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CLARA DOS ANJOS, OBRA DE LIMA BARRETO, Resumos de Português (Gramática - Literatura)

LIVRO LITERÁRIO DO PRÉ-MODERNISMO - Clara dos Anjos é um romance escrito por Lima Barreto, publicado em 1948, que aborda as questões sociais e econômicas do Brasil no início do século XX, a partir da perspectiva de uma jovem ingênua, Clara.

Tipologia: Resumos

Antes de 2010

Compartilhado em 22/04/2025

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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro
CLARA DOS ANJOS
Lima Barreto
I
O carteiro Joaquim dos Anjos não era homem de serestas e serenatas; mas gostava de violão
e de modinhas. Ele mesmo tocava flauta, instrumento que já foi muito estimado em outras épocas,
não o sendo atualmente como outrora. Os velhos do Rio de Janeiro, ainda hoje, se lembram do
famoso Calado e das suas polcas, uma das quais - "Cruzes, minha prima!" ¾ é uma lembrança
emocionante para os cariocas que estão a roçar pelos setenta. De uns tempos a esta parte, porém, a
flauta caiu de importância, e só um único flautista dos nossos dias conseguiu, por instantes,
reabilitar o mavioso instrumento - delícia, que foi, dos nossos pais e avós. Quero falar do Patápio
Silva. Com a morte dele a flauta voltou a ocupar um lugar secundário como instrumento musical, a
que os doutores em música, quer executantes, quer os críticos eruditos, não dão nenhuma
importância. Voltou a ser novamente plebeu.
Apesar disso, na sua simplicidade de nascimento, origem e condição, Joaquim dos Anjos
acreditava-se músico de certa ordem, pois, além de tocar flauta, compunha valsas, tangos e
acompanhamentos de modinhas.
Uma polca sua - "Siri sem unha" - e uma valsa - "Mágoas do coração"- tiveram algum
sucesso, a ponto de vender ele a propriedade de cada uma, por cinqüenta mil-réis, a uma casa de
músicas e pianos da Rua do Ouvidor.
O seu saber musical era fraco; adivinhava mais do que empregava noções teóricas que
tivesse estudado.
Aprendeu a "artinha" musical na terra do seu nascimento, nos arredores de Diamantina, em
cujas festas de igreja a sua flauta brilhara, e era tido por muitos como o primeiro flautista do lugar.
Embora gozando desta fama animadora, nunca quis ampliar os seus conhecimentos musicais.
Ficara na "artinha" de Francisco Manuel, que sabia de cor; mas não saíra dela, para ir além.
Pouco ambicioso em música, ele o era também nas demais manifestações de sua vida.
Desgostoso com a existência medíocre na sua pequena cidade natal, um belo dia, aí pelos seus vinte
e dois anos, aceitara o convite de um engenheiro inglês que, por aquelas bandas, andava a explorar
terras e terrenos diamantíferos. Todos julgavam que o "seu" mister andasse fazendo isso; a verdade,
porém, é que o sábio inglês fazia estudos desinteressados. Fazia puras e platônicas pesquisas
geológicas e mineralógicas. O diamante não era o fim dos seus trabalhos; mas o povo, que teimava
em ver, pelos arredores da cidade, o ventre da terra cheio de diamantes, não podia supor que um
inglês que levava a catar pedras, pela manhã e até à noite, tomando notas e com uns instrumentos
rebarbativos, não estivesse com tais gatimonhas a caçar diamantes. Não havia meio do mister
convencer à simplória gente do lugar que ele não queria saber de diamantes; e dia não havia em que
o súdito de Sua Graciosa Majestade não recebesse uma proposta de venda de terrenos, em que
forçosamente havia de existir a preciosa pedra abundantemente, por tais ou quais indícios, seguros
aos olhos de "garimpeiro" experimentado.
Logo ao chegar o geólogo, Joaquim empregou-se como seu pajem, guia, encaixotador,
servente, etc., e tanto foi obediente e serviu a contento o sábio, que este, ao dar por terminadas as
suas pesquisas, o convidou a vir ao Rio de Janeiro, encarregando-se de movimentar a sua
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MINISTÉRIO DA CULTURA

Fundação Biblioteca Nacional

Departamento Nacional do Livro

CLARA DOS ANJOS

Lima Barreto

I

O carteiro Joaquim dos Anjos não era homem de serestas e serenatas; mas gostava de violão e de modinhas. Ele mesmo tocava flauta, instrumento que já foi muito estimado em outras épocas, não o sendo atualmente como outrora. Os velhos do Rio de Janeiro, ainda hoje, se lembram do famoso Calado e das suas polcas, uma das quais - "Cruzes, minha prima!" ¾ é uma lembrança emocionante para os cariocas que estão a roçar pelos setenta. De uns tempos a esta parte, porém, a flauta caiu de importância, e só um único flautista dos nossos dias conseguiu, por instantes, reabilitar o mavioso instrumento - delícia, que foi, dos nossos pais e avós. Quero falar do Patápio Silva. Com a morte dele a flauta voltou a ocupar um lugar secundário como instrumento musical, a que os doutores em música, quer executantes, quer os críticos eruditos, não dão nenhuma importância. Voltou a ser novamente plebeu. Apesar disso, na sua simplicidade de nascimento, origem e condição, Joaquim dos Anjos acreditava-se músico de certa ordem, pois, além de tocar flauta, compunha valsas, tangos e acompanhamentos de modinhas. Uma polca sua - "Siri sem unha" - e uma valsa - "Mágoas do coração"- tiveram algum sucesso, a ponto de vender ele a propriedade de cada uma, por cinqüenta mil-réis, a uma casa de músicas e pianos da Rua do Ouvidor. O seu saber musical era fraco; adivinhava mais do que empregava noções teóricas que tivesse estudado. Aprendeu a "artinha" musical na terra do seu nascimento, nos arredores de Diamantina, em cujas festas de igreja a sua flauta brilhara, e era tido por muitos como o primeiro flautista do lugar. Embora gozando desta fama animadora, nunca quis ampliar os seus conhecimentos musicais. Ficara na "artinha" de Francisco Manuel, que sabia de cor; mas não saíra dela, para ir além. Pouco ambicioso em música, ele o era também nas demais manifestações de sua vida. Desgostoso com a existência medíocre na sua pequena cidade natal, um belo dia, aí pelos seus vinte e dois anos, aceitara o convite de um engenheiro inglês que, por aquelas bandas, andava a explorar terras e terrenos diamantíferos. Todos julgavam que o "seu" mister andasse fazendo isso; a verdade, porém, é que o sábio inglês fazia estudos desinteressados. Fazia puras e platônicas pesquisas geológicas e mineralógicas. O diamante não era o fim dos seus trabalhos; mas o povo, que teimava em ver, pelos arredores da cidade, o ventre da terra cheio de diamantes, não podia supor que um inglês que levava a catar pedras, pela manhã e até à noite, tomando notas e com uns instrumentos rebarbativos, não estivesse com tais gatimonhas a caçar diamantes. Não havia meio do mister convencer à simplória gente do lugar que ele não queria saber de diamantes; e dia não havia em que o súdito de Sua Graciosa Majestade não recebesse uma proposta de venda de terrenos, em que forçosamente havia de existir a preciosa pedra abundantemente, por tais ou quais indícios, seguros aos olhos de "garimpeiro" experimentado. Logo ao chegar o geólogo, Joaquim empregou-se como seu pajem, guia, encaixotador, servente, etc., e tanto foi obediente e serviu a contento o sábio, que este, ao dar por terminadas as suas pesquisas, o convidou a vir ao Rio de Janeiro, encarregando-se de movimentar a sua

pedregulhenta ou pedregosa bagagem, até que ela fosse posta a bordo. O sábio comprometeu-se a pagar-lhe a estadia no Rio, o que fez, até embarcar-se para a Europa. Deu-lhe dinheiro para voltar, um chapéu de cortiça, umas perneiras, um cachimbo e uma lata de fumo Navy Cut; Joaquim já se havia habituado ao Rio de Janeiro, no mês e pouco em que estivera aqui, a serviço do Senhor John Herbert Brown, da Real Sociedade de Londres; e resolveu não voltar para Diamantina. Vendeu as perneiras num belchior e o chapéu de cortiça também; e pôs-se a fumar o saboroso fumo inglês no cachimbo que lhe fora ofertado, passeando pelo Rio, enquanto teve dinheiro. Quando acabou, procurou conhecidos que já tinha; e, em breve, entrou para o serviço de empregado de escritório de um grande advogado, seu patrício, isto é, mineiro.

  • Não te darei coisa que valha a pena - disse-lhe logo o doutor - mas aqui irás travando conhecimentos e podes arranjar coisa melhor mais tarde. Viu bem que o "doutor" lhe falava a verdade, e toda sua ambição se cifrou em obter um pequeno emprego público que lhe desse direito a aposentadoria e a montepio, para a família que ia fundar. Conseguira, ao fim de dois anos de trabalho, aquele de carteiro, havia bem quatro lustros, com o qual estava muito contente e satisfeito da vida, tanto mais que mere- cera sucessivas promoções. Casara meses depois de nomeado; e, tendo morrido sua mãe, em Diamantina, como filho único, herdara-lhe a casa e umas poucas terras em Inhaí, uma freguesia daquela cidade mineira. Vendeu a modesta herança e tratou de adquirir aquela casita nos subúrbios em que ainda morava e era dele. O seu preço fora módico, mas, mesmo assim, o dinheiro da herança não chegara, e pagou o resto em prestações. Agora, porém, e mesmo há vários anos, estava em plena posse do seu "buraco", como ele chamava a sua humilde casucha. Era simples. Tinha dois quartos; um que dava para a sala de visitas e outro para a sala de jantar, aquele ficava à direita e este à esquerda de quem entrava nela. À de visitas, seguia-se imediatamente a sala de jantar. Correspondendo a pouco mais de um terço da largura total da casa, havia, nos fundos, um puxadito, onde estavam a cozinha e uma despensa minúscula. Comunicava-se esse puxadito com a sala de jantar por uma porta; e a despensa, à esquerda, apertava o puxado, a jeito de um curto corredor, até à cozinha, que se alargava em toda a largura dele. A porta que o ligava à sala de jantar ficava bem junto daquela, por onde se ia dessa sala para o quintal. Era assim o plano da propriedade de Joaquim dos Anjos. Fora do corpo da casa, existia um barracão para banheiro, tanque, etc., e o quintal era de superfície razoável, onde cresciam goiabeiras, dois pés ou três de laranjeiras, um de limão-galego, mamoeiros e um grande tamarineiro copado, bem aos fundos. A rua em que estava situada a sua casa se desenvolvia no plano e, quando chovia, encharcava e ficava que nem um pântano; entretanto, era povoada e se fazia caminho obrigado das margens da Central para a longínqua e habitada freguesia de Inhaúma. Carroções, carros, autocaminhões que, quase diariamente, andam por aquelas bandas a suprir os retalhistas de gêneros que os atacadistas lhes fornecem, percorriam-na do começo ao fim, indicando que tal via pública devia merecer mais atenção da edilidade. Era uma rua sossegada e toda ela, ou quase toda, edificada ao gosto antigo do subúrbio, ao gosto do chalet. Estava povoada e edificada quase inteiramente, de um lado e de outro. Dela, descortinava-se um lindo panorama de montanhas de cores cambiantes, conforme fosse a hora do dia e o estado da atmosfera. Ficavam-lhe muito distantes, mas pareciam cercá- la, e ela, a rua, ser o eixo daquele redondel de montes, em que, pelo dia em fora, pareciam ser iluminados por projeções luminosas, revestindo-se de toda a gama do verde, de tons azuis; e, pelo crepúsculo, ficavam cobertos de ouro e púrpura. Além dos clássicos chalets suburbanos, encontravam-se outros tipos de casas. Algumas relativamente recentes, uns certos requififes e galanteios modernos, para lhes encobrir a estreiteza dos cômodos e justificar o exagero dos aluguéis. Havia, porém, uma casa digna de ser vista. Erguia- se quase ao centro de uma grande chácara e era a característica das casas das velhas chácaras dos outros tempos; longa fachada, pouco fundo, teto acaçapado, forrada de azulejos até a metade do pé direito. Um tanto feia, é verdade, que ela era, sem garridice; mas casando-se perfeitamente com as

de acampamento guerreiro. Dir-se-ia um destacamento de uma ordem de cavalaria monástico- guerreira, que se preparava para combater o turco ou o mouro infiel, na Palestina ou em Marrocos. Da redondeza, não eram muitos os adeptos ortodoxos à doutrinação religiosa de Mr. Shays; entretanto, além das espécies que já foram aludidas, havia as daqueles que assistiam às suas prédicas, por mera curiosidade ou para deliciar-se com a oratória do pastor americano. O templo estava sempre cheio, nos seus dias solenes. Os freqüentadores dessa ou daquela natureza lá iam sem nenhuma repugnância, pois é próprio do nosso pequeno povo fazer uma extravagante amálgama de religiões e crenças de toda a sorte, e socorrer-se desta ou daquela, conforme os transes e momentâneas agruras de sua existência. Se se trata de afastar atrasos de vida, apela para a feitiçaria; se se trata de curar uma moléstia tenaz e renitente, procura o espírita; mas não falem à nossa gente humilde em deixar de batizar o filho pelo sacerdote católico, porque não há, dentre ela, quem não se zangue: "Está doido! Meu filho ficar pagão! Deus me defenda! Joaquim dos Anjos não freqüentava Mr. Shays nem o reverendo Padre Sodré, do Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, pois, apesar de ter nascido numa cidade embalsamada de incenso e plena de ecos sonoros de litanias e o contínuo repicar de sinos festivos, não era animado de grande fervor religioso. Sua mulher, Dona Engrácia, porém, o era em extremo, embora fosse pouco à igreja, devido às suas obrigações caseiras. Ambos, porém, estavam de acordo num ponto religioso católico-romano: batizar quanto antes os filhos, na Igreja Católica Apostólica Romana. Foi assim que procederam, não só com a Clara, o único filho sobrevivente, como com os demais, que haviam morrido. Eram casados há quase vinte anos, e esta Clara, sua filha, sendo o segundo filho do casal, orçava pelos seus dezessete anos. Era tratada pelos pais com muito desvelo, recato e carinho; e, a não ser com a mãe ou pai, só saía com Dona Margarida, uma viúva muito séria, que morava nas vizinhanças e ensinava a Clara bordados e costuras. No mais, isto era raro e só acontecia aos domingos, Clara deixava, às vezes, a casa paterna, para ir ao cinema do Méier ou Engenho de Dentro, quando a sua professora de costuras se prestava a acompanhá-la, porque Joaquim não se prestava, pois não gostava de sair aos domingos, dia escolhido a fim de se entregar ao seu prazer predileto de jogar o solo com os companheiros habituais; e sua mulher não só não gostava de sair aos domingos, como em outro dia da semana qualquer. Era sedentária e caseira. Os companheiros habituais do solo com Joaquim eram quase sempre estes dois: o Senhor Antônio da Silva Marramaque, seu compadre, pois era padrinho de sua filha única; e o Senhor Eduardo Lafões. Não variavam. Todos os domingos, aí pelas nove horas, lá batiam à porteira da casa do "postal"; não entravam no corpo da habitação e, pelo corredor que mediava entre ela e a vizinha, dirigiam-se ao grande tamarineiro, aos fundos do quintal, debaixo do qual estava armada a mesa, com os seus tentos, vermelhos e pupilas negras, de grão de aroeira, o seu baralho, os seus pires, um cálice e um litro de parati, ao centro, muito pimpão e arrogante, impondo um cínico desafio às conveniências protocolares. Joaquim dos Anjos já esperava, lendo o jornal de sua predileção. Mal chegavam, trocavam algumas palavras, sentavam-se, "molhavam a palavra", no litro de cachaça, e punham-se a jogar. Ficha a vintém. Horas e horas, esperando o "ajantarado", que quase sempre ia para a mesa à hora do jantar habitual, deixavam-se ficar jogando, bebericando aguardente, sem dar uma vista d'olhos sobre as montanhas circundantes, nuas e pedroucentas, que recortavam o alto horizonte. De quando em quando, mas sem grandes espaços, Joaquim gritava para a cozinha:

  • Clara! Engrácia! Café! De lá, respondiam, com algum amuo na voz:
  • Já vai!

É que as duas mulheres, para preparar o café, tinham que retirar, de um dos dois fogareiros de carvão vegetal, uma panela do "ajantarado" que aprontavam, a fim de aquecer o café reclamado; e isto lhes atrasava o jantar. Enquanto esperavam o café, os três suspendiam o jogo e conversavam um pouco. Marramaque era e sempre havia sido mais ou menos político, a seu modo. Embora atualmente fosse um simples contínuo de ministério, em que não fazia o serviço respectivo, nem outro qualquer, devido a seu estado de invalidez, de semi-aleijado e semiparalítico do lado esquerdo, tinha, entretanto, pertencido a uma modesta roda de boêmios literatos e poetas, na qual, a par da poesia e de coisas de literatura, se discutia muita política, hábito que lhe ficou. Quando veio a revolta de 93, a roda se dissolveu. Uns foram acompanhar o Almirante Custódio; e outros, o Marechal Floriano. Marramaque foi um destes e até obteve as honras de alferes do Exército. Por aí é que teve a primeira congestão, isto é, nos fins do governo do marechal, em 94. A sua roda não tinha ninguém de destaque, mas alguns eram estimáveis. Mesmo alguns de rodas mais cotadas procuravam a dele. Quando narrava episódios dessa parte de sua vida, tinha grande garbo e orgulho em dizer que havia conhecido Paula Nei e se dava com Luís Murat. Não mentia, enquanto não confessasse a todos em que qualidade fizera parte do grupo literário. Os que o conheciam, daquela época, não ocultavam o título com que partilhava a honra de ser membro de um cenáculo poético. Tendo tentado versejar, o seu bom senso e a integridade de seu caráter fizeram-lhe ver logo que não dava para a coisa. Abandonou e cultivou as charadas, os logogrifos, etc. Ficou sendo um hábil charadista e, como tal, figurava quase sempre como redator ou colaborador dos jornais, que os seus companheiros e amigos de boêmia literária, poetas e literatos, improvisavam do pé para a mão, quase sempre sem dinheiro para um terno novo. Envelhecendo e ficando semi-inutilizado, depois de dois ataques de apoplexia, foi obrigado a aceitar aquele humilde lugar de contínuo, para ter com que viver. Os seus méritos e saber, porém, não estavam muito acima do cargo. Aprendera muita coisa de ouvido e, de ouvido, falava de muitas delas. Tivera, em moço, uma boa convivência. Estava aí o segredo de sua ilustração. Marramaque, apesar de tudo, do seu estado de saúde, da sua dificuldade de locomover-se, não deixava a mania inócua da política e ia votar, com risco de se ver envolvido num barulho de sufrágio universal, puxado a navalha, rabo-de-arraia, cabeçadas, tiros de revólver e outras eloqüentes manifestações eleitorais, das quais, em razão do seu precário estado de pernas, não poderia fugir com segurança e a necessária rapidez. Tendo vivido em rodas de gente fina - como já vimos - não pela fortuna, mas pela educação e instrução; tendo sonhado outro destino que não o que tivera; acrescendo a tudo isto o seu aleijamento - Marramaque era naturalmente azedo e oposicionista. Naquele domingo, ele o tirara para falar mal do doutor Saulo de Clapin.

  • Vocês vão ver: o Clapin está aí, está morto na política. Teve o topete de ir contra a corrente popular, espetou-se. Quem ganhou foi o barbudo Melo Brandão, esse judeu mestiçado. É um safadão, mas é mestre na política. Joaquim se interessava mediocremente por essa história de política: mas Lafões tinha as suas paixões no negócio e acudiu:
  • Qual o quê! Então você pensa, Marramaque, que um homem inteligente, tão superior, como o doutor Clapin, vai deixar-se embrulhar por um trapaceiro de atas e coisas piores como o Melo Brandão! Qual o quê! Demais, o operariado...
  • O que é que ele tem feito pelo operariado? - pergunta Marramaque.
  • Muito. Lafões não era operário, como se poderia pensar. Era guarda das obras públicas. Português de nascimento, viera menino para o Brasil, isto há mais de quarenta anos; entrara muito cedo para a repartição de águas da cidade, chamara a atenção dos seus superiores pelo rigor de sua conduta; e, aos poucos, fizeram-no chegar a seu generalato de guarda de enca- namentos e de torneiras que vazassem nos tanques de lavagem das casas particulares. Vivia muito contente com a sua posição, a sua portaria de nomeação, a sua carta de naturalização, e, talvez, não estivesse tanto, se tivesse

II

Quem seria esse Cassi? Quem era Cassi? Cassi Jones de Azevedo era filho legítimo de Manuel Borges de Azevedo e Salustiana Baeta de Azevedo. O Jones é que ninguém sabia onde ele o fora buscar, mas usava-o, desde os vinte e um anos, talvez, conforme explicavam alguns, por achar bonito o apelido inglês. O certo, porém, não era isso. A mãe, nas suas crises de vaidade, dizia-se descendente de um fantástico Lord Jones, que fora cônsul da Inglaterra, em Santa Catarina; e o filho julgou de bom gosto britanizar a firma com o nome do seu problemático e fidalgo avô. Era Cassi um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco, sardento, insignificante, de rosto e de corpo; e, conquanto fosse conhecido como consumado "modinhoso", além de o ser também por outras façanhas verdadeiramente ignóbeis, não tinha as melenas do virtuose do violão, nem outro qualquer traço de capadócio. Vestia-se seriamente, segundo as modas da Rua do Ouvidor; mas, pelo apuro forçado e o degagé suburbanos, as suas roupas chamavam a atenção dos outros, que teimavam em descobrir aquele aperfeiçoadíssimo "Brandão", das margens da Central, que lhe talhava as roupas. A única pelintragem, adequada ao seu mister, que apresentava, consistia em trazer o cabelo ensopado de óleo e repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente ao meio - a famosa "pastinha". Não usava topete, nem bigode. O calçado era conforme a moda, mas com os aperfeiçoamentos exigidos por um elegante dos subúrbios, que encanta e seduz as damas com o seu irresistível violão. Era bem misterioso esse seu violão; era bem um elixir ou talismã de amor. Fosse ele ou fosse o violão, fossem ambos conjuntamente, o certo é que, no seu ativo, o Senhor Cassi Jones, de tão pouca idade, relativamente, contava perto de dez defloramentos e a sedução de muito maior número de senhoras casadas. Todas essas proezas eram quase sempre seguidas de escândalo, nos jornais, nas delegacias, nas pretorias; mas ele, pela boca dos seus advogados, injuriando as suas vítimas, empregando os mais ignóbeis meios da prova de sua inocência, no ato incriminado, conseguia livrar-se do casamento forçado ou de alguns anos na correção. Quando a polícia ou os responsáveis pelas vítimas, pais, irmãos, tutores, punham-se em campo para processá-lo convenientemente, ele corria à mãe, Dona Salustiana, chorando e jurando a sua inocência, asseverando que a tal fulana - qualquer das vítimas - já estava perdida, por esse ou por aquele; que fora uma cilada que lhe armaram, para encobrir um mal feito por outrem, e por o saberem de boa família, etc., etc. Em geral, as moças que ele desonrava eram de humilde condição e de todas as cores. Não escolhia. A questão é que não houvesse ninguém, na parentela delas, capaz de vencer a influência do pai, mediante solicitações maternas. A mãe recebia-lhe a confissão, mas não acreditava; entretanto, como tinha as suas presunções fidalgas, repugnava-lhe ver o filho casado com uma criada preta, ou com uma pobre mulata costureira, ou com uma moça branca lavadeira e analfabeta. Graças a esses seus preconceitos de fidalguia e alta estirpe, não trepidava em ir empenhar-se com o marido, a fim de livrar o filho da cadeia ou do casamento pela polícia.

  • Mas é a sexta moça, Salustiana!
  • Qual o quê! Calunia-se muito...
  • Qual calúnia, qual nada! Este rapaz é um perverso, é sem-vergonha. Eu sei o nome das outras. Olhe: a Inês, aquela crioulinha que foi nossa copeira e criada por nós; a Luísa, que era empregada do doutor Camacho; a Santinha, que ajudava a mãe a costurar para fora e morava na Rua Valentim; a Bernarda, que trabalhava no "Joie de Vivre"...
  • Mas tudo isto já passou, Maneco. Você quer que o seu filho vá para a cadeia? Porque, casar com essas biraias, ele não se casa. Eu não quero.
  • Era preferível que ele fosse para a cadeia, ao menos não estava desmoralizando todo o dia a casa.
  • Pois você faça o que quiser. Se você não der os passos, eu dou. Vou procurar o meu irmão, o doutor Baeta Picanço - rematava a mulher com orgulho. O pai desse Cassi era verdadeiramente um homem sério. Estreito de idéias, familiarizado no emprego público, que, há cerca de trinta anos, exercia, ele tinha profundos sentimentos morais, que lhe guiavam a conduta no seu comércio com os filhos. Nunca fora afetuoso: evitava até todas as exibições e exageros sentimentais; era, porém, capaz de estimá-los profundamente, amá-los, sem abdicar, entretanto, do dever paterno de julgá-los lucidamente e puni-los consoante a natureza das suas respectivas faltas. Era homem de pouca altura, trazia a cabeça sempre erguida, testa reta e alta, queixo forte e largo, olhar firme, debaixo do seu pince-nez de aros de ouro. Conquanto alguma coisa obeso, era deveras um velho simpático e respeitável; e, apesar da sua imponência de antigo burocrata, dos seus modos um tanto ríspidos e secos, todos o estimavam na proporção em que seu filho era desprezado e odiado. Tinham até pena dele, confrontando a severidade de sua vida com a crapulice de Cassi. Sua mulher não era lá muito querida, nem prezada. Tinha fumaças de grande dama, de ser muito superior às pessoas de sua vizinhança e mesmo às dos seus conhecimentos. O seu orgulho provinha de duas fontes: a primeira, por ter um irmão médico do Exército, com o posto de capitão; e a segunda, por ter andado no Colégio das Irmãs de Caridade. Quando se lhe perguntava - seu pai, o que era? - Dona Salustiana respondia: era do Exército; e torcia a conversa. Não era seu pai exatamente do Exército. Fora simplesmente escriturário do Arsenal de Guerra. Com muito sacrífício e graças a uma pequena fortuna que lhe viera ter por acaso às mãos, pudera educar melhorzinho os dois únicos filhos que tivera. A vaidade de Dona Salustiana não deixava que ela confessasse isso; e tanto era contagioso esse seu sentimento, no que tocava a seu pai, que as suas duas filhas, Catarina e Irene, sempre se referiam ao avô, como se fosse de verdade um general do Paraguai. Eram menos vaidosas do que a mãe; mas muito mais ambiciosas, em matéria de casamento. Dona Salustiana casara-se com o Manuel, quando este ainda era praticante e revia provas, à noite, nos jornais, para acudir às despesas da casa. Catarina e Irene sonhavam casar com doutores, bem empregados ou ricos, porque elas se julgavam prestes a se "formar", a primeira em música e piano, pelo trampolineiro Instituto Nacional de Música; e a segunda, pela indigesta Escola Normal desta Capital. Escusado é dizer que ambas tinham um grande desprezo pelo irmão, não só pela baixeza de sua conduta moral - o que era merecido - mas, também, pela sua ignorância cavalar e absoluta falta de maneiras e modos educados. Em começo, o pai consentia, apesar de tudo, que Cassi, o ínclito Cassi, tomasse parte na mesa familiar. Ninguém lhe dirigia a palavra, a não ser a mãe. As moças conversavam com o pai ou com a mãe, ou entre si; e, se ele se animava a dizer qualquer coisa, o velho Manuel olhava-o severamente e as filhas calavam-se. Houve um acontecimento doloroso, provocado pela perversidade de Cassi, que fez o pai tomar a deliberação extrema de expulsá-lo de casa e da mesa doméstica. Não foi expulso de todo, devido à intervenção de Dona Salustiana; mas o foi em meio. Entre as relações de suas irmãs, havia uma moça muito pobre, que morava na redondeza. Sua mãe era viúva de um capitão do Exército, e ela, a Nair, era filha única. Com auxílio de alguns parentes, a viúva ia encaminhando a filha, nos estudos próprios de seu sexo. Ela tinha tendência para música e procurou aproximar-se de Catarina, para explicar-lhe a matéria. Contava dezoito anos, muito risonha, de um amorenado sombrio, cabelos muito negros, pequenina e viva, com os seus olhinhos irrequietos e luminosos. Cassi a viu e logo a teve como boa presa, apesar de não ser totalmente sem apoio. Quis entabular namoro, na própria casa do pai, quando Nair vinha receber lições da irmã dele. Esta, porém, percebendo a manobra, proibiu-lhe, sob ameaça de contar ao pai, que ele viesse à sala, quando estivesse dando lição a Nair. O nome do pai apavorava Cassi, não que o estimasse e, por isso, o respeitasse deveras; mas porque "o velho", severo como era, bem podia pô-lo de vez na rua.

Deu-lhe o jornal, apontando o local do suicídio.

  • Mas que culpa tem... Não acabou a frase, Dona Salustiana; o marido logo a interrompeu:
  • Culpa! Esse biltre sem senso moral algum; esse assassino, esse desgraçado que leva a corromper todas as moças e senhoras que lhe passam debaixo dos olhos, não o quero mais aqui, não o quero mais na minha mesa. Diga-lhe isto, Salustiana; diga-lhe isto, enquanto não o mato. As filhas tinham chegado e adivinharam a causa daquela explosão de ódio e raiva, coisa rara no pai. Procuraram acalmá-lo:
  • Sossegue, papai; sossegue. Catarina, que passara os olhos pelo jornal, muito sofreu com a desonra de Nair. Lamentou sinceramente o trágico desfecho da mãe da sua discípula gratuita; e assim falou ao pai:
  • Olhe, papai; eu me sinto em alguma coisa culpada, porque trouxe Nair para aqui, a fim de estudar música comigo. Depois de uma pausa acrescentou:
  • Que se há de fazer? É a fatalidade.
  • Não o quero mais aqui - repetiu o chefe da família. Os jornais não se deixaram ficar na simples notícia do suicídio. Revolveram a vida de Cassi; contaram-lhe as proezas; e ele, a conselho de sua mãe, foi passar uns tempos na casa do tio, o doutor, que tinha uma fazendola em Guaratiba. Pela narração dos quotidianos, pôde-se organizar toda a rede de insídias, de cavilosas mentiras, de falsas promessas, com que ele tinha cercado a pobre e ingênua vítima, cuja desonra determinou o suicídio da mãe. Ele, como de hábito, não falava de seus namoros a ninguém, muito menos a seu pai e a sua mãe; entretanto, para ganhar a confiança da pobre menina, dizia na carta que dissera à mãe que muito a amava ou textualmente: "confessei a mamãe que lhe amava loucamente" e avisava-lhe: "privino-lhe que não ligues ao que lhe disserem, por isso pesso-te que preze bem o meu sofrimento"; e, assim nessa ortografia e nessa sintaxe, acabava: "Pense bem e veja se estás resolvida a fazer o que diçestes na tua cartinha", etc. Confessava-se um infeliz "que tanto lhe adora" e lamentava não ser correspondido. Em outra, mostrava-se interessado pela saúde de Nair; e, depois de dar instruções como devia deixar a janela para que ele a pulasse, contava: "tão de pressa soube que estavas de cama fui ao doutor R. S. saber o que você tinha, ele disse-me que você tinha feito a loucura de molhar os peis na água fria" etc., etc. Nessa altura, entrava em detalhes secretos da vida feminina e aduzia: "foi uma grande tristeza em saber que o doutor R. S. sabe de teus particulares moral" (sic). No fim da missiva, ou quase, dizia: "enfim que eu devo fazer ‘se você não quer ser inteiramente minha’ como eu sou teu." Não se demorou muito na casa do tio. O doutor, orgulho de sua irmã Salustiana e protetor sempre por ela posto em foco para as despudoradas aventuras do sobrinho, desconfiando que este tramava uma das suas, nos arredores do seu sítio, sem mais detença, embarcou-o para a casa da irmã, mãe de Cassi, dizendo-lhe que ficasse com o filho, porque sobrinho como aquele, ele, doutor Baeta Picanço, desejava nunca tê-lo em casa. Não foi logo diretamente para a casa paterna, que era numa das primeiras estações de quem vem da Central. Ficou pelo Engenho de Dentro, de onde mandou, por Ataliba do Timbó, um bilhete à mãe, pedindo instruções. A mãe respondeu-lhe que viesse para casa; mas evitasse, por todos os meios, encontrar-se com o pai. Tinha ela arranjado as coisas, e ele teria sempre onde comer e dormir. Foi-lhe reservado o porão, na parte dos fundos, e a chácara, como recreio, onde raramente o pai ia. Jantava, almoçava e tomava café, no compartimento do porão onde morava. Logo na primeira manhã que despertou no seu humilhante aposento familiar, pensou logo em ir ver as suas gaiolas de galos de briga - o bicho mais hediondo, mais antipático, mais repugnantemente feroz que é dado a olhos humanos ver. Estavam em ordem; sua mãe cuidara deles, como lhe pedira. Galos de briga eram a força de suas indústrias e do seu comércio equívocos. Às vezes, ganhava bom dinheiro nas apostas de rinhadeiro, o que vinha ressarcir os prejuízos que, porventura,

anteriormente houvesse tido nos dados; e, assim, conseguia meios para saldar o alfaiate ou comprar sapatos catitas e gravatas vistosas. Com os galos, fazia todas as operações possíveis, a fim de ganhar dinheiro; barganhava-os, com "volta", vendia-os, chocava as galinhas, para venda dos frangos a criar e educar, presenteava pessoas importantes, das quais supusesse, algum dia, precisar do auxílio e préstimos delas, contra a polícia e a justiça. Incapaz de um trabalho continuado, causava pasmo vê-lo cuidar todas as manhãs daqueles horripilantes galináceos, das ninhadas, às quais dava milho moído, triguilho, examinando os pintainhos, um por um, a ver se tinham bouba ou gosma. Fosse se deitar a que hora fosse, pela manhã lá estava ele atrapalhado com os galos malaios e a sua descendência de frangos e pintos. Nunca suportara um emprego, e a deficiência de sua instrução impedia-o que obtivesse um de acordo com as pretensões de muita coisa que herdara da mãe; além disso, devido à sua educação solta, era incapaz para o trabalho assíduo, seguido, incapacidade que, agora, roçava pela moléstia. A mórbida ternura da mãe por ele, a que não eram estranhas as suas vaidades pessoais, junto à indiferença desdenhosa do pai, com o tempo, fizeram de Cassi o tipo mais completo de vagabundo doméstico que se pode imaginar. É um tipo bem brasileiro. Se já era egoísta, triplicou de egoísmo. Na vida, ele só via o seu prazer, se esse prazer era o mais imediato possível. Nenhuma consideração de amizade, de respeito pela dor dos outros, pela desgraça dos semelhantes, de ditame moral o detinha, quando procurava uma satisfação qualquer. Só se detinha diante da força, da decisão de um revólver empunhado com decisão. Então, sim... Algumas boas lhe aconteceram. Tinha ele notado que uma moçoila com livros e attirail de normalista, na viagem de trem, o olhava muito. Marcou-lhe a fisionomia e, ao dia seguinte, à mesma hora, pôs-se, na estação, à espera dela; não veio. Esperou outro trem, não veio. Assim, esperou diversos. No outro dia, após esse, foi mais feliz; ela veio. Procurou lugar conveniente e pôs-se a fazer trejeitos. A moça não lhe deu importância. Durante dias, insistiu. Um belo dia, ele vai muito calmo, à cata da ingrata, quando ela apareceu acompanhada de um rapaz, que, pela intimidade com que a tratava e pela idade que revelava à primeira vista, parecia ser irmão ou marido da moça. Habituado a lidar com parentes dessa natureza, mas fracos, não se intimidou. Os dois no banco, ao lado dele, seguem viagem, palestrando calmamente. Cassi os olha insistentemente. Chegam à Central, e o rapaz despede-se da moça, que segue para a sua escola. Volta- se o cavalheiro e procura com o olhar o Senhor Cassi.

  • É o senhor? Cassi Jones responde:
  • Sou eu.
  • Desejava muito falar-lhe. Vamos à confeitaria; é coisa particular, e nós lá estaremos à vontade tomando um vermouth. Cassi fica com a pulga atrás da orelha e acompanha o desconhecido, que, com ar risonho e caminhando, vai dizendo:
  • O senhor talvez não me conheça. Porém eu, meu caro senhor, o conheço muito bem. Nos subúrbios, todos conhecem as suas habilidades, Senhor Cassi Jones; e, embora esteja lá morando há pouco, já tive notícias do seu valimento. Cassi assustava-se com a calma do rapaz e pôs-se a medir-lhe os músculos. Não trouxera a navalha, porque tinha medo de ser preso, por causa do negócio da Nair e do suicídio da mãe dela; e armado... Mediu a musculatura do desconhecido. Era antes fraco do que forte, mas parecia disposto. Chegaram à confeitaria e sentaram-se. O caixeiro serviu vermouth; e, quando iam em meio, o outro disse ex-abrupto para Cassi:
  • O senhor sabe quem é aquela moça que vinha a meu lado? Colhido de surpresa, não pôde tergiversar e disse prontamente:
  • Não sei absolutamente.
  • É minha irmã - afirmou o desconhecido.
  • Também não sabia - respondeu docilmente o terrível Cassi.

O Franco Sousa, este, era um malandro mais apurado, que, uma vez ou outra, aderia ao grupo de Cassi. Intitulava-se advogado e vivia de embrulhar os crédulos clientes que lhe caíam nas mãos. Todos sabiam que ele não tratava de coisa alguma, pois não podia absolutamente tratar, já por não saber coisa alguma das tricas forenses, já por não ser, de verdade, advogado. Assim mesmo, sempre apareciam ingênuos roceiros, simplórias viúvas, que, no pressuposto de que os seus serviços, na justiça, sobre a demarcação de terras litigiosas ou despejos de inquilinos relapsos, fossem mais baratos, procuravam-no. Ele recebia os adiantamentos e, em seguida, mais algum dinheiro, conforme a ingenuidade e a falta de experiência do cliente, e não fazia nada. Entretanto, vivia muito decentemente com a mulher, filhos e filhas. Cassi não lhe pisava em casa, e, aos poucos, foi se afastando do violeiro, a conselho da mulher, que zelava extremamente pela reputação das filhas, que se faziam moças. O último dos asseclas do modinheiro era um tal Arnaldo, Arnaldo tout court. Nele, talvez houvesse tipo mais nojento do que mesmo em Cassi. A sua profissão consistia em furtar, no trem, chapéus-de-sol, bengalas, embrulhos dos passageiros que estivessem a dormitar ou distraídos. De tarde, ele fazia a especialidade dos embrulhos; e, à noite, às vezes, a altas horas, postava-se na beira da plataforma de estação pouco freqüentada e, quando o trem tomava movimento e impulso, arrebatava rapidamente os chapéus dos passageiros, através da portinhola, principalmente se de palha e novos. Vendia-os, no dia seguinte, como vendia os chapéus-de-sol, as bengalas e o conteúdo dos embrulhos, se fosse de coisa vendável; roupas de lã ou branca, livros, louça, talheres, etc. Se fossem, porém, doces, frutas, queijos, biscoitos, grãos, ele levava para a casa e contava à mulher que só arranjara dinheiro para comprar aquelas guloseimas para as crianças. Usava dos mais imprevistos estratagemas, para não pagar a casa de sua moradia. Numa, tendo ficado a dever oito meses, apresentando-se-lhe o cobrador com os recibos, pediu-os para examiná-los e ficou com eles, alegando que ia consultar pessoa competente em matéria de selo, porquanto as estampilhas não lhe pareciam legais. Nunca mais os devolveu; e, apesar de todas as ameaças, ainda ficou morando na casa quatro meses. Os seus vizinhos contavam que ele tinha também o hábito de arrebatar as notas do Tesouro das mãos das crianças, quando as encontrava sós também a caminho das vendas, onde iam fazer compras para as casas paternas, levando-as à mostra, na imprevidência natural de crianças. Inútil é repetir que Cassi não tinha nenhuma espécie de amizade por esses rapazes, não pela baixeza de caráter e de moral deles, no que ele sobrelevava a todos; mas pela razão muito simples de que a sua natureza moral e sentimental era sáfara e estéril. A seus pais e às suas irmãs, não o prendia nenhuma dose de afeição, por mais pequena que fosse. Mesmo com sua mãe, que o tinha retirado muitas vezes dos xadrezes policiais, em vésperas de seguir para a detenção, ele só tinha manifestações de ternura, quando estava às voltas com a polícia ou com os juízes. O seu fundo e os seus princípios explicavam de algum modo essa sua aridez moral e sentimental. A sua educação e instrução foram deveras descuradas. Primeiro nascido do casal, quando as exigências da manutenção da família obrigavam seu pai a trabalhar dia e noite, não pôde este, pois poucas horas passava em casa, vigiá-las convenientemente. Rebelde, desde tenra idade, a doçura para com ele, por parte de sua mãe, e os prejuízos dela impediram-na que o corrigisse convenientemente, assiduamente, no tempo próprio. Não ia ao colégio; fazia "gazeta", correndo pelas matas das cercanias da residência dos pais, então em Itapiru, com outros garotos. O que faziam, pode-se bem adivinhar; mas a mãe fingia não perceber, passava a mão pela cabeça do filho querido, nada dizia ao pai, que quase mourejava durante as vinte e quatro horas do dia. Cresceu assim, sem nenhuma força moral que o comprimisse; e o pai seria a única. Ao melhorarem as suas condições financeiras, com uma promoção a propósito e a compra daquela casa, na estação do Rocha, com o produto de uma herança que tocara à mulher, Manuel de Azevedo veio encontrar, aos treze anos, o filho completamente viciado, fumando às escâncaras, mal lendo, aos gaguejos, e escrevendo ainda muito pior. Pô-lo nos "Salesianos" de Niterói. As informações semanais eram péssimas; e, ao fim de três ou quatro meses de colégio, não sabemos

que torpeza cometeu no colégio que, uma bela tarde, acompanhado de um padre magro, com uma cortante figura angulosa de asceta, veio a ser entregue Cassi ao pai, em casa. Falou-lhe o reverendo em particular, e Manuel de Azevedo, quase chorando, despediu-se do reverendo, que insistia nas desculpas, e respondendo deste único feitio ao eclesiástico:

  • Os senhores têm razão, muita razão. Eu é que me sinto infeliz por ter um filho bastante mau e vicioso com tão pouca idade. Que castigo, meu Deus! A mulher quis saber o motivo da expulsão, mas a dignidade e a vergonha de pai fizeram que nem mesmo à sua mulher ele o dissesse. Propôs, dias depois, à sua esposa, que pusesse o rapazola a aprender um ofício, a fim de discipliná-lo. Dona Salustiana revoltou-se e esbravejou:
  • Meu filho aprender um ofício, ser operário! Qual! Ele é sobrinho de um doutor e neto de um homem que prestou muitos serviços ao país. Sempre lembrado dos seus duros começos em que ela muito o ajudara e o animara, Manuel tinha, pela mulher, uma grande e sincera afeição, evitando o quanto possível contrariá-la, e, por isso, não teimou dessa feita. Meses depois, porém, logo que chegou em casa, a mulher e as filhas, chorando, pedem que vá soltar Cassi, que estava preso em uma delegacia. O menino já roçava pelos dezesseis anos e mostrava-se assim precoce na carreira de falcatruas. Havia sido preso, pelo respectivo vigia, no interior de uma casa vazia, quando procurava arrancar encanamentos de chumbo para vender. O pai, então, voltou à idéia de pô-lo em uma oficina, a ver se o trabalho manual, já pelo cansaço, já pela convivência com pessoas honestas e de trabalho, desviava-o do mau caminho que ele estava iniciando. A mãe acedeu com grande repugnância, e ele foi ser aprendiz de tipógrafo. No fim de um mês, porém, era despedido, porque, tendo ido receber uma conta de cartões de visitas, uns cinco mil-réis ou pouco mais do que isso, voltara sem dinheiro, dizendo que o tinha perdido. Revistado convenientemente, foi-lhe o dinheiro encontrado quase intacto entre a botina e a meia. A fascinação pelo dinheiro e sua absorção nele eram o seu fraco. Queria-o; mas sem trabalho e para ele só. As menores dívidas que fazia, não pagava; não oferecia nada a ninguém. Houve quem o conhecendo e sabendo dessa sua sovinice doentia explicasse os seus desvirginamentos seguidos e as suas constantes seduções a raparigas casadas, como sendo a resultante da aridez de dinheiro, que o encaminhava a amores gratuitos; e de uma atividade sexual levada ao extremo, que a sua estupidez explicava. Seja devido a esta ou aquela causa, a este ou aquele motivo, o certo é que nele não havia nevrose ou qualquer psicopatia que fosse. Não cedia a impulsos de doença; fazia tudo muito calculadamente e com todo o vagar. Muito estúpido para tudo o mais, entretanto, ele traçava os planos de sedução e desonra com a habilidade consumada dos scrocs de outras naturezas. Tudo ele delineava lucidamente e previamente removia os obstáculos que antevia. Escolhia bem a vítima, simulava amor, escrevia detestavelmente cartas langorosas, fingia sofrer, empregava, enfim, todo o arsenal do amor antigo, que impressiona tanto a fraqueza de coração das pobres moças daquelas paragens, nas quais a pobreza, a estreiteza de inteligência e a reduzida instrução concentram a esperança de felicidade num Amor, num grande e eterno Amor, na Paixão correspondida. Sem ser psicólogo nem coisa parecida, inconscientemente, Cassi Jones sabia aproveitar o terreno propício desse mórbido estado d'alma de suas vítimas, para consumar os seus horripilantes e covardes crimes; e, quase sempre, o violão e a modinha eram seus cúmplices... III

Marramaque, apesar de sua instrução defeituosa, senão rudimentar, tinha vivido em roda de pessoas de instrução desenvolvida e educação, e convivido em todas as camadas. Era de uma cidadezinha do Estado do Rio, nas proximidades da Corte, como se dizia então. Feito os seus estudos primários, os pais empregaram-no num armazém da cidade. Estávamos em plena

  • E mais esta! Então tu pensas que eu mesmo não sabia despir-me e meter-me à cama? Que lês?
  • Primaveras, de Casimiro de Abreu. O caixeiro-viajante acabou de vestir-se e deitou-se. Depois de cobrir- se, perguntou a Marramaque:
  • Tu gostas de versos, rapaz? Hesitou em responder, mas Mendonça fez rispidamente:
  • Dize lá, rapaz; porque nisto não vai crime algum. Está a ver-se, rapaz! Dize!
  • Gosto, sim senhor - fez o caixeiro timidamente.
  • Pois deves ir para o Rio - acudiu Mendonça com pressa - estudar e... quem sabe lá?
  • Se eu arranjasse um emprego na Corte... Mendonça pensou um pouco e disse:
  • Na casa, não te serve. Há muito serviço e tu não te acostumas... És aprendiz de poeta, tens inclinação para essas coisas de versos e te aborrecias. O que te serve, era trabalhar numa farmácia. Fala a teu pai que eu te arranjo a coisa. Escrevo-te logo que chegar ao Rio. Mendonça cumpriu a palavra, e o pai consentiu que ele viesse para o Rio. Marramaque foi trabalhar numa farmácia; e, à noite, ia completando a sua instrução, conforme podia, nas instituições filantrópicas de instrução que existiam no tempo. Logo, tratou de fazer versos; e, certa vez, foi surpreendido por um dos habitués da farmácia, compondo uma poesia. As farmácias, naquele tempo, eram o lugar de encontro de pessoas graves e sisudas da vizinhança, que, à tarde, após o jantar, iam a elas espairecer e conversar. Quem surpreendeu o jovem Marramaque, fazendo versos, foi o Senhor José Brito Condeixa, segundo oficial da Secretaria de Estrangeiros, poeta também, mas, de uns tempos para cá, somente festivo e comemorativo. Além de publicar, nos dias de gala, sonetos e outras espécies de poesias alusivas à festa, não se esquecia nunca de comemorar as datas domésticas da família imperial, em versos de um lavor chinês. Esperava o hábito da Rosa; mas, só veio a ter no fim do Império, quando retirou da Imprensa Nacional o terceiro volume da Sinópsis da Legislação Nacional, na parte que se refere ao Ministério de Estrangeiros. Lendo os versos do adolescente, Brito Condeixa gostou e jurou que havia de proteger o caixeirozinho. Falou ao patrão, e ele foi se empregar numa papelaria-livraria, na Rua da Quitanda. Freqüentada por poetas e literatos que ensaiavam os primeiros passos, nos últimos quinze anos do Império, com eles se relacionou e sempre era escolhido para secretário, gerente, tesoureiro, de suas efêmeras publicações. Deixou o emprego da papelaria, sem zanga; e atirou-se às refregas e às decepções da pequena imprensa, com ardor e entusiasmo, sangue republicano e abolicionista, sobretudo abolicionista. Esse jornalismo contrário e efêmero pouco ou quase nada lhe dava para a sua manutenção. Vivia uma vida de privações e necessidades prementes. Sem deixar os companheiros poetas, escritores, parodistas, artistas, ele se improvisou guarda-livros ambulante, fazendo escritas aqui e ali, com o que ganhava para ter casa, comida, roupa e até, às vezes, socorrer os camaradas. Manteve-se sempre absolutamente solteiro. Guardava, da sua vida de acólito da boêmia literária, recordações muito vivas, que gostava de contar, ensopando-as de comovida saudade. Anedotas deste, casos com aquele, expedientes daquele outro, ele narrava com chiste e firmeza de lembrança; mas, ao que parece, a figura de seu tempo que mais o impressionou foi a de um pequeno poeta, que nunca teve seu quarto de hora de celebridade e hoje está totalmente esquecido. A respeito dele, Marramaque se referia com o sentimento profundo de quem se lembra de um irmão muito amado:
  • Ah! O Aquiles! Que alma! Que poeta! O senhor - dirigindo ao interlocutor ocasional - não o conheceu?
  • Não; não me recordo.
  • Nem de nome? Ele deixou obras. O outro com quem conversava, por delicadeza, respondia:
  • De nome, pois não, pois não!
  • Que alma era esse Aquiles Varejão! Morreu há pouco tempo, em 94 ou 95; e, se não me falha a memória, na Santa Casa. Morreu na maior miséria; entretanto, tudo o que ganhava - ele era tipógrafo - estava sempre disposto a distribuir com os amigos. Não pude ir vê-lo... Tinha tido o primeiro ataque e estava em tratamento. Lembro-me, porém, do seu último soneto que a Gazeta publicou. Que lindeza! Aquilo era um poeta que não forçava, nem tinha compasso e régua. Ouça só! E, com uma voz difícil, devido à semiparalisia da parte esquerda da boca, esbugalhando os olhos, devido ao esforço para pronunciar bem as palavras, recitava:

Prostrado nesta enxerga, sinto a vida Ir, pouco e pouco, procurando o nada; Pra mim não há mais sol de madrugada, Mas sim tremor da luz amortecida.

Prazeres onde estais? Longa avenida De amores, que trilhei nesta jornada? Tudo acabou. É justa esta pousada, Antes que dobre o sino da partida.

Feliz quem tem família! Tem carinho De mãe, de esposa, e, em derredor do leito, Não sofre o horror de achar-se tão sozinho.

Porém ao meu destino estou sujeito; Devo, batendo as asas, sem ter ninho, Buscar, quem sabe? um mundo mais perfeito?

O Marramaque, quase sempre, acabava de recitar os versos do amigo com os olhos úmidos; e o ouvinte, não só pela dor demonstrada pelo declamador, mas também pelo tom elegíaco do soneto, comovia-se também e, antes de qualquer pergunta, comentava:

  • É bonito! É mesmo lindo. Marramaque, poeta raté, tinha uma grande virtude, como tal: não denegrir os companheiros que subiram nem os que ganharam celebridade. A todos gabava, sem que, por isso, não lhes notasse as falhas de caráter. Tendo vivido assim, em vários e diferentes meios, ganhando experiência e conhecimento dos homens e das coisas da vida, estava apto para julgar bem quem era Cassi Jones. Demais, devido à sua convivência com literatos, poetas e escritores, adquirira o hábito tirânico de ler diariamente todos os jornais que apanhava na repartição, e não fazia lá outra coisa, devido a seu estado de saúde. De quando em quando, ele encontrava notícias mais que escabrosas, às vezes sangrentas mesmo, em que estava envolvido o nome do famigerado violeiro. De umas delas, ele se lembrava perfeitamente, porque lhe havia causado, na sua alma retardada de idealista e sonhador, de poeta que quis ser amoroso e cavalheiresco, a maior revolta e um movimento de nojo irreprimível. Joaquim dos Anjos não estava a par dela, pois não tinha hábito de ler jornais e pouco tagarelava com as pessoas de suas bandas suburbanas. Marramaque apoiou-se em contador e por alto. Num dos subúrbios, na proximidade da casa de Cassi, veio a residir um casal. A mulher era moça, fruída de carnes, alta, louçã, grandes olhos negros, um tipo do Sul, ao que parece do Rio Grande. O marido, que era oficial de Marinha, maquinista, era amorenado, tirando a mulato, baixo, sempre triste, curvado e pensativo. Apesar da diferença de gênios, que se percebia, e de idade, que

as suas virtudes de mulher. A priori, estão condenadas; e tudo e todos pareciam condenar os seus esforços e os dos seus para elevar a sua condição moral e social. Se assim acontecia com as honestas, como não pensaria sobre o mesmo tema um malandro, um valdevinos, um inconsciente, um vagabundo cínico, como ele sabia ser o tal Cassi? Durante o jantar, ainda se falou muito a respeito, mas com as reservas que a assistência de uma moça pedia fossem tomadas.

  • Vamos experimentar, meu caro Marramaque. "Ele" sabe com quem se mete...
  • Eu cá, por mim, nada tenho a dizer dele. Sempre me tratou muito bem e sou-lhe grato.
  • É que você, Lafões, não lê os jornais.
  • Qual jornais! Qual nada! Tudo que lá vem neles é mentira. Clara ouvia esse diálogo com muita atenção e forte curiosidade. Num dado momento, não se conteve e perguntou:
  • O que é que esse Cassi faz, padrinho? A mãe acudiu ríspida, dizendo:
  • Não é de tua conta, bisbilhoteira! A única filha do carteiro, Clara, fora criada com o recato e os mimos que, na sua condição, talvez lhe fossem prejudiciais. Puxava a ambos os pais. O carteiro era pardo-claro, mas com cabelo ruim, como se diz; a mulher, porém, apesar de mais escura, tinha o cabelo liso. Na tez, a filha tirava ao pai; e no cabelo, à mãe. Joaquim era alto, bem alto, acima da média, ombros quadrados e rija musculatura; a mãe, não sendo muito baixa, escapava à média da altura de nossas mulheres em geral. Tinha ela uma fisionomia medida, de traços breves, mas regular; o que não acontecia com o marido, que era possuidor de um grosso nariz, quase chato, e malares salientes. A filha, a Clara, havia ficado em tudo entre os dois; média deles, dos seus pais, era bem exatamente a filha de ambos. Habituada às musicatas do pai e dos amigos, crescera cheia de vapores de modinhas e enfumaçara a sua pequena alma de rapariga pobre e de cor com os dengues e o simplório sentimentalismo amoroso dos descantes e cantarolas populares. Raramente saía, a não ser para ir bem perto, à casa de Dona Margarida, aprender a bordar e a costurar, ou com esta ir ao cinema e a compras de fazendas e calçado. A casa dessa senhora ficava a quatro passos de distância da do carteiro. Apesar de ser uso, nos subúrbios, irem as senhoras e moças às vendas fazer compras, Dona Engrácia, sua mãe, nunca consentiu que ela o fizesse, embora de sua casa se avistasse tudo o que se passava, no armazém do "Seu" Nascimento, fornecedor da família. Essa clausura mais alanceava sua alma para sonhos vagos, cuja expansão ela encontrava nas modinhas e em certas poesias populares. Com esse estado de espírito, o seu anseio era que o pai consentisse na visita do famoso violeiro, cuja má fama ela não conhecia nem suspeitava, devido ao cerco desvelado que a mãe lhe punha à vida; entretanto, supunha que ele tirava do violão sons mágicos e cantava coisas celestiais. Joaquim dos Anjos, afinal, tendo o assentimento da mulher e também curioso de conhecer as habilidades de Cassi, no violão e na trova popular, consentiu que Lafões o trouxesse em sua casa, no dia do aniversário de Clara. Viria aquela vez e não viria mais... Lafões acolheu a resposta com viva alegria e tratou de entender-se com o tocador mal- afamado. Fez. Quando os seus companheiros de vagabundagem souberam, comentaram cinicamente o convite:
  • Conheço bem esse carteiro. Ele não trabalha aqui; mas na cidade, na zona dos bancos. Deve ter dinheiro. Tem um pancadão de filha, meu Deus! Que torrão de açúcar!
  • Então estás feito, hein, Cassi? - fez alvarmente Zezé Mateus, àquela tendenciosa observação de Ataliba do Timbó. Cassi, o mestre suburbano do violão, o dedo da modinha, fingiu-se aborrecido e retrucou com fingido desgosto:
  • Vocês mesmo é que me desacreditam. Dizem coisas que não fiz e não faço, e todo mundo me enche de desprezo, senão de ódio. Não sou essas coisas que dizem de mim. Timbó teve vontade de rir à vontade, mas, embora mais forte do que Cassi, tinha este sobre ele um ascendente moral que não se explicava. Zezé Mateus, porém, com o seu peculiar meio-riso de imbecil, fez:
  • Estou brincando, meu "nego". Sou teu amigo - tu sabes. Eles conversavam sempre de pé, parados pelas esquinas. Raramente, sentavam-se a uma mesa de café. Aquela intempestiva observação do Ataliba, seguida do comentário de Zezé Mateus, arrefecera a palestra da sociedade. Despediram-se, e cada um foi para o seu lado. Cassi, que fingira aborrecer-se com a tendenciosa notícia de Timbó e o comentário de Zezé, ficou, ao contrário, muito contente com ela. Tinha resolvido não ir à tal festa; mas, pelo que informara Ataliba, talvez não tivesse nada a perder. Experimentaria. Mordeu os lábios e seguiu para o clube, com a consciência leve e o coração alegre... IV

Veio o dia da festa; a pequena casa regurgitava; e - coisa curiosa - havia mais convidados de idade meã que moças e rapazes. Isto se explicava pela estreiteza de relações de Clara e dos seus pais, devido à vida que levavam. Entre as moças, havia duas ou três colegas de Clara, a filha de Lafões, uma sobrinha solteirona, Hermengarda, de Dona Engrácia, e poucas mais. Entre os rapazes, havia dois jovens colegas de Joaquim, Sabino e Honório; um irmão de Hermengarda e um afilhado de Lafões, que era vigia do cais do porto. Em compensação, as senhoras, mães de família, eram inúmeras. Destacava-se muito Dona Margarida Weber Pestana, pelo seu ar varonil, tendo sempre ao lado o filho único, de quatorze anos, fardado com uma fardeta de colegial. Tinha, essa senhora, um temperamento de heroína doméstica. Viera muito cedo para o Brasil, com o pai, que era alemão; ela, porém, havia nascido em Riga, russa portanto, como sua mãe o era. Antes dos dezesseis anos, ficara órfã de mãe. Seu pai emigrara para o Brasil, contratado a trabalhar no acabamento das obras da Candelária. Era estucador, marmorista, um pouco escultor; enfim, um operário fino, para essas obras especiais de revestimento e decoração interna de edifícios suntuosos. Bem cedo, mostrou ela inclinação por um tipógrafo que comia na "pensão" que havia montado, na Rua da Alfândega, e dirigia ativamente. Casaram-se, e ele morreu dois anos depois, após o casamento, de tuberculose pulmonar, deixando-lhe o filho, o Ezequiel, que não a largava. Ano e meio depois, morreu-lhe o pai, de febre amarela. Continuou com a "pensão"; mas bem cedo vendeu-a e comprou uma casita nos subúrbios, aquela em que morava, quase junto de Joaquim. Costurava para fora, bordava, criava galinhas, patos e perus, e mantinha-se serenamente honesta. O Senhor Ataliba do Timbó deu em certa ocasião em persegui-la com ditinhos de amor chulo. Certo dia, ela não teve dúvidas: meteu-lhe o guarda-chuva com vigor. À noite, no intuito de defender as suas galinhas da sanha dos ladrões, de quando em quando, abria um postigo, que abrira na janela da cozinha, e fazia fogo de revólver. Era respeitada pela sua coragem, pela sua bondade e pelo rigor de sua viuvez. O Ezequiel, seu filho, puxara muito ao pai, Florêncio Pestana, que era mulato, mas tinha os olhos glaucos, translúcidos, de sua mãe meio eslava, meio alemã, olhos tão estranhos - olhos tão estranhos a nós e, sobretudo, ao sangue dominante no pequeno. Afora Dona Margarida Pestana, notava-se Dona Laurentina Jácome, uma velha, sempre metida com rezas e padres, pensionista do ex-Imperador e empregada numa capelinha da vizinhança, de cuja limpeza era encarregada, inclusive da lavagem das toalhas dos altares. Não podia conversar outra coisa que não fossem acontecimentos eclesiásticos e, quase sempre, os de sua igreja:

  • A senhora não sabe, Dona Engrácia, de uma coisa?
  • O que é?
    • O Padre Santos, este mês, disse mais de vinte missas e só recebeu cinco. Pobre Padre Santos! É mesmo um santo!