menos favorecidos e tinha o costume de expressar seu juízo crítico sobre a situação de injustiça e desigualdade social em que se encontravam as suas ovelhas, resultado de uma política que beneficiava a poucos e massacrava a maioria, reduzindo-a a níveis de vida sub-humanos. A esse sistema injusto e desigual, ele não poupava críticas e exortava à conversão: “Toma cuidado para que, ao fazer do mais fraco uma presa, não te tornes presa de um mais forte. Esquecestes que estais no mar? Não vês que os peixes grandes devoram os menores?”^171. Essas expressões manifestam uma forte censura ao sistema político da época. As autoridades, ao invés de promoverem o bem-comum de todos os cidadãos, serviam-se do cargo para defender apenas seus interesses pessoais, em prejuízo das camadas mais pobres, chegando mesmo a arruiná-las completamente. A maturidade teológica de Santo Agostinho fez dele um intrépido defensor da verdade. Na obra De Vera Religione , ele afirma, categoricamente, que o homem de bem é aquele que aprecia a sabedoria, que os autênticos filósofos investigam. Estes, veem, no Filho de Deus, a sua suprema revelação^172 e não
esquecem que a doutrina de Cristo é portadora de princípios, que ultrapassam o individual e lançam luzes sobre a ordem social, pois o homem é sempre um ser sociável. Tal maturidade apregoa que filosofia e religião devem trabalhar juntas. E assim, se, realmente, forem verdadeiras, proporcionarão aos homens o caminho seguro, que facilitará a implantação da concórdia e da paz. A Vera Religio é vista, por Agostinho, como único meio de libertação dos males individuais e sociais da humanidade.
“Eis porque a inefável misericórdia de Deus vem ajudar a cada homem em particular e ao conjunto do gênero humano, para lembrá-lo da sua primeira e perfeita natureza, mediante a dispensarão da divina Providencia. Serve-se da criatura mutável para que seja submissa às leis eternas. Essa é em nossos tempos, a religião crista e em conhecê-la e segui-la, está a salvação segura e certíssima” 173.
No pensamento agostiniano, somente a religião cristã é que, ligando o homem a Deus, leva-o a amar de verdade, desvencilhando-se do egoísmo desenfreado. A prática da verdadeira religião, que consiste no culto do único Deus de Abraão, vence as tendências supersticiosas dos habitantes da cidade terrena. Ela, quando vivida intensamente, constitui uma benção, pois é o fundamento da Cidade celeste^174. Nela, reina a paz e a justiça, porque se dá a Deus o que é dele. O Bispo de Hipona não deixou de enfatizar que os peregrinos deste mundo são chamados a promover a concórdia e a paz, ou seja, o bem-comum^175. Portanto, devem olhar para a harmonia que já existe entre os cidadãos da cidade do alto. A paz não é resultado apenas do esforço humano, fruto de negociações meramente racionais. A religio christiana , que tem o seu fundamento em Cristo, possui em plenitude todos os meios que os homens necessitam para alcançar a felicidade. Para o exímio teólogo, não há outra via através da qual os seres humanos possam abraçar a paz.
modo beneficentius consuluit generis humano, quam cum ipsa sapientia Dei, id est unicus Filius consubstantialis Patri et Coaeternus, totum hominem suscipere dignatus est... “
como pessoa quando se abre à dimensão da comunhão e da participação na construção de uma sociedade mais justa e solidária. Cada atitude que o homem tome, fruindo ou utilizando deste mundo, ele não deve esquecer que o seu fim último é gozar, eternamente, do Bem Supremo. Esse pensamento está claro na obra sobre a doutrina cristã, onde o Santo Pastor de Hipona diz expressamente:
“Há algumas para serem fruídas, outras para serem utilizadas e outras ainda para os homens fruí-las e utilizá-las. As que são objeto de fruição fazem-nos felizes. As de utilização ajudam-nos a tender à felicidade e servem de apoio para chegarmos às que nos tornam felizes e nos permitem aderir melhor a elas” 179.
O itinerário teológico e filosófico do Hiponense traz consigo a seguinte conseqüência: quando ele trata das coisas que o homem toma para si; aquelas a que se afeiçoa e até aquelas que utiliza, orienta que deve ter em vista a eternidade, que é o fim para o qual todo o ser humano tende 180. Assim, ele nunca enuncia, explicitamente, em que consiste este princípio uti-fruti, que deve orientar as opções humanas.
“Das coisas temporais devemos usar, não gozar, para merecermos gozar as eternas. Não como os perversos, que querem gozar do dinheiro e usar de Deus, porque não gastam o dinheiro por amar a Deus, mas prestar culto a Deus por causa do dinheiro”^181.
O alcance desta visão agostiniana da moral faz-se compreender por uma perfeita separação e distinção entre os bens a serem gozados e os bens a serem utilizados. Manfredo Ramos 182 afirma que esta nítida divisão, encontrada em Agostinho, tem como causa a distinção entre o bem ôntico, que se chama Deus, evidentemente, o Ser Imutável, e os seres mutáveis, que ele classifica de bens ético-corporais. Para que haja ordem no interior do homem e, por conseguinte, na sociedade e na vida moral, o ontológico deve dirigir o ético. A ética agostiniana está centrada no amor a Deus. Nele, o homem aprende a amar a si mesmo e a seus semelhantes. No pensamento do Teólogo Hiponense não há espaço para uma
divinização do ‘eu’. Partindo sempre do preceito divino: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a tua alma e de todo o entendimento, e amarás o teu próximo como a ti mesmo” 183 , o Santo Pastor consegue romper com o individualismo. A referência, por excelência, é Cristo, que habita no seu interior e na Igreja. O autêntico amor, que tem a sua fonte em Deus, suplanta a tendência desordenada do ser humano de colocar o seu ‘eu’ como centro de tudo 184. Porém, isso somente se torna possível quando a criatura é conduzida pelo Criador. O Doutor da Graça afirma, depois de um longo período de maturação teológica, que, sem o auxílio de Deus, o homem não pode superar o seu egoísmo. O perigo de viver uma ética baseada em si mesmo é uma constante na natureza humana. Esse comportamento é responsável por diversas desventuras na vida social, inclusive a ausência da paz. Elas tendem a crescer todas as vezes que o homem se arroga senhor absoluto da sociedade^185. Como consequência de tal mentalidade percebem-se, com tristeza, vários males, que Agostinho denunciou no seu tempo e que continuam atuais; por exemplo: a concentração das riquezas nas mãos de uma minoria, ocasionando o aumento da miséria, a indiferença dos governantes, a ânsia do lucro em detrimento da pessoa humana, o desequilíbrio ecológico provocado por interesses espúrios de grupos particulares, guerras e autoritarismos 186. O Pastor de Hipona não hesita em atribuir estes malefícios à falta do ordo amoris. Contudo, essa reta ordem do amor só será vivenciada quando o homem aceitar o senhorio de Deus. É a partir do amor de Deus que o ser humano passa verdadeiramente a amar. O Santo de Hipona, no desenrolar do seu percurso teológico, afirma que o egoísmo é vencido pela caridade. Esta consiste em amar a Deus sobre todas as coisas e, nele, todos os homens. É nesse contexto que o amor ultrapassa os estreitos limites do individual e assume conotações sociais^187. A maturidade teológica de Agostinho insere-se em um campo, onde as relações sociais devem ser edificadas sobre o amor. Do direcionamento que o homem der a este amor, depende a paz da cidade terrestre. Quando o ser humano