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texto de Arlindo Machado.
Tipologia: Notas de estudo
Compartilhado em 13/10/2011
4.8
(23)13 documentos
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J á observou Comolli (1975, p. 45) que não há texto de história do cinema que não se desacerte todo na hora de estabelecer uma data de nascimento, um limite que possa servir de marco para dizer: aqui começa o cinema. Sadoul (1946), Deslandes (1966) e Mannoni (1995), autores dos volumes mais respeitados sobre a invenção técnica do cinema, assinalam como significativos a invenção dos teatros de luz por Giovanni della Porta (século XVI), das projeções criptológicas por Athanasius Kircher (século XVI!), da lanterna mágica por Christiaan Huygens, Robert Hooke, Johannes Zahn, Samuel Rhanaeus, Petrus van Musschenbroek e Edme-Gilles Guyot (séculos XVII e XVIII), do Panorama por Robert Barker (século XVIII), da fotografia por Nicéphore Niepce e Louis Daguerre (século XIX), os experimentos com a persistência retiniana por Joseph Plateau (século XIX), os exercícios de decomposição do movimento por Étienne-Jules Marey e Eadweard Muybridge (século XIX), até a reunião mais sistemática de todas essas descobertas e invenções num único aparelho por bricoleurs como Thomas Edison, Louis e Auguste Lumiere, Max Skladanowsky, Robert W. Paul, Louis Augustin Le Prince e Jean Acme LeRoy, no final do século passado. Mas, assim fazendo, eles estão privilegiando algumas das técnicas constitutivas do cinema, justamente aquelas que se pode datar cronologicamente. Outras técnicas, entretanto, como é o caso da camera obscura e de seu mecanismo de produção de perspectiva, bem como a síntese do movimento, perdem-se na noite do tempo. Já no século X, pelo menos, o matemático e astrônomo árabe Al-Hazen havia estÜdado vários procedimentos que hoje chamaríamos de cinematográficos. E, na Antiguidade, Platão descreveu minucio- samente o mecanismo imaginário da sala escura de projeção, enquanto Lucrécio já se referia ao dispositivo de análise do movimento em instantes (fotogramas) separados.
Por que o homem pré-histórico se aventurava nos fundos mais inóspitos e perigosos de cavernas escuras quando pretendia pintar? Por que seus desenhos apresentam características de superposição de formas, que os tornam tão estranhos e confusos? Hoje, os cientistas que se dedicam ao estudo da cultura do período magdalenense não têm dúvidas: nossos antepassados iam às cavernas para fazer sessões de "cinema" e assistir a elas. Muitas das imagens encontradas nas paredes de Altamira, Lascaux ou Font-de-Gaume foram gravadas em relevo na rocha e os seus sulcos pintados com cores variadas. À medida que o observador se loco move nas trevas da caverna, a luz de sua tênue lanterna ilumina e obscurece parte dos desenhos: algumas linhas se sobressaem, suas cores são realçadas pela luz, ao passo que outras desaparecem nas sombras. Então, é possível perceber que, em determinadas posições, vê-se uma determinada configuração do animal representado (por exemplo, um íbex com a cabeça dirigida para a frente), ao passo que, em outras posições, vê-se configuração diferente do mesmo animal (por exemplo, o íbex com a cabeça voltada para trãs). E assim, à medida que o observador caminha perante as figuras parietais, elas parecem se movimentar em relação a ele (o íbex em questão vira a cabeça para trãs, ao perceber a aproximação do homem) e toda a caverna parece se agitar em imagens animadas. "O que estou tentando demonstrar é que os artistas do Paleolítico tinham os instrumentos do pintor, mas os olhos e a mente do cineasta. Nas entranhas da terra, eles construíam imagens que parecem se mover, imagens que 'cortavam' para outras imagens ou dissolviam-se em outras imagens, ou ainda podiam desaparecer e reaparecer. Numa palavra, eles jã faziam cinema underground" (WachteI1993, p. 140).
Quanto mais os historiadores se afundam na história do cinema, na tentativa de desenterrar o primeiro ancestral, mais eles são remetidos para trãs, até os mitos e ritos dos primórdios. Qualquer marco cronológico que possam eleger como inaugural serã sempre arbitrãrio, pois o desejo e a procura do cinema são tão velhos quanto a civilização de que somos filhos. O filme de Werner Nekes, Was geschah wirklich zwischen den Bildern? (O filme antes do filme/1985), é muito instrutivo nesse sentido, pois, ao lado das mãquinas e dos processos que constituem, digamos assim, a história oficial do cinema, ele arrola também uma coleção interminãvel de bricabraques e geringonças caseiras, destinadas a projetar artesanalmente imagens em movimento e que se vêm acumulando séculos após séculos, sabe Deus desde quando. "Não é somente um velho sonho da humanidade que o cinema realiza, mas também uma série de velhas realidades empíricas e de velhas técnicas de representação que ele perpetua" (Comolli 1975, p. 45).
A história da invenção técnica do cinema não abrange apenas pesquisas científicas de laboratório ou investimentos na ãrea industrial, mas também um universo mais exótico, onde se incluem ainda o mediunismo, a fantasmagoria (as projeções de fantasmas de um Robertson, por exemplo), vãrias modalidades de espetãculos de massa (os prestidigitadores de feiras e quermesses, o teatro óptico de Reynaud), os fabricantes de brinquedos e adornos de mesa e até mesmo charlatães de todas as espécies. Conforme Léo Sauvage demonstra em seu iconoclasta L 'affaire Lumiere, as histórias do cinema pecam porque são em geral escritas por grupos (ou por indivíduos sob sua influência) interessados em promover aspectos sociopolíticos particulares (uma certa concepção "industrial" de cinema que, todavia, só se impôs a partir da segunda década deste século), quando não se fazem veículos de propaganda nacional-chauvinista, privilegiando os "seus" inventores (Sauvage 1985). Mas não é só: tais histórias do cinema são sempre a história de sua positividade técnica, a história das teorias científicas da percepção e dos aparelhos destinados a operar a análise/síntese do movimento, cegas entretanto a toda uma acumulação subterrânea, uma vontade milenar de intervir no imaginário. A leitura que faz
Homens de ciência, positivistas de formação, Marey e Londe só conseguiam se interessar pela primeira parte do processo cinematográfico, a análise/decomposição dos movimentos em instantes congelados, não vendo qualquer interesse científico no estágio seguinte, a síntese/reconstituição dos movimentos pela projeção na sala escura. Eles faziam eco com Muybridge, que registrou pioneiramente, em instantâneos separados, o galope de um cavalo e foi depois contratado pela Universidade da Pensilvânia para continuar seus experimentos com a decomposição do movimento, e com o astrônomo ]anssen, que registrou, em momentos sucessivos, a passagem de Vênus diante do Sol. Mas o trabalho de Londe coloca em evidência, muito mais ainda do que o de Marey e Muybridge, a distância brutal que separa a cronofotografia da démarche cinematográfica. Os intervalos que separam os registros nas séries cronofotográficas de Londe não são fixos e muito menos automáticos: eles variam de acordo com a intenção do fotógrafo. Como a intenção aqui era captar as fases da crise histérica (dos pacientes de Charcot), cabiã ao fotógrafo decidir quais os momentos importantes que mereceriam o registro. No trabalho de Londe, portanto, um esforço de seleção dos instantes significativos substitui o automatismo do aparelho de captação. Conseqüentemente, se ainda haveria alguma pertinência em animar a posteriori (e contra a vontade de seus produtores) algumas das imagens de Marey e Muybridge, isso já não faz qualquer sentido quando se trata das imagens de Londe. Estas últimas resistem bravamente a qualquer tentativa de sintetização numa tela, por meio de um aparelho projetor, porque os seus intervalos não são regulares (mas isso também acontece em muitas das séries de Marey e Muybridge). O destino de tais seqüências, como observaram Bernard e Gunthert 0988, pp. 9- 11), era mesmo a página dos livros e das revistas científicas (conforme o modelo da Iconographie de Ia Salpêtriere), em que elas podiam ser dispostas de modo a reconstituir uma espécie de diagrama analítico da crise histérica.
Todos esses homens de ciência são menos os pais do cinema do que da produtividade industrial, da racionalização da linha de montagem, do taylorismo, da ergonometria e da robótica. Estudos como os de Marey, Muybridge e Londe permitiram tornar mensurável a força ou o gesto humano e assim exercitar uma melhor utilização do trabalho, no sentido de otimizar o seu rendimento. Marey chegou a ser solicitado pelo ministro da Guerra para presidir uma comissão destinada a rever os programas franceses de treinamento militar, com base nas novas conquistas da fisiologia e da cronofotografia (Dagognet 1987, pp. 124-130). Ao mesmo tempo, esses mesmos homens vão também inspirar menos o espetáculo cinematográfico do que a arte moderna: os futuristas, como se sabe, utilizaram a
cujo Nu descendant l'escalier é uma citação explícita do método de Marey - travou contato direto com as experiências
cronofotográficas, por meio de seu irmão Raymond, aluno de Londe na Salpêtriere.
Por outro lado, porém, ilusionistas como Reynaud e Mélies e industriais ansiosos por tirar proveito comercial da "fotografia animada", como Edison e Lumiere, estavam mais interessados no estágio da sintese efetuada pelo projetor, pois era somente ai que se podia criar uma nova modalidade de espetáculo, capaz de penetrar fundo na alma do espectador, mexer com os seus fantasmas e interpelá-Io como sujeito. Nem é preciso dizer que foi essa a posição que prevaleceu entre o público, esse público inicialmente maravilhado com a simples possibilidade de "duplicação" do mundo visível pela máquina (o modelo de Lumiere) e logo em. seguida deslumbrado com o universo que se abria aos seus olhos em termos de evasão para o onírico e o desconhecido (o modelo de Mélies). Na
verdade, esse era exatamente o cinema que estava no horizonte de mágicos, videntes, místicos e charlatães, que durante todo o século XIX fascinaram multidões em estranhas salas escuras conhecidas por nomes exóticos como Phantasmagoria, Lampascope, Panorama, Betamiorama, Cyclorama, Cosmorama, Giorama, Pleorama, Kineorama, Kalorama, Poccilorama, Neorama, Eidophusikon, Nausorama, Physiorama, Typorama, Udorama, Uranorama, Octorama, Diaphanorama e a Diorama de Louis Lumiere, nas quais se praticavam projeções de sombras chinesas, transparências e até mesmo fotografias, fossem elas animadas ou não. Certamente, o que atraía essas massas às salas escuras não era qualquer promessa de conhecimento, mas a possibilidade de realizar nelas alguma espécie de regressão, de reconciliar-se com os fantasmas interiores e de colocar em operação a máquina do imaginário. Perspectivas, nem é preciso dizer, inteiramente descabidás dentro dos propósitos de homens de ciência como Marey e seus colegas.
Poder-se-ia falar de uma incompetência da ciência para se dar conta do cinema como fenômeno? Na verdade, o que se pode dizer com certa segurança é que o cinema foi "inventado" mais ou menos às cegas, na base do método empírico de tentativa e erro, pois, desde os seus primeiros protótipos experimentais, ele esteve apoiado num suporte teórico equivocado. Isso só vem demonstrar que as máquinas podem funcionar mesmo quando as teorias em que se baseiam são equivocadas. De fato, todas as pesquisas científicas que se praticam no século XIX e que vão desembocar em máquinas de análise/síntese do movimento exploram e aprofundam um fenômeno que se supunha básico para o princípio do cinema: a persistência da retina, ou seja, esse "defeito" que têm os olhos de reter durante algum tempo a imagem que é neles projetada. Como se sabe, a célebre tese de doutoramento Dissertation sur quelques proPriétés des impressions produits par Ia lumiere sur I'organe de Ia vue, publicada por ]oseph Plateau em 1829, teve papel decisivo na resolução do dispositivo cinematográfico e foi nela que o sábio belga, resgatando todo um conhecimento acumulado nas áreas da óptica
e da fisiologia do olho, relaciona a persistência da retina com a síntese do movimento. Três anos depois, Plateau constrói
cinematógrafo de Lumiere, entre outros. De certa forma, o que faz plateau com seu fenaquisticópio é inverter o procedimento técnico do disco de Faraday e do estroboscópio do geômetra austríaco Stampfer: nestes últimos trata-se basicamente de "quebrar" o movimento em instantes congelados, por meio de sua interrupção por um efeito de mascaramento, ao passo que naquele outro o que se busca, pelo contrário, é sintetizar o movimento com base em uma seqüência de imagens fixas. No fenaquisticópio, temos um disco dividido em segmentos iguais, como os raios de uma roda, separados todavia por fendas. Em cada "raio" do disco, do lado de dentro da circunferência, há um desenho mostrando uma determinada posição de uma seqüência de movimentos (por exemplo, uma garota pulando corda). Olhando para esses desenhos, através das fendas do disco em rotação, pode-se reconhecer neles não mais as várias fases do movimento, mas uma única imagem animada. Para Plateau, o movimento surgia porque a pós-imagem fixada na retina preenchia as interrupções realizadas pelos raios do disco, fundindo entre si os vários desenhos sucessivos.
Mas o fenômeno da persistência da retina nada tem a ver com a sintetização do movimento: ele constitui, aliás, um obstáculo à formação das imagens animadas, pois tende a superpô-las na retina, misturando-as entre si. O que salvou o cinema como aparato técnico foi a existência de um intervalo negro entre a projeção de um fotograma e outro, intervalo esse que permitia atenuar a imagem persistente que ficava retida pelos olhos. O fenômeno da persistência da retina explica apenas uma coisa no cinema, que é o fato justamente de não vermos esse intervalo negro (Chanan 1980, pp. 54-68; Aumont et aI. 1983, p. 160; Sauvage 1985, p. 45). A síntese do movimento se explica por um fenômeno psíquico (e não óptico ou fisiológico) descoberto em 1912 por Wertheimer e ao qual ele deu o nome de fenômeno pbi: se dois estímulos são expostos aos olhos em diferentes posições, um após o outro e com pequenos intervalos de tempo, os observadores percebem um único estímulo que se move da posição primeira à segunda (Vernon 1974, p. 202). Isso significa que o fenaquisticópio, que Plateau construiu para demonstrar a sua tese da persistência da retina, na verdade explicava o fenômeno pbi, ou seja, uma produção do psiquismo e não uma ilusão do olho. Mas, por um paradoxo próprio da cinematografia, se o fenômeno da persistência da retina não diz respeito ao movimento cinemãtico, ele é todavia uma das causas diretas de sua invenção, pois foi graças às indagações (equivocadas) em torno desse fenômeno que nasceram as mãquinas de anãlise/síntese do movimento.
Todo o problema da restituição do movimento no cinema estã na busca da diferença justa entre um foto grama e outro. A película cinematogrãfica é composta de milhares de fotogramas fixos diferentes uns dos outros, que por sua vez são projetados individualmente numa tela branca, separados todavia por intervalos negros que correspondem ao tempo de arraste da película para a posição de projeção de cada novo fotograma. Que poderia haver de mais descontínuo do que uma seqüência de imagens fixas diferentes, separadas por intervalos vazios que ocupam justamente os deslocamentos suprimidos? Ora, o objetivo principal do dispositivo cinematogrãfico é produzir um efeito de continuidade sobre uma seqüência de imagens descontínuas. Para isso, é preciso saber escolher a diferença mínima entre as imagens, capaz de simular um deslocamento (um movimento) sem que a descontinuidade estrutural seja notada. O cinema, como assegura ]ean-Louis Baudry (1970, p. 4), baseia-se na diferença negada: a diferença é necessãria para a sua existência, mas ele vive paradoxalmente de sua negação. Foram necessãrios ajustes complicados, ao longo de pelo menos duas décadas de história, para obter essa diferença justa, seja regulando a velocidade de projeção ou a quantidade de foto gramas por segundo ou ainda a quantidade de projeções de cada fotograma na tela, de modo que nem o movimento resultasse "quebrado" aos olhos do espectador, nem o intervalo vazio, perceptível. Mesmo assim, alguns resíduos de descontinuidade permaneceram e permanecem ainda hoje: dentre eles, podemos citar o incômodo fenômeno da fltcagem (cintilamento da imagem em algumas panorâmicas, que faz com que o espectador "veja" os fotogramas) e, mais conhecido ainda, o efeito estroboscóptco, que se verifica com a inversão das rodas das carruagens ou das hélices dos aviões sempre que esses motivos comparecem diante da câmera. Anomalias desse tipo denunciam a natureza descontínua e fragmentãria da base técnica do cinema, natureza essa que precisa ser dissimulada em todas as instâncias, para que o deslocamento dos fotogramas no tempo não traia a transparência desejada pelo cinema.
]ã é conhecida a crítica que faz Bergson da síntese cinematogrãfica do movimento. O cinema - afirma o autor de L'évolutton créatrice- trabalha com um movimento falso, com uma ilusão de movimento, pois, se o que ele faz é congelar instantes, mesmo que bastante próximos, o movimento é o que se dá entre esses instantes congelados, isso justamente que o cinema não mostra. Daí por que a ilusão cinematográfica opera com um movimento abstrato, uniforme e impessoal, um
330). Tal ocorreria também com o senso comum, esse conhecimento de superfície que Bergson não hesita em classificar como "cinematográfico", porque ilusório e mecanicista. No limite, o cinema se propõe essa coisa absurda que é sugerir que o movimento possa ser constituído de instantes estáticos, tal como, 500 anos antes de nossa era, argumentava o pré- socrático Zenão de Eléia, segundo o qual uma flecha impelida por um arco encontra-se em repouso em cada intervalo mínimo de tempo. Essa argumentação exagerada deixa entrever perfeitamente o grau de acirramento do debate que se processava na virada do século entre as distintas concepções da representação do movimento. Hoje diríamos que o olho,
argonauta por excelência dos mares e abismos interiores).
A história efetiva do cinema deu preferência à ilusão em detrimento do desvelamento, à regressão onírica em detrimento da consciência analítica, à impressão de realidade em detrimento da transgressão do real. O poder da sala escura de revolver e invocar nossos fantasmas interiores repercutiu fundo no espírito do homem de nosso tempo, este homem paradoxalmente esmagado pelo peso da positividade dos sistemas, das máquinas e das técnicas. Antes mesmo que o capital financeiro disciplinasse os seus mergulhos nas regiões mais obscuras do espírito, antes mesmo que ele resultasse numa próspera indústria da cultura, o cinema jã era visto como um local suspeito, onde alguma espécie de iniqüidade corrosiva ameaçava vir à tona e se insinuar por toda parte. Arte do simulacro, da aparência, que põe a pulular duplos, "cópias degeneradas" como diziam os filósofos, verdadeiro império dos sentidos, para onde uma população inicialmente marginalizada e ofendida acorria em bandos em busca de evasão e refúgio, ele farã o necessãrio contraponto de trevas a uma época de ofuscamento racional. Mesmo depois do seu enquadramento civilizante, sob o ferro de uma certa ética protestante, nas mãos de Griffith e de seus contemporâneos, o cinema ficarã para sempre marcado pelas suas obsessões iniciais e nunca se farã capaz de as exorcizar ou sublimar inteiramente. Lançar uma luz sobre ele não é bem o caso; talvez fosse o caso de apagar um pouco as luzes que o explicam. No escuro, quem sabe, o filme pode ser visto melhor.
Dois exemplos de anamorfoses cronotópicas:, um "retrato desdobrado" de Andrew Davidhazy e o Grande Prêmio Automobilístico da França por Jacques-Henri Lartigue.
Mas os prisioneiros não querem sair da caverna, resistem às promessas de liberdade e sabedoria, ameaçam matar o lanterninha que os impede de entregar-se inocentemente ao teatro das sombras. Gérard Lebrun vem mesmo afirmar que a viagem para fora da caverna pode representar mais uma perda do que um ganho, pois o destino do iluminado platônico é
tomar-se um exilado em seu próprio mundo de luzes. "É até bom - observa Lebrun (1988, pp.3-27) - que, no mais das
vezes, os homens vivam sem desconfiança o que eles não sabem ser a aparência e que sua ingenuidade jamais seja completamente dissipada. Aquele que sempre desconfiasse de que o parecer não é senão aparência, ou jamais se apaixonaria ou então seria eternamente presa do ciúme neurótico, como o Swann de Mareei Proust".
Desde que o cinema se constituiu em instituição, a partir de fins do século XIX, analistas e pensadores não cessam de apontar para a extraordinária semelhança entre a cena da caverna de platão e o dispositivo de projeção cinematográfica (a situação que reina na sala de projeção). Luce lrigaray (1974, p. 337), autora de uma das mais penetrantes autópsias da alegoria da caverna, de onde tira conseqüências para o feminismo moderno, fala em "montagem cinematográfica" e "artifícios de metteur en scene' a propósito do aparato de projeção concebido por Platão. E Laymert Garcia dos Santos, seguindo indicações daquela autora, é ainda mais incisivo:
A alegoria da caverna transfoma-se num grande dispositivo teatral ou cinematográfico, numa bela máquina de cenografia onde o metteu en scene Platão acerta todos os detalhes do cenário e intervém incessantemente para que o papel do prisioneiro se desenrole como deve ser, para que o discípulo Glauco seja convencido e seduzido pelo fundamento do discurso do mestre guardião da pertinência das analogias. Quando a sessão de cinema tennina, o prisioneiro, o discípulo e nós mesmos ficamos cegos por tennos contemplado não mais as imagens da caverna, mas a imagem desse Deus-Pai-Sol-Real. (Garcia dos Santos 1981, pp. 192-193)
Chega a ser impressionante a precisão com que Platão evoca o aparelho de projeção. Em primeiro lugar, ele jamais recorre ao expediente da luz natural: escrupuloso em seu idealismo, ele "procura preservá-la, guardá-la de um uso impuro" (Baudry 1975, p. 60). A luz que projeta as sombras na tela-parede é artificial, obtida por intermédio de um fogo que queima por detrás dos prisioneiros, lembrando os carvões do aparelho de projeção. Tal fogo encontra-se estrategicamente colocado atrás e acima das cabeças dos prisioneiros, pois Platão sabia muito bem que, colocado em outro lugar, o foco de luz faria projetar os próprios espectadores na tela, desvelando portanto o dispositivo. E como a eficácia do ilusionismo depende, antes de tudo, do ocultamento de sua tecnologia produtiva, Platão coloca entre os prisioneiros e os "operadores" do mecanismo projetivo "um pequeno muro", cuidando de proteger os últimos da indiscrição dos primeiros (Platão 1973, pp. 105-1(9). Ocultando o dispositivo, é possível assegurar-se de que a impressão de realidade não será comprometida por nenhum desvelamento, a menos que ocorra pane no sistema, como às vezes acontece no cinema, quando a fita se rompe ou ocorre alguma outra falha técnica.
Necessário é reconhecer ainda uma outra sutileza na montagem do dispositivo de Platão: em vez de fazer projetar na tela-parede da caverna as sombras dos próprios objetos naturais, ou seja, dos seres que vivem à luz do exterior, Platão recorre a um simulacro de realidade, "estátuas de homens e animais" já codificadas por artesãos ilusionistas. Esse detalhe é vital para o funcionamento de sua crítica à razão dos sentidos: se as sombras percebidas no interior da caverna fossem produzidas por modelos reais, elas teriam o poder de apontar para algo "verdadeiro", nem que fosse a título de índice de uma realidade que vibra lá fora. Por essa razão, ele afasta tacitamente qualquer intervenção direta da realidade exterior, fazendo projetar na caverna imagens de outras imagens: entre o aparelho de projeção (o fogo) e a tela-parede, o que se interpõe não é a "realidade" pura e simples, mas já uma representação, um simulacro que bem poderia ser a película cinematográfica se Platão pudesse naquela época concebê-la. Vale dizer: o mundo de sombras que os prisioneiros contemplam na parede da caverna não é um mero "reflexo" do mundo de luzes que brilha lá fora; antes, é um mundo à parte, construído, codificado, forjado pela vontade de seus maquinadores.
Isso ainda não é tudo. Não satisfeito com a minuciosa engenharia de seu projeto de caverna, Platão faz intervir ainda a voz, completando a projeção das imagens com uma reverberação de sons que parece nascer das próprias sombras. Ao construir uma verdadeira máquina falante, "mostrando de alguma forma a necessidade de sensibilizar o maior número possível de sentidos, em todo caso os dois principais, Platão parece responder bem à necessidade de duplicar da maneira mais exata, de tornar seu artifício o mais idêntico possível" (Baudry 1975, p. 61). Ou seja, não é apenas o dispositivo do cinema que Platão antecipa, mas sobretudo o cinema/alado, com toda a carga ideológica (multiplicadora da impressão de realidade) que ele assumiria a partir de 1930. Da mesma forma como fizeram os inventores do cinema falado, o som é somado à imagem na alegoria de Platão não para dialogar com ela em contrapontos de sentido, mas para ampliar a sua textura de "real" (ruídos de fundo, vozes que parecem proferidas pelas próprias sombras) e reforçar o seu efeito ilusionista.
Necessário é acrescentar ainda o que pode ter a sua importância: diante do que se passa no interior da caverna, a voz, as palavras, essas palavras que parecem emanar das próprias sombras que desfilam ao longo da parede, não têm um papel discursivo, conceitual; elas não servem para comunicar mensagem alguma; elas pertencem à realidade sensível que está presente para os
prisioneiros tanto quanto as imagens; elas jamais se desligam destas; elas estão definidas pelo mesmo modo de existência e são tratadas da mesma maneira que no sonho, fragmentos de discurso realmente existidos e entendidos, arrancados de seu contexto e possuindo a mesma função que as outras representações do sonho. (Baudry 1975, p. 61)
Seria o caso de perguntar se não haveria outras motivações, além da simples condenação do mundo sensível, estimulando a construção (teórica) desse dispositivo cuja precisão e minúcia são espantáveis para o contexto da ciência da Antiguidade. E mais: seria preciso explicar também o fascínio que essa alegoria exerceu sobre as sucessivas gerações de pensadores. Se é certo, tanto para Platão quanto para seus seguidores, que a cena da caverna tem um sentido crítico, fundando um horror à razão dos sentidos, não é menos certo também que, contraditoriamente, ela exprime um desejo que se vem tentando realizar ao longo dos séculos: exatamente a viabilização técnica de tal dispositivo. Não podemos nos esquecer de que os homens que forjam o espetáculo ilusionista na alegoria da caverna estão do lado de fora, do lado da verdade e da razão, do mesmo lado portanto do filósofo. Por mais que Platão se horrorize com a alienação dos prisioneiros, ele de alguma forma está solidário com aqueles que constroem e mantêm o dispositivo ilusionista. O rigor na descrição do mecanismo projetivo talvez denuncie ser ele próprio o metteur en scbze dessa máquina de sonhar. Uma coisa pelo menos atormenta o discurso de Platão: ele próprio reconhece o fascínio que toma conta dos prisioneiros-espectadores e que os faz preferir a magia das sombras a qualquer promessa de liberdade ou redenção. Como todo inventor, Platão também goza sua descoberta: a máquina funciona!
Mas talvez não fosse preciso esperar pela revelação dessa outra cena subterrânea e deslocada do mundo. Talvez fosse possível construí-Ia na prática, tal como ela está construída na Idéia de Platão: pelo menos, os quesitos necessários para isso já haviam sido dados pelo próprio filósofo grego. Há mesmo indícios de que algo parecido com um cinematógrafo já seria conhecido na Antiguidade. Um trecho, pelo menos, da De Natura Rerum de Lucrécio parece referir-se, embora de forma vaga, a alguma espécie de dispositivo de análise/síntese do movimento que teria se perdido na poeira da história por qualquer acidente do acaso.
Também não é de estranhar - reza Lucrécio no livro IV - que estas imagens movam em cadência os braços e as outras partes do corpo. O que aparece em sonhos sucede deste modo: mal foge a primeira imagem, logo surge outra em posição diferente, de modo que parece que a primeira mudou de gesto. É de ver que tudo isso se faz com toda a rapidez: tão grande é a mobilidade e a abundância das coisas, tão grande a abundância de partículas, num momento de tempo quase imperceptível, que a tudo podem bastar. (Lucrécio 1962, p. 138)
Não é a melhor descrição de um cinematógrafo a desfilar seus fotogramas na sala escura? Pois bem: quando Joseph Plateau construiu seu fenaquisticópio, ancestral da câmera cinematográfica, um tal dr. Sinsteden faz publicar um artigo nos Annalen der
Physik und Chemie, em 1852, no qual acusa o sábio belga de... plagiar Lucrécio! (Sauvage 1985, pp. 30-31). E que a descrição de tal dispositivo compareça no texto do f1lósofo latino num contexto em que se trata dos sonhos e dos desejos que nele se manifestam constitui um acontecimento realmente digno de interesse.
Se a aspiração, se o desejo de um dispositivo que viabilize o mito idealista da prisão dos sentidos e que permita cativar massas inteiras com um ilusionismo de realidade não estão ainda explícitos no discurso de Platão, se tudo isso permanece aí reprimido ou sublimado sob a exaltação do poder intelectual, não resta dúvida, entretanto, de que essa é a motivação que está na origem da invenção e da evolução técnica do cinema. Se foi preciso esperar mais de dois mil anos pela sua materialização, isso se deu por problemas práticos, que a descoberta da câmera obscura, o aperfeiçoamento da lanterna mágica, o exercício do teatro óptico, a invenção do fenaquisticópio de Plateau, do zootrópio de Horner, do fuzil fotográfico de Marey, do praxinoscópio de Reynaud, do quinetoscópio de Edison, do bioscópio de Skladanowsky e do cinematógrafo de Lunúere e LeRoy foram aos poucos solucionando. Mas a verdade é que a caverna de Platão já era um cinema avant l'écran, só que em projeto. "O texto da caverna poderia efetivamente exprimir um desejo inerente a um efeito ativo procurado, desejado e exprimido pelo cinema (...). Poderíamos ainda adiantar que o mito da caverna é o texto de um significante de desejo que atormenta a invenção e a história do cinema" (Baudry 1975, p. 63).
tradição metafísica/racionalista do Ocidente, reconcilia-nos novamente com nossos fantasmas, trazendo de volta ao cenário filosófico as razões reprimidas do corpo e do espírito, e será por meio de uma metáfora óptica que ele tentará se dar conta do funcionamento de nossa vida psíquica. Na verdade, o criador da psicanálise nunca chega a se referir propriamente ao cinema nos seus textos. Na Die Traumdeutung, ele sugere que "devemos representar o instrumento que executa nossas funções mentais como semelhante a um microscópio composto, a um aparelho fotográfico ou algo desse tipo" e acrescenta que o lugar psíquico corresponde a um ponto do aparelho em que se forma a imagem (Freud 1969, p. 572). Quarenta anos depois, Freud (1978, p. 199) retoma a comparação de uma forma um pouco transformada: "Imaginamos (a vida mental) como semelhante a um telescópio, microscópio ou algo desse gênero." Mas, se Freud não chega a encarar o cinema como objeto de reflexão, ele que se aproximava estreitamente do seu dispositivo significante sempre que tentava "ilustrar" com exemplos concretos o funcionamento do mecanismo psíquico, Leu Andréas Salomé, entretanto, já escrevia em 1913, sob influência daquele, que "a técnica cinematográfica é a única que permite uma rapidez de sucessão das imagens que corresponde mais ou menos às nossas faculdades de representação" e que "o futuro do filme poderá contribuir muito para a nossa constituição psíquica" (apud Baudry 1975, p. 57).
A intervenção das máquinas ópticas no corpo da teoria freudiana tem algo de desconcertante e ao mesmo tempo de inevitável. Invocando o reflexo imagético que se forma nessas máquinas como algo de alguma forma "semelhante" ao nosso universo interior, Freud parece sugerir que se encare a produção psíquica como uma espécie de câmera invertida, que "registra" o que vem de dentro, da maquinaria do imaginário, ou como um olho cego, que "vê" apenas as imagens nascidas dentro dele mesmo. Trata-se certamente de uma contradição dentro dessa teoria, que remonta a algo assim como uma pré-história da psicanálise, mais precisamente às idéias de ]ean-Martin Charcot, com quem Freud estagiou durante o outono de 1895. Ao contrário deste último, Charcot depositava uma fé entusiasmada na visão como porta de acesso a isso que ainda não se conhecia como o inconsciente, cabendo às imagens funcionar como os seus sintomas. O famoso neurologista francês visava produzir uma tipologia minuciosa dos fenômenos histéricos, uma nosografia exaustiva baseada na observação do comportamento externo dos pacientes e, para isso, usava a fotografia e a cronofotografia como instrumentos de ampliação e memória do olhar. Mais do que instrumentos, na verdade, a iconografia da clínica era "nem mais nem menos do que a própria legitimação do empenho teórico como um todo" (Bernard e Gunthert 1988, p. 8), já que a ela cabia comprovar que, ao contrário do que se pensava na época, a histeria (nome genérico que então se dava às neuroses) formava um corpo coerente de fenômenos e podia ser representada com os meios gráficos que se tinha às mãos.
Freud, entretanto, jamais levou a sério a Iconographie de Ia Salpêtriere; na própria medida em que vai excluindo do campo da psicanálise as causas físicas e a presença do corpo, ele passa também a excluir o olhar como dispositivo de acesso ao mundo psíquico. Essa exclusão, que vai se tornar uma verdadeira obsessão, é deliberada e programática. Não se trata apenas de ignorância ou indiferença em relação aos progressos técnicos no campo dos instrumentos ópticos. Sabe-se que o pai da psicanálise, no período em que esteve com Charcot no hospital da Salpêtriere de Paris, tomou contato com as experiências de Londe, que, a partir de 1883, passou a registrar as fases sucessivas da crise histérica com um aparelho fotográfico de 12 objetivas, muito semelhante ao utilizado por Muybridge para decompor os movimentos. No entanto, sabe-se também que ele recusou uma fortuna razoável de Samuel Goldwyn para autorizar um filme sobre a psicanálise e que, nos anos 20, meteu-se numa polêmica feroz com seus discípulos Karl Abraham e Hanns Sachs, por terem estes aceitado colaborar no filme de Pabst Geheimnisse einer Seele (Segredos de uma alma/1926) destinado a vulgarizar a psicanálise (Farges 1975, pp. 89-90). Freud simplesmente não conseguia entender como se poderia dar conta dos conceitos abstratos da psicanálise com a "pobre" e imprecisa linguagem das imagens. Não por acaso, no mesmo instante em que acena com a metáfora da câmera fotográfica, na Traumdeutung, ele logo se apressa em justificar: "Não vejo necessidade de me desculpar pelas imperfeições desta ou de qualquer outra imagem semelhante" (Freud 1969, p. 572).
Freud permanece platônico nesse ponto, como de resto todo o mundo científico de sua época. A ciência - assim
se pensava na virada do século -lida com o abstrato e só se pode alcançar o abstrato por meio da linguagem verbal; as imagens não nos podem dar senão pálidas (e falsas) imitações das coisas brutas. O problema é que esse parti pris metodológico, digamos assim, vai acabar por contaminar o próprio objeto e, paradoxalmente, um pensamento que começa por encarar o lugar psíquico como uma câmera invertida acaba por excluir da psicanálise qualquer presença fundante da imagem e do olhar: o inconsciente, como o ser dos filósofos, não se dã a ver, a imagem não recebe o inconsciente (Pontalis 1986, p. 24). A partir de Freud, o registro da psicanãlise vai se restringir exclusivamente à escuta e à interpretação verbal, restando ao olho e ao olhar uma função marginal.
Alguns autores (Stein 1968, p. 65ss; Schneider 1985; Mezan 1988, p. 445ss), entretanto, vão se debruçar sobre essa cisão cada vez mais radicalizada entre fala e olhar e se perguntar se ela é realmente um fato da natureza da psicanálise. Eles vão observar, em primeiro lugar, que há um traço de fobia na recusa freudiana do olhar, admitida inclusive pelo próprio pai da psicanálise num texto de 1913 ("Não suporto ser fitado por outrem..."; apud Mezan 1988, p.
o da injeção de Irma (1969, p. 115), em que a representação angustiante dos olhos e do olhar mascara fantasias inconscientes, de natureza agressiva e sexual, sem falar da presença recorrente e inquietante do dr. Josef Pur, o "médico caolho", nos momentos cruciais da argumentação na Traumdeutung. Não é de estranhar, portanto, que o dispositivo
nada, um sistema defensivo de Freud, no qual toda e qualquer possibilidade de ocorrência aterrorizadora do olhar jã estã de antemão excluída.
No entanto, quando Freud explica o sonho como um cenário composto de imagens, no qual se narra a história do desejo e dos interditos em relação aos quais aquele se mascara, não é de cinema que ele está falando? E quando invoca mecanismos psíquicos como a projeção e a identificação, a semelhança com o vocabulário cinematográfico será apenas metafórica? O espectador, prostrado diante da tela em estado de abandono e submotricidade, reduzido a um grande olho que se reconhece na tela-espelho qual Narciso na água, não reproduz uma situação primordial que pertence à psicanálise? O olhar é elemento constitutivo da pulsão escópica que atua tanto no sujeito quanto no cinema. Em quase todas as fantasias originárias estudadas por Freud (a cena primitiva, a castração, a sedução) esse olhar desempenha um papel fundante. Por mais que Freud se insurja contra a imagem, é de imagens que ele trata a maior parte do tempo. "Aquilo que produz uma histeria é uma cena traumática; depois, será uma cena de sedução. O sonho se efetua num palco. Buscam-se representações reprimidas, que ao serem descobertas tomam o aspecto de cenas visuais" (Mezan 1988, p. 471).
A psicanálise, entretanto, contemporânea do cinema, fez de conta que não estava vendo coisa alguma e continuou durante muito tempo depositando uma fé quase cega na palavra (talking cure, dispositivo de escuta etc.) como elo de contato com o inconsciente. Tudo porque o analista não pode olhar diretamente para a nossa tela interior nem podemos projetar para fora as imagens que forjamos em algum lugar dentro de nós mesmos, dependendo, em conseqüência, da mediação da fala para exteriorizar as paisagens do imaginário. A natureza nos deu um aparelho fonador, mas não nos deu um cinematógrafo incorporado ao nosso próprio corpo, para que pudéssemos botar para fora as imagens do cinema interior.
Mas o cinematógrafo é exatamente isso: um dispositivo construído para materializar e reproduzir artificialmente esse lugar de onde emanam os fantasmas do imaginário. Platão e Freud, ao invocar a máquina de imagens/simulacros, estão sem dúvida falando de cinema, só que em sentidos diametralmente opostos. Jean-Louis Baudry já notou que a cena imaginada por cada um parece ser a cena invertida do outro. Mesmo reconhecendo que não se trata de uma correspondência termo a termo nem de uma simetria simplificante, Baudry considera a cena solar, em que o filósofo grego encontra-se de início ofuscado pela luz do conhecimento, o equivalente em Freud à vida consciente, com todas as suas convenções de normalidade bem pensante, ao passo que a cena da gruta, na qual o mundo aparece transfigurado em imagens autônomas, corresponde. ao lugar do inconsciente na topografia freudiana. Para nós que nascemos depois da descoberta do inconsciente e que assistimos ao "processo de decomposição do espírito absoluto" (Marx) , é difícil resistir à tentação de ler de outra maneira, pelo avesso, a alegoria de Platão: reintroduzir na caverna o prisioneiro cego pelo excesso de luz do exterior, para reconciliá-lo com seus fantasmas. Para Freud, falando num sentido figurado, trata-se, antes de mais nada, de recolocar na gruta escura (na matriz uterina, no inconsciente) uma humanidade demasiado ofuscada pelo brilho intenso da Razão. De qualquer maneira, é curioso que o cinema seja o ponto de encontro das duas figuras mais antagônicas da história intelectual do Ocidente e o local onde a cena de um e a outra cena do outro se combinam numa síntese.
Foi Baudry ainda quem procurou tirar conseqüências desse encontro para a teoria do cinema. No seu primeiro escrito sobre os efeitos ideológicos produzidos pelo aparato técnico do cinema, após notar que a disposição dos diferentes elementos projetor, sala escura, tela - reproduz de uma forma impressionante a mise en scene da caverna, ele completa assim sua comparação: "Dispositivo da caverna: exceto que no cinema ele já está duplicado numa espécie de encaixotamento, em que a câmera escura - a câmera - se entranha dentro de uma câmera escura - a sala de projeção" (Baudry 1970, p. 7). Mas é no seu ensaio "Le dispositif: Approches métapsychologiques de l'impression de realité" (Baudry 1975, pp. 56-72) que esse problema da fusão da alegoria platônica com a matriz freudiana é atacado de forma mais fecunda. De início, Baudry observa a ênfase que Platão dá a duas situações da caverna: 1) situação de trevas; 2) impossibilidade de movimento para os prisioneiros-espectadores; condições muito semelhantes às que se verificam na sala de exibição. Quanto à primeira, não há o que discutir: a sala escura é contingência do mecanismo de projeção. A segunda situação, entretanto, precisa ser mais bem explicada, pois é evidente que os espectadores não estão literalmente amarrados a suas cadeiras, ao contrário do que acontece com os prisioneiros da alegoria. A rigor, eles podem se levantar a qualquer momento e deixar a sala de exibição quando bem entenderem.
Se isso é verdade em termos absolutos, não é menos verdade também que o dispositivo cinematográfico exige dos espectadores uma total disponibilidade, um certo entorpecimento dos corpos que beira o sono ou a hipnose. Barthes
é real" (Freud 1972a, p. 142). Esse critério de distinção, que permite que nos orientemos graças ao sistema motor, forma um dispositivo a que Freud denomina prova de realidade. Tal dispositivo é dependente, portanto, da motricidade: um simples gesto já me diz se uma imagem é real ou forjada pelo aparelho psíquico. Se o indivíduo está paralisado, porém, ele não tem como efetuar a prova de realidade e, nesse caso, a distinção entre realidade vivida e imaginada não pode ser claramente traçada. No cinema, o espectador poderia como o quarto de dormir, a sala de exibição é sempre um lugar desejável, pois é o cenário ideal para se poder realizar artificialmente uma regressão. Todo espectador, como observou Edgar Morin (1980, p. 90), encontra-se sempre um pouco infantilizado: privado de seus meios de ação, carente de recursos de reação, ele se torna sentimental, a sensibilidade salta-lhe à pele, qualquer coisa é capaz de torná-lo lacrimejante. Refugiado na sala escura, investido de um estado de abandono, de solidão, de carência de afetos, ele parece buscar ali a compensação de qualquer perda irreparável, ao preço de uma regressão passageira e socialmente regulada (Aumont et ai. 1983, p. 172).
Na caverna de Platão, como na sala de exibição, os prisioneiros-espectadores estão imobilizados por uma paralisia imposta (no primeiro caso) ou voluntária (no segundo caso). A esse estado de inibição motora se acrescenta outro, de confusão intelectual, que os faz tomarem as sombras dos objetos projetados na tela-parede pela própria "realidade". Em outras palavras, esses fantasmas de luz que atormentam a gruta escura e que constituem os únicos estímulos percebidos pelos espectadores durante a projeção são vividos por estes últimos com a intensidade de um evento real, como se tivessem existência efetiva. A imagem do marido alucinado avançando para cima da mulher com seu machado em punho em Ibe sbining (O iluminado/1980) nos faz tremer de horror, como provavelmente se comportariam os prisioneiros da caverna diante da sombra da estátua de um animal feroz. Para Baudry, as duas situações são interdependentes: a paralisia da atividade motora e a impossibilidade de deslocamento são os fatores que favorecem a confusão e inclinam os prisioneiros-espectadores a confundir a miragem com o "real", pois não lhes é dado efetuar a prova de realidade.
Trata-se de um conceito introduzido por Freud para identificar as alucinações. A nossa relação com o mundo exterior depende de nossa capacidade de distinguir as percepções das representações mentais ou, dito de outra forma, o que se passa "fora" e o que se passa "dentro" de nós. "Uma percepção que uma ação pode fazer desaparecer é reconhecida como exterior, como realidade; se a ação não modifica a percepção é porque esta vem do interior do corpo e, portanto, não é real" (Freud 1972a, p. 142). Esse critério de distinção, que permite que nos orientemos graças ao sistema motor, forma um dispositivo a que Freud denomina prova de realidade. Tal dispositivo é dependente, portanto, da motricidade: um simples gesto já me diz se uma imagem é real ou forjada pelo aparelho psíquico. Se o indivíduo está paralisado, porém, ele não tem como efetuar a prova de realidade e, n~sse caso, a distinção entre realidade vivida e imaginada não pode ser claramente traçada. No cinema, o espectador poderia livrar-se da hipnose olhando para os lados ou mesmo para a fonte de luz que se encontra às suas costas. Entretanto, impossibilitado de mover-se, suspensa a prova de realidade, ele só pode tomar as representações pelo próprio "real", da mesma forma como faziam os prisioneiros da caverna, paralisados pelas correntes.
Assim é também o mecanismo do sonho: durante o estado de prostração total do corpo que se verifica no sono mais profundo, a máquina psíquica se torna incapaz de distinguir entre representação e percepção, de forma que a atividade psíquica ganha dimensão de "real" e o indivíduo tem a impressão de que as suas representações mentais estão de fato acontecendo para ele. A psicobiologia chama de paradoxal esse estágio do sono, pois constitui de fato um paradoxo que, no momento em que os músculos do corpo estão mais relaxados, o aparelho psíquico se encontre em plena atividade (apenas dois outros órgãos são também estimulados: os olhos, que descrevem um movimento de varredura horizontal e vertical, e o pênis do homem, que esboça uma ereção) (Fischer 1973, p. 235). Sonho e inibição da atividade motora são duas funções impossíveis de dissociar: percebemos isso claramente quando sonhamos que estamos diante de um perigo e queremos correr, mas as pernas não nos obedecem. O fascínio exercido pelo cinema é muito parecido com o fascínio do sonho: paralisado o corpo numa situação de morte transitória, os signos projetados na tela ganham textura de coisa viva, ativando os mecanismos de envolvimento e identificação da platéia.
Quando se apagam os focos de luz e silenciam os estímulos sensoriais do ambiente da sala de projeção, o espectador se coloca, portanto, à mercê do intenso estímulo luminoso que se impõe à sua frente e nesse ato de entreguismo e vulnerabilidade ele se deixa sugestionar pelo universo fictício da narrativa, a ponto de se integrar no seu jogo de conflitos como se fizesse parte deles. A sua subjetividade abandona a massa inerte do corpo, desprende-se da poltrona e entra na tela para se converter em atriz do jogo simulado de eventos. Não se trata apenas de um pacto de aceitação do universo fictício, como aquele que o leitor do romance estabelece com a narrativa. A percepção do filme é também uma forma de alucinação, como o sonho é para Freud uma "psicose alucinatória do desejo" (Freud 1972a, p. 137): um como outro estão baseados na crença da existência efetiva daquilo que não passa, no fim das contas, de um jogo de representações. O espectador, na verdade, não "assiste" ao filme: ele o vive com uma vivência próxima do sonho e numa tal intensidade que não raro ele próprio se surpreende gritando, "torcendo" ou transpirando de tensão. A essa
vivência particular de um espectador "em situação regressiva, infantilizado, como se estivesse sob o efeito de uma neurose artificial" (Morin 1980, p. 90) se convencionou chamar impressão de realidade. O termo, cunhado pelos teóricos do Instituto de Filmologia de Paris que, a partir de 1947, dedicaram-se ao estudo da subjetividade do espectador na sala de projeção, refere-se a essa co sao entre percepçao e representaçao que, segun o Freud, caracteriza justamente o trabalho do sonho, uma vez suspensa a prova de realidade.
A diferença entre a antiga abordagem filmológica e a moderna acepção semiótica, entretanto, reside no fato de que agora se sabe que nesse trabalho de identificação e envolvimento jogam um papel importantíssimo certas técnicas de interiorização das imagens, como é o caso, notadamente, da "câmera subjetiva". Ou seja, no domínio do cinema, a impressão de realidade resulta da combinação do dispositivo da caverna (imobilidade, silêncio, escuridão, onirismo) com o mecanismo de enunciação das imagens pela câmera, um sistema de projeções ópticas, derivado de técnicas renascen- tistas de "reproduzir" a realidade (a perspectiva monocular principalmente), que visa inscrever o sujeito no interior mesmo da representação. A projeção que faz o espectador de si próprio sobre os eventos da tela deriva, portanto, de sua inserção concreta no "texto" do filme, como se ele fosse o sujeito da visão que aquele lhe oferece. Essa forma de vivenciar o filme, "subjetiva" no sentido próprio do termo (pertencente ao sujeito), é imposta pelo modo de construção da imagem, que faz o espectador assumir o ponto de vista da câmera e, portanto, coloca-o "dentro" da cena. Uma câmera obscura (a câmera cinematográfica) dentro de outra câmera obscura (a sala de projeção): eis aí uma imagem perfeita do mecanismo que favorece a sugestionabilidade do espectador e o desfrute de uma vida emprestada pelo personagem.
O desejo de ir ao cinema pressupõe, portanto, não apenas uma disponibilidade pura e simples para se deixar sugestionar pela impressão de realidade, mas uma forma de se relacionar com essa realidade alucinatória, forma essa que poderíamos definir ao mesmo tempo como voyeurista e narcisista, porque nela o sujeito "espia" a intimidade do outro pelo viés da tela, enquanto o seu corpo inerte se projeta imaginariamente na intriga e passa a vivenciar o filme como se fosse o seu sujeito. A identificação do espectador com os personagens da trama é poderosa no cinema, diríamos que quase inevitável, porque o modo de enunciação da imagem cinematográfica pressupõe sempre um observador presente, um sujeito da visão, cuja identidade o espectador assume. "No cinema - observa André Bazin - a mulher, mesmo nua, pode ser abordada por seu parceiro, expressamente desejada e realmente acariciada, pois diferentemente do teatro -lugar concreto de uma representação fundada na consciência e na oposição - o cinema desenrola-se num espaço imaginário que demanda a participação e a identificação. Conquistando a mulher, o ator me satisfaz por procuração. Sua sedução, sua beleza, sua audácia não entram em concorrência com meus desejos, mas os realizam" (Bazin 1981, p. 254). Não basta, portanto, dizer simplesmente que o espectador vivencia os eventos projetados na tela como algo que está acontecendo .de fato (impressão de realidade), mas como algo que de fato lhe estáacontecendo (efeito de sujeito).
O que ocorre é um assujeitamento do espectador que, novamente aqui, remete ao trabalho do sonho. O sonho é também uma manifestação do egoísmo do sonhador (Freud prefere falar em narcisismo, que é o egoísmo investido pela libido), pois nele é sempre o sonhador quem desempenha o papel principal (Freud 1969, pp. 343-344; 1972a, p. 127). Mesmo quando não é este último quem pratica a ação imaginada no sonho, ele permanece, de qualquer forma, um observador presente no palco dos acontecimentos e o sonho sempre lhe ocorre como sendo o seu ponto de vista. Ademais, ainda de acordo com Freud, mesmo quando o papel principal de um sonho cabe a um estranho, é sempre a pessoa do sonhador que está oculta sob a máscara daquele, por meio dos mecanismos de identificação. "Assim, meu Eu pode ser representado num sonho várias vezes, ora diretamente e ora pela identificação com pessoas estranhas" (Freud 1969, p. 344). Nos sonhos, assim como nas fantasias, o sujeito se dissimula com bastante freqüência, para escapar à proibição, podendo ocupar sucessivamente o lugar do agente e do objeto num enunciado. Vide a análise que faz Freud (1970, pp. 225-253) do enunciado "bate-se numa criança", em que o sujeito enunciador ora se encontra na posição daquele que bate, ora na posição do que apanha e outras vezes ainda ele aparece como um observador externo, que assiste à cena. Exatamente como no filme, em que o processo de identificação se dá numa multiplicidade de perspectivas, pela variação dos ângulos de tomada, permitindo ao espectador "assujeitar-se" no ponto de vista de várias personagens diferentes ao mesmo tempo. De qualquer forma, como observa Susanne K. Langer (1965, p. 449), no cinema, a câmera ocupa sempre o lugar daquele que sonha e essa particular relação do sujeito com os objetos da percepção cria um presente virtual, uma sensação de que os eventos estão acontecendo exatamente no momento da projeção.
Filme e sonho têm ainda em comum o recurso da imagem como meio básico de expressão. Em certas passagens de seus escritos, Freud chega a identificar o material psíquico de que são formados os sonhos com o das artes plásticas (Freud 1969, p. 332), enfatizando, em outras, que a figurabilidade sempre domina o processo (Freud 1972a, p. 135). Claro que existe também uma expressão verbal nos sonhos, como existe representação da fala no cinema. Mas, ainda aqui, o paralelo é perfeito, pois Freud observa que a palavra ocorre nos sonhos como "resto diurno", fragmento de percepção de falas e sempre "ligada à coisa que lhe corresponde" (Freud 1972a, p. 135), portanto, para usar uma expressão cinematográfica, sincronizada à imagem, como se fosse um ruído a mais, entre outros tantos da trilha sonora. Em outras palavras, a voz é trabalhada, no sonho e no filme, como se fosse imagem, inscrita portanto no interior do campo escópico.
fílmica e quando, "em estados intermediários entre a vigília e o sono", o sonhador sabe até certo ponto que está sonhando. Mas a situação "normal" e dominante é aquela em que o sonho e o filme não se confundem, pois neste último a transferência perceptiva não chega a acontecer como naquele, o imaginário continua a ser sentido como tal e a impressão de realidade raramente se torna uma ilusão de fato.
Tudo muito sensato e bem colocado. Mas dizer sumariamente que o espectador "sabe" que está diante de um filme, que ele jamais alucina as imagens a ponto de imaginá-las dotadas de realidade, nada disso explica o desejo de ir e de estar no cinema. Se a regressão vivida pelo espectador na sala de projeção é consentida e desejada, se é ele próprio quem escolhe colocar o mundo entre parênteses para viver uma experiência imaginária, isso só ocorre porque ele busca no cinema algo mais do que a mera consciência do processo. Justamente porque o indivíduo "sabe" de antemão que o que se passa na tela é objeto ausente e que, portanto, ele pode viver suas emoções sem riscos de qualquer espécie, porque, ainda, tudo não passa, no fim das contas, de um "sonho", é que ele pode precisamente alucinar as imagens e vivê-Ias c?m a intensidade de um acontecimento real. Isso é precisamente o que o mobiliza ao Cinema e explica a sua entrega resoluta ao artifício do filme.
Talvez possamos entender melhor isso que Metz chama de "consciência" do espectador, examinando justamente o sonho "consciente", aquele em que o sonhador sabe que está sonhando e que Freud chama de "sonho dentro do sonho". Se o conteúdo do sonho é descrito no próprio sonho como sendo "sonhado", isso visa diminuir-lhe a importância para tirar-lhe o peso de realidade, como forma de a censura resistir dentro do sonho à proliferação do inconsciente. Se uma lembrança emerge no sonho como algo angustiante para o sonhador, este a imagina como um sonho dentro do sonho para poder assim experimentá-la sem sofrimento (Freud 1969, p. 359). Exatamente o que acontece na sala de projeção. Nela, o espectador não receia, por exemplo, assistir a um filme sobre um desastre de avião, porque ele "sabe" que, no fim das contas, tudo não passa de cinema e portanto não há riscos. Mas exatamente porque está livre de perigo, ele pode viver as emoções do drama da forma mais intensa possível. O seu "saber" o isenta de medos, culpas ou responsabilidades. Durante todo o tempo da projeção, ele pode alucinar à vontade, pois o calor e o escuro da gruta-útero o livram de quaisquer conseqüências. Se há algo que ele "sabe" o tempo todo não é simplesmente que tudo é mentira, pois isso reprimiria o prazer do filme, mas que depois de ter vivido emoções as mais perigosas ou as mais proibidas, ele pode finalmente acordar, como se acorda de um pesadelo.
"A segunda diferença entre a visão fílmica e a visão onírica - continua Metz decorre estreitamente da primeira. A percepção fílmica é uma percepção real (érealmente uma percepção), ela não se reduz a um processo psíquico interno" (Metz 1977, p. 133). Em outras palavras, as imagens do filme são imagens reais que o espectador percebe porque de fato estão à sua frente (porém, contraditoriamente, o percebido não é o objeto, é um jogo de luzes e sombras, portanto, já um fantasma), ao passo que no sonho as imagens são internas, produzidas pelo aparelho psíquico e, portanto, não percebidas realmente. Bastaria ao espectador desviar os olhos da tela para que as imagens desaparecessem (prova de realidade), condição que não ocorre no sonho, pois este último trabalha com representações mentais que independem da ação do sonhador. O fato, entretanto, é que a possibilidade de ação ou de deslocamento do espectador na sala de projeção é apenas teórica, verificável sobretudo nos "maus" filmes, naqueles que não conseguem estabelecer um contrato de transferência perceptiva com o seu público. Pois, em circunstâncias habituais, a situação cinema inviabiliza a realização da prova de realidade. Ademais, como observa Baudry (1975, p. 69), "mais que no sonho, o sujeito do filme não possui meios de exercer uma ação sobre o objeto de sua percepção, ele não pode mudar voluntariamente seu ponto de vista. Ele está bem ocupado com as imagens; o desenvolvimento dessas imagens, o ritmo de visão, o movimento lhe são impostos de maneira semelhante às representações do sonho e das alucinações". Como conseqüência, apesar de perceber imagens "reais" (ou pelo menos a sua sombra), o espectador do filme não as assimila como meros estímulos luminosos; ele incorpora o ponto de vista da câmera, investe de subjetividade as projeções da tela e, nesse ato de aluciná-las, interioriza as percepções. Se há, portanto, uma diferença entre a situação onírica e a situação fílmica, ela está no fato de a primeira tomar por percepção o que não passa de representação mental, ao passo que a segunda toma por representação mental o que não passa de percepção. Mas é que o cinema funciona como um aparelho psíquico substitutivo, que simula artificialmente uma vivência psicológica.
Finalmente, o filme - para Metz - é em geral consideravelmente mais lógico e organizado do que o sonho. "Os filmes fantasiosos ou maravilhosos, os filmes mais irrealistas não são outra coisa que filmes que obedecem a uma outra lógica", ao passo que o conteúdo manifesto de um sonho, "caso fosse estritamente levado à tela, formaria um filme ininteligível". "Entre a lógica do filme mais absurdo e a do sonho, sempre permanecerá uma diferença: é que, neste último, o espantoso não espanta e, por conseqüência, nada é absurdo; donde justamente, ao despertar, o espanto e a impressão de absurdo" (Metz 1977, pp. 148-150).
Quando se diz que o filme imita o sonho, é preciso esclarecer o sentido verdadeiro desse artifício. O sonho que dizemos se parecer com o filme evidentemente não é o seu mecanismo psicológico mais profundo, não são aqueles
"pensamentos oníricos latentes", que para Freud constituem a matéria-prima do sonho, o seu processo primário. Ele se identifica, antes, com o sentido que lhe dá o vulgo, ou seja, algo já trabalhado pela elaboração secundária. E não há como ser diferente: o que nós entendemos por sonho é sempre o conjunto desses pensamentos oníricos transmudados em conteúdos manifestos, ou seja, traduzidos em sonho recordado e contado na ~vigília. Entre a emergência do inconsciente e a elaboração do sonho pelo sujeito, Interpõe-se a moldagem operada pela censura, por meio de procedimentos como a condensação, o deslocamento, a simbolização e a elaboração secundária. Por essa razão, os ataques que os surrealistas lançaram ao cinema, a partir dos anos 20, por considerar que este não vinha cumprindo sua função de exprimir, em todas as suas conseqüências, a irracionalidade inconsciente e de saciar sem censuras os desejos e as pulsões, têm um fundo de ingenuidade. Se o filme aparece como uma fantasia controlada e moldada pelos dispositivos da indústria cultural, se ele só possibilita uma incursão "administrada" no imaginário, isso não contribui necessariamente para distingui-Ia do sonho, pois este último é também "administrado" pela censura psíquica. Aliás, talvez não exista nada menos onírico do que certos filmes que utilizam "associações livres" para imitar o processo do sonho, como é o caso de Un chien andalou (Um cão andaluz/1928), Geheimnisse einer Seele (Segredos de uma alma/1926), Sang d'un poete (Sangue de um poeta/1930), ou aquelas imagens nebulosas e distorcidas com que se procura representar seqüências de sonhos em filmes como Smultronstallet (Morangos silvestres/1957), Spellbound (Quando fala o coração/1945) e Seconds (O segundo rosto/1966). As películas que melhor representam o sonho são aquelas em que o conteúdo onírico é tratado com espessura de evento real, são fitas como Vertigo (Um corpo que caV1958), Belle de jour (A bela da tarde/1967) ou Uguetsu monogatari (Contos da lua vaga/1953), em que há embaralhamento entre o vivido e o imaginado.
Um filme que pretendesse representar na tela, com a maior exatidão possível, os pensamentos oníricos latentes só teria interesse talvez para as comunidades médica e científica, mas provavelmente não atrairia para a sala de exibição aquelas multidões de espectadores para quem o sonho se confunde com a elaboração secundária. No cinema, tanto os recursos de linguagem quanto as regras econômicas do mercado, como ainda a legislação dos códigos de ética, tudo funciona como mecanismo de censura, num sentido bastante próximo da censura psíquica, cujo fim é domar as liberdades da máquina inconsciente com o cabresto da civilização (superego). Com justa razão, André Bazin observou que a censura é função constitutiva tanto do sonho como do cinema. A famosa cena de 1be seven year itch (O pecado mora ao lado/1955), em que a corrente de ar que sai do bueiro do metrô levanta a saia da personagem interpretada por Marilyn Monroe, "só poderia ter nascido no contexto de um cinema dono de uma longa, rica e bizantina cultura da censura" (Bazin 1981, p. 252). O mesmo se poderia dizer da simbologia onírica que perpassa todo o North by norlhwest (Intriga internacional/1959), desde os signos da ameaça de castração que definem o complexo de Édipo do protagonista principal (por exemplo, a minúscula lâmina de depilação feminina com que ele se barbeia) até a ereção final, quando Thornhill possui a mulher de seus desejos e essa cena é dada no filme pela imagem do trem entrando vigorosamente num túnel (Bellour 1975, pp. 235-350). "Tais achados supõem um extraordinário refinamento da imaginação, adquirido na luta contra a estupidez acabada de um código puritano. O fato é que Hollywood, apesar e por causa das proibições que nela vigoram, continua sendo a capital do erotismo cinematográfico" (Bazin 1981, p. 252).
As próprias bordas do quadro já não constituem um expediente de censura? O seu papel não é justamente jogar com o visível de um lado e o sugerido de outro, tirando partido dos desvendamentos progressivos e incompletos que ocorrem quando a câmera se move? Entre o que se mostra e o que se suprime ao olhar, o que há é excitação do desejo, mas ao mesmo tempo a sua retenção, ambigüidade que está na raiz do jogo erótico e que o filme assumidamente pornográfico perde, por causa de sua brutalidade fisiológica. O cinema tem, portanto, uma certa afinidade com a mecânica do desejo: suprime o que ameaça mostrar, retarda o acesso ao sugerido, prolonga o suspense, fazendo com que o objeto desejado escape e retome a todo momento no domínio do olhar. O próprio Christian Metz, aliás, já observou, num outro contexto, que a maneira de o cinema desvendar o espaço tem alguma semelhança com uma espécie de strip-tease, só que um strip-tease reversível, que volta a vestir o que já havia despido e que subtrai à vista o que já havia mostrado (Metz 1977, p. 91). Tudo isso vem demonstrar que o cinema tem em comum com o sonho o labor do processo secundário, com que ele dribla a censura exerci da sobretudo pelo superego. Produto oficioso de uma civilização fértil de legislações sobre o inconsciente, o cinema aprendeu a domar as pulsões com uma espécie de moldura cultural por meio da qual ele sublima, corrige, "civiliza" as narrativas caóticas forjadas no inconsciente. No seu trabalho duplo de ativamento e dissimulação do desejo, ele vai buscar modelos construtivos em formas simbólicas reputadas pela sociedade como superiores e civilizadas, como é o caso do romance e do drama oito centistas. Nisso tudo, o cinema só difere verdadeiramente dos sonhos e das alucinações em sua artificialidade: na sala de exibição, não somos nós que produzimos nossos sonhos; eles já nos chegam prontos, empacotados, reprodutíveis ao infinito. Máquina de moldar o imaginário, o cinema funciona executando, por conta do espectador, parte do seu trabalho psíquico. Essa talvez seja uma das motivações mais profundas que estão por trás de sua invenção técnica: induzir no espectador percepções socialmente disciplinadas, que se fazem passar por representações de um mundo interior.
Anestesiamento do espírito vigilante, suspensão de todo interesse pelo ambiente Circundante, projeção da personalidade num sujeito emprestado, adesão à impressão de realidade, desligamento, passividade, desejo de sonhar: eis