Baixe Circulação de Livros e Revolução em Pernambuco: Mercado, Contrabando e Leitura e outras Notas de aula em PDF para Cultura, somente na Docsity! Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em História Breno Gontijo Andrade A Guerra das Palavras: cultura oral e escrita na Revolução de 1817 Belo Horizonte 2012 Breno Gontijo Andrade A Guerra das Palavras: cultura oral e escrita na Revolução de 1817 Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filo- sofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Linha de pesquisa História e Culturas Políticas Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos Villalta Belo Horizonte 2012 Agradecimentos Agradeço à minha mãe pelos incentivos à minha educação desde a mais tenra idade. Ao meu pai (in memoriam) que enquanto vivo também estimulou de todas as formas os meus primeiros estudos. À Christiane, minha florinha branca do pé da serra, por suportar meu envolvimento com amante menos doce, ladra de minhas noites, sorvedoura de minhas energias físicas e mentais: Clio. Agradeço também aos professores que contribuíram para minha formação como histori- ador e que, de alguma forma, marcaram minha vida acadêmica, Douglas Cole Libby, José An- tônio Dabdab Trabulsi, José Carlos Reis, José Newton Coelho Meneses, Luiz Duarte Haele Arnaut e Regina Horta Duarte. Sou grato também à professora da UFPB, Serioja Rodrigues Cordeiro Mariano, que apesar de não me conhecer pessoalmente ajudou-me de várias formas: indicou livros, fontes, mapas, e respondeu às minhas indagações sobre 1817. Além disso, aceitou debater o meu tex- to de qualificação junto com a professora Regina Horta Duarte. Minha gratidão também se estende ao professor George Felix Cabral de Souza por abrir as portas do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP) e ao pesquisador Tácito Cordeiro Galvão por me guiar em meio à massa documental daquele acer- vo. Não posso me esquecer dos meus amigos do mestrado, principalmente de Lorena Lopes da Costa e Juliano Meira Furtado. Juntos, formamos um grupo de estudos para tentar a apro- vação na seleção do mestrado e fomos felizes. Sou grato também ao companheirismo dos meus amigos de graduação, em especial Gilmar e Edinho, distantes, mas próximos por vias virtuais. Paulo Henrique Gontijo Alves, meu primo, também colaborou com esta dissertação. Foi ele quem gentilmente digitalizou os Documentos Históricos para que eu pudesse acessar as fontes com mais agilidade. Por fim, agradeço ao meu orientador Luiz Carlos Villalta, principal responsável pela minha formação como historiador. Foi ele quem me guiou ainda muito cedo na Iniciação Ci- entífica, sendo bastante paciente com minhas imperfeições e generoso ao me ceder um pouco de seu tempo, conhecimento e até parte das fontes primárias deste trabalho. Hoje considero-o mais do que meu orientador, meu amigo. Por isso, parafraseio o agradecimento feito por Vi- cente Gomes da Silva ao seu amigo, o naturalista Manuel Arruda da Câmara, em tese de dou- toramento defendida em Montpellier no ano de 1791: Finalmente surge o dia, por muito tem- po almejado, no qual se oferece a ocasião oportuna de manifestar-te minha gratidão, defe- rência e amizade; com muito gosto aproveito-me da ocasião, não só pelos inúmeros benefí- cios recebidos, como também pelo que os teus méritos persuadem. Quero igualmente que re- cebas o perene penhor da minha gratidão, deferência e amizade pelas primeiras experiências de estudos inscritas em teu nome. Serei feliz, três vezes feliz, se conseguir ainda ver os dias nos quais teus labores serão úteis à Pátria, teus dias tão longos quanto os de Nestor e, se, en- fim, amizade que nos une permanecer até a morte. São estes os votos que, de coração grato e sincero, formula o amigo 1 Breno Gontijo Andrade. 1 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Manuel Arruda da Câmara - Obras Reunidas. Recife: Secretaria de Edu- cação e Cultura, 1982, p. 65. RESUMO: A Guerra das Palavras: cultura oral e escrita na Revolução de 1817 Esta dissertação propõe-se a investigar a cultura oral e escrita no Norte da América Portuguesa entre 1795-1817. Primeiramente, apresenta a importância da circulação das notícias e dos livros pelo Norte, abordando também como funcionava o mercado livreiro em Pernambuco, o contra- bando e a leitura. Em segundo lugar, apresenta a constituição de uma incipiente esfera pública, que acabou por unir vários homens em um projeto em comum: a busca de uma alternativa à Mo- narquia Absolutista dos Bragança. Em seguida, focaliza a Revolução Pernambucana de 1817 em seu nascimento e sua expansão, utilizando para isso a cultura oral e escrita, a estrutura da Igreja e a velocidade dos emissários. Do mesmo modo, os realistas buscaram combater os revolucionários no mesmo campo, espalhando proclamações, convencendo pela força das armas, mas também pe- la força das palavras. Por fim, são apresentadas possíveis leituras e apropriações feitas em 1817: primeiramente, das Constituições estrangeiras, na elaboração das Leis Orgânicas, espécie de pré- Constituição, que regularia a região revolucionada; em seguida, as leituras do padre João Ribeiro das obras do filósofo Condorcet e seus possíveis usos em 1817. ABSTRACT: The War of Words: oral and written culture in Revolution of 1817 The purpose of this thesis is to investigate the oral and written culture from 1795 to 1817 in the North of the Portuguese America. First, it shows the importance that the circulation of news and books had in the North region, addressing also how the book market operated in Pernambuco, as well as smuggling and reading. Secondly, it analyses the beginning of the constitution of a public sphere in which eventually several men merged in a common project: the search for an alternative to Absolutist Monarchy of Braganza. Further, it focus in the Per- nambucan Revolution of 1817, its birth and expansion, which utilized the oral and written cul- ture, the church structure, and the spread of emissaries. Similarly, realists sought to fight the revolutionaries in the same field, scattering proclamations, convincing not by the force of arms, but by force of words. Finally, we present possible readings and appropriations made in 1817; first of foreign Constitutions for creation of the Organic Law, sort of a pre-Constitution that regulated revolutionized the region; then of the readings of Father John Ribeiro of the works of the philosopher Condorcet and its possible uses in 1817. Palavras-chave Revolução Pernambucana de 1817, História do Livro e da Leitura, Cultura Oral e Escrita Key words Pernambucan Revolution of 1817, History of the Book and Reading, Writing and Oral Culture Sumário Introdução 14 Parte I – Cultura Oral e Escrita no Norte da América Portuguesa 25 Cap. 1: Livros: mercado, circulação, contrabando e leitura em Pernambuco 26 1.1 Recife: o centro que emana e irmana 27 1.2 Os emissários do Norte: senhores, padres e índios 37 1.3 Censura, fiscalização e alfândegas: barreiras transponíveis 48 1.4 Comércio legal e contrabando de impressos 57 1.5 Livros enviados para Pernambuco 77 1.6 Os “mentirosos” e os santos: a ideia geral sobre os homens que sabiam ler 96 1.7 “A mágica oficina de fazer sábios repentinos”: a cultura oral e escrita, segundo um realista 106 Cap. 2: Esfera pública e cultura oral e escrita 112 2.1 As residências particulares como instituições da esfera pública: o caso da morada dos Suassuna 115 2.2 Academias e Maçonaria 131 2.3 O Seminário de Olinda 145 2.4 Bibliotecas e espaços de sociabilidade 155 Parte II – Guerra de Palavras na Revolução de 1817 164 Cap. 3: 1817: as batalhas verbais entre revolucionários e realistas 165 3.1 Consolidação e expansão da Revolução: proclamações, emissários e leituras 166 3.2 Contrarrevolução e batalhas verbais em 1817 192 Lista de Gráficos Gráfico I – Quantidade de Títulos de Livros Enviados de Portugal para Pernambuco (1795-1807) 78 Gráfico II – Quantidade de Livros Enviados a Pernambuco por Ano (1795-1820) 80 Gráfico III – Petições de Licença para Envio de Livros para Pernambuco submetidas ao Desembargo do Paço (1795-1820) 81 Gráfico IV – Livros enviados para Pernambuco entre 1795-1820 divididos por área 89 Gráfico V – Livros de Teologia, Belas Letras e Ciências e Artes nas remessas de Portugal para Pernambuco (1795-1821) 91 Gráfico VI – Nº de Livros sobre a Arte Militar e temas correlatos enviados a Pernambuco entre 1795-1820 94 Lista de Figuras Figura I - Quantidade de artigos que tratam dos três poderes nas Leis Orgânicas 219 Figura II - Fluxograma explicativo sobre o funcionamento dos três poderes nas Leis Orgânicas 222 Figura III - Ilustração de uma planta na obra de Manuel Arruda da Câmara, possivelmente de autoria do padre João Ribeiro. 241 Figura IV - Mapa desenhado pelo Padre João Ribeiro da capitania do Rio Grande do Norte, encomendado, em 1811, pelo governador José Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, um dos Suassuna. 243 Figura V - Ilustração de insetos na obra de Manuel Arruda da Câmara, possivelmente de autoria do padre João Ribeiro. 244 Lista de Mapas Mapa I - Redes de Sociabilidades e Clientelares dos irmãos Suassuna entre 1801-1811 somente no Norte da América Portuguesa 130 Mapa II - Vila Nova e Vila de Penedo 195 15 Introdução Há alguns anos, historiadores estrangeiros e brasileiros têm se debruçado sobre um tema complexo, mas ao mesmo tempo fascinante: a História do Livro e da Leitura. Esta dissertação de mestrado alinha-se aos estudos desses historiadores, na medida em que se propõe a analisar como os livros e impressos de cunho político-filosófico, que circularam por Pernambuco entre 1795-1817, foram apropriados pelos participantes da Revolução de 1817. Antes de analisar as relações entre esta dissertação e a História do Livro e da Leitura, contudo, cabe fazer uma breve discussão sobre a pertinência do uso do termo Revolução em referência ao movimento ocorrido em Pernambuco e parte do Nordeste em 1817 e, ainda, apresentar a contribuição que esta dissertação se propõe a dar para a historiografia sobre o te- ma. Carlos Guilherme MOTA, em seu Nordeste 1817, obra de finais dos anos 60 e início dos 70, defende não ser apropriado chamar de Revolução o movimento ocorrido em 1817. Para o referido historiador, nenhuma alteração essencial foi notada no nível das relações de produ- ção: pelo contrário, a independentização relativa dos setores ligados à grande propriedade pressupunha como requisito básico a manutenção da ordem escravocrata 2 . Nos termos da compreensão marxistas em voga à época em que o citado historiador es- crevia, não era possível chamar o levante de 1817 de Revolução. Neste trabalho, porém, longe da perspectiva abraçada por Carlos Guilherme Mota, utilizarei o termo Revolução pelos se- guintes motivos: foi esta a palavra empregada pelos participantes de 1817, bem como por seus coetâneos, para designar aquele movimento que depôs Caetano Pinto Montenegro, o então governador de Pernambuco, e criou um governo avesso à Monarquia Portuguesa estabelecida no Rio de Janeiro. Utilizo os termos levante, insurreição, como sinônimos ao termo Revolu- ção, ainda que estes dois últimos fossem pouco usados naquela época. Também são utilizados nesta pesquisa outros termos que ajudam a entender a História do Livro e da Leitura como: cultura escrita e cultura oral. Entendo por cultura escrita as men- sagens que se relacionam e que se concretizam na materialidade do papel, manuscritas (cartas, missivas, correspondências) ou impressas (gazetas, livros). Por cultura oral, entendo as men- sagens orais que se relacionam e se concretizam na fala, fora da materialidade do papel. Há de se considerar, porém, que é difícil delimitar as fronteiras entre a cultura oral e a cultura escri- ta. A oralidade, muitas vezes, disseminava ideias que circulavam nos impressos, ao mesmo tempo em que estes reelaboravam, eventualmente, o que circulava no campo da oralidade. Gwyn Prins também estuda esses conceitos. Para ele, há três vertentes: a cultura oral, a cultu- ra escrita e a cultura composta. Na primeira, a linguagem assume a forma puramente oral, como por exemplo, as linguagens locais. Na segunda, a linguagem assume uma forma escrita, 2 MOTA, Carlos Guilherme. Nordeste 1817: estruturas e argumentos. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 286. 16 Introdução porque a forma oral não existe mais, como no caso das línguas clássicas. Por fim, a cultura composta seria aquela que se manifesta tanto nas formas orais, quanto nas formas escritas, pa- ra todo o povo ou uma porção dele. A cultura composta ainda se subdivide em universalmente alfabetizada e em restritamente alfabetizada, em que a maior parte das pessoas vive à mar- gem, mas sob o domínio do registro escrito 3 . Carlo Guinzburg não faz uma clara distinção de cultura oral e cultura escrita, mas trabalha com a ideia de circularidade cultural (cultura popu- lar e cultura dominante), salientando a enorme dificuldade de delimitá-las, uma vez que elas se sobrepõem, havendo, portanto, circularidade, influxo entre ambas, sobretudo para o século XVI 4 . Maria Beatriz Nizza da Silva diz que a produção literária de uma determinada socieda- de se assenta na crença de que há uma diferença essencial entre linguagem vulgar e linguagem literária. Para a autora, o discurso oral só se torna um texto escrito quando a sociedade reco- nhece nesse conhecimento uma utilidade seja por transmitir um saber, seja pelo seu valor lite- rário. Um dos problemas enfrentados pelos historiadores, porém, é o da separação entre letra- dos e iletrados. Essa partilha justifica a distinção entre língua vulgar e língua literária, mas condena a literatura popular à dimensão da oralidade. Assim, a sociedade iletrada só fala, não escreve, tornando-se silenciosa aos historiadores. Conclui o seu raciocínio dizendo que o his- toriador da cultura precisa de recorrer aos folcloristas, [e eu acrescento também os viajantes] se quiser ampliar a sua perspectiva e reconstituir as formas poéticas e narrativas que, no início do século XIX, ficaram retidas na dimensão oral 5 . Sobre a História da Revolução Pernambucana especificamente, pouco se tem escrito, apesar de ser um tema fundamental para História do Brasil. As últimas obras que se dedica- ram profundamente ao movimento e de conhecimento público são Nordeste 1817, de Carlos Guilherme Mota, escrita em 1972, portanto, há 40 anos atrás; Pernambuco 1817, de Glacyra Lazzari Leite, escrita em 1988, há 28 anos; e A Revolução de 1817 e a História do Brasil de Gonçalo de B. C. e Mello Mourão, escrita em 1996, há 16 anos. Se recuarmos ainda mais no tempo, o quadro não será dos mais animadores. Depois do lançamento desses três livros, o que se publicou foram alguns poucos trabalhos que abordavam algum aspecto da Revolução, en passant, ou algum capítulo de livro que tocava na superfície de 1817 sem se arriscar a aprofundar. Esta dissertação apresenta uma proposta de estudo menos abrangente do que as daqueles supracitados trabalhos, realizados em 1972, 1988 e 1996. No entanto, é mais ambi- 3 PRINS, Gwyn. História Oral. In: BURKE, Peter (org.). Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo: Editora Unesp, 1992, p. 169 4 GUINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008, p. 15. 5 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Cultura e Sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821). São Paulo: Editora Naci- onal, 1977, p. 170. 17 Introdução ciosa do que um capítulo de tese ou de livro, uma vez que coloca a Revolução no centro da análise. A abordagem aqui utilizada também é um diferencial, uma vez que se quer chegar aos patriotas, à independência, como diriam alguns de seus participantes, através da cultura oral e escrita, sem, contudo, abandonar os aspectos políticos e econômicos. Voltando à relação entre esta dissertação e a abordagem proposta pela História do Livro e da Leitura, deve-se destacar como o historiador Robert DARNTON, um dos mais importan- tes de seus expoentes, concebe o circuito de comunicação em que se inscreve o livro. Para o citado historiador, há um circuito extenso, que comunica o autor ao leitor, passando pelo edi- tor (ou livreiro), impressor, distribuidor, vendedor, contrabandistas etc., tendo no livro o obje- to essencial. O circuito encerra-se no leitor, que, em alguns casos, pode ser também autor 6 . Um conceito essencial na História do Livro e da Leitura é o de inventividade. Para Roger CHARTIER, se há, de um lado, os sentidos portados pelo próprio texto, de outro, o leitor tem liberdade de interpretá-lo à sua maneira. Logo, ao lado das forças que procuram impor uma leitura ortodoxa do texto (o autor, o editor, o Estado, a Igreja etc., que controlam a produção e intervêm na circulação dos livros), há a liberdade de interpretação exercida pelos leitores, a possibilidade de se fazer uma leitura inventiva do texto, à revelia da ortodoxia 7 . Correlaciona- do ao conceito de inventividade, há ainda o conceito de apropriação, que corresponde aos modos pelos quais os leitores lidam com o texto, o que compreende as formas pelas quais os leem e as maneiras como os usam e atribuem-lhe sentidos 8 . Historiadores brasileiros trouxeram importantes colaborações para a História do Livro e da Leitura, focalizando, por exemplo, aspectos como a posse, a circulação, a censura e a leitu- ra dos livros na América Portuguesa como um todo e em algumas regiões em particular. Tais historiadores, assim como os estrangeiros, depararam-se com um problema fundamental que se faz presente na análise da posse e da circulação dos livros: a classificação. Nesta pesquisa, faz-se o uso da classificação dos livros encontrada num importante estudo da historiografia brasileira sobre o livro na América portuguesa, mais precisamente num artigo de Lúcia Maria Bastos P. das Neves e Guilherme P. C. Pereira das Neves, e também no livro de Maria Beatriz Nizza da Silva Cultura e Sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821), que incorporam à análise uma classificação utilizada ao final do período colonial, em 1818, pelo Conde da Barca. Se- guindo essa classificação, os livros podem ser divididos em cinco categorias: Jurisprudência 6 DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 128. 7 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. p. 121 8 Ibidem, p. 26. 20 Introdução Em função dessas limitações, busquei socorro num último grupo de fontes: os conheci- dos Documentos Históricos, publicados em 10 volumes pela Biblioteca Nacional entre 1953- 1955 17 e que trazem a quase totalidade dos documentos relacionados à Revolução de 1817. Neles, em teoria, seriam encontradas ideias defendidas pelos participantes de 1817 e, assim, possíveis leituras, citações, ou mesmo apropriações de ideias de autores e de textos. Essas fontes também poderiam ajudar a conhecer, por vias indiretas, quem lia os escritos (legais e contrabandeados) e quais eram esses textos, já que esses participantes poderiam eventualmen- te mencioná-los. Como parte dessa documentação foi produzida pelas autoridades régias no contexto de julgamento dos revolucionários, ela deve ser utilizada, porém, com bastante cau- tela, devido à sua natureza tendenciosa (e isto não significa dizer que eu creia que seja possí- vel encontrar documentos neutros), seja pelo esforço das autoridades reais em reunir culpas, seja pela busca dos acusados em se desvencilhar do envolvimento na Revolução de 1817. Por outro lado, o quinhão de fontes produzidas pelos revolucionários, em termos quantitativos, é bem menor que os documentos produzidos pelas autoridades reais. Na verdade, os participan- tes da Revolução destruíram os documentos que provavam as suas culpas, sobretudo, quando perceberam que a Revolução caminhava para a derrota. Dessa forma, as fontes que, hipoteti- camente, revelariam as ideias defendidas pelos revolucionários e as possíveis leituras que fi- zeram não são tão abundantes, ainda que haja 10 volumes publicados de documentação. Limitado pelas possibilidades das fontes, redimensionei as respostas que buscava en- contrar. No que se refere aos possíveis textos que circularam em Pernambuco, ative-me, so- bretudo, àqueles que circularam legalmente. Porém, não perdi de vista identificar os textos contrabandeados para o Brasil, para o que me vali principalmente dos estudos de outros histo- riadores que pesquisaram sobre a circulação de livros nesse período. Para identificar quem eram as pessoas que possuíam as obras, ao invés de privilegiar os inventários post-mortem, di- recionei-me não a um número grande de leitores presumidos, mas a alguns poucos, sobre quem são encontradas informações em outras fontes, como os Documentos Históricos, os re- latos dos viajantes e as memórias de autores da época. Desse modo, se perdi em quantidade, ganhei em qualidade. Sabendo que esses leitores participaram da Revolução de 1817 e quais livros leram, ficou mais fácil recorrer aos Documentos Históricos e observar as ideias que ne- les se encontram registradas. Com isso, pude analisar como se deu a apropriação dos textos li- dos e de algumas ideias que nortearam a Revolução. Um exemplo que pode ser aventado é o padre João Ribeiro. Como ele era reconhecidamente um grande entusiasta das obras de Con- 17 DH – Documentos Históricos – A Revolução de 1817. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1953-1955. 10 vol. 21 Introdução dorcet 18 , busquei associações entre os princípios deste último e as ideias defendidas pelo pa- dre durante a Revolução. Se o objetivo central da pesquisa, suas afinidades com a História do Livro e da Leitura, seus conceitos mais fundamentais e suas fontes foram apresentadas, cabe-me, ainda, explicar o recorte espaço-temporal adotado. Quanto ao recorte espacial, ao invés de debruçar-me sobre toda a região que participou da Revolução de 1817, bastante vasta e que hoje abarca os esta- dos do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas, escolhi concentrar-me em Pernambuco, por haver mais documentos sobre a referida Capitania e, ainda, porque sua capital, Recife, foi o epicentro do levante de 1817. Além disso, a escolha de Pernambuco também se deve à sua importância no norte da América Portuguesa, à sua prosperidade, à cen- tralidade do seu porto e ao fato de Olinda ser sede de bispado. Entretanto, as regiões circunvi- zinhas também serão abordadas, ainda que com um nível de detalhamento menor. Quanto ao recorte temporal, escolhi o final do século XVIII e início do século XIX, isto é, o período que vai de 1795 a 1817, por ser um momento de bastante efervescência política em Pernambuco. Em 1801, houve a prisão de alguns irmãos da família Cavalcanti por suspeita de Inconfidên- cia. Dezesseis anos depois, ocorreu a Revolução Pernambucana. Nesse intervalo, mudanças bruscas aconteciam: a hegemonia e queda de Napoleão, a transladação da Coroa Portuguesa para o Rio de Janeiro, as independências das colônias espanholas, o apoio velado dos Estados Unidos a essas independências, a pressão da Inglaterra para o fim da escravidão etc. Esse re- corte também se confunde com o restabelecimento do sistema de censura tríplice pela Coroa Portuguesa, em 1794, e que perdurou até 1820. É também tempo suficiente para observar co- mo as ideias políticas foram sendo fermentadas em Pernambuco e, depois, utilizadas em 1817. No que diz respeito à estrutura da dissertação, foram escritas duas partes, divididas em quatro capítulos. A primeira parte, intitulada Cultura Oral e a Cultura Escrita no Norte da América Portuguesa e composta pelos dois primeiros capítulos, busca compreender a inser- ção da cultura oral e escrita no universo do Norte da América Portuguesa entre 1795 e1817. A segunda parte, composta pelos dois capítulos restantes e intitulada Guerra de Palavras na Revolução de 1817, trata como a cultura oral e a cultura escrita foram articuladas por revolu- cionários e contrarrevolucionários em 1817. No Capítulo 1, Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambu- co, abordo a circulação da cultura oral e escrita em Pernambuco e as comunicações dessa Ca- pitania tanto com Portugal quanto com as demais regiões do Norte da América Portuguesa. O 18 TOLLENARE, L. F. Notas Dominicais. Recife: Secretaria de Educação e Cultura, 1978, p. 148. 22 Introdução Recife é tomado como o cenário principal dessa narrativa, dada a sua importância para o Nor- te como centro difusor de cartas e notícias (cultura escrita e oral). Em seguida, atento para a circulação de cartas e notícias conduzida por vários emissários dentro do universo do Norte da América Portuguesa. É importante entender essa circulação, pois, no Capítulo 3, procuro de- monstrar que os revolucionários de 1817 utilizaram-se desses caminhos e desses emissários para fazer circular os produtos da cultura escrita, como as proclamações, éditos e bandos e, assim, consolidar e expandir a Revolução em uma rapidez estonteante. Ainda no Capítulo 1, trato também dos livros que desembarcaram em Pernambuco, abordando, inicialmente, as di- ficuldades que eles encontravam para chegar ao Recife. Em seguida, procuro entender os ca- minhos dos livros e, de resto, dos textos em geral: como chegavam a Pernambuco? Como era o comércio livreiro? Como se dava o contrabando? Como eram percebidos pela sociedade os homens que liam? Em suma, como a cultura escrita se inseria no universo do Norte? Ao final do Capítulo 1, demonstro como os leitores eram percebidos naquela sociedade: como os pa- dres eram vistos em sua relação com os livros, como se dava a relação dos senhores de enge- nho com a leitura de livros, como homens abastados e os homens do povo percebiam aqueles que sabiam ler, qual era o status ocupado por alguém que dominava a escrita e a leitura na- quela sociedade. É importante entender como esses leitores eram percebidos em Pernambuco, na medida em que muitos deles exerceram papéis de liderança em 1817. Mesmo os homens de camadas mais populares, ao serem reconhecidos como capazes de decifrar textos, eram apreciados ou, inversamente, por isso mesmo, vistos com desconfianças. O Capítulo 2, Instituições da esfera pública, espaços de cultura oral e escrita, está dividido em quatro partes, em que analisei a importância das instituições da esfera pública na articulação e transmissão da cultura oral e escrita para os seus partícipes. Na primeira parte, o problema é saber quem eram as pessoas que frequentavam a casa dos Suassuna em 1801 19 e o que conversavam, uma vez que esses irmãos foram presos por suspeita de inconfidência. Através desse estudo, busco identificar e quantificar os grupos de frequentadores da casa dos Suassuna e, em posse dessas informações, construo uma sociologia dos participantes em ques- tão. Em seguida, apresento um mapa de onde residiam os frequentadores da casa dos Suassu- na. Enfim, acrescento outros traços que demonstram a importância e a influência dos irmãos Suassuna no Norte, apontando seus contatos também em Portugal e mesmo com a família dos 19 Por ora, basta dizer que os irmãos Suassuna são conhecidos pela historiografia por terem participado de uma suposta conspiração contra a Coroa Portuguesa em 1801. A alcunha Suassuna se deve ao fato de eles serem os proprietários do Engenho Suassuna. Pertenciam à elite da região, eram agricultores e ocupavam postos militares de destaque. Um dos irmãos governou a capitania do Rio Grande do Norte, a ilha de São Miguel (maior ilha de Açores) e, por fim, Moçambique. Em 1817, alguns desses irmãos participaram da Revolução Pernambucana, opondo-se à monarquia portuguesa. PARTE I CULTURA ORAL E ESCRITA NO NORTE DA AMÉRICA PORTUGUESA Memorável dia de 06 de março do presente ano (dia que segundo a boa opinião se devia imprimir em caracteres de ouro) (Carta anônima escrita por um patriota) Capítulo 1 Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco Da boca fazei tinteiro, Da língua pena aparada, Dos dentes letra miúda Dos olhos carta fechada (COSTA, Francisco A. P. Folk-Lore Pernambucano) 27 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco 1.1 Recife: o centro que emana e irmana A partir de 1808, com a abertura dos portos da América Portuguesa às nações amigas de Portugal, um observador no porto principal de Pernambuco 21 , que deitasse seu olhar sobre o horizonte, veria que a circulação de navios manobrando entre os arrecifes havia aumentado. Mesmo com o aumento de embarcações a singrar por águas pernambucanas, os desembarques ainda eram aguardados com o mesmo entusiasmo de outrora, pois traziam toda sorte de novi- dades. Eram as mercadorias a se comprar, os parentes e amigos a chegar, muitas vezes, distan- tes por longo tempo, as últimas notícias de Napoleão, os insucessos do pequeno Portugal to- mado pelos franceses, as revoltas na América Espanhola, o crescimento do comércio da Amé- rica Inglesa: enfim, os desembarques representavam um contato com o além-mar. Após a compra das mercancias, os afetuosos abraços e ósculos nos entes recém-chegados, o conhe- cimento das últimas novas, aquele espírito de curiosidade, por fim, satisfazia-se, enquanto ou- tra leva de navios não despontasse trazendo novidades mais recentes. Henry Koster, viajante inglês 22 , ao chegar ao porto de Santo Antônio do Recife 23 , no último mês do ano de 1809, lembrava-se de como o povo apinhado no porto estava ansioso para receber a embarcação de que ele se fazia passageiro: Seguindo meu companheiro de viagem, deixamos o navio e fomos para a terra. Lá, uma nova cena se passa. No momento em que desembarcávamos esse fato foi percebido por um grande número de pessoas, de bom aspecto, que cobria com seu volume o cais. O desejo de saber notícias dos amigos da Europa se tornou tão vivo que, perdendo a cerimônia, todos vieram pedir as cartas porventura destinadas a elas. Decidimo-nos a entregar-lhes o sa- co, sobre o qual se precipitaram todos de uma só vez com a mais ávida das curiosidades. Tínhamos desembarcado no cais da Alfândega, em um dia de grande azáfama, e aí também os clamores e a agitação dos negros se faziam notar. A feia algazarra que fazem quando carregam algum fardo (...), as numerosas perguntas que nos fazia a maior parte daqueles que deparáva- mos, (...) tudo se combinava para embaraçar-me e perturbar-me. Arrastado por aqueles que já estavam habituados às cenas desse gênero, fomos ter com um dos principais comerciantes da cidade. Fez-nos subir ao primeiro andar, 21 Para Denis Antônio de Mendonça Bernardes, o porto era a própria razão de ser do Recife, confundindo-se com a história da cidade até os presentes dias, embora sua importância tenha diminuído a partir dos anos 50 do século XX. Foi considerado, durante muitos anos, o melhor porto da costa Norte do Brasil. BERNARDES, Denis Antô- nio de Mendonça. O patriotismo constitucional: Pernambuco 1820-1822. São Paulo: Hucitec, 2006, pp. 96-101. 22 Henry Koster, ainda que tivesse nascido em Portugal, era filho de pais ingleses e intitulava-se inglês. Não obs- tante, também comentava que, entre ingleses, portugueses e brasileiros, [sentia-se] igualmente entre patrícios. KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Tradução e Notas de Luiz da Camara Cascudo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942, p. 418. 23 Segundo Denis Antônio de Mendonça Bernardes, a partir de 1808, uma compósita população de gente do mar, de língua e nacionalidade diversas, passou também a formar, mesmo passageiramente, a população da cidade. BERNARDES, D. A. de Mendonça, op. cit., p. 99. 30 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco vas, tais como a que dava notícia da guerra contra os espanhóis, as que tratavam de aspirações ao Hábito de Cristo, as que relatavam assuntos comerciais dos irmãos Suassuna e do conselho para não se emprestar nada à Fazenda Real 34 . Havia também outra carta que tratava de vários temas, dentre eles o conselho para sempre escolher boas amizades 35 , outra sobre assuntos de amor 36 , as desordens em Portugal por falta de pão 37 , admoestações e alertas para o irmão em Portugal parar de jogar 38 , enfim, as cartas revelam diversos assuntos, que eram objeto de tro- cas de informação entre Pernambuco e Portugal, no caso, entre os irmãos Suassuna. Além da apreensão dos papéis dos Suassuna, inquiriram-se 86 testemunhas 39 para se comprovar a acusação 40 . No segundo dia de depoimentos, as autoridades se depararam com uma surpresa: a prisão, que deveria ser em segredo, para se proceder com as investigações competentemente, já era conhecida pelas demais testemunhas. Dessa forma, boa parte dos de- poimentos, após o primeiro dia de investigação, trazia suposições sobre a prisão dos irmãos, indicando que a notícia da prisão dos Suassuna havia se espalhado 41 . Até mesmo a negra Joa- quina dos Santos, vendedora de peixe no mercado da Ribeira, de algum modo soube da prisão dos irmãos e escutou na casa de seu compadre um suposto motivo para que fossem encarcera- dos 42 . Esses acontecimentos de 1801 revelam a relação daquela sociedade com a cultura oral e escrita. As leituras e as posteriores conversas sobre os temas das correspondências que leva- ram à prisão dos irmãos Suassuna, os demais papéis apreendidos na casa dos mesmos, a notí- cia que se espalhou sobre o encarceramento dos irmãos e as suposições das testemunhas sobre o motivo das prisões revelam como se davam as transmissões orais e escritas de ideias e notí- cias pelo Norte da América Portuguesa. Seus habitantes não se limitavam apenas a ler ou a ouvir, isto é, a receber as novas informações, mas agregavam a elas seus valores, suas inter- 34 O excerto da carta que trata do não empréstimo à Fazenda Real comprova, em parte, a veracidade da acusação que pesava sobre os Suassuna. DH, CX, pp. 134-35. 35 DH, vol. CX, p. 137. 36 Ibidem, p. 138. 37 Ibidem, p. 141. 38 Ibidem, pp. 160-62. O destinatário dessa carta seria o Suassuna José, que estava em Portugal. A carta encon- trada na casa, provavelmente, era uma cópia da enviada a Portugal. 39 Entre elas, o próprio acusador. 40 As autoridades não conseguiram juntar maiores evidências que comprovassem as acusações de Fonseca. 41 Para todos os pormenores sobre como a devassa procedeu, sugiro a leitura de todo DH, vol. CX. Sobre os de- poimentos das testemunhas, veja também: ANDRADE, Breno Gontijo. Os Filhos Pagam pelos Pais: (In)Fiéis Vassalos e Outros Termos Utilizados na Devassa sobre a Suposta Conspiração dos Suassuna de 1801. Opsis, Ca- talão, v. 11, 2011, pp. 240-41. 42 DH, CX, pp. 43-5. 31 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco pretações e opiniões, como aconteceu no debate entre um dos Suassuna e o seu acusador 43 , ou mesmo nas suposições das testemunhas. Embora este trabalho tenha como recorte espacial o Norte da América Portuguesa, so- bretudo o território de Pernambuco, é importante ressaltar que o caminho das correspondên- cias e boas-novas não se dava apenas de Portugal para Pernambuco, mas também de maneira oposta: notícias do norte do país desaguavam na Europa, juntamente com os caixotes de rapa- dura e as balas de algodão. Foi assim, por exemplo, que José, o Suassuna que estava em Por- tugal, recebeu a notícia de como andava a partilha de bens, por ocasião da morte do seu pai, como também das medidas comerciais que deveria tomar, conforme as orientações de seu ir- mão mais velho, dadas do outro lado do Atlântico 44 . Foi também dessa maneira que, possi- velmente, ele soube da prisão dos irmãos em Pernambuco e teve tempo para fugir para Lon- dres 45 , não obstante as diligências da Alçada em impedir que ele tomasse conhecimento da prisão dos irmãos antes das autoridades reais em Portugal. Essa circulação de cartas e novida- des entre América Portuguesa e Portugal mostra-nos que, apesar da distância, os súditos dos dois lados do Atlântico tinham por hábito comunicar-se (e nisto logravam ter êxito), remeten- do em cartas notícias casuais ou usando-as para orientar e receber orientações sobre diversos assuntos, dos políticos aos comerciais. Após 1809, Henry Koster escreveu profícuos relatos sobre a circulação de cartas e notí- cias pelo Norte da América Portuguesa. Ele mesmo serviu como emissário àqueles com quem fizera amizade em Pernambuco e nos sertões do Norte. Talvez o escolhessem para tal função por gozar de alta estima entre os principais da região – governadores, demais autoridades reais superiores, oficiais da monarquia em geral, grandes e pequenos negociantes, senhores de en- genhos, rendeiros, membros do alto e baixo clero, estrangeiros etc. – e por ser afeito às via- gens por aquela vasta região. Passando pelas proximidades do rio Paraíba, Koster informava que levava cartas para o proprietário, membro da família Cavalcanti, e Capitão-mor na pro- víncia da Paraíba. [Fora] por ele recebido de maneira afetuosa 46 . Continuando sua viagem, chegou a Cunhaú, no Rio Grande do Norte, onde se localizava o engenho do coronel André de 43 Sobre a ideia de que leitores e ouvintes não reproduzem as informações do texto tais como estão escritas, mas lhes acrescentam outras informações, podendo mesmo contrariá-las, remeto aos trabalhos de Roger Chartier, que insistem neste ponto. CHARTIER, Roger. As Origens Culturais da Revolução Francesa. São Paulo: UNESP, 2009, p. 46. 44 DH, vol. CX, pp. 160-62 e pp. 136-38. 45 A fonte dessa informação é o próprio José Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, o Suassuna que es- tava em Portugal, ao encontrar-se com Henry Koster anos depois e narrar-lhe suas desventuras passadas. Prova- velmente, o Suassuna ficou pouco tempo em Londres, pois foi perdoado, juntamente com os irmãos, no final de 1801. KOSTER, Henry, op. cit., p. 112. 46 Ibidem, p. 97. 32 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco Albuquerque Maranhão 47 , cujas terras cobriam pouco menos de quarenta léguas. Só se vencia uma de suas porções depois de andar de três a quatro horas. Henry Koster também lhe entre- gou correspondências oriundas de Pernambuco: Trazia-lhe cartas dos seus amigos de Pernambuco. (...) Veio para perto de mim, logo que desmontei, e lhe entreguei as cartas que levava, e ele as pôs à parte para ler com sossego. Fez-me sentar e conversou sobre várias ques- tões, meus planos, intenções, etc 48 . Ao que tudo indica, houve uma constante troca de correspondências e notícias entre os principais homens do Norte da América Portuguesa, o que evidencia uma complexa rede de relações. Nos exemplos utilizados, as cartas partiram de Pernambuco, provavelmente, Recife, seguindo para outras localidades. As cartas e notícias poderiam servir como meio de encurtar as distâncias, aproximando homens de vilas e lugarejos distantes dos espaços de sociabilida- des 49 centrados no Recife, mesmo que seus agentes estivessem separados por léguas de dis- tância 50 . Nos excertos citados, observa-se que o viajante, primeiramente, entregou cartas de Pernambuco a um membro da família dos Cavalcanti, capitão-mor da Paraíba, portanto, ocu- pante de um posto de destaque e, na mesma viagem, levou correspondências para um dos maiores proprietário de terras do país 51 , estabelecido no Rio Grande do Norte. Provavelmente, 47 Esse personagem ficará conhecido posteriormente pela historiografia por sua relevante participação na adesão do Rio Grande do Norte à Revolução Pernambucana de 1817. André de Albuquerque Maranhão também foi acu- sado de frequentar a casa dos Suassuna em 1801. 48 KOSTER, Henry, op. cit., p. 101. 49 Entendo, como espaços de sociabilidades, os lugares e locais onde se davam interações entre um grupo seleto de homens que se uniam por afinidades, fossem elas políticas, econômicas ou culturais. Os jantares em casa de particulares, as sociedades literárias e as lojas maçônicas são exemplos desses espaços e circunstâncias. 50 As sociabilidades no Norte da América Portuguesa serão tratadas em outro capítulo. Por ora, basta dizer que as cartas e notícias, como foi dito, serviam para aproximar pessoas e questões distantes, pois noticiavam sobre as- suntos em voga, de modo que eles fossem compartilhados por mais participantes. André Albuquerque Maranhão, proprietário do vasto engenho de Cunhaú no Rio Grande do Norte, por exemplo, já figurava, na devassa de 1801, como frequentador da casa dos Suassuna em Pernambuco, esta também frequentada por dezenas de outros ho- mens. Ou seja, André compartilhava dos círculos de sociabilidades aristocráticos de Pernambuco e, conforme o excerto citado, recebeu uma carta de um amigo em Pernambuco que, infelizmente, Koster não revelou quem era. Entre 1806-1811, o Suassuna José Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque seria o governador da Capita- nia onde vivia o mesmo André Albuquerque Maranhão, frequentador de tempos idos de sua casa. Também é im- portante dizer que a capitania de Pernambuco interligava sociabilidades de outras regiões às suas próprias, dada a sua importância política, econômica, cultural e clerical. 51 No dicionário de Raphael Bluteau de 1716, o termo país significa: terra, região. BLUTEAU, Raphael. Voca- bulário Portuguez & Latino, Áulico, Anatômico, Architetonico […].v Lisboa, Officina de Paschoal Silva, 1716, p. 187. Na reforma feita por Antônio de Moraes Silva do dicionário de Bluteau, em 1789, o significado de país permanece o mesmo. Diccionario da Lingua Portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado e accrescentado por Antônio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Fer- reira, 1789, p. 147. Na Revolução Pernambucana de 1817, o termo país foi empregado pelos revolucionários pa- ra designar circunscrições geográficas diferentes, tais como toda a América Portuguesa, a capitania de Pernam- buco, a corte portuguesa instalada no Rio de Janeiro, ou mesmo todo o Reino Unido de Portugal. VILLALTA, Luiz Carlos. Pernambuco, 1817: „encruzilhada de desencontros‟ do Império Luso-Brasileiro. Notas sobre as 35 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco terceira na ordem das capitanias que tinham maiores relações comerciais com a Metrópole 59 . Pernambuco também contava com o antigo bispado de Olinda, elevado a esta categoria desde 1676, tornando-se, assim, centro do poder eclesiástico na região, exercendo sua jurisdi- ção sobre todas as paróquias do Norte, com ramificação em Minas Gerais. Por volta de 1819, o advogado dos revolucionários de 1817, Antônio Luiz de Brito Aragão e Vasconcelos 60 , es- creveu, em sua Defesa Geral, sobre a importância do Recife/Olinda e de Pernambuco: Ninguém ignora que a vila do Recife é capital de Pernambuco, assim como o ser a cidade de Olinda a sede do Bispado, o qual compreende todo o espa- ço de terreno que se estende desde as Alagoas até o Ceará, inclusive os po- vos de toda aquela extensão têm uma grande correlação com a vila do Reci- fe, que olham como a sua capital apesar de haverem (sic) governos separa- dos como os do Rio Grande, Ceará e Paraíba (...). A vila do Recife é o cen- tro das riquezas e do comércio de todos os povos adidos ao Bispado de Olinda porque estes pela maior parte vivem da criação de seus gados, da cultura do algodão e de algumas plantações, cujos gêneros levam para ven- der naquele empório de sua negociação e donde eles levam as manufaturas de que se vestem, e lhe são necessárias para outros usos por isso têm dela uma dependência que não pode escusar 61 . Portanto, havia vínculos históricos, econômicos, religiosos, e políticos, que aproxima- vam entre si os habitantes do Norte da Colônia, com olhos voltados sempre para Pernambuco e sua capital. Ademais, as alterações das fronteiras das capitanias do Norte, de onde começava uma e terminava a outra, ou as alterações de ordem administrativa e as novas subordinações entre as diversas autoridades reais, faziam mais diferença para a melhor governança da mo- narquia portuguesa do que para aqueles homens mais humildes, acostumados com a tradição que dizia que Pernambuco era o “mundo” e Recife/Olinda o “centro” dele. Basta lembrar que as divisões administrativas iniciadas pelo governo português, em 1796, demoraram a surtir efeito no âmbito econômico e, certamente, custariam ainda mais para cair no gosto do povo. Por isso, o anseio dos homens do sertão pelas novidades de Pernambuco, porque não lhes in- teressavam os assuntos distantes. Outro aspecto importante a salientar do episódio em que homens indagavam a Henry Koster sobre notícias de Pernambuco é a cultura oral. Os sertanejos sentaram-se no chão e ajeitaram-se para ouvir o que Koster, sentado na rede, acima da linha dos olhos deles, tinha a 59 IAHGP – Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Revolucções do Brasil. Revista do IAHGP, Tomo quarto, nº 29. Recife: Typographia Industrial, 1884, pp. 77-8. 60 Doravante, Aragão e Vasconcelos. 61 DH, vol. CVI, p. 85. 36 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco dizer. Assim, quem tem notícias a dar e histórias a contar deveria ser destacado, de modo que todos pudessem vê-lo e ouvi-lo. Porém, o assunto de que tratavam não era feito apenas por uma via, como se o inglês estivesse fazendo uma proclamação, enquanto os sertanejos estari- am apenas a escutá-la. De fato, havia uma conversação entre eles. Talvez os curiosos guias- sem o assunto por meio de perguntas, enquanto Koster respondia-lhes e acrescentava outras. Por ser uma sociedade iletrada, deve-se destacar que o único meio de saber sobre as coisas do mundo, ou aprender algo, era através da cultura oral. Os homens sem conhecimento das letras deveriam ser habilidosos no falar para extraírem, ao máximo, as informações dos interlocuto- res. Entre tais homens iletrados, um inglês, por exemplo, era uma raridade, um poço de todos os tipos de novidades, que poderia ser bem aproveitado. Já a cultura escrita, por vias diretas, no geral, era acessível a privilegiados, tais como os homens letrados, abastados ou membros da Igreja 62 . Estes, além de estarem acostumados com a cultura oral, realidade da maioria da população iletrada, podiam ainda aprender por meio dos impressos e manuscritos e comunica- rem-se por meio das cartas, como vem se demonstrando. Embora o acesso aos impressos e manuscritos estivesse ao alcance de poucos homens, é bem possível que essa cultura escrita se transformasse em cultura oral, alcançando também os homens mais rústicos 63 . O mesmo se dava com a cultura oral que, eventualmente, era absorvida pela cultura escrita. Por fim, ainda sobre o episódio em que os sertanejos foram ouvir Koster, nota-se a gratidão desses homens, que lhe ofereceram cavalos para viagem e enviaram-lhe um presente de carne assada, um mimo pelas notícias recebidas com tanta generosidade. Essa circulação de cartas e notícias demonstra a centralidade do Recife/Olinda como lo- calidades difusoras e receptoras das mais variadas informações no Norte da América Portu- guesa 64 . Se havia interesse de sertanejos distantes em saber sobre Pernambuco, haveria ainda mais entre aqueles que tinham negócios a tratar no Recife e vilas vizinhas, ou que quisessem 62 Indiretamente, isto é, através da oralidade, as demais categorias sociais poderiam alcançar essa cultura escrita. 63 Ao estudar o controle da difusão de ideias em Portugal e em alguns casos também no Brasil, Luiz Carlos Vil- lalta constatou que Cipriano Barata, participante da Inconfidência Baiana, usou manuscritos trasladados cujas ideias eram contra a fé e a monarquia. Foram copiados por letrados e postos em circulação entre os rústicos. Além disso, inscreviam-se numa cultura marcada pela oralidade, valendo-se da mesma e nutrindo-a com ele- mentos heréticos e subversivos, por meio do desenvolvimento da leitura oral e coletiva, de casa em casa. VIL- LALTA, Luiz Carlos. As imagens e o controle da difusão de ideias em Portugal no ocaso do Antigo Regime, Blogue de História Lusófona. Lisboa: IICT - Instituto de Investigação Científica Tropical, ano VI, 2011, p. 77. Disponível em: http://goo.gl/fO1qa 64 Não bastasse a influência de Pernambuco sobre a Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte, a Capitania de Duarte Coelho era vasta, acompanhando o Rio São Francisco pelo o que é hoje todo o oeste da Bahia e quase todo norte de Minas Gerais. Para o período estudado, as terras de Pernambuco eram todo o oeste da atual Bahia e a parte li- torânea, que hoje compreendem Alagoas e Pernambuco. COSTA, F. A. Pereira da. Anais Pernambucanos. Reci- fe: Arquivo Público Estadual, 1958, vol. VIII, pp. 83-7. 37 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco saber das últimas modas, ou mesmo que desejassem comprar artigos de luxo, ou contactar as ordens clericais, tão abundantes em Recife/Olinda. 1.2 Os emissários do Norte: senhores, padres e índios Homens que viajavam pelo Norte e que, ao mesmo tempo, eram estrangeiros, como Henry Koster, foram raros. A função de emissário, principalmente para as longas distâncias, ao que tudo indica, era desempenhada por aqueles que tinham por hábito errar pelos sertões e litorais, tais como alguns senhores abastados (mais frequentemente, os seus homens de confi- ança), que tinham assuntos a tratar em outras regiões; os padres, que perambulavam levando a fé católica aos lugares mais ermos; ou índios 65 , que não se fixavam em nenhuma paragem. Havia também outros grupos que circulavam pelo Norte, tais como: comboieiros, tropeiros, almocreves, sertanejos, funcionários reais, criminosos etc. 66 No entanto, ao longo deste capí- tulo, tratarei apenas daquelas categorias cujas informações aparecem com maior abundância. No que diz respeito aos homens abastados que viajavam pelo Norte, Koster relata sobre a vez que, após seu regresso ao Jaguaribe: fui surpreendido pela chegada de um homem branco, fardado de azul e en- carnado, seguido por um grande número de animais carregados e de pesso- as vestidas de couro, como usam os sertanejos. Entregou-me uma carta, que verifiquei não ser para mim e sim para outro inglês que estava comigo (...) [O homem branco, fardado de azul,] era um comandante do interior, distante 130 léguas, morando nas fazendas da província da Paraíba (...) Co- locara, a bordo das jangadas na Paraíba, um grande carregamento de al- godão, colhido nas suas propriedades, e ia viajando para o Recife a fim de vender e adquirir objetos de luxo para sua família 67 . 65 Embora seja sabido que havia incontáveis grupos de indígenas na América Portuguesa, diferentes entre si, tan- to em sua cultura quanto nos idiomas empregados, adotei a ideia de índio exposta por Henry Koster em seus es- critos. O viajante inglês faz uma pequena distinção entre dois grupos de índios, segundo a sua maior ou menor aproximação com os súditos portugueses: os índios e os índios bravios. Os índios tinham hábitos errantes, foram os primeiros habitantes daquelas terras que conviveram com os europeus, com negros e outras misturas de cor, que adotaram alguns costumes lusitanos, ainda que não todos. Eram diferentes dos índios bravios, estes últimos abundantes no Maranhão e hostis aos súditos portugueses. 66 Tendo como recorte espacial de sua pesquisa a capitania de Minas Gerais do século XVIII, Cláudia Maria das Graças Chaves estudou os diversos tipos que comercializavam naquela região. Para a historiadora, havia dois ti- pos de comerciantes em Minas Gerais. O primeiro grupo compreendia os comerciantes que transportavam e vendiam mercadorias pelos caminhos, nas vilas e arraiais, sem localização fixa ou em feiras. Eram os tropeiros, comboieiros, boiadeiros, atravessadores, mascates, negras de tabuleiro. O segundo grupo seria dos comerciantes que compravam e revendiam mercadorias em seus estabelecimentos fixos, como os vendeiros, lojistas e comissá- rios. CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Perfeitos negociantes: mercadores das minas setecentistas. São Pau- lo: Annablume, 1999, p. 49. 67 KOSTER, Henry, op. cit., p. 313. 40 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco era só imprescindível para manter a fé dos sertanejos, mas também para levar-lhes alguma instrução, além, é claro, de reportar a esses fiéis os últimos acontecimentos 73 . Henry Koster, por sua vez, comenta que, nessas regiões onde as moradas são tão afas- tadas umas das outras, havia o hábito curioso de certos padres, munidos de uma licença do Bispo de Pernambuco, viajarem com um altar portátil, construído para esse fim, conduzido por um cavalo, assim como todos os objetos para as missas. O cavalo era dirigido por um ra- paz que ajudava o padre nas missas, enquanto o outro animal trazia o sacerdote com sua bagagem. Esses padres, por transitarem por longas distâncias, no decorrer de um ano, auferi- am renda considerável. Eles param, erguem o altar onde existe um certo número de pessoas que podem pagar para ouvir missa 74 . Henry Koster atenta-se para a importância dessa tradi- ção, concluindo que, se não existisse: todo culto seria impossível para os habitantes de muitos distritos (...) nessas paragens em que não há lei nem religião real e racional. (...) É o liame que prende todo esse povo e o sustenta, no fio das ideias recebidas, junto às po- pulações maiores de outros distritos 75 (grifos meus). Koster entende que os padres que transitavam com seus altares portáteis eram impres- cindíveis para o povo sertanejo, primeiramente, por levarem o culto aos lugares mais distantes e, em segundo lugar, por serem depositários e emissários não só das palavras de Deus, mas também de ideias e novidades de outros distritos 76 . A relevância dos padres viajantes era tão nítida que Koster via neles a única ligação que unia o povo do sertão distante aos distritos. Os sacerdotes eram um dos poucos contatos com o mundo exterior que muitos habitantes das dis- tas poeiras do sertão podiam ter. É o que também percebia o padre Inácio da Silva, ao escre- ver sobre a atuação da Congregação do Oratório em Pernambuco: Em diversos tempos do ano se revezam outros padres em missões deambula- tórias, pregando pelas freguesias e lugares mais povoados, aonde raras ve- zes chegam a ouvir quem desta maneira os desengane de seus erros e os encaminhe para o céu; e não fazem a sua derrota os seus missionários tanto pelo perto, que já por muitas vezes não chegassem a caminhar duzentas lé- guas nesta empresa do serviço de Deus, pregando, confessando e ensinando 73 A instrução de que fala Tollenare tinha como uma de suas fontes o contato dos padres com os livros. Outra fonte, certamente, seria a oralidade. Poderiam aprender com outros padres e mesmo com o povo que costuma- vam frequentar. Sobre o contato dos clérigos com os livros, tratarei mais adiante. 74 KOSTER, Henry, op. cit., p. 131. 75 Ibidem, p. 132. 76 Não é possível definir o que Koster chama de distrito, se eram vilas ou mesmo regiões. De qualquer forma, pa- rece-me que eram localidades no sertão com menos habitantes e distantes das vilas litorâneas. 41 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco a doutrina aos povos, de que resultam admiráveis conversões, casos prodi- giosos, que não pertencem à brevidade desta relação 77 . Nessas incursões que faziam pelo sertão, os padres viajantes também agiam como por- tadores de cartas e até como mensageiros de novidades 78 , que circulavam por aglomerados maiores, como o Recife, Olinda, Paraíba 79 , Natal e outras vilas. Quando o viajante inglês foi acometido de febre em Sant‟Ana 80 , ele disse que, desejava vivamente chegar ao Assú 81 , querendo adiantar a viagem e ao mesmo tempo com a esperança de encontrar um padre que quisesse encar- regar-se de algumas cartas que tencionava enviar aos meus amigos 82 (grifos meus). A menção aos padres como mensageiros não é aleatória. O que Koster desejava era fa- zer uso de uma prática comum à região, isto é, valer-se dos padres que viajavam para levar al- gumas cartas aos seus em Pernambuco 83 . Pode-se perceber também que os padres viajavam pelo sertão, mas voltavam para as cidades maiores (no excerto citado, Recife/Olinda), peram- bulando entre as diversas regiões. Além dos senhores abastados e padres, os índios também desempenhavam o papel de emissários de cartas e talvez fossem até preferidos para desempenhar esta função para as lon- gas distâncias. Dizia o viajante que a predileção pelos índios era pela sua facilidade inexplicá- vel de encontrar qualquer caminho e chegar ao lugar certo, mesmo sem marcas e sem estra- das, além da velocidade que avançavam até chegar ao seu destino: Os mensageiros, de uma para outra província, são, em maioria, indígenas, e pelo hábito que os faz resistir às grandes fadigas, são capazes de andar, dia após dia, quase um mês, com pequenos repousos. Tenho-os encontrado, com sua sacola de pele de cabra ao ombro, pisando com passo rítmico, na- da os detendo do que poderia embaraçar o caminho. Mesmo que um cavalo possa adiantar-se sobre esses homens nos primeiros dias, se a viagem for 77 IAHGP – Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Notícia que dão os Padres da Con- gregação de Pernambuco acerca da sua Congregação, desde a sua criação. Revista do IAHGP, Recife: volume LVII, 1984, p. 58. 78 Como bem deixou claro Henry Koster, na citação anterior. 79 Era comum nesse período referirem-se à capital da Paraíba como cidade da Paraíba. O mesmo se dá para o Recife, que também era conhecida como Cidade de Pernambuco ou Santo Antônio do Recife. 80 Povoado situado nos limites do Ceará e Rio Grande do Norte. 81 Povoado situado no sertão, a meio caminho entre Ceará e Rio Grande do Norte. 82 KOSTER, Henry, op. cit., p. 193. Os grifos são meus. 83 Embora o excerto usado não explicite a origem dos amigos de Henry Koster, não há possibilidade que eles se- jam de outro lugar que não Pernambuco. Na maioria das vezes, quando menciona “amigos”, Henry Koster se re- fere àqueles que o acolheram no Recife e em localidades vizinhas, portanto, de Pernambuco. Ademais, o inglês sempre explicita que viveu somente em Pernambuco. 42 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco prolongada, o indígena, no fim, chegará primeiro. Quando um criminoso ilude as diligências dos oficiais da Polícia, os indígenas são enviados em sua perseguição como último recurso 84 (grifos meus). Certamente, o costume de não se fixar em uma região contribuía para que alguns índios do Norte conhecessem os caminhos invisíveis que interligavam os inúmeros lugarejos. Henry Koster percebe também que a predileção por esses Hermes do sertão dava-se pela sua rapidez no deslocamento, chegando antes que os cavalos, ao longo de vasto território, pois eram men- sageiros de uma para outra província. Porém, não só o conhecimento dos caminhos e a rapi- dez no deslocamento pelo território tornavam os indígenas os mensageiros preferidos. É bem provável que, pela maioria dos índios desconhecer a leitura, a possibilidade de violação das mensagens era infinitamente menor, se os compararmos aos mensageiros que tinham mais possibilidades de saber ler, como os senhores abastados e os padres. Se se quisesse enviar uma carta com assuntos reservados, a algum lugar longe e com certa urgência, o ideal seria pagar aos indígenas para que o fizessem 85 . O viajante Koster parece ter enviado cartas tendo por emissários os indígenas. Quando estava nas proximidades de Cunhaú 86 , com destino a Pernambuco, relata Koster que dois mensageiros 87 passaram por esse recanto [Cunhaú] durante a tarde e escrevi a um amigo de Pernambuco para que tivesse a minha cabana de Cruz das Almas preparada para meu re- gresso 88 (grifos meus). A carta parece ter alcançado o destino, pois lembra-se o viajante que: pela manhã adiante fui a cavalo para o Recife, onde os amigos me recepcionaram como a um homem desaparecido e mesmo o amigo particular a quem escrevera disse que não esperava ver-me (grifo meu). 89 84 Ibidem, p. 172. 85 João Paulo Peixoto COSTA encontrou documentos que mostram que algumas vezes os índios não entregavam as cartas pelos mais diversos motivos. Quando estavam a serviço dos correios e não entregavam as correspon- dências eram castigados. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e Invenção: civilização e cotidiano indígena no Ceará (1812-1820). Teresina: Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da UFPI, 2012 (Dissertação de Mestrado), pp. 153-73. (Agradeço à professora Serioja Rodrigues Cordeiro Mariano pela indicação dessa obra). Por outro lado, Henry Koster apreciava o trabalho dos índios como guias e carregadores (errantes): Tenho empregado muitos indígenas, como carregadores e guias (...). Para guias e carregadores são excelentes adap- tados pelos seus hábitos de vida errante que essas ocupações exigem. KOSTER, Henry, op. cit., p. 173. 86 Povoado próximo a Natal, cujas terras pertenciam a André de Albuquerque Maranhão, já mencionado neste texto. 87 É verdade que Henry Koster não diz se esses mensageiros, em especial, eram ou não indígenas, mas, na versão original de sua obra, quando se refere aos índios que carregavam cartas, usa o termo letter-carriers. The letter- carriers, from one province to another, are mostly Indians, for from habit they endure great fatigue. KOSTER, Henry. Travels in Brazil. London: Printed for Longman, Hurst, Rees, Orme and Brown, 1816, pp. 119-20. É ne- cessário se ater a outro detalhe. Koster diz que a maioria desses mensageiros eram indígenas (mostly indians), ou seja, havia também outros tipos de mensageiros que poderiam fazer as mesmas entregas que os indígenas. 88 KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil, op. cit., p. 217. 89 Ibidem, p. 222. 45 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco O saco de seda carmesim também trazia consigo toda uma simbologia, que era inteligí- vel para os homens da época. Significava que o seu portador adquiria, provisoriamente, o car- go de mensageiro real e, por conseguinte, tendo o poder de solicitar o empréstimo de cavalos por onde passasse. Os cavalos não estariam a serviço daquele homem que trazia correspon- dências, mas, simbolicamente, para o uso pessoal do próprio rei. Ao passar pelo povoado de Santa Luzia, o guia de Koster alertava-o que a casa em que estavam alojados era cercada pelo povo, por causa de um desentendimento passado que haviam tido com o inglês. O viajante, então, relata que pediu sua maleta e, calmamente, de lá tirou o saco vermelho com as corres- pondências reais, colocando-o sobre um cepo de madeira, e ficou como se estivesse procuran- do algo mais dentro da maleta: Quando olhei em torno, depois de alguns minutos, toda a gente que se reuni- ra desaparecera, tal fora a importância do saco vermelho, dando como era sabido o poder de requisitar animais, e outra ideia da minha situação surgi- ra com a presença mágica dessa bolsa 97 . O poder de requisitar animais, conferido pela posse da bolsa de seda carmesim, parece ter sido conflituoso na região Norte do país. Em nota à obra de Henry Koster, Luiz da Câmara Cascudo diz que a requisição de animais para serviços públicos era uma ordem mal recebida, pois facilitava a ocorrência de abusos por parte dos requerentes 98 . Talvez, de fato, houvesse a preferência de enviar mensageiros de confiança e distinção como Henry Koster, porque eles conferiam credibilidade ao solicitar o uso dos animais. Provavelmente, os comandantes du- rante o caminho tivessem dificuldades em emprestar suas montarias aos mensageiros, caso eles fossem indígenas ou homens de baixa estirpe. Do mesmo modo, a solicitação do animal por aqueles que serviam ao rei como mensageiros era legítima, mas causava abusos por parte dos requerentes, o que indignava os proprietários. No tocante à rapidez da entrega das corres- pondências, ainda que Henry Koster atribuísse grande velocidade aos índios, chegando antes que os cavalos, a utilização de diversos cavalos, requisitados em cada paragem pelo poder da bolsa carmesim, permitia um transporte de cartas ainda mais ligeiro. Tanto que era o modo oficial adotado pelas autoridades reais para enviar suas correspondências. 97 KOSTER, Henry, op. cit., p. 192. 98 As reclamações eram diárias, mas os interesses, mais privados que gerais, obstavam o deferimento. Ainda a 16 de março de 1816 uma “decisão” declarava que “as fazendas nas estradas devem fornecer cavalgaduras às paradas que andarem em serviço público. Essa ordem findou durante a Regência de D. Pedro, no ministério do Conde dos Arcos (...) [em 1821]”. CASCUDO, Luiz da Camara. Notas a obra de Henry Koster. In: KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Tradução e Notas de Luiz da Camara Cascudo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942, p. 186. 46 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco Ainda com relação à primeira citação do saco vermelho de correspondências, Henry Koster atentou-se para o fato de que a entrega de correspondência nem sempre era perfeita, podendo haver acidentes. Os acidentes a que o viajante inglês faz menção são aqueles que se relacionam ao período de estiagem, que deixavam não só os caminhos desertos, mas também vários distritos 99 . Para Koster, não era raro ocorrer esses acidentes, pois o Norte do país fre- quentemente vinha experimentando duras secas, como as de 1791, 1792, 1793, 1810, 1816 e 1817 100 . Nos demais anos, houvera períodos de estiagem menos nocivos, embora sempre pe- rigosos, como os que Henry Koster enfrentou em suas perambulações pelo sertão, correndo risco de morte. Era a seca a maior adversidade que os emissários viajantes poderiam enfren- tar, fazendo-os evitar os períodos de estiagem, tal como não fez Koster em suas primeiras idas ao sertão, quando seus guias quase desertaram. Quanto aos assaltos e roubos nas estradas, ainda que tenham existido, não são mencionados pela pena do inglês. É provável que fossem mais comuns entre as cidades litorâneas do que no sertão inóspito e regularmente tórrido. Em suma, por se desenvolver um trânsito constante de pessoas pelo Norte da América Portuguesa, havia uma silenciosa, mas abundante circulação de cartas (manuscritas) e novas (mensagens orais) entre os habitantes do Norte. Os emissários eram provenientes do grupo dos senhores abastados, ou padres, ou índios, embora não se descartem outros tipos de men- sageiros. As incursões feitas pelos senhores abastados e clérigos tinham objetivos maiores, como o trato de negócios ou a disseminação da fé, sendo que, nesses casos, a entrega de cartas e a narração de notícias ficavam em plano secundário. Desse modo, esses dois tipos de emis- sários agiam em favor, como gentileza, dos remetentes e destinatários. O mesmo não pode ser observado no caso dos emissários indígenas. Nos exemplos utilizados, os índios entregavam as cartas mediante pagamento. Se comparados com os integrantes dos dois primeiros grupos de emissários, teoricamente, os índios seriam preferidos para entregar cartas particulares, pois conseguiam cobrir mais rapidamente grandes distâncias, além de boa parte deles não saber ler, o que diminuía as chances de violação da mensagem. No entanto, talvez não fossem os predi- letos para falar sobre os últimos acontecimentos, se comparados aos demais tipos de viajantes citados, que tinham mais credibilidade que aqueles. Havia ainda as correspondências oficiais que, preferencialmente, eram entregues aos senhores abastados, homens de confiança ou pa- dres, pois eles tinham mais credibilidade ao requisitar montaria aos súditos do rei, ainda que a 99 KOSTER, Henry, op. cit., p. 179. 100 A seca no final do ano de 1816 para o ano de 1817, obviamente, não está documentada nos relatos de Henry Koster e, sim, nos Documentos Históricos, publicados pela Biblioteca Nacional, bem como nos relatos de L. F. Tollenare. 47 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco utilização dos índios, dos homens a pé, fosse a mais comum. No caso das correspondências oficiais, podiam chegar mais rapidamente do que aquelas entregues pelos índios – ainda que Koster testemunhe o contrário –, pois, em tese, o requerente poderia solicitar várias montarias ao longo de sua trajetória. No entanto, quando não se usavam tantas montarias, quando as missivas eram trocadas entre particulares, os índios poderiam ser mais rápidos. Além de revelar o modo como acontecia a circulação da cultura escrita e da cultura oral, as perambulações dos envias, aqui explicitadas, demonstram as ligações entre as diversas re- giões que compunham o Norte da América Portuguesa. Foram citados exemplos de envio de mensagens da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará, com destino a Pernambuco. Tam- bém a Coroa portuguesa vinha se esforçando na melhoria dos serviços postais no primeiro quartel do século XIX. João Paulo Peixoto COSTA encontrou documentos relativos aos servi- ços postais do Ceará, demonstrando onde seriam os postos de entregas e recebimentos das cartas, bem como a regularidade que as correspondências seriam despachadas, quem faria as entrega e quanto seria o valor desses serviços 101 . Ao contrário do que se pode pensar, não era impossível que as novas se espalhassem rapidamente por todo o Norte e fossem conhecidas tanto por homens que sabiam ler quanto por aqueles que só podiam escutar, seja no litoral ou no sertão, dadas essas ligações oficiais, mas também subterrâneas, corporificadas pelo ato dos estafetas de levar e trazer mensagens. Deve ser ressaltado que o domínio sobre a leitura e a escrita, habilidades restritas a poucos 102 , ampliava os meios de se saber sobre determinado as- sunto. Ainda sobre a circulação dessa cultura escrita, embora as fontes mencionem apenas as cartas e notícias, é concebível que também houvesse a circulação de outros impressos. Estu- dos da professora Vera Lúcia Amaral Ferlini apontam para a circulação em Pernambuco de gazetas manuscritas, entre outubro de 1790 e maio de 1791. Essas gazetas revelavam a vida administrativa da Capitania, tecendo críticas viperinas ao governador D. Thomaz José de Mel- lo e a seus apadrinhados. No entanto, o mote principal da gazeta eram as pesadas tributações que insidiam sobre os súditos de Pernambuco 103 . Ora, se havia circulação de gazetas manus- critas que, por sua vez eram copiadas e repassadas, por que não haveria também a circulação 101 COSTA, João Paulo Peixoto, op. cit., pp. 163-64. 102 Eram habilidades distintas, objetos de diferentes momentos do aprendizado, não sendo incomum que alguém soubesse ler, mas não escrever. VILLALTA, Luiz Carlos. Ler, escrever, bibliotecas e estratificação social. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de & VILLALTA, Luiz Carlos. (Org.). História de Minas Gerais: As Minas Setecentistas, 2. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007, p. 289. 103 FERLINI, Vera Lúcia Amaral. A Gazeta de Pernambuco: algumas questões sobre a circulação de notícias no fim do século XVIII. In: ALGRANTI, Leila Mezan & MEGIANI, Ana Paula Torres. (Org.). O Império por Es- crito – Formas de Transmissão da Cultura Letrada no Mundo Ibérico (século XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2009, pp. 471-94 50 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco nada e foi extinta no final de 1794. Para aumentar o rigor da censura, a Coroa Portuguesa res- tabeleceu o sistema de censura tríplice, que seria novamente realizada pelo Ordinário, Inquisi- ção e Desembargo do Paço. Nesse caso, no âmbito religioso, o Ordinário e a Inquisição deve- riam iniciar a censura literária, cada qual respeitando a autonomia do outro tribunal. Após su- as deliberações, agiria o Desembargo do Paço com o veredicto final. Em 1795, um alvará de- terminou a articulação dos três órgãos, reafirmando a obediência às regras da Real Mesa Cen- sória, o que funcionou até 1820 111 . Para que os impressos fossem enviados para a América Portuguesa, os remetentes deve- riam apresentar os livros à alfândega, que estava obrigada, através de seus juízes, a remetê-los para a Casa de Revisão 112 . Os impressos deveriam vir acompanhados de um pedido de licença e uma lista que trazia detalhes sobre as obras. Esses pedidos seguiam um padrão mais ou me- nos formal, registrando a data da petição, o nome do remetente e/ou de seu procurador, os termos para requerer a mercê de embarcar os livros, o local para onde se destinavam os livros etc. Listas de livros acompanhavam os pedidos. Elas discriminavam as obras que se pretendia embarcar 113 , variando o seu nível de detalhamento de acordo com a presteza dos solicitantes e as exigências dos oficiais da alfândega. Alguns requerentes informavam dados como a quan- tidade de volumes, o formato dos livros 114 , o nome dos autores, o nome de possíveis traduto- res, o idioma da obra, a oficina em que foram feitos os livros etc., porém, raramente todos os dados supracitados eram registrados nas listas. Ao menos as listas mencionavam os títulos das obras que os requerentes tencionavam enviar, o que nem sempre satisfazia aos censores, pois alguns reclamavam sobre aquelas que traziam títulos truncados. Diziam que tais incorreções não só dificultavam a censura, como também suscitavam desconfianças e perplexidade no es- pírito do censor. Provavelmente, as listas com títulos defeituosos facilitavam o ato de burlar a 111 Ibidem, pp. 196-203. 112 Essa determinação é de 1768, porém, antes dessa data e após 1794, o procedimento para controle das alfânde- gas era similar. VILLALTA, Luiz Carlos. Os livreiros, os livros proibidos e as livrarias em Portugal sob o olhar do Antigo Regime (1753-1807). In: NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. (Org.). Livros e Impressos: retratos dos setecentos e dos oitocentos. Rio de Janeiro: Eduerj/Faperj, 2009, p. 223-268. 113 Para a fiscalização de livros na América, no período da Tríplice Censura (1576-1768) remeto ao capítulo 5, pp. 242-252, da tese de doutorado supracitada de Luiz Carlos VILLALTA. 114 O formato diz respeito às dimensões do impresso. In-fólio corresponde ao formato do livro cujos cadernos são obtidos dobrando-se ao meio a folha de impressão, que comporta, portanto quatro páginas, duas de cada lado; in- quarto diz-se de livro ou formato de livro em que cada folha, dobrada duas vezes, é composta por oito páginas, isto é, quatro de cada lado; e in-oitavo diz-se do livro ou formato de livro em que cada folha, dobrada três vezes, é composta por dezesseis páginas, isto é, oito de cada lado. HOLLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 51 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco censura 115 . Dessa forma, os órgãos censórios percebiam que a ausência de informações em muitas listas atrapalhava a fiscalização dos livros. Em 1795, por exemplo, o Desembargo do Paço não autorizou o envio de livros de Pedro José Reis para a Paraíba, exigindo dele uma apresentação exata dos livros que tencionava enviar, com maiores informações 116 . Após a apresentação dos livros, das petições acompanhadas de suas respectivas listas, cabia aos censores fiscalizar os impressos que estavam para ser remetidos, confiscando aque- les que fossem proibidos e inquirindo possíveis contraventores 117 . Somente após essa averi- guação é que os impressos estavam livres para seguir viagem. No entanto, as listas dos livros enviados para Pernambuco não revelavam todas as obras que, de fato, chegaram ao porto do Recife. A História do Livro e da Leitura no Brasil tem demonstrado, com abundância de fon- tes, que livros proibidos, não obstante às dificuldades impostas pela Coroa para a sua circula- ção, chegavam às mãos de leitores do outro lado do Atlântico. A seguir, serão expostos alguns casos de contrabando, por ora basta ressaltar que os documentos revelam várias tentativas de enganar a fiscalização. Em Portugal, por exemplo, há relatos de que diplomatas usavam o fundo falso de suas malas para fazer passar livros proibidos. Segundo o viajante Carl Israel Ruders, o contrabando era a maneira mais usual e menos embaraçosa empregada pelos par- ticulares para adquirir livros proibidos, bastando, caso houvesse interesse por algum livro es- trangeiro, contactar algum marinheiro, que se encarregaria de o trazer e de o fazer chegar ao seu destino. Há outros relatos de contrabando de livros na América Portuguesa através de ca- pitães e pilotos, que os traziam para os interessados. Os autos das devassas das Inconfidências Mineira, Baiana e do Rio de Janeiro e os documentos enviados ao Santo Ofício evidenciam a presença de livros proibidos, que atravessaram o oceano através do contrabando 118 . Quanto às listas que chegavam aos tribunais censórios, não era desconhecido das auto- ridades reais que muitos títulos eram omitidos, outros alterados, para que fossem concedidas as devidas licenças. Há também relatos de livros cujas capas não correspondiam ao assunto que eles traziam, tratando-se de uma alteração para ludibriar os censores. O viajante francês 115 NEVES, Lúcia Maria Bastos P. Luzes nas bibliotecas de Francisco A. Gomes e Daniel P. Muller, dois intelec- tuais luso-brasileiros. In: Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e soci- edades. Lisboa: Biblioteca Digital Camões, 2008. p 7. 116 VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura: Usos do Livro na América Portuguesa. São Paulo: FFLCH-USP, 1999, (Tese de Doutorado), p. 257. 117 Os censores baseavam-se no Índex Expurgatório iniciado pela Real Mesa Censória, que servia para definir os livros que poderiam entrar, sair e circular nos domínios lusitanos. VILLALTA, Luiz Carlos. Os livreiros, os li- vros proibidos e as livrarias em Portugal sob o olhar do Antigo Regime (1753-1807). In: NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. (Org.). Livros e Impressos: retratos dos setecentos e dos oitocentos. Rio de Janeiro: Eduerj/Faperj, 2009, p. 223-268. 118 VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura: Usos do Livro na América Portuguesa. São Paulo: FFLCH-USP, 1999, (Tese de Doutorado), pp. 264-65. 52 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco L. F. Tollenare diz que, assim como em Portugal, os livros introduzidos em Pernambuco pas- savam pela censura, mas esta era facilmente ludibriada 119 . Portanto, por conta desse ardil dos remetentes para tentar passar livros proibidos pela fiscalização e, por diversas vezes, obtendo sucesso nessa empreitada, as petições e listas submetidas ao Desembargo do Paço, que com- põem parte das fontes utilizadas neste trabalho, não fornecem uma ideia completa, mas opaca e difusa, dos títulos que circularam entre os portos portugueses e o porto de Santo Antônio do Recife. O remetente que não pudesse apresentar o seu pedido ao Desembargo do Paço poderia fazê-lo por meio de um procurador. O procurador poderia ser algum parente ou amigo do re- metente, algum terceiro que exercia o “ofício” de procurador, ou mesmo os próprios livreiros instalados em Portugal. O uso de procuradores responsáveis para adquirir licenças para envio de livros junto ao Desembargo do Paço parece ter sido bastante comum. Fonte: IANTT-RMC - Livros Destinados a Pernambuco, caixas 161 e 162. Entre 1795-1820, das 333 petições enviadas ao órgão censor para licença dos livros a serem remetidos para Pernambuco, 164 apresentavam a assinatura de procuradores, ou seja, aproximadamente 49% do total de petições. Talvez o uso constante dos procuradores se deva ao fato de que alguns dos remetentes estivessem na América Portuguesa e solicitassem aos seus representantes o envio de livros para Pernambuco. Também é possível pensar que os li- vreiros instalados na praça de Lisboa exercessem a função de procuradores 120 , mediante um adicional pago pelos que queriam comprar livros, ou como uma mercê aos compradores, co- mo meio de atraí-los para a compra das obras em suas lojas, uma vez que a praça de Lisboa 119 TOLLENARE, L. F. Notas Dominicais. Recife: Secretaria de Educação e Cultura, 1978, p. 94. 120 Não era raro que os remetentes nomeassem livreiros como seus procuradores. VILLALTA, Luiz Carlos. Cen- sura literária e circulação de impressos entre Portugal e Brasil (1769-1821). In: Eliana de Freitas Dutra & Jean- Yves Mollier (Org). Política, Nação e Edição – O lugar dos impressos na construção da vida política. São Pau- lo: Annablume, 2006, p. 125. TABELA I: Petições enviadas ao Desembargo do Paço para despacho de livros com destino a Pernambuco (1795-1820) Petições Números Absolutos Números Relativos Totais 333 100% Com procuradores 164 49% Sem procuradores 169 51% 55 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco que daquela vez os livros haviam chegado e a parte que pertencia a Duarte fora entregue 129 . Curiosamente, observando-se as petições e listas de livros enviadas para Pernambuco não é encontrado nenhuma vez o nome de Cavalcanti de Albuquerque. Talvez a petição e a lista re- ferentes a esses livros enviados se perderam, ou Cavalcanti de Albuquerque mandara livros sem passar pelos censores, ou seja, havia contrabandeado obras e as enviado para Pernambu- co. Chegando ao porto do Recife, é bem provável que os impressos sofressem nova fisca- lização 130 . Nesse caso, as autoridades competentes exigiam a licença concedida pelo Desem- bargo do Paço para comprovar que os livros desembarcados haviam sido autorizados e inspe- cionados pelos censores. Caso os livros não trouxessem a licença, eram retidos na alfândega. De acordo com Luiz Carlos VILLALTA: Os livros eram retidos por não terem licença do tribunal censório para en- trarem. Isso ocorreu, por exemplo, com o padre frei José de Santa Ana, mis- sionário apostólico no Real Seminário da Bahia. Ele remeteu livros a Salva- dor pelo navio Nossa Senhora da Boa Viagem e Santo Antônio, tendo para tanto retirado a respectiva licença. Mas o capitão da embarcação perdeu-a e, por isso, os livros ficaram retidos na alfândega da Bahia. Em 20 de julho de 1775, a Real Mesa Censória ordenou ao juiz da alfândega que fossem en- tregues os livros ao missionário. O juiz da alfândega da Bahia procedeu de forma similar com Antônio Ferreira Andrade, que viu seus exemplares da Oração Acadêmica do Pe. Maciel serem retidos por falta de licença e, de- pois, liberados por provisão em 11 de junho de 1776. O mesmo sucedeu com João Amado da Costa, que obteve provisão liberando seus livros em 11 de maio de 1781. Em 1776, Domingos de Bastos Vianna remetera livros com a devida licença para a mesma cidade, mas “porque sucedeo perderse a dita licença”, nas alfândegas soteropolitanas se duvidava “dar Despacho aos referidos sem que apareç[esse] a ordem respectiva” 131 . Dessa forma, as obras estariam sujeitas a duas fiscalizações, uma no porto de embar- que, em Lisboa, mais intensa, de responsabilidade do Desembargo do Paço, outra, no porto de desembarque, por oficiais reais, possivelmente, com maior probabilidade de ser burlada. En- 129 Provavelmente, trata-se de Duarte Guilherme Ferreira, frequentador assíduo da casa dos Suassuna, como de- monstra a devassa feita em 1801. DH, CX, p. 137. 130 Após o impacto causado pela Revolução Francesa na Europa, a Coroa portuguesa enviou uma ordem a todos os juízes das alfândegas do Brasil (São Paulo, Santos, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Pará, Maranhão, Para- íba e Santa Catarina) para que fiscalizassem os recém-chegados navios nacionais e estrangeiros e que não dei- xassem entrar os livros que não viessem acompanhados das devidas licenças. VILLALTA, Luiz Carlos. Censura literária e circulação de impressos entre Portugal e Brasil (1769-1821). In: Eliana de Freitas Dutra & Jean-Yves Mollier (Org). Política, Nação e Edição – O lugar dos impressos na construção da vida política. São Paulo: Annablume, 2006, p. 114. 131 VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura: Usos do Livro na América Portuguesa. São Paulo: FFLCH-USP, 1999, (Tese de Doutorado), pp. 258-59. 56 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco tretanto, as diligências por parte dos organismos encarregados da censura não foram suficien- tes para impedir a entrada, a posse e a leitura de livros proibidos nos domínios portugueses 132 . Após a inspeção da alfândega e não havendo nenhuma evidência suspeita, por fim, de- sembarcavam no porto do Recife e eram entregues aos remetentes. Das mãos do remetente, os livros podiam seguir outros caminhos: ir compor bibliotecas pessoais, serem emprestados aos parentes e amigos, trocados ou mesmo vendidos após sua leitura. Se porventura os impressos comprados ficassem em posse somente de seu comprador ou de um pequeno grupo de conhe- cidos, ainda assim haveria alguma circulação de suas principais ideias. Elas poderiam transitar dos que leram para os que não leram, por meio da cultura oral, através de ensinamentos, co- mentários, citações, debates etc. Robert DARNTON, ao estudar o livro e a leitura na França, diz que os livros eram mais ouvidos do que lidos 133 . É certo que o autor pensa o livro e a leitu- ra para a realidade da França – que era bastante diferente da realidade pernambucana –, onde, ao longo do século XVIII, em algumas regiões, os livros eram lidos na hora das refeições pelo pai protestante à família, ou por algum camponês que soubesse ler, aos seus pares, no fim dos trabalhos diários. Em Pernambuco, como logo se verá, os livros eram lidos pelos membros da elite local, que também os divulgavam a outros homens igualmente distintos, mas que não sa- biam ler, tamanho era o iletramento 134 que abarcava quase todos os habitantes de Pernambu- co, independentemente de cor, credo ou riqueza. Eventualmente, esses poucos leitores disse- minavam também algumas ideias aos homens de baixa estirpe através da cultura oral, uma vez que livros eram mais ouvidos que lidos. Maria Beatriz Nizza da SILVA afirma que, nos gran- des centros urbanos, havia alguns locais privilegiados de conversa, como as boticas e bote- quins, nos quais os livros eram comentados quanto ao seu conteúdo. Além disso, circulavam entre a população cópias manuscritas de livros inteiros ou em partes 135 . 132 VILLALTA, Luiz Carlos. Censura literária e circulação de impressos entre Portugal e Brasil (1769-1821). In: Eliana de Freitas Dutra & Jean-Yves Mollier (Org). Política, Nação e Edição – O lugar dos impressos na cons- trução da vida política. São Paulo: Annablume, 2006, p. 113. 133 DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 158. 134 Tomo emprestado o conceito de letrado e iletrado utilizado por Christianni Cardoso MORAIS. De acordo com a pesquisadora, letramento é a apropriação da capacidade de uso dos códigos escritos em suas variadas formas. (...) ser letrado é estar capacitado a utilizar socialmente os códigos escritos, mesmo que o sujeito em questão não saiba ler ou escrever. É estar envolvido em uma cultura letrada e conseguir se utilizar dessa cultu- ra. Não é uma capacidade circunscrita à habilidade da leitura/escrita e muito menos a um processo de escolari- zação. MORAIS, Christianni Cardoso. Posse e usos da cultura escrita e difusão da escola de Portugal ao Ul- tramar, Vila e Termo de São João del-Rei, Minas Gerais (1750 -1850). Belo Horizonte: FAFICH-UFMG, 2009, (Tese de Doutorado), p. 20. 135 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A cultura luso-brasileira: da reforma da Universidade à Independência do Brasil. Lisboa: Estampa, 1999, p. 140. 57 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco Sobre a importância da cultura oral em Pernambuco, basta lembrarmo-nos do episódio citado no início do capítulo, quando várias pessoas descobrem o motivo da prisão dos irmãos Suassuna, incluindo uma negra vendedora de peixe e alguns homens pardos que eram seus próximos. Mesmo assim, é necessário salientar que as ideias que esses livros traziam não eram fixas e imutáveis, imunes a alterações, mas podiam ser apropriadas de maneiras diversas pelo leitor; ao serem lidas e/ou ouvidas, podiam também ser apropriadas de outras maneiras, ganhando novos tons 136 . 1.4 Comércio legal e contrabando de impressos Para o período estudado, várias foram as petições para o envio de impressos ao Recife. Entretanto, em Pernambuco não existiu um comércio de livros exercido exclusivamente por livreiros, que vendessem obras religiosas e profanas, como havia no Reino e mesmo no Rio de Janeiro e Salvador 137 . O que existiu em Pernambuco foi um intenso comércio de obras religio- sas, com locais fixos e reconhecidos, como o convento da Madre de Deus no Recife. Havia, ainda, a venda de livros profanos feita por comerciantes de diversos artigos, como predomi- nava no Rio antes da chegada da Corte portuguesa – e não por livreiros 138 : segundo Maria Be- atriz Nizza da SILVA, na última década do século XVIII, o Rio de Janeiro contava com ape- 136 Para Roger Chartier, ocorre uma tensão operatória: de um lado, há a tentativa do autor (e também dos edito- res, ou mesmo da Coroa e da Igreja, por meio dos controles que exerciam sobre os livros) passar com os seus es- critos determinadas ideias para o seu leitor e, de outro, há a inventividade dos leitores, a produção pessoal de sentido em contato com o texto lido. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 121. 137 Um comércio livreiro voltado para a venda de livros profanos, tais como dicionários (não religiosos), enciclo- pédias, livros de história, jurídicos, manuais, romances etc. Para o Rio de Janeiro, antes da chegada de D. João, o comércio de livros exercido exclusivamente por livreiros também era bastante reduzido, com demanda bastante específica voltada para áreas profissionais, tais como obras para sacerdotes, magistrados e médicos. Após 1808, observou-se, na referida cidade, uma intensificação do comércio livreiro, liderado por franceses, que não só ven- diam livros, mas também outros itens, ou seja, o comércio de livros não era feito propriamente por livreiros e sim por comerciantes. NEVES, Lúcia Maria Bastos P. Trajetórias de Livreiros no Rio de Janeiro: uma revisão historiográfica. X Encontro Regional da ANPUH. Rio de Janeiro: ANPUH, 2002, (Encontro), p. 2. 138 Faço uso do termo livreiro no sentido definido no dicionário de Raphael Bluteau, e também utilizado por Luiz Carlos VILLALTA, de agente comercial que se volta exclusivamente para a venda de livros. BLUTEAU, Ra- phael. Vocabulário Portuguez & Latino, áulico, anatômico, architetonico [...]. Lisboa: Officina de Paschoal Sil- va, 1716, vol. 4, p. 263. Veja: VILLALTA, Luiz Carlos. Os livreiros, os “livros” proibidos e as livrarias em Por- tugal, sob o olhar do Antigo Regime (1753-1807). In: NEVES, Lúcia Bastos Pereira das (Org.). Livros e Impres- sos: retratos dos setecentos e dos oitocentos. Rio de Janeiro: Eduerj/ Faperj, 2009, pp. 223-68. Podiam esses li- vreiros ainda acumular outras funções além da venda de livros, como editar, traduzir e mesmo escrever livros. Pensei o termo comerciante, imaginando que eles vendessem de tudo um pouco, não sendo tão especializados quanto os livreiros. Lendo os Documentos Históricos, notei que havia uma diferenciação implícita entre os ter- mos comerciante e negociante. Enquanto o primeiro se dedicava ao comércio miúdo e tinha pouca importância social, o segundo se dedicava ao comércio de grosso trato e era bem visto socialmente. 60 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco Como bem reparou o viajante inglês, uma vila do tamanho do Recife, pólo do Norte da América Portuguesa, deveria trazer ao menos uma tipografia ou alguns livreiros. Não sabia Koster das enormes dificuldades de se instalar tipografias no mundo luso-brasileiro, sobretudo porque instalar uma tipografia era uma concessão de privilégio feita pela Coroa. A vinda da família real para o Brasil, não melhorou a sorte de Pernambuco e, até a escrita do relato do vi- ajante, nenhuma tipografia havia sido instalada. 147 . Ao que parece, até 1817, havia apenas du- as tipografias no Brasil: uma, no Rio de Janeiro, por determinação da Coroa, e outra, na Ba- hia, fruto dos esforços de Manuel Antônio da Silva Serva 148 . Oliveira LIMA menciona docu- mentos que comprovam que, se no ano de 1817 a Revolução não tivesse ocorrido, Pernambu- co contaria com o funcionamento de sua primeira tipografia. Em 1815, o negociante Ricardo Fernandes Catanho teria encomendado um prelo da Inglaterra e requerido junto ao Governo Português a necessária licença para utilizá-lo. Caetano Pinto Montenegro, que governava Per- nambuco na época, teria encaminhado o pedido de licença em maio de 1816 ao ministro Mar- quês de Aguiar, com um parecer favorável. A licença foi concedida em 9 de novembro do mesmo ano, devendo o governador organizar com o bispo da diocese o serviço de revisão e aprovação e o corpo de censores 149 . Não tiveram tempo para isso, pois, quatro meses depois, ocorreu a Revolução de 1817, com a expulsão do governador de Pernambuco e a adesão do deão – que substituía o bispo de Pernambuco há anos – ao levante. A Revolução foi, enfim, o momento em que a tipografia em Pernambuco trabalhou pela primeira vez. É importante sublinhar que, malgrado a falta de tipografias, não havia restrições formais ao comércio de livros no Norte, que distinguissem a região em relação a outras partes do Im- mercado de livro. No original, porém, Koster não menciona o mercado de livros, mas os livreiros. Suprimi a ex- pressão mercado de livros, utilizada por Câmara CASCUDO, substituindo-a pelo termo livreiros. No original, encontra-se o seguinte trecho: It will appear surprising to English persons, that in a place so large as Recife, there should be no printing press or bookseller. At the convent of the Madre de Deos, are sold almanacks, prints and histories of the Virgin and saints, and other productions of the same description, but of very limited size, printed at Lisbon. KOSTER, Henry. Travels in Brazil. London: Printed for Longman, Hurst, Rees, Orme and Brown, 1816, p. 36. 147 Lúcia Maria Bastos P. Neves cita um caso ocorrido em 1799, quando negociantes portugueses tentaram im- pedir que a Junta do Comércio em Lisboa concedesse passaportes a Paulo Martin e a Francisco Rolland, ambos filhos de livreiros com intenções de se estabelecer na América. Diziam que os mercadores estrangeiros causavam vários prejuízos aos negociantes portugueses e, não contentes, queriam aumentá-los ao desejarem instalar casas de comércio de livros no Rio de Janeiro. NEVES, Lúcia Maria Bastos P. Trajetórias de Livreiros no Rio de Ja- neiro: uma revisão historiográfica. X Encontro Regional da ANPUH. Rio de Janeiro: ANPUH, 2002, (Encontro). 148 O referido personagem era reinol, tendo chegado ao Brasil em 1797. Instalou-se na Bahia para cuidar de seus negócios. Em 1810, foi administrador da Real Fábrica de Cartas de Jogar da Capitania. No mesmo ano, dirigiu ao governador, Conde dos Arcos, uma petição requerendo autorização para abrir uma tipografia com prelos comprados da Europa. Em 1811, sua petição foi deferida. SILVA, Maria Beatriz Nizza da, op. cit., p. 163. 149 LIMA, M. Oliveira. Annotações. In: TAVARES, Francisco Muniz. História da Revolução Pernambucana de 1817. Ed. revista e anotada por Oliveira Lima. 2ª ed. Recife: Imprensa Industrial, 1917, pp. 153-54. 61 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco pério Português. Koster percebe que, na verdade, obras religiosas podiam ser adquiridas mais facilmente. Tanto que, no convento da Madre de Deus, situado no coração do bairro do Reci- fe 150 , era fácil a aquisição de impressos religiosos. Entre os títulos enviados pelos clérigos da Congregação do Oratório em Portugal, provavelmente com destino ao convento da Madre de Deus, que estava sob a jurisdição da ordem, há menções continuas às populares folhinhas de rezas, sendo exceções somente quatro anos, no período entre 1795-1820: 1795, 1801, 1804 e 1815 151 . Há também menção aos missais, cartilhas e novenas. Em 1799, por exemplo, foram enviadas 180 folhinhas de reza, ao passo que, em 1803, foram remetidos 200 livrinhos de de- voção, cujo título era Escudo admirável para os males da vida, escrito pelo padre Manoel Jo- sé, da Congregação do Oratório do Porto 152 . Aliás, os clérigos da Congregação do Oratório em Portugal tiveram importante atuação no comércio legal de livros em Pernambuco. Das 333 petições enviadas ao Desembargo do Paço entre 1795-1820, 31 foram feitas pelos oratorianos, quase 10% do total. O maior número de solicitações, tomadas isoladamente, também foi feito por um oratoriano: o padre José da Silva, da Congregação do Oratório, que por 14 vezes soli- citou autorização para o envio de obras a Pernambuco. É possível supor que os oratorianos de Portugal se beneficiassem do comércio livreiro em Pernambuco. Os livreiros figuram um pouco mais do que os oratorianos no envio de petições, no total de 37. Borel, Borel e Cia ocupa o segundo lugar em números de solicitações ao Desembargo do Paço, com 11 petições, atrás do oratoriano padre José da Silva 153 . É possível também supor que, além de se dedicarem a esse comércio, os oratorianos estivessem montando uma biblio- teca no Recife. Gláucio VEIGA diz que só no final do século XVIII, o Convento da Madre de Deus abrigava mais de 2.000 obras 154 – sobre essa biblioteca tratarei no Capítulo 2. Dessa forma, portanto, o lamento do inglês não recaía sobre uma ausência de comércio de impressos em si – porque esse comércio existia –, mas sobre a dificuldade de se adquirir impressos em lojas especializadas na venda de livros. Isso nos permite dizer que havia um público que comprava impressos, ainda que não fosse constituído totalmente por letrados e cuja preferência era mais estimulada pela religiosidade. Para esses compradores, livros religi- osos eram preferíveis aos demais impressos. Uma carta enviada por um comerciante de grosso 150 Como assinala o mapa de Henry Koster, o bairro do Recife também era conhecido por ser um espaço tradici- onal onde os negociantes se reun[iam] para seus tratos, Henry Koster, p. 34. 151 As petições analisadas referem aos anos 1795-1796, 1799-1804, 1807-1808, 1813-1820. IANTT-RMC (Insti- tuto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo – Real Mesa Censória/ Real Mesa da Comissão Geral para a Censura de Livros/ Desembargo do Paço). Livros Destinados a Pernambuco, caixas 161 (1768-1808) e 162 (1808-1820). 152 IANTT-RMC. Livros Destinados a Pernambuco, caixas 161 (1768-1808) e 162 (1808-1820). 153 Ibidem, loc. cit. 154 VEIGA, Gláucio. A biblioteca dos Oratorianos. RIAHGP, Recife, vol. L., pp. 51-66, 1978. 62 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco trato, instalado na América Portuguesa, para um livreiro em Portugal, indica essa predileção. Dizia que o comércio de livros era rentável no Rio de Janeiro, sendo que os livros de religião (missais, breviários, horas latinas etc.) eram os mais vendáveis, ainda que os livros fora do comum fossem mais atrativos 155 . Em outras palavras, a anemia de um comércio de obras pro- fanas em Pernambuco pode ser justificada também por uma demanda maior, sobretudo quan- tativamente, por obras religiosas. O comércio de obras religiosas era notável em Pernambuco por conta de quatro fatores principais, que não se isolam, mas que estão intimamente imbricados. Com a popularização dos livros, após o advento da imprensa, os fiéis e súditos portugueses procuravam por obras católicas, que retratassem a vida dos santos, missais, livros de horas, comentários sobre a Bí- blia e mesmo as obras que tratavam de amplas discussões teológicas. Assim, os compradores desses livros, no final do século XVIII e início do século XIX, mesmo que não soubessem ler, teriam tradicionalmente uma relação cultural com os mesmos. Não haveria de ser diferente em Pernambuco, parte do Império Lusitano e cuja sociedade também era católica, interessada em assuntos que diziam respeito à fé. O segundo fator é que os impressos religiosos eram tidos pelos fiéis compradores como objetos sagrados e passíveis de devoção, cuja posse nem sempre implicava que o seu possui- dor fosse capaz de lê-lo. Não era raro que esses impressos religiosos tivessem uma utilidade além daquela de ensinar ou informar, servindo também para a função sagrada de proteger, como se fossem amuletos que, guardados dentro da algibeira ou no fundo do bolso pelo seu tamanho diminuto, confeririam ao seu portador proteção divina. O Livro de Santa Bárbara, protetora contra raios, trovões, coriscos, maremotos e terremotos, é um caso clássico que ilus- tra essa hipótese, pois foi bastante comercializado no século XVIII – e ainda o é nos nossos dias –, sendo utilizado tanto para a leitura, quanto para amuleto de proteção. Nenhum dos im- pressos religiosos superou em termos de quantidade em circulação os Livros de Santa Bárba- ra, escritos de devoção remetidos aos milhares para todos os cantos da América Portugue- sa 156 . A compra de um impresso religioso, diferentemente da compra de um impresso de outra 155 NEVES, Lúcia Maria Bastos P. Trajetórias de Livreiros no Rio de Janeiro: uma revisão historiográfica. X En- contro Regional da ANPUH. Rio de Janeiro: ANPUH, 2002, (Encontro). Também: CURTO, Diogo Ramada. Cultura escrita: séculos XV a XVIII. Lisboa: ICS, 2007. 156 VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura: Usos do Livro na América Portuguesa, op. cit., p. 379. O Livro de Santa Bárbara trazia informações sobre a santa e diversas rezas que, fei- tas em seu nome, conferiam as mais variadas formas de proteção. Geralmente eram bastante diminutos, cabendo nos bolsos, e de preço desprezível. Em 1768, seu valor de venda em Minas Gerais, ou seja, considerando os ga- nhos dos vendedores, não ultrapassava $170 réis. Ibidem, p. 372. 65 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco lusitana 165 . As próprias proibições dos órgãos censórios, às vezes, funcionavam como estímu- lo para a compra de obras proibidas. Os órgãos censórios tinham consciência disso. Em 1776, por exemplo, o livro Memórias Turcas foi proibido, mas não por meio de edital, pois havia o receio, por parte dos censores, que a curiosidade dos leitores fosse instigada e que esses pro- curassem saber o que a sobredita obra continha 166 . Um dos estímulos para o contrabando de livros proibidos estava na curiosidade em sa- ber quais eram as ideias que eles traziam. Possivelmente, outros fatores contribuíram para a prática do comércio ilegal de livros em geral (não apenas das obras defesas), tal como a de- mora na concessão de licenças 167 – o que obrigaria os leitores a se valerem de meios mais rá- pidos para adquirir livros – ou as inquirições dos órgãos censores aos remetentes sobre alguns livros. A facilidade que possíveis contrabandistas poderiam oferecer aos compradores era de que seus livros não seriam submetidos à censura e, portanto, ser-lhes-ia possível adquirir li- vros proibidos (e permitidos) e usufruir de uma circulação mais rápida, sem se comprometer com a fiscalização 168 . Evidentemente, essas facilidades tinham um preço. Como bem obser- vou o viajante Carl Ruders, em Portugal, os livreiros que vendiam obras proibidas cobravam um preço maior, se comparado ao das obras permitidas 169 . Fenômeno semelhante acontecia na França. Roger CHARTIER revela que os livros filosóficos, além de levar muita gente para a Bastilha ou para as galés, apresentavam um preço que era o dobro dos livros comuns 170 . 165 Obras que trouxessem críticas desses tipos poderiam ser proibidas. Em 1768, no reinado de D. José I, a Real Mesa Censória fixou 15 condições que tornariam as obras passíveis de proibição, sendo que sete dessas condi- ções diziam respeito às críticas à fé católica: eram proibidas obras que contivessem críticas à autoridade do papa, que fossem produzidas por ateus e que dessem apoio ao fanatismo e à superstição, dentre outras condições. Ha- via também quatro condições de ordem política, como a que pesava contra as obras que diziam que o soberano tudo podia contra o bem comum do vassalo ou, ao contrário, que concediam ao povo todo o poder político, in- clusive, o direito de destituir seus reis. A rainha D. Maria I e o príncipe regente D. João continuaram as tendên- cias censórias seguidas no reinado josefino. VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura: Usos do Livro na América Portuguesa. São Paulo: FFLCH-USP, 1999, (Tese de Doutorado), pp. 202-06. 166 Ibidem, p. 241. 167 Diz o viajante sueco Carl Israel Ruders que se algum particular, mesmo estrangeiro, cai na asneira de decla- rar na alfândega os livros que mandou vir, é de recear que tenha de esperar por eles longo tempo, e até, talvez, de ficar sem alguns, sobretudo se dizem respeito a Portugal.(...) Os livros de que aqui me sirvo, segundo presu- mo, nunca passaram pela alfândega; de contrário não teriam chegado às mãos sem reclamações e dificuldades, o que não vale a pena se se não trata de porções consideráveis. RUDERS, Carl Israel, op. cit., p. 225. 168 Segundo Luiz Carlos VILLALTA, os órgãos censórios colocavam obstáculos à impressão, ao comércio, à posse e à leitura. A censura era uma máquina “burocrática” lenta frente ao dinamismo editorial e ao comércio li- vreiro. A retenção de livros, mesmo que temporária, poderia ser bastante longa, durando anos. VILLALTA, Luiz Carlos. Censura literária e circulação de impressos entre Portugal e Brasil (1769-1821). In: Eliana de Freitas Du- tra & Jean-Yves Mollier (Org). Política, Nação e Edição – O lugar dos impressos na construção da vida políti- ca. São Paulo: Annablume, 2006, pp. 113-127. 169 RUDERS, Carl Israel, op. cit., p. 225. 170 CHARTIER, Roger. Origens Culturais da Revolução Francesa. São Paulo: Editora Unesp, 2009, p. 119. 66 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco Um dos pontos de partida de livros contrabandeados era a França. Em Portugal, havia notória presença de franceses no comércio de livros, que não deixavam de tecer entre si uma colaboração mútua, com o estabelecimento de vínculos familiares, empréstimos e socieda- des 171 . Esses livreiros franceses, mas também outros livreiros em geral, agiam como interme- diários na compra de livros proibidos oriundos do exterior e os revendiam em Portugal 172 . De acordo com o viajante sueco Carl RUDERS, os livros proibidos estavam ao alcance de toda a gente, sem por isso incorrer em censura, pode ler e possuir livros proibidos; ninguém faz in- quéritos a tal respeito 173 . De qualquer modo, era preciso fazê-los chegar aos leitores. Uma maneira prática de conseguir esses livros era através da ajuda de algum mestre de embarcação ou marinheiro que navegasse entre diversos países. É necessário ressaltar, no entanto, que al- guns livreiros gozavam de permissões para vender livros defesos às pessoas autorizadas pelos tribunais censórios a possuir obras proibidas. Outra forma de se adquirir esses livros era atra- vés de contatos com os membros do corpo diplomático, que gozavam de imunidade em rela- ção à censura, ainda que tivessem que passar pelo controle da alfândega 174 . As obras também poderiam ser contrabandeadas por parentes e amigos que, ao voltarem para a América, pode- riam trazer alguns volumes escondidos em meio aos pertences sem serem fiscalizados. Por outro lado, a Coroa Portuguesa não era alheia à existência do contrabando de obras proibidas. Oficiais régios atuavam na fiscalização dos impressos que eram embarcados em Lisboa, como também em seu desembarque nos diversos portos da América Portuguesa, como foi demonstrado anteriormente neste Capítulo. Se havia fiscalização tanto no embarque quan- to no desembarque, o governo português reconhecia que, mesmo após a vistoria dos navios em Portugal, de alguma forma, as embarcações ainda podiam conseguir levar alguns impres- sos proibidos para a América. Por isso, havia a necessidade de funcionários atentos ao contra- bando nos portos do Brasil 175 . A constante vigilância da Coroa sobre os impressos que circu- lavam dentro do Império Português talvez seja um desdobramento de uma preocupação ainda 171 VILLALTA, Luiz Carlos. Os livreiros, os livros proibidos e as livrarias em Portugal sob o olhar do Antigo Regime (1753-1807), op. cit., p. 227. Veja também: NEVES, Lúcia Maria Bastos P. Trajetórias de Livreiros no Rio de Janeiro: uma revisão historiográfica. X Encontro Regional da ANPUH. Rio de Janeiro: ANPUH, 2002, (Encontro). CURTO, Diogo Ramada, op. cit., p. 216. 172 VILLALTA, Luiz Carlos. Os livreiros, os “livros” proibidos e as livrarias em Portugal, sob o olhar do Antigo Regime (1753-1807), op. cit., p. 234. 173 RUDERS, Carl Israel, op. cit., p. 225. 174 Só no ensaio de Luiz Carlos VILLALTA, há menção do envolvimento de três membros do corpo diplomáti- co, de origens nacionais distintas: um austríaco, um holandês e um sueco. O Intendente de Polícia, Diogo Inácio de Pina Manique, desconfiava que alguns ministros do corpo diplomático eram responsáveis por fazerem apare- cer junto ao público livros sediciosos. Ibidem, pp. 233-34. 175 Luiz Carlos Villalta também concorda que as autoridades tinham consciência da vulnerabilidade das alfân- degas. VILLALTA, Luiz Carlos. Censura literária e circulação de impressos entre Portugal e Brasil (1769-1821), op. cit., p. 114. 67 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco maior. O governo português entendia que a leitura de impressos proibidos teria o poder de corromper os súditos leitores, fazendo-os questionar os pilares da monarquia portuguesa, bem como as da moral cristã 176 . Em análise do alvará sancionado pelo príncipe regente D. João VI em 30 de julho de 1795, que regulava os critérios pelos quais os livros deveriam ser censura- dos pela Inquisição, pelo Ordinário, pelo Desembargo do Paço, Luiz Carlos VILLALTA diz que: no campo político, as condições demonstram a preocupação com as ideias que se voltassem contra a monarquia, as relações entre súditos e vassalos e que suscitassem a sedição ou proclamassem que os soberanos tudo poderi- am fazer. Quanto à religião, vê-se a rejeição ao deísmo, ao ateísmo, ao ma- terialismo, à liberdade de crença, ao paganismo, ao judaísmo, ao maome- tismo, à falibilidade papal, às dúvidas sobre a autoridade dos bispos e sobre a disciplina eclesiástica 177 . Para a Coroa Portuguesa, os súditos que tomassem ciência dessas ideias semeadas pelos impressos proibidos poderiam propagá-las para os demais através da venda/troca/empréstimo de impressos ou, ainda mais facilmente, através da cultura oral, o que poderia acarretar em uma série de problemas para as autoridades reais. O Intendente Geral de Polícia Diogo Inácio de Pina Manique, que atuou entre 1780-1805 nesse cargo, prendeu, em 1794, na cidade de Lisboa, dois franceses que eram donos de uma casa de pasto, espécie de local para hospeda- gem e alimentação. Entre os bens deles, encontrou, além de papéis sediciosos, estampas mais obscenas em atos pecaminosos, figurando religiosos em ações torpes com mulheres. O Inten- dente presumiu que esses papéis combinados talvez tivessem por objetivo arrastar ali gentes libertinas, que fossem fáceis abraçarem princípios revolucionários 178 . Como aquela casa de pasto era muito frequentada, concluiu que era natural a disseminação daqueles princípios re- volucionários também por vias da cultura oral 179 . No que diz respeito à fiscalização que buscava evitar o contrabando, a observância so- bre a circulação de impressos não recaía somente sobre as embarcações que faziam o trajeto Portugal-América Portuguesa, mas também sobre aquelas que navegavam entre os portos do Brasil. Henry Koster, ao descrever sua viagem de navio entre Pernambuco e Maranhão, conta que foi fiscalizado no momento em que desembarcava: 176 VILLALTA, Luiz Carlos. Censura Literária en el mundo Luso-brasileño (1517-1808): Órganos censorios y criterios de interdiccion y obras prohibidas. Cultura Escrita y sociedad, Alcalá, 2008, p. 114. 177 Ibidem, loc. cit. 178 IANTT, Intendência Geral de Polícia, Livro 4, pp. 164-65. 179 VILLALTA, Luiz Carlos. Os livreiros, os livros proibidos e as livrarias em Portugal sob o olhar do Antigo Regime (1753-1807), op. cit., p. 249. 70 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco los, com o intuito de tomarem conhecimento dos temas que eles tratavam. Nessa parte, pode- mos perceber que os funcionários não estavam tão bem preparados para fiscalizar os impres- sos que chegavam aos seus portos. Decerto, eles não conheciam o idioma inglês, que era me- nos difundido que o francês naquele tempo. Porém, o despreparo dos funcionários está na confiança da tradução dos títulos feita pelo próprio proprietário (!) das obras, aliás, a incum- bência de listá-las cabia legalmente aos seus proprietários, situação em que a eficácia da fisca- lização sobre a circulação dos livros ficava em boa parte dependente da colaboração dos que os transportavam ou remetiam. A possibilidade de os funcionários da alfândega mandarem os proprietários traduzirem os títulos das obras publicadas em idioma que não dominassem, con- forme sugere o relato de Koster, traz mais um elemento facilitador para se ludibriar a fiscali- zação aos impressos nas alfândegas, bem debaixo das barbas daqueles oficiais régios. Após a tradução dos títulos das obras, Henry Koster se deparou com outro incômodo: o oficial que as inspecionava, tomando conhecimento do que elas tratavam, resolveu não devol- vê-las. Para o viajante inglês, aquela postura do funcionário real era espantosa, talvez tão abu- siva quanto adentrar num navio e alimentar-se de suas provisões, pois os livros que ele trazia não eram nada demais, somente livros de história. Por que, então, um oficial da alfândega, que não sabia ler os títulos em inglês, resolveu embargar uma caixa com todos os livros do vi- ajante? Para isso, ao que parece, há três possibilidades de explicação. A primeira explicação seria a de que o oficial apenas cumpria o seu dever ao confiscar a caixa, uma vez que os livros que ela continha não traziam as devidas licenças. Caso semelhan- te teria acontecido anos antes no mesmo porto. Em 1808, Francisco José Dias enviou 370 de Lisboa para o Rio de Janeiro. Porém, antes de chegar ao seu destino, assim que a embarcação tocou o porto de São Luís, os livros foram confiscados. Em seguida, a alfândega daquela ci- dade despachou os livros de volta para Lisboa, para inspeção do Desembargo do Paço. Demo- raram-se mais quatro anos até que fosse autorizada a remessa dos livros de volta para o Rio de Janeiro, impedindo-se, porém, a entrega dos livros que fossem proibidos 184 . No entanto, para o caso dos livros de Koster, o inglês não deixa claro para o seu leitor que o confisco de livros era comum quando não se apresentassem as devidas licenças. A segunda explicação possível estaria no desejo do oficial de exercer um poder desme- dido e caprichoso, no interior de sua esfera de jurisdição, quem sabe à espera de obter algum ganho material, o recebimento de algum suborno. Na história da administração portuguesa, 184 VILLALTA, Luiz Carlos. Censura literária e circulação de impressos entre Portugal e Brasil (1769-1821), op. cit., p. 120. 71 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco são comuns os casos de oficiais régios que exorbitaram do poder de que se achavam invest i- dos. Não seria, portanto, estranho que o oficial cuja conduta analisei se arriscasse a confiscar todos os livros de Koster. A terceira possível explicação, que não exclui as demais, é a de que o funcionário da al- fândega estivesse envolvido com o contrabando de impressos. A princípio, ele não embargou a caixa de livros por desconhecer quais títulos traziam, mas, após a tradução de Koster, houve uma súbita inclinação em confiscar toda aquela caixa repleta de obras de história. Nota-se que Henry Koster diz que o funcionário estava pouco inclinado a devolver suas obras, o que deno- ta, ao menos no discurso do narrador, certa ilegalidade na ação do oficial, beirando a rapaci- dade, pois não parecia haver motivo para tomar posse daquelas obras. O inglês se sentiu ultra- jado com o confisco de sua caixa e, ao comentar com um amigo o que se passara na alfânde- ga, esse o desenganou dizendo que poderia julgá-los perdidos, ou seja, não havia estranha- mento por parte dos habitantes do Maranhão quando havia essas apreensões, lícitas ou não, além do que era de conhecimento público e notório que, se houvesse o interesse do oficial pe- los impressos, dificilmente haveria chances de reavê-los. O conselho do amigo também impli- caria que a tentativa de recorrer a outras autoridades, mesmo que fossem superiores àquele funcionário, seria infrutífera: a solução sugerida era conformar-se com o fado. Amante do hábito de ler e escrever e desenganado pelo amigo sobre a possibilidade de recuperar suas obras, Koster resolveu apelar, em última instância, para a autoridade real de maior poder político do Maranhão, o governador, para se contrapor aos empecilhos que o fun- cionário da alfândega impunha na recuperação dos livros. Será que Koster não recorreu a ou- tras autoridades imediatamente superiores aos funcionários da alfândega porque também era de conhecimento de todos que elas respaldavam àquela prática de confisco? Ou será que Kos- ter apenas recorreu ao governador, para que aquela situação se resolvesse de uma vez por to- das, uma vez que se tratava da autoridade local máxima? É difícil de responder, porém o in- glês concluiu que recorrer à maior autoridade política e militar da Capitania era uma decisão acertada, pois logo a caixa de livros voltou a ser embarcada. Ainda sobre esse mesmo episódio, Henry Koster admitiu que, se não tivesse recorrido ao governador do Maranhão, provavelmente, jamais tornaria a ver os seus livros. Talvez essa fala do viajante seja mais do que uma força de expressão. A hipótese que me parece mais plausível é a de que alguns funcionários da alfândega – ao menos os que atuavam nos portos do Norte da América Portuguesa, por onde Koster viajou, como os do porto do Maranhão – eram propensos a serem agentes facilitadores do comércio ilegal de impressos e/ou usassem de seus ofícios exorbitando das atribuições que tinham, exercendo-os despoticamente. 72 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco Luiz Carlos VILLALTA encontrou um caso, ocorrido no mesmo porto do Maranhão, que mostra a participação de um oficial no contrabando de livros, embora não fosse um oficial da alfândega. Em 1779, foi denunciado à Inquisição que Marçal Inácio Monteiro, guarda- livros da Companhia Geral de Comércio do Estado do Grão-Pará e Maranhão, estava envolvi- do no contrabando de livros. Dizia o denunciante, Dr. Miguel Marcelino Veloso e Gama, ou- vidor geral da comarca de S. Luís, que havia tratado de conversas literárias com Marçal e que queria mandar vir de Lisboa alguns livros de boa instrução. Marçal se ofereceu para arranjar os livros, talvez por ocupar um cargo que facilitasse essas transações. Após alguns meses, Marçal comunicou a chegada dos livros ao ouvidor. Ambos deveriam ir a bordo do navio e procurar por um dos oficiais da tripulação. O oficial, então, entregou a Marçal um saco com várias encomendas e, naquela mesma noite, foram enviados para a casa do ouvidor uns jogos de livros em oitavo. Alguns dos livros enviados eram permitidos, como o Do Espírito das Leis, de Montesquieu, e Cartas do Santíssimo Padre Clemente décimo quinto. Entretanto, ha- via outros que eram proibidos, tais como: Educação do Homem de Helvetius, Questões sobre a Enciclopédia de Voltaire e História do Imperador Carlos Quinto de Willian Robertson. Se- gundo VILLALTA, esses livros somente chegaram à América graças à conivência ou inefi- cácia da fiscalização reinol e à ação de livreiros ou leitores residentes na corte que driblaram a fiscalização censória no comércio marítimo, no Reino de Portugal (e também na América Portuguesa) 185 . As facilidades que Marçal encontrou em 1779, é importante ressaltar, associ- am-se ao fato dele ser funcionário da Companhia Geral de Comércio do Estado do Grão-Pará e Maranhão, que detinha o monopólio do comércio entre Portugal e a região. Guardadas as devidas diferenças, o funcionário que fiscalizou as obras de Henry Koster e se negou a devol- vê-las talvez gozasse das mesmas (ou de maiores) facilidades que Marçal dispunha e também se envolvesse com o comércio ilegal de livros. Concluindo sua narração sobre o episódio da apreensão das caixas de livros, Henry Kos- ter disse que, por todas as partes que percorreu do Brasil 186 , as autoridades reais impunham tantas restrições que criavam dificuldades para a aquisição de impressos. Dessa forma, segun- do Koster, a maneira usual de se adquirir livros era através do contrabando. Esses dizeres re- velam que havia, sim, um comércio de impressos, que não se restringia apenas aos exemplares de matéria religiosa, tal como acontecia no Convento da Madre de Deus em Santo Antônio do Recife. Tratava-se, em parte, de um comércio ilícito, de contrabando, que abastecia os poucos 185 VILLALTA, Luiz Carlos. Os livreiros, os livros proibidos e as livrarias em Portugal sob o olhar do Antigo Regime (1753-1807), op. cit., p. 243. 186 Isto é, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Maranhão. 75 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco timo, de acordo com Gonçalo MOURÃO, era um jornaleco feito para atacar o Correio Brazi- liense 195 . Ademais, sabe-se que o contrabando de outros produtos em Pernambuco também era bastante alto. Segundo o autor anônimo de Revolucções do Brasil, que escreveu sobre Per- nambuco pouco depois da Revolução de 1817, o contrabando era horrível, e tinha muita ra- zão o público, quando falava em quatro alfândegas 196 . As quatro alfândegas mencionadas pe- lo autor seriam: duas legais, controladas pelos funcionários régios, isto é, uma em Portugal e uma em Pernambuco, e duas ilegais, do que se entende que os produtos transitavam entre por- tos improvisados e escondidos na costa pernambucana. Portanto, os impressos poderiam tam- bém chegar a Pernambuco através desse contrabando horrível, recorrendo-se inclusive a an- coradouros clandestinos. Uma das citadas anotações de Henry Koster remete-nos à ideia de que havia um comér- cio de impressos proibidos, pois os periódicos estavam por toda parte. O viajante não se es- quece dos leitores desses mesmos periódicos proibidos: civis, militares e eclesiásticos. Decer- to que a palavra civil não significa o populacho e, sim, os demais homens acima da chusma, mais ou menos letrados e que não se encaixavam na categoria militar ou eclesiástica, tais co- mo os negociantes, funcionários reais, senhores de engenho, médicos, advogados etc. Koster também reconstituiu um pouco da relação desses leitores com os periódicos proibidos, pois, além de adquiri-los de maneira obscura e de os lerem, também fala[vam] publicamente neles, ou seja, difundiam verbalmente as notícias impressas a outros homens dos seus círculos de amizades. Dessa forma, não só a materialidade do papel era importante para difundir as ideias que um impresso trazia, mas também os próprios leitores, quando difundiam as notícias oral- mente. Por sua vez, essas notícias poderiam ser contadas e recontadas para outros, formando assim uma cadeia, que poderia até mesmo abarcar os homens mais simples do sertão. É possí- vel conjecturar que alguns desses leitores de periódicos proibidos – civis militares e eclesiás- ticos – transitassem pelo Norte da América Portuguesa e se encontrassem com a curiosidade irrequieta dos homens do sertão. Assim, não é de todo improvável que alguns temas retratados nesses periódicos pudessem ser conhecidos nos lugares mais remotos do Norte. O mesmo po- deria acontecer em relação a outros impressos, não proibidos, já que dificuldades menores lhes eram impostas. No início deste Capítulo, foi mostrado como os homens de longe eram curiosos para saber notícias do Recife. 195 MOURÃO, Gonçalo de B. C. e Mello, op. cit., p. 233. 196 IAHGP – Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Revolucções do Brasil. Revista do IAHGP, Tomo quarto, nº 29. Recife: Typographia Industrial, 1884, p.66. 76 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco Por fim, Koster revela um dos temas que traziam esses periódicos: invectivas contras as pessoas poderosas. Lidas e comentadas, essas invectivas poderiam ajudar tanto aos leitores, quanto aos ouvintes, a perceber os homens poderosos de uma maneira mais crítica ou mesmo ridícula, despindo-os de toda a sacralidade que o poder lhes conferia. Em suma, o que se tentou demonstrar é que havia um comércio de obras religiosas con- solidado, movimentado principalmente pela religiosidade. O livro religioso não era exclusi- vamente para leitores letrados e, sim, para os fiéis católicos em geral. Nesse caso, os impres- sos, além trazerem conhecimento, eram percebidos como objetos sagrados, devocionais, que conferiam proteção. Por outro lado, em Pernambuco, inexistia um comércio de livros condu- zido exclusivamente por livreiros: havia comerciantes que vendiam vários tipos de mercadori- as, inclusive os livros, assim como ocorria no Reino 197 . A inexistência de livreiros em Per- nambuco era favorecida pela proibição de tipografias, que sempre obrigava os compradores de livros a importá-los, direta ou indiretamente, de Portugal. Igual efeito tinha a ação do apa- rato censor, que dificultaria a circulação de impressos. Mesmo assim, havia demanda por im- pressos legais e proibidos, que era suprida pela importação legal de livros do Reino ou pelo contrabando. Embora o contrabando remeta também à circulação de impressos proibidos, é bem possível que ele também fosse feito para a aquisição de livros permitidos, por causa das dificuldades que impediam a circulação das obras. O governo português conhecia a prática desse comércio ilegal e, obsessivamente, fiscalizava os livros no seu embarque em Portugal, bem como no desembarque dos mesmos nos portos da América. Essa constante vigilância evidencia que o governo português acreditava que os impressos eram capazes de disseminar ideias perniciosas à monarquia, à religião católica e à moral cristã, pilares do Império Lusita- no. Nos portos do Norte da América Portuguesa, como ficou evidenciado em relação ao porto do Maranhão, funcionários da alfândega poderiam estar envolvidos com o contrabando de li- vros e/ou na usurpação de suas próprias atribuições, de que é indício o confisco da caixa de livros de História de Koster, que só conseguiu reavê-la com a intervenção do próprio gover- nador daquela Província. O citado viajante inglês ainda relata que o comércio ilegal de im- pressos era bastante comum, abastecendo leitores com periódicos proibidos. Esses leitores, por meio da cultura oral, além disso, poderiam comentar com outros homens o que os escritos traziam, e estes últimos com outros mais, até que as notícias se espalhassem, chegando até mesmo aos homens que habitavam o Sertão. Se a fiscalização da Coroa Portuguesa visava a 197 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A cultura luso-brasileira: da reforma da Universidade à Independência do Brasil. Lisboa: Estampa, 1999, p. 105-182. 77 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco impedir a circulação de livros e de certas ideias pelo Império Português, a sua relativa falha, com o contrabando, permitia que diversos títulos proibidos circulassem entre os leito- res/receptores do Norte, alcançando-os por meio do impresso em si ou por meio da cultura oral. 1.5 Livros enviados para Pernambuco Entre 1795 e 1820, muitos foram os livros enviados para Pernambuco, por vias legais e ilegais. Como foi demonstrado anteriormente neste Capítulo, o contrabando, ou seja, o co- mércio ilegal, era bastante comum. Mesmo sendo uma prática ordinária, não nos legou tantos detalhes. Por outro lado, nem todos os livros que desembarcaram em Pernambuco por vias le- gais foram registrados pelo Desembargo do Paço, ou se o foram, os documentos não chega- ram ao nosso tempo. Não há registros, por exemplo, de livros submetidos aos órgãos censó- rios, com destino a Pernambuco, nos anos de 1797-98, 1805-06, 1809-12, 1814, 1818. Além disso, nos anos em que há registros, foi percebido que nem todas as listas sobreviveram ao tempo. O ano de 1804 e 1808 apresentam dados bastante lacunares sobre a circulação de li- vros. Por causa dessa ausência de fontes – sejam elas a respeito dos livros que circularam pelo contrabando, sejam elas a respeito das obras que vieram aprovadas pelo Desembargo do Paço –, a ideia que se faz dos livros que desembarcaram em Pernambuco é difusa e opaca, por mais que o trabalho dos historiadores que se debruçaram sobre esse tema tenha sido detalhado e exaustivo. Gilda Maria W. VERRI foi a primeira – e a única até o momento – a estudar os li- vros enviados a Pernambuco, com o recorte temporal de 1769 até 1807, isto é, antes da che- gada da Corte Portuguesa ao Brasil. Os resultados de seu trabalho foram publicados em dois volumes, no livro Tinta sobre papel, em 2006. Esta dissertação tem como recorte temporal o período que vai de 1795 até 1820. Entre a pesquisa de Gilda Maria W. VERRI e este trabalho há fontes comuns, a saber: as listas dos li- vros enviados entre 1795 e 1807. Embora parte da documentação utilizada nesta dissertação seja a mesma analisada por Gilda Verri, nem sempre as conclusões o são, sobretudo no que diz respeito aos números. Encontrei cifras bastante diferentes daquelas apresentadas pela cita- da pesquisadora 198 , coincidindo apenas aquelas que se referem ao ano de 1795. O GRÁFICO I demonstra essa diferenciação. 198 VERRI, G. M. W. Tinta sobre papel: Livros e leituras em Pernambuco no século XVIII. 1 ed. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2006, p. 470. 80 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco Fonte: IANTT-RMC - Livros Destinados a Pernambuco, caixas 161 e 162. Para abordar a circulação livreira em Pernambuco entre 1795 e 1820, serão contrapostas cifras registradas em dois gráficos: o GRÁFICO II e o GRÁFICO III. Analisando-se o GRÁFICO II, percebe-se que se registrou apenas o envio de 37 títulos para Pernambuco em 1795. A possível explicação para essa cifra tão pequena encontra-se na reformulação do apa- rato censório, ocorrida em 1794, quando o governo português, com o intuito de aumentar o ri- gor da censura, restabeleceu o sistema de censura tríplice, realizado pelo Ordinário, Inquisição e Desembargo do Paço 202 . É bem provável que o sistema de fiscalização tenha ficado parali- sado, ou então que a documentação produzida tenha se perdido parcialmente. O alvará que apontava para essa mudança é datado de 30 de julho de 1795: portanto, somente os livros en- viados após essa data passariam pelo novo sistema. A primeira petição de que se tem notícia solicitando envio de livros para Pernambuco no ano de 1795 é datada de 6 de outubro, pouco mais de dois meses após a publicação do alvará 203 . O GRÁFICO III revela, por sua vez, a baixa quantidade de petições registradas na documentação do Desembargo do Paço no perío- do que se estende de outubro a dezembro de 1795 (no total, 6). 202 VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura: Usos do Livro na América Portuguesa, op. cit., pp. 196-203. 203 Ibidem, p. 200. 37 414 483 224 330 474 534 78 338 57 315 381 659 240 657 476 134 1795 1796 1799 1800 1801 1802 1803 1804 1807 1808 1813 1815 1816 1817 1819 1820 1821 Livros Enviados a Pernambuco GRÁFICO II – Quantidade de Livros Enviados a Pernambuco por Ano (1795-1820) Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em História Breno Gontijo Andrade A Guerra das Palavras: cultura oral e escrita na Revolução de 1817 Belo Horizonte 2012 Breno Gontijo Andrade A Guerra das Palavras: cultura oral e escrita na Revolução de 1817 Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filo- sofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Linha de pesquisa História e Culturas Políticas Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos Villalta Belo Horizonte 2012 Agradecimentos Agradeço à minha mãe pelos incentivos à minha educação desde a mais tenra idade. Ao meu pai (in memoriam) que enquanto vivo também estimulou de todas as formas os meus primeiros estudos. À Christiane, minha florinha branca do pé da serra, por suportar meu envolvimento com amante menos doce, ladra de minhas noites, sorvedoura de minhas energias físicas e mentais: Clio. Agradeço também aos professores que contribuíram para minha formação como histori- ador e que, de alguma forma, marcaram minha vida acadêmica, Douglas Cole Libby, José An- tônio Dabdab Trabulsi, José Carlos Reis, José Newton Coelho Meneses, Luiz Duarte Haele Arnaut e Regina Horta Duarte. Sou grato também à professora da UFPB, Serioja Rodrigues Cordeiro Mariano, que apesar de não me conhecer pessoalmente ajudou-me de várias formas: indicou livros, fontes, mapas, e respondeu às minhas indagações sobre 1817. Além disso, aceitou debater o meu tex- to de qualificação junto com a professora Regina Horta Duarte. Minha gratidão também se estende ao professor George Felix Cabral de Souza por abrir as portas do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP) e ao pesquisador Tácito Cordeiro Galvão por me guiar em meio à massa documental daquele acer- vo. Não posso me esquecer dos meus amigos do mestrado, principalmente de Lorena Lopes da Costa e Juliano Meira Furtado. Juntos, formamos um grupo de estudos para tentar a apro- vação na seleção do mestrado e fomos felizes. Sou grato também ao companheirismo dos meus amigos de graduação, em especial Gilmar e Edinho, distantes, mas próximos por vias virtuais. Paulo Henrique Gontijo Alves, meu primo, também colaborou com esta dissertação. Foi ele quem gentilmente digitalizou os Documentos Históricos para que eu pudesse acessar as fontes com mais agilidade. Por fim, agradeço ao meu orientador Luiz Carlos Villalta, principal responsável pela minha formação como historiador. Foi ele quem me guiou ainda muito cedo na Iniciação Ci- entífica, sendo bastante paciente com minhas imperfeições e generoso ao me ceder um pouco de seu tempo, conhecimento e até parte das fontes primárias deste trabalho. Hoje considero-o mais do que meu orientador, meu amigo. Por isso, parafraseio o agradecimento feito por Vi- cente Gomes da Silva ao seu amigo, o naturalista Manuel Arruda da Câmara, em tese de dou- toramento defendida em Montpellier no ano de 1791: Finalmente surge o dia, por muito tem- po almejado, no qual se oferece a ocasião oportuna de manifestar-te minha gratidão, defe- rência e amizade; com muito gosto aproveito-me da ocasião, não só pelos inúmeros benefí- cios recebidos, como também pelo que os teus méritos persuadem. Quero igualmente que re- cebas o perene penhor da minha gratidão, deferência e amizade pelas primeiras experiências de estudos inscritas em teu nome. Serei feliz, três vezes feliz, se conseguir ainda ver os dias nos quais teus labores serão úteis à Pátria, teus dias tão longos quanto os de Nestor e, se, en- fim, amizade que nos une permanecer até a morte. São estes os votos que, de coração grato e sincero, formula o amigo 1 Breno Gontijo Andrade. 1 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Manuel Arruda da Câmara - Obras Reunidas. Recife: Secretaria de Edu- cação e Cultura, 1982, p. 65. RESUMO: A Guerra das Palavras: cultura oral e escrita na Revolução de 1817 Esta dissertação propõe-se a investigar a cultura oral e escrita no Norte da América Portuguesa entre 1795-1817. Primeiramente, apresenta a importância da circulação das notícias e dos livros pelo Norte, abordando também como funcionava o mercado livreiro em Pernambuco, o contra- bando e a leitura. Em segundo lugar, apresenta a constituição de uma incipiente esfera pública, que acabou por unir vários homens em um projeto em comum: a busca de uma alternativa à Mo- narquia Absolutista dos Bragança. Em seguida, focaliza a Revolução Pernambucana de 1817 em seu nascimento e sua expansão, utilizando para isso a cultura oral e escrita, a estrutura da Igreja e a velocidade dos emissários. Do mesmo modo, os realistas buscaram combater os revolucionários no mesmo campo, espalhando proclamações, convencendo pela força das armas, mas também pe- la força das palavras. Por fim, são apresentadas possíveis leituras e apropriações feitas em 1817: primeiramente, das Constituições estrangeiras, na elaboração das Leis Orgânicas, espécie de pré- Constituição, que regularia a região revolucionada; em seguida, as leituras do padre João Ribeiro das obras do filósofo Condorcet e seus possíveis usos em 1817. ABSTRACT: The War of Words: oral and written culture in Revolution of 1817 The purpose of this thesis is to investigate the oral and written culture from 1795 to 1817 in the North of the Portuguese America. First, it shows the importance that the circulation of news and books had in the North region, addressing also how the book market operated in Pernambuco, as well as smuggling and reading. Secondly, it analyses the beginning of the constitution of a public sphere in which eventually several men merged in a common project: the search for an alternative to Absolutist Monarchy of Braganza. Further, it focus in the Per- nambucan Revolution of 1817, its birth and expansion, which utilized the oral and written cul- ture, the church structure, and the spread of emissaries. Similarly, realists sought to fight the revolutionaries in the same field, scattering proclamations, convincing not by the force of arms, but by force of words. Finally, we present possible readings and appropriations made in 1817; first of foreign Constitutions for creation of the Organic Law, sort of a pre-Constitution that regulated revolutionized the region; then of the readings of Father John Ribeiro of the works of the philosopher Condorcet and its possible uses in 1817. Palavras-chave Revolução Pernambucana de 1817, História do Livro e da Leitura, Cultura Oral e Escrita Key words Pernambucan Revolution of 1817, History of the Book and Reading, Writing and Oral Culture Sumário Introdução 14 Parte I – Cultura Oral e Escrita no Norte da América Portuguesa 25 Cap. 1: Livros: mercado, circulação, contrabando e leitura em Pernambuco 26 1.1 Recife: o centro que emana e irmana 27 1.2 Os emissários do Norte: senhores, padres e índios 37 1.3 Censura, fiscalização e alfândegas: barreiras transponíveis 48 1.4 Comércio legal e contrabando de impressos 57 1.5 Livros enviados para Pernambuco 77 1.6 Os “mentirosos” e os santos: a ideia geral sobre os homens que sabiam ler 96 1.7 “A mágica oficina de fazer sábios repentinos”: a cultura oral e escrita, segundo um realista 106 Cap. 2: Esfera pública e cultura oral e escrita 112 2.1 As residências particulares como instituições da esfera pública: o caso da morada dos Suassuna 115 2.2 Academias e Maçonaria 131 2.3 O Seminário de Olinda 145 2.4 Bibliotecas e espaços de sociabilidade 155 Parte II – Guerra de Palavras na Revolução de 1817 164 Cap. 3: 1817: as batalhas verbais entre revolucionários e realistas 165 3.1 Consolidação e expansão da Revolução: proclamações, emissários e leituras 166 3.2 Contrarrevolução e batalhas verbais em 1817 192 Lista de Gráficos Gráfico I – Quantidade de Títulos de Livros Enviados de Portugal para Pernambuco (1795-1807) 78 Gráfico II – Quantidade de Livros Enviados a Pernambuco por Ano (1795-1820) 80 Gráfico III – Petições de Licença para Envio de Livros para Pernambuco submetidas ao Desembargo do Paço (1795-1820) 81 Gráfico IV – Livros enviados para Pernambuco entre 1795-1820 divididos por área 89 Gráfico V – Livros de Teologia, Belas Letras e Ciências e Artes nas remessas de Portugal para Pernambuco (1795-1821) 91 Gráfico VI – Nº de Livros sobre a Arte Militar e temas correlatos enviados a Pernambuco entre 1795-1820 94 Lista de Figuras Figura I - Quantidade de artigos que tratam dos três poderes nas Leis Orgânicas 219 Figura II - Fluxograma explicativo sobre o funcionamento dos três poderes nas Leis Orgânicas 222 Figura III - Ilustração de uma planta na obra de Manuel Arruda da Câmara, possivelmente de autoria do padre João Ribeiro. 241 Figura IV - Mapa desenhado pelo Padre João Ribeiro da capitania do Rio Grande do Norte, encomendado, em 1811, pelo governador José Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, um dos Suassuna. 243 Figura V - Ilustração de insetos na obra de Manuel Arruda da Câmara, possivelmente de autoria do padre João Ribeiro. 244 Lista de Mapas Mapa I - Redes de Sociabilidades e Clientelares dos irmãos Suassuna entre 1801-1811 somente no Norte da América Portuguesa 130 Mapa II - Vila Nova e Vila de Penedo 195 15 Introdução Há alguns anos, historiadores estrangeiros e brasileiros têm se debruçado sobre um tema complexo, mas ao mesmo tempo fascinante: a História do Livro e da Leitura. Esta dissertação de mestrado alinha-se aos estudos desses historiadores, na medida em que se propõe a analisar como os livros e impressos de cunho político-filosófico, que circularam por Pernambuco entre 1795-1817, foram apropriados pelos participantes da Revolução de 1817. Antes de analisar as relações entre esta dissertação e a História do Livro e da Leitura, contudo, cabe fazer uma breve discussão sobre a pertinência do uso do termo Revolução em referência ao movimento ocorrido em Pernambuco e parte do Nordeste em 1817 e, ainda, apresentar a contribuição que esta dissertação se propõe a dar para a historiografia sobre o te- ma. Carlos Guilherme MOTA, em seu Nordeste 1817, obra de finais dos anos 60 e início dos 70, defende não ser apropriado chamar de Revolução o movimento ocorrido em 1817. Para o referido historiador, nenhuma alteração essencial foi notada no nível das relações de produ- ção: pelo contrário, a independentização relativa dos setores ligados à grande propriedade pressupunha como requisito básico a manutenção da ordem escravocrata 2 . Nos termos da compreensão marxistas em voga à época em que o citado historiador es- crevia, não era possível chamar o levante de 1817 de Revolução. Neste trabalho, porém, longe da perspectiva abraçada por Carlos Guilherme Mota, utilizarei o termo Revolução pelos se- guintes motivos: foi esta a palavra empregada pelos participantes de 1817, bem como por seus coetâneos, para designar aquele movimento que depôs Caetano Pinto Montenegro, o então governador de Pernambuco, e criou um governo avesso à Monarquia Portuguesa estabelecida no Rio de Janeiro. Utilizo os termos levante, insurreição, como sinônimos ao termo Revolu- ção, ainda que estes dois últimos fossem pouco usados naquela época. Também são utilizados nesta pesquisa outros termos que ajudam a entender a História do Livro e da Leitura como: cultura escrita e cultura oral. Entendo por cultura escrita as men- sagens que se relacionam e que se concretizam na materialidade do papel, manuscritas (cartas, missivas, correspondências) ou impressas (gazetas, livros). Por cultura oral, entendo as men- sagens orais que se relacionam e se concretizam na fala, fora da materialidade do papel. Há de se considerar, porém, que é difícil delimitar as fronteiras entre a cultura oral e a cultura escri- ta. A oralidade, muitas vezes, disseminava ideias que circulavam nos impressos, ao mesmo tempo em que estes reelaboravam, eventualmente, o que circulava no campo da oralidade. Gwyn Prins também estuda esses conceitos. Para ele, há três vertentes: a cultura oral, a cultu- ra escrita e a cultura composta. Na primeira, a linguagem assume a forma puramente oral, como por exemplo, as linguagens locais. Na segunda, a linguagem assume uma forma escrita, 2 MOTA, Carlos Guilherme. Nordeste 1817: estruturas e argumentos. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 286. 16 Introdução porque a forma oral não existe mais, como no caso das línguas clássicas. Por fim, a cultura composta seria aquela que se manifesta tanto nas formas orais, quanto nas formas escritas, pa- ra todo o povo ou uma porção dele. A cultura composta ainda se subdivide em universalmente alfabetizada e em restritamente alfabetizada, em que a maior parte das pessoas vive à mar- gem, mas sob o domínio do registro escrito 3 . Carlo Guinzburg não faz uma clara distinção de cultura oral e cultura escrita, mas trabalha com a ideia de circularidade cultural (cultura popu- lar e cultura dominante), salientando a enorme dificuldade de delimitá-las, uma vez que elas se sobrepõem, havendo, portanto, circularidade, influxo entre ambas, sobretudo para o século XVI 4 . Maria Beatriz Nizza da Silva diz que a produção literária de uma determinada socieda- de se assenta na crença de que há uma diferença essencial entre linguagem vulgar e linguagem literária. Para a autora, o discurso oral só se torna um texto escrito quando a sociedade reco- nhece nesse conhecimento uma utilidade seja por transmitir um saber, seja pelo seu valor lite- rário. Um dos problemas enfrentados pelos historiadores, porém, é o da separação entre letra- dos e iletrados. Essa partilha justifica a distinção entre língua vulgar e língua literária, mas condena a literatura popular à dimensão da oralidade. Assim, a sociedade iletrada só fala, não escreve, tornando-se silenciosa aos historiadores. Conclui o seu raciocínio dizendo que o his- toriador da cultura precisa de recorrer aos folcloristas, [e eu acrescento também os viajantes] se quiser ampliar a sua perspectiva e reconstituir as formas poéticas e narrativas que, no início do século XIX, ficaram retidas na dimensão oral 5 . Sobre a História da Revolução Pernambucana especificamente, pouco se tem escrito, apesar de ser um tema fundamental para História do Brasil. As últimas obras que se dedica- ram profundamente ao movimento e de conhecimento público são Nordeste 1817, de Carlos Guilherme Mota, escrita em 1972, portanto, há 40 anos atrás; Pernambuco 1817, de Glacyra Lazzari Leite, escrita em 1988, há 28 anos; e A Revolução de 1817 e a História do Brasil de Gonçalo de B. C. e Mello Mourão, escrita em 1996, há 16 anos. Se recuarmos ainda mais no tempo, o quadro não será dos mais animadores. Depois do lançamento desses três livros, o que se publicou foram alguns poucos trabalhos que abordavam algum aspecto da Revolução, en passant, ou algum capítulo de livro que tocava na superfície de 1817 sem se arriscar a aprofundar. Esta dissertação apresenta uma proposta de estudo menos abrangente do que as daqueles supracitados trabalhos, realizados em 1972, 1988 e 1996. No entanto, é mais ambi- 3 PRINS, Gwyn. História Oral. In: BURKE, Peter (org.). Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo: Editora Unesp, 1992, p. 169 4 GUINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008, p. 15. 5 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Cultura e Sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821). São Paulo: Editora Naci- onal, 1977, p. 170. 17 Introdução ciosa do que um capítulo de tese ou de livro, uma vez que coloca a Revolução no centro da análise. A abordagem aqui utilizada também é um diferencial, uma vez que se quer chegar aos patriotas, à independência, como diriam alguns de seus participantes, através da cultura oral e escrita, sem, contudo, abandonar os aspectos políticos e econômicos. Voltando à relação entre esta dissertação e a abordagem proposta pela História do Livro e da Leitura, deve-se destacar como o historiador Robert DARNTON, um dos mais importan- tes de seus expoentes, concebe o circuito de comunicação em que se inscreve o livro. Para o citado historiador, há um circuito extenso, que comunica o autor ao leitor, passando pelo edi- tor (ou livreiro), impressor, distribuidor, vendedor, contrabandistas etc., tendo no livro o obje- to essencial. O circuito encerra-se no leitor, que, em alguns casos, pode ser também autor 6 . Um conceito essencial na História do Livro e da Leitura é o de inventividade. Para Roger CHARTIER, se há, de um lado, os sentidos portados pelo próprio texto, de outro, o leitor tem liberdade de interpretá-lo à sua maneira. Logo, ao lado das forças que procuram impor uma leitura ortodoxa do texto (o autor, o editor, o Estado, a Igreja etc., que controlam a produção e intervêm na circulação dos livros), há a liberdade de interpretação exercida pelos leitores, a possibilidade de se fazer uma leitura inventiva do texto, à revelia da ortodoxia 7 . Correlaciona- do ao conceito de inventividade, há ainda o conceito de apropriação, que corresponde aos modos pelos quais os leitores lidam com o texto, o que compreende as formas pelas quais os leem e as maneiras como os usam e atribuem-lhe sentidos 8 . Historiadores brasileiros trouxeram importantes colaborações para a História do Livro e da Leitura, focalizando, por exemplo, aspectos como a posse, a circulação, a censura e a leitu- ra dos livros na América Portuguesa como um todo e em algumas regiões em particular. Tais historiadores, assim como os estrangeiros, depararam-se com um problema fundamental que se faz presente na análise da posse e da circulação dos livros: a classificação. Nesta pesquisa, faz-se o uso da classificação dos livros encontrada num importante estudo da historiografia brasileira sobre o livro na América portuguesa, mais precisamente num artigo de Lúcia Maria Bastos P. das Neves e Guilherme P. C. Pereira das Neves, e também no livro de Maria Beatriz Nizza da Silva Cultura e Sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821), que incorporam à análise uma classificação utilizada ao final do período colonial, em 1818, pelo Conde da Barca. Se- guindo essa classificação, os livros podem ser divididos em cinco categorias: Jurisprudência 6 DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 128. 7 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. p. 121 8 Ibidem, p. 26. 20 Introdução Em função dessas limitações, busquei socorro num último grupo de fontes: os conheci- dos Documentos Históricos, publicados em 10 volumes pela Biblioteca Nacional entre 1953- 1955 17 e que trazem a quase totalidade dos documentos relacionados à Revolução de 1817. Neles, em teoria, seriam encontradas ideias defendidas pelos participantes de 1817 e, assim, possíveis leituras, citações, ou mesmo apropriações de ideias de autores e de textos. Essas fontes também poderiam ajudar a conhecer, por vias indiretas, quem lia os escritos (legais e contrabandeados) e quais eram esses textos, já que esses participantes poderiam eventualmen- te mencioná-los. Como parte dessa documentação foi produzida pelas autoridades régias no contexto de julgamento dos revolucionários, ela deve ser utilizada, porém, com bastante cau- tela, devido à sua natureza tendenciosa (e isto não significa dizer que eu creia que seja possí- vel encontrar documentos neutros), seja pelo esforço das autoridades reais em reunir culpas, seja pela busca dos acusados em se desvencilhar do envolvimento na Revolução de 1817. Por outro lado, o quinhão de fontes produzidas pelos revolucionários, em termos quantitativos, é bem menor que os documentos produzidos pelas autoridades reais. Na verdade, os participan- tes da Revolução destruíram os documentos que provavam as suas culpas, sobretudo, quando perceberam que a Revolução caminhava para a derrota. Dessa forma, as fontes que, hipoteti- camente, revelariam as ideias defendidas pelos revolucionários e as possíveis leituras que fi- zeram não são tão abundantes, ainda que haja 10 volumes publicados de documentação. Limitado pelas possibilidades das fontes, redimensionei as respostas que buscava en- contrar. No que se refere aos possíveis textos que circularam em Pernambuco, ative-me, so- bretudo, àqueles que circularam legalmente. Porém, não perdi de vista identificar os textos contrabandeados para o Brasil, para o que me vali principalmente dos estudos de outros histo- riadores que pesquisaram sobre a circulação de livros nesse período. Para identificar quem eram as pessoas que possuíam as obras, ao invés de privilegiar os inventários post-mortem, di- recionei-me não a um número grande de leitores presumidos, mas a alguns poucos, sobre quem são encontradas informações em outras fontes, como os Documentos Históricos, os re- latos dos viajantes e as memórias de autores da época. Desse modo, se perdi em quantidade, ganhei em qualidade. Sabendo que esses leitores participaram da Revolução de 1817 e quais livros leram, ficou mais fácil recorrer aos Documentos Históricos e observar as ideias que ne- les se encontram registradas. Com isso, pude analisar como se deu a apropriação dos textos li- dos e de algumas ideias que nortearam a Revolução. Um exemplo que pode ser aventado é o padre João Ribeiro. Como ele era reconhecidamente um grande entusiasta das obras de Con- 17 DH – Documentos Históricos – A Revolução de 1817. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1953-1955. 10 vol. 21 Introdução dorcet 18 , busquei associações entre os princípios deste último e as ideias defendidas pelo pa- dre durante a Revolução. Se o objetivo central da pesquisa, suas afinidades com a História do Livro e da Leitura, seus conceitos mais fundamentais e suas fontes foram apresentadas, cabe-me, ainda, explicar o recorte espaço-temporal adotado. Quanto ao recorte espacial, ao invés de debruçar-me sobre toda a região que participou da Revolução de 1817, bastante vasta e que hoje abarca os esta- dos do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas, escolhi concentrar-me em Pernambuco, por haver mais documentos sobre a referida Capitania e, ainda, porque sua capital, Recife, foi o epicentro do levante de 1817. Além disso, a escolha de Pernambuco também se deve à sua importância no norte da América Portuguesa, à sua prosperidade, à cen- tralidade do seu porto e ao fato de Olinda ser sede de bispado. Entretanto, as regiões circunvi- zinhas também serão abordadas, ainda que com um nível de detalhamento menor. Quanto ao recorte temporal, escolhi o final do século XVIII e início do século XIX, isto é, o período que vai de 1795 a 1817, por ser um momento de bastante efervescência política em Pernambuco. Em 1801, houve a prisão de alguns irmãos da família Cavalcanti por suspeita de Inconfidên- cia. Dezesseis anos depois, ocorreu a Revolução Pernambucana. Nesse intervalo, mudanças bruscas aconteciam: a hegemonia e queda de Napoleão, a transladação da Coroa Portuguesa para o Rio de Janeiro, as independências das colônias espanholas, o apoio velado dos Estados Unidos a essas independências, a pressão da Inglaterra para o fim da escravidão etc. Esse re- corte também se confunde com o restabelecimento do sistema de censura tríplice pela Coroa Portuguesa, em 1794, e que perdurou até 1820. É também tempo suficiente para observar co- mo as ideias políticas foram sendo fermentadas em Pernambuco e, depois, utilizadas em 1817. No que diz respeito à estrutura da dissertação, foram escritas duas partes, divididas em quatro capítulos. A primeira parte, intitulada Cultura Oral e a Cultura Escrita no Norte da América Portuguesa e composta pelos dois primeiros capítulos, busca compreender a inser- ção da cultura oral e escrita no universo do Norte da América Portuguesa entre 1795 e1817. A segunda parte, composta pelos dois capítulos restantes e intitulada Guerra de Palavras na Revolução de 1817, trata como a cultura oral e a cultura escrita foram articuladas por revolu- cionários e contrarrevolucionários em 1817. No Capítulo 1, Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambu- co, abordo a circulação da cultura oral e escrita em Pernambuco e as comunicações dessa Ca- pitania tanto com Portugal quanto com as demais regiões do Norte da América Portuguesa. O 18 TOLLENARE, L. F. Notas Dominicais. Recife: Secretaria de Educação e Cultura, 1978, p. 148. 22 Introdução Recife é tomado como o cenário principal dessa narrativa, dada a sua importância para o Nor- te como centro difusor de cartas e notícias (cultura escrita e oral). Em seguida, atento para a circulação de cartas e notícias conduzida por vários emissários dentro do universo do Norte da América Portuguesa. É importante entender essa circulação, pois, no Capítulo 3, procuro de- monstrar que os revolucionários de 1817 utilizaram-se desses caminhos e desses emissários para fazer circular os produtos da cultura escrita, como as proclamações, éditos e bandos e, assim, consolidar e expandir a Revolução em uma rapidez estonteante. Ainda no Capítulo 1, trato também dos livros que desembarcaram em Pernambuco, abordando, inicialmente, as di- ficuldades que eles encontravam para chegar ao Recife. Em seguida, procuro entender os ca- minhos dos livros e, de resto, dos textos em geral: como chegavam a Pernambuco? Como era o comércio livreiro? Como se dava o contrabando? Como eram percebidos pela sociedade os homens que liam? Em suma, como a cultura escrita se inseria no universo do Norte? Ao final do Capítulo 1, demonstro como os leitores eram percebidos naquela sociedade: como os pa- dres eram vistos em sua relação com os livros, como se dava a relação dos senhores de enge- nho com a leitura de livros, como homens abastados e os homens do povo percebiam aqueles que sabiam ler, qual era o status ocupado por alguém que dominava a escrita e a leitura na- quela sociedade. É importante entender como esses leitores eram percebidos em Pernambuco, na medida em que muitos deles exerceram papéis de liderança em 1817. Mesmo os homens de camadas mais populares, ao serem reconhecidos como capazes de decifrar textos, eram apreciados ou, inversamente, por isso mesmo, vistos com desconfianças. O Capítulo 2, Instituições da esfera pública, espaços de cultura oral e escrita, está dividido em quatro partes, em que analisei a importância das instituições da esfera pública na articulação e transmissão da cultura oral e escrita para os seus partícipes. Na primeira parte, o problema é saber quem eram as pessoas que frequentavam a casa dos Suassuna em 1801 19 e o que conversavam, uma vez que esses irmãos foram presos por suspeita de inconfidência. Através desse estudo, busco identificar e quantificar os grupos de frequentadores da casa dos Suassuna e, em posse dessas informações, construo uma sociologia dos participantes em ques- tão. Em seguida, apresento um mapa de onde residiam os frequentadores da casa dos Suassu- na. Enfim, acrescento outros traços que demonstram a importância e a influência dos irmãos Suassuna no Norte, apontando seus contatos também em Portugal e mesmo com a família dos 19 Por ora, basta dizer que os irmãos Suassuna são conhecidos pela historiografia por terem participado de uma suposta conspiração contra a Coroa Portuguesa em 1801. A alcunha Suassuna se deve ao fato de eles serem os proprietários do Engenho Suassuna. Pertenciam à elite da região, eram agricultores e ocupavam postos militares de destaque. Um dos irmãos governou a capitania do Rio Grande do Norte, a ilha de São Miguel (maior ilha de Açores) e, por fim, Moçambique. Em 1817, alguns desses irmãos participaram da Revolução Pernambucana, opondo-se à monarquia portuguesa. PARTE I CULTURA ORAL E ESCRITA NO NORTE DA AMÉRICA PORTUGUESA Memorável dia de 06 de março do presente ano (dia que segundo a boa opinião se devia imprimir em caracteres de ouro) (Carta anônima escrita por um patriota) Capítulo 1 Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco Da boca fazei tinteiro, Da língua pena aparada, Dos dentes letra miúda Dos olhos carta fechada (COSTA, Francisco A. P. Folk-Lore Pernambucano) 27 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco 1.1 Recife: o centro que emana e irmana A partir de 1808, com a abertura dos portos da América Portuguesa às nações amigas de Portugal, um observador no porto principal de Pernambuco 21 , que deitasse seu olhar sobre o horizonte, veria que a circulação de navios manobrando entre os arrecifes havia aumentado. Mesmo com o aumento de embarcações a singrar por águas pernambucanas, os desembarques ainda eram aguardados com o mesmo entusiasmo de outrora, pois traziam toda sorte de novi- dades. Eram as mercadorias a se comprar, os parentes e amigos a chegar, muitas vezes, distan- tes por longo tempo, as últimas notícias de Napoleão, os insucessos do pequeno Portugal to- mado pelos franceses, as revoltas na América Espanhola, o crescimento do comércio da Amé- rica Inglesa: enfim, os desembarques representavam um contato com o além-mar. Após a compra das mercancias, os afetuosos abraços e ósculos nos entes recém-chegados, o conhe- cimento das últimas novas, aquele espírito de curiosidade, por fim, satisfazia-se, enquanto ou- tra leva de navios não despontasse trazendo novidades mais recentes. Henry Koster, viajante inglês 22 , ao chegar ao porto de Santo Antônio do Recife 23 , no último mês do ano de 1809, lembrava-se de como o povo apinhado no porto estava ansioso para receber a embarcação de que ele se fazia passageiro: Seguindo meu companheiro de viagem, deixamos o navio e fomos para a terra. Lá, uma nova cena se passa. No momento em que desembarcávamos esse fato foi percebido por um grande número de pessoas, de bom aspecto, que cobria com seu volume o cais. O desejo de saber notícias dos amigos da Europa se tornou tão vivo que, perdendo a cerimônia, todos vieram pedir as cartas porventura destinadas a elas. Decidimo-nos a entregar-lhes o sa- co, sobre o qual se precipitaram todos de uma só vez com a mais ávida das curiosidades. Tínhamos desembarcado no cais da Alfândega, em um dia de grande azáfama, e aí também os clamores e a agitação dos negros se faziam notar. A feia algazarra que fazem quando carregam algum fardo (...), as numerosas perguntas que nos fazia a maior parte daqueles que deparáva- mos, (...) tudo se combinava para embaraçar-me e perturbar-me. Arrastado por aqueles que já estavam habituados às cenas desse gênero, fomos ter com um dos principais comerciantes da cidade. Fez-nos subir ao primeiro andar, 21 Para Denis Antônio de Mendonça Bernardes, o porto era a própria razão de ser do Recife, confundindo-se com a história da cidade até os presentes dias, embora sua importância tenha diminuído a partir dos anos 50 do século XX. Foi considerado, durante muitos anos, o melhor porto da costa Norte do Brasil. BERNARDES, Denis Antô- nio de Mendonça. O patriotismo constitucional: Pernambuco 1820-1822. São Paulo: Hucitec, 2006, pp. 96-101. 22 Henry Koster, ainda que tivesse nascido em Portugal, era filho de pais ingleses e intitulava-se inglês. Não obs- tante, também comentava que, entre ingleses, portugueses e brasileiros, [sentia-se] igualmente entre patrícios. KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Tradução e Notas de Luiz da Camara Cascudo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942, p. 418. 23 Segundo Denis Antônio de Mendonça Bernardes, a partir de 1808, uma compósita população de gente do mar, de língua e nacionalidade diversas, passou também a formar, mesmo passageiramente, a população da cidade. BERNARDES, D. A. de Mendonça, op. cit., p. 99. 30 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco vas, tais como a que dava notícia da guerra contra os espanhóis, as que tratavam de aspirações ao Hábito de Cristo, as que relatavam assuntos comerciais dos irmãos Suassuna e do conselho para não se emprestar nada à Fazenda Real 34 . Havia também outra carta que tratava de vários temas, dentre eles o conselho para sempre escolher boas amizades 35 , outra sobre assuntos de amor 36 , as desordens em Portugal por falta de pão 37 , admoestações e alertas para o irmão em Portugal parar de jogar 38 , enfim, as cartas revelam diversos assuntos, que eram objeto de tro- cas de informação entre Pernambuco e Portugal, no caso, entre os irmãos Suassuna. Além da apreensão dos papéis dos Suassuna, inquiriram-se 86 testemunhas 39 para se comprovar a acusação 40 . No segundo dia de depoimentos, as autoridades se depararam com uma surpresa: a prisão, que deveria ser em segredo, para se proceder com as investigações competentemente, já era conhecida pelas demais testemunhas. Dessa forma, boa parte dos de- poimentos, após o primeiro dia de investigação, trazia suposições sobre a prisão dos irmãos, indicando que a notícia da prisão dos Suassuna havia se espalhado 41 . Até mesmo a negra Joa- quina dos Santos, vendedora de peixe no mercado da Ribeira, de algum modo soube da prisão dos irmãos e escutou na casa de seu compadre um suposto motivo para que fossem encarcera- dos 42 . Esses acontecimentos de 1801 revelam a relação daquela sociedade com a cultura oral e escrita. As leituras e as posteriores conversas sobre os temas das correspondências que leva- ram à prisão dos irmãos Suassuna, os demais papéis apreendidos na casa dos mesmos, a notí- cia que se espalhou sobre o encarceramento dos irmãos e as suposições das testemunhas sobre o motivo das prisões revelam como se davam as transmissões orais e escritas de ideias e notí- cias pelo Norte da América Portuguesa. Seus habitantes não se limitavam apenas a ler ou a ouvir, isto é, a receber as novas informações, mas agregavam a elas seus valores, suas inter- 34 O excerto da carta que trata do não empréstimo à Fazenda Real comprova, em parte, a veracidade da acusação que pesava sobre os Suassuna. DH, CX, pp. 134-35. 35 DH, vol. CX, p. 137. 36 Ibidem, p. 138. 37 Ibidem, p. 141. 38 Ibidem, pp. 160-62. O destinatário dessa carta seria o Suassuna José, que estava em Portugal. A carta encon- trada na casa, provavelmente, era uma cópia da enviada a Portugal. 39 Entre elas, o próprio acusador. 40 As autoridades não conseguiram juntar maiores evidências que comprovassem as acusações de Fonseca. 41 Para todos os pormenores sobre como a devassa procedeu, sugiro a leitura de todo DH, vol. CX. Sobre os de- poimentos das testemunhas, veja também: ANDRADE, Breno Gontijo. Os Filhos Pagam pelos Pais: (In)Fiéis Vassalos e Outros Termos Utilizados na Devassa sobre a Suposta Conspiração dos Suassuna de 1801. Opsis, Ca- talão, v. 11, 2011, pp. 240-41. 42 DH, CX, pp. 43-5. 31 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco pretações e opiniões, como aconteceu no debate entre um dos Suassuna e o seu acusador 43 , ou mesmo nas suposições das testemunhas. Embora este trabalho tenha como recorte espacial o Norte da América Portuguesa, so- bretudo o território de Pernambuco, é importante ressaltar que o caminho das correspondên- cias e boas-novas não se dava apenas de Portugal para Pernambuco, mas também de maneira oposta: notícias do norte do país desaguavam na Europa, juntamente com os caixotes de rapa- dura e as balas de algodão. Foi assim, por exemplo, que José, o Suassuna que estava em Por- tugal, recebeu a notícia de como andava a partilha de bens, por ocasião da morte do seu pai, como também das medidas comerciais que deveria tomar, conforme as orientações de seu ir- mão mais velho, dadas do outro lado do Atlântico 44 . Foi também dessa maneira que, possi- velmente, ele soube da prisão dos irmãos em Pernambuco e teve tempo para fugir para Lon- dres 45 , não obstante as diligências da Alçada em impedir que ele tomasse conhecimento da prisão dos irmãos antes das autoridades reais em Portugal. Essa circulação de cartas e novida- des entre América Portuguesa e Portugal mostra-nos que, apesar da distância, os súditos dos dois lados do Atlântico tinham por hábito comunicar-se (e nisto logravam ter êxito), remeten- do em cartas notícias casuais ou usando-as para orientar e receber orientações sobre diversos assuntos, dos políticos aos comerciais. Após 1809, Henry Koster escreveu profícuos relatos sobre a circulação de cartas e notí- cias pelo Norte da América Portuguesa. Ele mesmo serviu como emissário àqueles com quem fizera amizade em Pernambuco e nos sertões do Norte. Talvez o escolhessem para tal função por gozar de alta estima entre os principais da região – governadores, demais autoridades reais superiores, oficiais da monarquia em geral, grandes e pequenos negociantes, senhores de en- genhos, rendeiros, membros do alto e baixo clero, estrangeiros etc. – e por ser afeito às via- gens por aquela vasta região. Passando pelas proximidades do rio Paraíba, Koster informava que levava cartas para o proprietário, membro da família Cavalcanti, e Capitão-mor na pro- víncia da Paraíba. [Fora] por ele recebido de maneira afetuosa 46 . Continuando sua viagem, chegou a Cunhaú, no Rio Grande do Norte, onde se localizava o engenho do coronel André de 43 Sobre a ideia de que leitores e ouvintes não reproduzem as informações do texto tais como estão escritas, mas lhes acrescentam outras informações, podendo mesmo contrariá-las, remeto aos trabalhos de Roger Chartier, que insistem neste ponto. CHARTIER, Roger. As Origens Culturais da Revolução Francesa. São Paulo: UNESP, 2009, p. 46. 44 DH, vol. CX, pp. 160-62 e pp. 136-38. 45 A fonte dessa informação é o próprio José Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, o Suassuna que es- tava em Portugal, ao encontrar-se com Henry Koster anos depois e narrar-lhe suas desventuras passadas. Prova- velmente, o Suassuna ficou pouco tempo em Londres, pois foi perdoado, juntamente com os irmãos, no final de 1801. KOSTER, Henry, op. cit., p. 112. 46 Ibidem, p. 97. 32 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco Albuquerque Maranhão 47 , cujas terras cobriam pouco menos de quarenta léguas. Só se vencia uma de suas porções depois de andar de três a quatro horas. Henry Koster também lhe entre- gou correspondências oriundas de Pernambuco: Trazia-lhe cartas dos seus amigos de Pernambuco. (...) Veio para perto de mim, logo que desmontei, e lhe entreguei as cartas que levava, e ele as pôs à parte para ler com sossego. Fez-me sentar e conversou sobre várias ques- tões, meus planos, intenções, etc 48 . Ao que tudo indica, houve uma constante troca de correspondências e notícias entre os principais homens do Norte da América Portuguesa, o que evidencia uma complexa rede de relações. Nos exemplos utilizados, as cartas partiram de Pernambuco, provavelmente, Recife, seguindo para outras localidades. As cartas e notícias poderiam servir como meio de encurtar as distâncias, aproximando homens de vilas e lugarejos distantes dos espaços de sociabilida- des 49 centrados no Recife, mesmo que seus agentes estivessem separados por léguas de dis- tância 50 . Nos excertos citados, observa-se que o viajante, primeiramente, entregou cartas de Pernambuco a um membro da família dos Cavalcanti, capitão-mor da Paraíba, portanto, ocu- pante de um posto de destaque e, na mesma viagem, levou correspondências para um dos maiores proprietário de terras do país 51 , estabelecido no Rio Grande do Norte. Provavelmente, 47 Esse personagem ficará conhecido posteriormente pela historiografia por sua relevante participação na adesão do Rio Grande do Norte à Revolução Pernambucana de 1817. André de Albuquerque Maranhão também foi acu- sado de frequentar a casa dos Suassuna em 1801. 48 KOSTER, Henry, op. cit., p. 101. 49 Entendo, como espaços de sociabilidades, os lugares e locais onde se davam interações entre um grupo seleto de homens que se uniam por afinidades, fossem elas políticas, econômicas ou culturais. Os jantares em casa de particulares, as sociedades literárias e as lojas maçônicas são exemplos desses espaços e circunstâncias. 50 As sociabilidades no Norte da América Portuguesa serão tratadas em outro capítulo. Por ora, basta dizer que as cartas e notícias, como foi dito, serviam para aproximar pessoas e questões distantes, pois noticiavam sobre as- suntos em voga, de modo que eles fossem compartilhados por mais participantes. André Albuquerque Maranhão, proprietário do vasto engenho de Cunhaú no Rio Grande do Norte, por exemplo, já figurava, na devassa de 1801, como frequentador da casa dos Suassuna em Pernambuco, esta também frequentada por dezenas de outros ho- mens. Ou seja, André compartilhava dos círculos de sociabilidades aristocráticos de Pernambuco e, conforme o excerto citado, recebeu uma carta de um amigo em Pernambuco que, infelizmente, Koster não revelou quem era. Entre 1806-1811, o Suassuna José Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque seria o governador da Capita- nia onde vivia o mesmo André Albuquerque Maranhão, frequentador de tempos idos de sua casa. Também é im- portante dizer que a capitania de Pernambuco interligava sociabilidades de outras regiões às suas próprias, dada a sua importância política, econômica, cultural e clerical. 51 No dicionário de Raphael Bluteau de 1716, o termo país significa: terra, região. BLUTEAU, Raphael. Voca- bulário Portuguez & Latino, Áulico, Anatômico, Architetonico […].v Lisboa, Officina de Paschoal Silva, 1716, p. 187. Na reforma feita por Antônio de Moraes Silva do dicionário de Bluteau, em 1789, o significado de país permanece o mesmo. Diccionario da Lingua Portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado e accrescentado por Antônio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Fer- reira, 1789, p. 147. Na Revolução Pernambucana de 1817, o termo país foi empregado pelos revolucionários pa- ra designar circunscrições geográficas diferentes, tais como toda a América Portuguesa, a capitania de Pernam- buco, a corte portuguesa instalada no Rio de Janeiro, ou mesmo todo o Reino Unido de Portugal. VILLALTA, Luiz Carlos. Pernambuco, 1817: „encruzilhada de desencontros‟ do Império Luso-Brasileiro. Notas sobre as 35 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco terceira na ordem das capitanias que tinham maiores relações comerciais com a Metrópole 59 . Pernambuco também contava com o antigo bispado de Olinda, elevado a esta categoria desde 1676, tornando-se, assim, centro do poder eclesiástico na região, exercendo sua jurisdi- ção sobre todas as paróquias do Norte, com ramificação em Minas Gerais. Por volta de 1819, o advogado dos revolucionários de 1817, Antônio Luiz de Brito Aragão e Vasconcelos 60 , es- creveu, em sua Defesa Geral, sobre a importância do Recife/Olinda e de Pernambuco: Ninguém ignora que a vila do Recife é capital de Pernambuco, assim como o ser a cidade de Olinda a sede do Bispado, o qual compreende todo o espa- ço de terreno que se estende desde as Alagoas até o Ceará, inclusive os po- vos de toda aquela extensão têm uma grande correlação com a vila do Reci- fe, que olham como a sua capital apesar de haverem (sic) governos separa- dos como os do Rio Grande, Ceará e Paraíba (...). A vila do Recife é o cen- tro das riquezas e do comércio de todos os povos adidos ao Bispado de Olinda porque estes pela maior parte vivem da criação de seus gados, da cultura do algodão e de algumas plantações, cujos gêneros levam para ven- der naquele empório de sua negociação e donde eles levam as manufaturas de que se vestem, e lhe são necessárias para outros usos por isso têm dela uma dependência que não pode escusar 61 . Portanto, havia vínculos históricos, econômicos, religiosos, e políticos, que aproxima- vam entre si os habitantes do Norte da Colônia, com olhos voltados sempre para Pernambuco e sua capital. Ademais, as alterações das fronteiras das capitanias do Norte, de onde começava uma e terminava a outra, ou as alterações de ordem administrativa e as novas subordinações entre as diversas autoridades reais, faziam mais diferença para a melhor governança da mo- narquia portuguesa do que para aqueles homens mais humildes, acostumados com a tradição que dizia que Pernambuco era o “mundo” e Recife/Olinda o “centro” dele. Basta lembrar que as divisões administrativas iniciadas pelo governo português, em 1796, demoraram a surtir efeito no âmbito econômico e, certamente, custariam ainda mais para cair no gosto do povo. Por isso, o anseio dos homens do sertão pelas novidades de Pernambuco, porque não lhes in- teressavam os assuntos distantes. Outro aspecto importante a salientar do episódio em que homens indagavam a Henry Koster sobre notícias de Pernambuco é a cultura oral. Os sertanejos sentaram-se no chão e ajeitaram-se para ouvir o que Koster, sentado na rede, acima da linha dos olhos deles, tinha a 59 IAHGP – Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Revolucções do Brasil. Revista do IAHGP, Tomo quarto, nº 29. Recife: Typographia Industrial, 1884, pp. 77-8. 60 Doravante, Aragão e Vasconcelos. 61 DH, vol. CVI, p. 85. 36 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco dizer. Assim, quem tem notícias a dar e histórias a contar deveria ser destacado, de modo que todos pudessem vê-lo e ouvi-lo. Porém, o assunto de que tratavam não era feito apenas por uma via, como se o inglês estivesse fazendo uma proclamação, enquanto os sertanejos estari- am apenas a escutá-la. De fato, havia uma conversação entre eles. Talvez os curiosos guias- sem o assunto por meio de perguntas, enquanto Koster respondia-lhes e acrescentava outras. Por ser uma sociedade iletrada, deve-se destacar que o único meio de saber sobre as coisas do mundo, ou aprender algo, era através da cultura oral. Os homens sem conhecimento das letras deveriam ser habilidosos no falar para extraírem, ao máximo, as informações dos interlocuto- res. Entre tais homens iletrados, um inglês, por exemplo, era uma raridade, um poço de todos os tipos de novidades, que poderia ser bem aproveitado. Já a cultura escrita, por vias diretas, no geral, era acessível a privilegiados, tais como os homens letrados, abastados ou membros da Igreja 62 . Estes, além de estarem acostumados com a cultura oral, realidade da maioria da população iletrada, podiam ainda aprender por meio dos impressos e manuscritos e comunica- rem-se por meio das cartas, como vem se demonstrando. Embora o acesso aos impressos e manuscritos estivesse ao alcance de poucos homens, é bem possível que essa cultura escrita se transformasse em cultura oral, alcançando também os homens mais rústicos 63 . O mesmo se dava com a cultura oral que, eventualmente, era absorvida pela cultura escrita. Por fim, ainda sobre o episódio em que os sertanejos foram ouvir Koster, nota-se a gratidão desses homens, que lhe ofereceram cavalos para viagem e enviaram-lhe um presente de carne assada, um mimo pelas notícias recebidas com tanta generosidade. Essa circulação de cartas e notícias demonstra a centralidade do Recife/Olinda como lo- calidades difusoras e receptoras das mais variadas informações no Norte da América Portu- guesa 64 . Se havia interesse de sertanejos distantes em saber sobre Pernambuco, haveria ainda mais entre aqueles que tinham negócios a tratar no Recife e vilas vizinhas, ou que quisessem 62 Indiretamente, isto é, através da oralidade, as demais categorias sociais poderiam alcançar essa cultura escrita. 63 Ao estudar o controle da difusão de ideias em Portugal e em alguns casos também no Brasil, Luiz Carlos Vil- lalta constatou que Cipriano Barata, participante da Inconfidência Baiana, usou manuscritos trasladados cujas ideias eram contra a fé e a monarquia. Foram copiados por letrados e postos em circulação entre os rústicos. Além disso, inscreviam-se numa cultura marcada pela oralidade, valendo-se da mesma e nutrindo-a com ele- mentos heréticos e subversivos, por meio do desenvolvimento da leitura oral e coletiva, de casa em casa. VIL- LALTA, Luiz Carlos. As imagens e o controle da difusão de ideias em Portugal no ocaso do Antigo Regime, Blogue de História Lusófona. Lisboa: IICT - Instituto de Investigação Científica Tropical, ano VI, 2011, p. 77. Disponível em: http://goo.gl/fO1qa 64 Não bastasse a influência de Pernambuco sobre a Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte, a Capitania de Duarte Coelho era vasta, acompanhando o Rio São Francisco pelo o que é hoje todo o oeste da Bahia e quase todo norte de Minas Gerais. Para o período estudado, as terras de Pernambuco eram todo o oeste da atual Bahia e a parte li- torânea, que hoje compreendem Alagoas e Pernambuco. COSTA, F. A. Pereira da. Anais Pernambucanos. Reci- fe: Arquivo Público Estadual, 1958, vol. VIII, pp. 83-7. 37 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco saber das últimas modas, ou mesmo que desejassem comprar artigos de luxo, ou contactar as ordens clericais, tão abundantes em Recife/Olinda. 1.2 Os emissários do Norte: senhores, padres e índios Homens que viajavam pelo Norte e que, ao mesmo tempo, eram estrangeiros, como Henry Koster, foram raros. A função de emissário, principalmente para as longas distâncias, ao que tudo indica, era desempenhada por aqueles que tinham por hábito errar pelos sertões e litorais, tais como alguns senhores abastados (mais frequentemente, os seus homens de confi- ança), que tinham assuntos a tratar em outras regiões; os padres, que perambulavam levando a fé católica aos lugares mais ermos; ou índios 65 , que não se fixavam em nenhuma paragem. Havia também outros grupos que circulavam pelo Norte, tais como: comboieiros, tropeiros, almocreves, sertanejos, funcionários reais, criminosos etc. 66 No entanto, ao longo deste capí- tulo, tratarei apenas daquelas categorias cujas informações aparecem com maior abundância. No que diz respeito aos homens abastados que viajavam pelo Norte, Koster relata sobre a vez que, após seu regresso ao Jaguaribe: fui surpreendido pela chegada de um homem branco, fardado de azul e en- carnado, seguido por um grande número de animais carregados e de pesso- as vestidas de couro, como usam os sertanejos. Entregou-me uma carta, que verifiquei não ser para mim e sim para outro inglês que estava comigo (...) [O homem branco, fardado de azul,] era um comandante do interior, distante 130 léguas, morando nas fazendas da província da Paraíba (...) Co- locara, a bordo das jangadas na Paraíba, um grande carregamento de al- godão, colhido nas suas propriedades, e ia viajando para o Recife a fim de vender e adquirir objetos de luxo para sua família 67 . 65 Embora seja sabido que havia incontáveis grupos de indígenas na América Portuguesa, diferentes entre si, tan- to em sua cultura quanto nos idiomas empregados, adotei a ideia de índio exposta por Henry Koster em seus es- critos. O viajante inglês faz uma pequena distinção entre dois grupos de índios, segundo a sua maior ou menor aproximação com os súditos portugueses: os índios e os índios bravios. Os índios tinham hábitos errantes, foram os primeiros habitantes daquelas terras que conviveram com os europeus, com negros e outras misturas de cor, que adotaram alguns costumes lusitanos, ainda que não todos. Eram diferentes dos índios bravios, estes últimos abundantes no Maranhão e hostis aos súditos portugueses. 66 Tendo como recorte espacial de sua pesquisa a capitania de Minas Gerais do século XVIII, Cláudia Maria das Graças Chaves estudou os diversos tipos que comercializavam naquela região. Para a historiadora, havia dois ti- pos de comerciantes em Minas Gerais. O primeiro grupo compreendia os comerciantes que transportavam e vendiam mercadorias pelos caminhos, nas vilas e arraiais, sem localização fixa ou em feiras. Eram os tropeiros, comboieiros, boiadeiros, atravessadores, mascates, negras de tabuleiro. O segundo grupo seria dos comerciantes que compravam e revendiam mercadorias em seus estabelecimentos fixos, como os vendeiros, lojistas e comissá- rios. CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Perfeitos negociantes: mercadores das minas setecentistas. São Pau- lo: Annablume, 1999, p. 49. 67 KOSTER, Henry, op. cit., p. 313. 40 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco era só imprescindível para manter a fé dos sertanejos, mas também para levar-lhes alguma instrução, além, é claro, de reportar a esses fiéis os últimos acontecimentos 73 . Henry Koster, por sua vez, comenta que, nessas regiões onde as moradas são tão afas- tadas umas das outras, havia o hábito curioso de certos padres, munidos de uma licença do Bispo de Pernambuco, viajarem com um altar portátil, construído para esse fim, conduzido por um cavalo, assim como todos os objetos para as missas. O cavalo era dirigido por um ra- paz que ajudava o padre nas missas, enquanto o outro animal trazia o sacerdote com sua bagagem. Esses padres, por transitarem por longas distâncias, no decorrer de um ano, auferi- am renda considerável. Eles param, erguem o altar onde existe um certo número de pessoas que podem pagar para ouvir missa 74 . Henry Koster atenta-se para a importância dessa tradi- ção, concluindo que, se não existisse: todo culto seria impossível para os habitantes de muitos distritos (...) nessas paragens em que não há lei nem religião real e racional. (...) É o liame que prende todo esse povo e o sustenta, no fio das ideias recebidas, junto às po- pulações maiores de outros distritos 75 (grifos meus). Koster entende que os padres que transitavam com seus altares portáteis eram impres- cindíveis para o povo sertanejo, primeiramente, por levarem o culto aos lugares mais distantes e, em segundo lugar, por serem depositários e emissários não só das palavras de Deus, mas também de ideias e novidades de outros distritos 76 . A relevância dos padres viajantes era tão nítida que Koster via neles a única ligação que unia o povo do sertão distante aos distritos. Os sacerdotes eram um dos poucos contatos com o mundo exterior que muitos habitantes das dis- tas poeiras do sertão podiam ter. É o que também percebia o padre Inácio da Silva, ao escre- ver sobre a atuação da Congregação do Oratório em Pernambuco: Em diversos tempos do ano se revezam outros padres em missões deambula- tórias, pregando pelas freguesias e lugares mais povoados, aonde raras ve- zes chegam a ouvir quem desta maneira os desengane de seus erros e os encaminhe para o céu; e não fazem a sua derrota os seus missionários tanto pelo perto, que já por muitas vezes não chegassem a caminhar duzentas lé- guas nesta empresa do serviço de Deus, pregando, confessando e ensinando 73 A instrução de que fala Tollenare tinha como uma de suas fontes o contato dos padres com os livros. Outra fonte, certamente, seria a oralidade. Poderiam aprender com outros padres e mesmo com o povo que costuma- vam frequentar. Sobre o contato dos clérigos com os livros, tratarei mais adiante. 74 KOSTER, Henry, op. cit., p. 131. 75 Ibidem, p. 132. 76 Não é possível definir o que Koster chama de distrito, se eram vilas ou mesmo regiões. De qualquer forma, pa- rece-me que eram localidades no sertão com menos habitantes e distantes das vilas litorâneas. 41 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco a doutrina aos povos, de que resultam admiráveis conversões, casos prodi- giosos, que não pertencem à brevidade desta relação 77 . Nessas incursões que faziam pelo sertão, os padres viajantes também agiam como por- tadores de cartas e até como mensageiros de novidades 78 , que circulavam por aglomerados maiores, como o Recife, Olinda, Paraíba 79 , Natal e outras vilas. Quando o viajante inglês foi acometido de febre em Sant‟Ana 80 , ele disse que, desejava vivamente chegar ao Assú 81 , querendo adiantar a viagem e ao mesmo tempo com a esperança de encontrar um padre que quisesse encar- regar-se de algumas cartas que tencionava enviar aos meus amigos 82 (grifos meus). A menção aos padres como mensageiros não é aleatória. O que Koster desejava era fa- zer uso de uma prática comum à região, isto é, valer-se dos padres que viajavam para levar al- gumas cartas aos seus em Pernambuco 83 . Pode-se perceber também que os padres viajavam pelo sertão, mas voltavam para as cidades maiores (no excerto citado, Recife/Olinda), peram- bulando entre as diversas regiões. Além dos senhores abastados e padres, os índios também desempenhavam o papel de emissários de cartas e talvez fossem até preferidos para desempenhar esta função para as lon- gas distâncias. Dizia o viajante que a predileção pelos índios era pela sua facilidade inexplicá- vel de encontrar qualquer caminho e chegar ao lugar certo, mesmo sem marcas e sem estra- das, além da velocidade que avançavam até chegar ao seu destino: Os mensageiros, de uma para outra província, são, em maioria, indígenas, e pelo hábito que os faz resistir às grandes fadigas, são capazes de andar, dia após dia, quase um mês, com pequenos repousos. Tenho-os encontrado, com sua sacola de pele de cabra ao ombro, pisando com passo rítmico, na- da os detendo do que poderia embaraçar o caminho. Mesmo que um cavalo possa adiantar-se sobre esses homens nos primeiros dias, se a viagem for 77 IAHGP – Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Notícia que dão os Padres da Con- gregação de Pernambuco acerca da sua Congregação, desde a sua criação. Revista do IAHGP, Recife: volume LVII, 1984, p. 58. 78 Como bem deixou claro Henry Koster, na citação anterior. 79 Era comum nesse período referirem-se à capital da Paraíba como cidade da Paraíba. O mesmo se dá para o Recife, que também era conhecida como Cidade de Pernambuco ou Santo Antônio do Recife. 80 Povoado situado nos limites do Ceará e Rio Grande do Norte. 81 Povoado situado no sertão, a meio caminho entre Ceará e Rio Grande do Norte. 82 KOSTER, Henry, op. cit., p. 193. Os grifos são meus. 83 Embora o excerto usado não explicite a origem dos amigos de Henry Koster, não há possibilidade que eles se- jam de outro lugar que não Pernambuco. Na maioria das vezes, quando menciona “amigos”, Henry Koster se re- fere àqueles que o acolheram no Recife e em localidades vizinhas, portanto, de Pernambuco. Ademais, o inglês sempre explicita que viveu somente em Pernambuco. 42 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco prolongada, o indígena, no fim, chegará primeiro. Quando um criminoso ilude as diligências dos oficiais da Polícia, os indígenas são enviados em sua perseguição como último recurso 84 (grifos meus). Certamente, o costume de não se fixar em uma região contribuía para que alguns índios do Norte conhecessem os caminhos invisíveis que interligavam os inúmeros lugarejos. Henry Koster percebe também que a predileção por esses Hermes do sertão dava-se pela sua rapidez no deslocamento, chegando antes que os cavalos, ao longo de vasto território, pois eram men- sageiros de uma para outra província. Porém, não só o conhecimento dos caminhos e a rapi- dez no deslocamento pelo território tornavam os indígenas os mensageiros preferidos. É bem provável que, pela maioria dos índios desconhecer a leitura, a possibilidade de violação das mensagens era infinitamente menor, se os compararmos aos mensageiros que tinham mais possibilidades de saber ler, como os senhores abastados e os padres. Se se quisesse enviar uma carta com assuntos reservados, a algum lugar longe e com certa urgência, o ideal seria pagar aos indígenas para que o fizessem 85 . O viajante Koster parece ter enviado cartas tendo por emissários os indígenas. Quando estava nas proximidades de Cunhaú 86 , com destino a Pernambuco, relata Koster que dois mensageiros 87 passaram por esse recanto [Cunhaú] durante a tarde e escrevi a um amigo de Pernambuco para que tivesse a minha cabana de Cruz das Almas preparada para meu re- gresso 88 (grifos meus). A carta parece ter alcançado o destino, pois lembra-se o viajante que: pela manhã adiante fui a cavalo para o Recife, onde os amigos me recepcionaram como a um homem desaparecido e mesmo o amigo particular a quem escrevera disse que não esperava ver-me (grifo meu). 89 84 Ibidem, p. 172. 85 João Paulo Peixoto COSTA encontrou documentos que mostram que algumas vezes os índios não entregavam as cartas pelos mais diversos motivos. Quando estavam a serviço dos correios e não entregavam as correspon- dências eram castigados. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e Invenção: civilização e cotidiano indígena no Ceará (1812-1820). Teresina: Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da UFPI, 2012 (Dissertação de Mestrado), pp. 153-73. (Agradeço à professora Serioja Rodrigues Cordeiro Mariano pela indicação dessa obra). Por outro lado, Henry Koster apreciava o trabalho dos índios como guias e carregadores (errantes): Tenho empregado muitos indígenas, como carregadores e guias (...). Para guias e carregadores são excelentes adap- tados pelos seus hábitos de vida errante que essas ocupações exigem. KOSTER, Henry, op. cit., p. 173. 86 Povoado próximo a Natal, cujas terras pertenciam a André de Albuquerque Maranhão, já mencionado neste texto. 87 É verdade que Henry Koster não diz se esses mensageiros, em especial, eram ou não indígenas, mas, na versão original de sua obra, quando se refere aos índios que carregavam cartas, usa o termo letter-carriers. The letter- carriers, from one province to another, are mostly Indians, for from habit they endure great fatigue. KOSTER, Henry. Travels in Brazil. London: Printed for Longman, Hurst, Rees, Orme and Brown, 1816, pp. 119-20. É ne- cessário se ater a outro detalhe. Koster diz que a maioria desses mensageiros eram indígenas (mostly indians), ou seja, havia também outros tipos de mensageiros que poderiam fazer as mesmas entregas que os indígenas. 88 KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil, op. cit., p. 217. 89 Ibidem, p. 222. 45 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco O saco de seda carmesim também trazia consigo toda uma simbologia, que era inteligí- vel para os homens da época. Significava que o seu portador adquiria, provisoriamente, o car- go de mensageiro real e, por conseguinte, tendo o poder de solicitar o empréstimo de cavalos por onde passasse. Os cavalos não estariam a serviço daquele homem que trazia correspon- dências, mas, simbolicamente, para o uso pessoal do próprio rei. Ao passar pelo povoado de Santa Luzia, o guia de Koster alertava-o que a casa em que estavam alojados era cercada pelo povo, por causa de um desentendimento passado que haviam tido com o inglês. O viajante, então, relata que pediu sua maleta e, calmamente, de lá tirou o saco vermelho com as corres- pondências reais, colocando-o sobre um cepo de madeira, e ficou como se estivesse procuran- do algo mais dentro da maleta: Quando olhei em torno, depois de alguns minutos, toda a gente que se reuni- ra desaparecera, tal fora a importância do saco vermelho, dando como era sabido o poder de requisitar animais, e outra ideia da minha situação surgi- ra com a presença mágica dessa bolsa 97 . O poder de requisitar animais, conferido pela posse da bolsa de seda carmesim, parece ter sido conflituoso na região Norte do país. Em nota à obra de Henry Koster, Luiz da Câmara Cascudo diz que a requisição de animais para serviços públicos era uma ordem mal recebida, pois facilitava a ocorrência de abusos por parte dos requerentes 98 . Talvez, de fato, houvesse a preferência de enviar mensageiros de confiança e distinção como Henry Koster, porque eles conferiam credibilidade ao solicitar o uso dos animais. Provavelmente, os comandantes du- rante o caminho tivessem dificuldades em emprestar suas montarias aos mensageiros, caso eles fossem indígenas ou homens de baixa estirpe. Do mesmo modo, a solicitação do animal por aqueles que serviam ao rei como mensageiros era legítima, mas causava abusos por parte dos requerentes, o que indignava os proprietários. No tocante à rapidez da entrega das corres- pondências, ainda que Henry Koster atribuísse grande velocidade aos índios, chegando antes que os cavalos, a utilização de diversos cavalos, requisitados em cada paragem pelo poder da bolsa carmesim, permitia um transporte de cartas ainda mais ligeiro. Tanto que era o modo oficial adotado pelas autoridades reais para enviar suas correspondências. 97 KOSTER, Henry, op. cit., p. 192. 98 As reclamações eram diárias, mas os interesses, mais privados que gerais, obstavam o deferimento. Ainda a 16 de março de 1816 uma “decisão” declarava que “as fazendas nas estradas devem fornecer cavalgaduras às paradas que andarem em serviço público. Essa ordem findou durante a Regência de D. Pedro, no ministério do Conde dos Arcos (...) [em 1821]”. CASCUDO, Luiz da Camara. Notas a obra de Henry Koster. In: KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Tradução e Notas de Luiz da Camara Cascudo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942, p. 186. 46 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco Ainda com relação à primeira citação do saco vermelho de correspondências, Henry Koster atentou-se para o fato de que a entrega de correspondência nem sempre era perfeita, podendo haver acidentes. Os acidentes a que o viajante inglês faz menção são aqueles que se relacionam ao período de estiagem, que deixavam não só os caminhos desertos, mas também vários distritos 99 . Para Koster, não era raro ocorrer esses acidentes, pois o Norte do país fre- quentemente vinha experimentando duras secas, como as de 1791, 1792, 1793, 1810, 1816 e 1817 100 . Nos demais anos, houvera períodos de estiagem menos nocivos, embora sempre pe- rigosos, como os que Henry Koster enfrentou em suas perambulações pelo sertão, correndo risco de morte. Era a seca a maior adversidade que os emissários viajantes poderiam enfren- tar, fazendo-os evitar os períodos de estiagem, tal como não fez Koster em suas primeiras idas ao sertão, quando seus guias quase desertaram. Quanto aos assaltos e roubos nas estradas, ainda que tenham existido, não são mencionados pela pena do inglês. É provável que fossem mais comuns entre as cidades litorâneas do que no sertão inóspito e regularmente tórrido. Em suma, por se desenvolver um trânsito constante de pessoas pelo Norte da América Portuguesa, havia uma silenciosa, mas abundante circulação de cartas (manuscritas) e novas (mensagens orais) entre os habitantes do Norte. Os emissários eram provenientes do grupo dos senhores abastados, ou padres, ou índios, embora não se descartem outros tipos de men- sageiros. As incursões feitas pelos senhores abastados e clérigos tinham objetivos maiores, como o trato de negócios ou a disseminação da fé, sendo que, nesses casos, a entrega de cartas e a narração de notícias ficavam em plano secundário. Desse modo, esses dois tipos de emis- sários agiam em favor, como gentileza, dos remetentes e destinatários. O mesmo não pode ser observado no caso dos emissários indígenas. Nos exemplos utilizados, os índios entregavam as cartas mediante pagamento. Se comparados com os integrantes dos dois primeiros grupos de emissários, teoricamente, os índios seriam preferidos para entregar cartas particulares, pois conseguiam cobrir mais rapidamente grandes distâncias, além de boa parte deles não saber ler, o que diminuía as chances de violação da mensagem. No entanto, talvez não fossem os predi- letos para falar sobre os últimos acontecimentos, se comparados aos demais tipos de viajantes citados, que tinham mais credibilidade que aqueles. Havia ainda as correspondências oficiais que, preferencialmente, eram entregues aos senhores abastados, homens de confiança ou pa- dres, pois eles tinham mais credibilidade ao requisitar montaria aos súditos do rei, ainda que a 99 KOSTER, Henry, op. cit., p. 179. 100 A seca no final do ano de 1816 para o ano de 1817, obviamente, não está documentada nos relatos de Henry Koster e, sim, nos Documentos Históricos, publicados pela Biblioteca Nacional, bem como nos relatos de L. F. Tollenare. 47 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco utilização dos índios, dos homens a pé, fosse a mais comum. No caso das correspondências oficiais, podiam chegar mais rapidamente do que aquelas entregues pelos índios – ainda que Koster testemunhe o contrário –, pois, em tese, o requerente poderia solicitar várias montarias ao longo de sua trajetória. No entanto, quando não se usavam tantas montarias, quando as missivas eram trocadas entre particulares, os índios poderiam ser mais rápidos. Além de revelar o modo como acontecia a circulação da cultura escrita e da cultura oral, as perambulações dos envias, aqui explicitadas, demonstram as ligações entre as diversas re- giões que compunham o Norte da América Portuguesa. Foram citados exemplos de envio de mensagens da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará, com destino a Pernambuco. Tam- bém a Coroa portuguesa vinha se esforçando na melhoria dos serviços postais no primeiro quartel do século XIX. João Paulo Peixoto COSTA encontrou documentos relativos aos servi- ços postais do Ceará, demonstrando onde seriam os postos de entregas e recebimentos das cartas, bem como a regularidade que as correspondências seriam despachadas, quem faria as entrega e quanto seria o valor desses serviços 101 . Ao contrário do que se pode pensar, não era impossível que as novas se espalhassem rapidamente por todo o Norte e fossem conhecidas tanto por homens que sabiam ler quanto por aqueles que só podiam escutar, seja no litoral ou no sertão, dadas essas ligações oficiais, mas também subterrâneas, corporificadas pelo ato dos estafetas de levar e trazer mensagens. Deve ser ressaltado que o domínio sobre a leitura e a escrita, habilidades restritas a poucos 102 , ampliava os meios de se saber sobre determinado as- sunto. Ainda sobre a circulação dessa cultura escrita, embora as fontes mencionem apenas as cartas e notícias, é concebível que também houvesse a circulação de outros impressos. Estu- dos da professora Vera Lúcia Amaral Ferlini apontam para a circulação em Pernambuco de gazetas manuscritas, entre outubro de 1790 e maio de 1791. Essas gazetas revelavam a vida administrativa da Capitania, tecendo críticas viperinas ao governador D. Thomaz José de Mel- lo e a seus apadrinhados. No entanto, o mote principal da gazeta eram as pesadas tributações que insidiam sobre os súditos de Pernambuco 103 . Ora, se havia circulação de gazetas manus- critas que, por sua vez eram copiadas e repassadas, por que não haveria também a circulação 101 COSTA, João Paulo Peixoto, op. cit., pp. 163-64. 102 Eram habilidades distintas, objetos de diferentes momentos do aprendizado, não sendo incomum que alguém soubesse ler, mas não escrever. VILLALTA, Luiz Carlos. Ler, escrever, bibliotecas e estratificação social. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de & VILLALTA, Luiz Carlos. (Org.). História de Minas Gerais: As Minas Setecentistas, 2. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007, p. 289. 103 FERLINI, Vera Lúcia Amaral. A Gazeta de Pernambuco: algumas questões sobre a circulação de notícias no fim do século XVIII. In: ALGRANTI, Leila Mezan & MEGIANI, Ana Paula Torres. (Org.). O Império por Es- crito – Formas de Transmissão da Cultura Letrada no Mundo Ibérico (século XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2009, pp. 471-94 50 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco nada e foi extinta no final de 1794. Para aumentar o rigor da censura, a Coroa Portuguesa res- tabeleceu o sistema de censura tríplice, que seria novamente realizada pelo Ordinário, Inquisi- ção e Desembargo do Paço. Nesse caso, no âmbito religioso, o Ordinário e a Inquisição deve- riam iniciar a censura literária, cada qual respeitando a autonomia do outro tribunal. Após su- as deliberações, agiria o Desembargo do Paço com o veredicto final. Em 1795, um alvará de- terminou a articulação dos três órgãos, reafirmando a obediência às regras da Real Mesa Cen- sória, o que funcionou até 1820 111 . Para que os impressos fossem enviados para a América Portuguesa, os remetentes deve- riam apresentar os livros à alfândega, que estava obrigada, através de seus juízes, a remetê-los para a Casa de Revisão 112 . Os impressos deveriam vir acompanhados de um pedido de licença e uma lista que trazia detalhes sobre as obras. Esses pedidos seguiam um padrão mais ou me- nos formal, registrando a data da petição, o nome do remetente e/ou de seu procurador, os termos para requerer a mercê de embarcar os livros, o local para onde se destinavam os livros etc. Listas de livros acompanhavam os pedidos. Elas discriminavam as obras que se pretendia embarcar 113 , variando o seu nível de detalhamento de acordo com a presteza dos solicitantes e as exigências dos oficiais da alfândega. Alguns requerentes informavam dados como a quan- tidade de volumes, o formato dos livros 114 , o nome dos autores, o nome de possíveis traduto- res, o idioma da obra, a oficina em que foram feitos os livros etc., porém, raramente todos os dados supracitados eram registrados nas listas. Ao menos as listas mencionavam os títulos das obras que os requerentes tencionavam enviar, o que nem sempre satisfazia aos censores, pois alguns reclamavam sobre aquelas que traziam títulos truncados. Diziam que tais incorreções não só dificultavam a censura, como também suscitavam desconfianças e perplexidade no es- pírito do censor. Provavelmente, as listas com títulos defeituosos facilitavam o ato de burlar a 111 Ibidem, pp. 196-203. 112 Essa determinação é de 1768, porém, antes dessa data e após 1794, o procedimento para controle das alfânde- gas era similar. VILLALTA, Luiz Carlos. Os livreiros, os livros proibidos e as livrarias em Portugal sob o olhar do Antigo Regime (1753-1807). In: NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. (Org.). Livros e Impressos: retratos dos setecentos e dos oitocentos. Rio de Janeiro: Eduerj/Faperj, 2009, p. 223-268. 113 Para a fiscalização de livros na América, no período da Tríplice Censura (1576-1768) remeto ao capítulo 5, pp. 242-252, da tese de doutorado supracitada de Luiz Carlos VILLALTA. 114 O formato diz respeito às dimensões do impresso. In-fólio corresponde ao formato do livro cujos cadernos são obtidos dobrando-se ao meio a folha de impressão, que comporta, portanto quatro páginas, duas de cada lado; in- quarto diz-se de livro ou formato de livro em que cada folha, dobrada duas vezes, é composta por oito páginas, isto é, quatro de cada lado; e in-oitavo diz-se do livro ou formato de livro em que cada folha, dobrada três vezes, é composta por dezesseis páginas, isto é, oito de cada lado. HOLLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 51 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco censura 115 . Dessa forma, os órgãos censórios percebiam que a ausência de informações em muitas listas atrapalhava a fiscalização dos livros. Em 1795, por exemplo, o Desembargo do Paço não autorizou o envio de livros de Pedro José Reis para a Paraíba, exigindo dele uma apresentação exata dos livros que tencionava enviar, com maiores informações 116 . Após a apresentação dos livros, das petições acompanhadas de suas respectivas listas, cabia aos censores fiscalizar os impressos que estavam para ser remetidos, confiscando aque- les que fossem proibidos e inquirindo possíveis contraventores 117 . Somente após essa averi- guação é que os impressos estavam livres para seguir viagem. No entanto, as listas dos livros enviados para Pernambuco não revelavam todas as obras que, de fato, chegaram ao porto do Recife. A História do Livro e da Leitura no Brasil tem demonstrado, com abundância de fon- tes, que livros proibidos, não obstante às dificuldades impostas pela Coroa para a sua circula- ção, chegavam às mãos de leitores do outro lado do Atlântico. A seguir, serão expostos alguns casos de contrabando, por ora basta ressaltar que os documentos revelam várias tentativas de enganar a fiscalização. Em Portugal, por exemplo, há relatos de que diplomatas usavam o fundo falso de suas malas para fazer passar livros proibidos. Segundo o viajante Carl Israel Ruders, o contrabando era a maneira mais usual e menos embaraçosa empregada pelos par- ticulares para adquirir livros proibidos, bastando, caso houvesse interesse por algum livro es- trangeiro, contactar algum marinheiro, que se encarregaria de o trazer e de o fazer chegar ao seu destino. Há outros relatos de contrabando de livros na América Portuguesa através de ca- pitães e pilotos, que os traziam para os interessados. Os autos das devassas das Inconfidências Mineira, Baiana e do Rio de Janeiro e os documentos enviados ao Santo Ofício evidenciam a presença de livros proibidos, que atravessaram o oceano através do contrabando 118 . Quanto às listas que chegavam aos tribunais censórios, não era desconhecido das auto- ridades reais que muitos títulos eram omitidos, outros alterados, para que fossem concedidas as devidas licenças. Há também relatos de livros cujas capas não correspondiam ao assunto que eles traziam, tratando-se de uma alteração para ludibriar os censores. O viajante francês 115 NEVES, Lúcia Maria Bastos P. Luzes nas bibliotecas de Francisco A. Gomes e Daniel P. Muller, dois intelec- tuais luso-brasileiros. In: Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e soci- edades. Lisboa: Biblioteca Digital Camões, 2008. p 7. 116 VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura: Usos do Livro na América Portuguesa. São Paulo: FFLCH-USP, 1999, (Tese de Doutorado), p. 257. 117 Os censores baseavam-se no Índex Expurgatório iniciado pela Real Mesa Censória, que servia para definir os livros que poderiam entrar, sair e circular nos domínios lusitanos. VILLALTA, Luiz Carlos. Os livreiros, os li- vros proibidos e as livrarias em Portugal sob o olhar do Antigo Regime (1753-1807). In: NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. (Org.). Livros e Impressos: retratos dos setecentos e dos oitocentos. Rio de Janeiro: Eduerj/Faperj, 2009, p. 223-268. 118 VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura: Usos do Livro na América Portuguesa. São Paulo: FFLCH-USP, 1999, (Tese de Doutorado), pp. 264-65. 52 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco L. F. Tollenare diz que, assim como em Portugal, os livros introduzidos em Pernambuco pas- savam pela censura, mas esta era facilmente ludibriada 119 . Portanto, por conta desse ardil dos remetentes para tentar passar livros proibidos pela fiscalização e, por diversas vezes, obtendo sucesso nessa empreitada, as petições e listas submetidas ao Desembargo do Paço, que com- põem parte das fontes utilizadas neste trabalho, não fornecem uma ideia completa, mas opaca e difusa, dos títulos que circularam entre os portos portugueses e o porto de Santo Antônio do Recife. O remetente que não pudesse apresentar o seu pedido ao Desembargo do Paço poderia fazê-lo por meio de um procurador. O procurador poderia ser algum parente ou amigo do re- metente, algum terceiro que exercia o “ofício” de procurador, ou mesmo os próprios livreiros instalados em Portugal. O uso de procuradores responsáveis para adquirir licenças para envio de livros junto ao Desembargo do Paço parece ter sido bastante comum. Fonte: IANTT-RMC - Livros Destinados a Pernambuco, caixas 161 e 162. Entre 1795-1820, das 333 petições enviadas ao órgão censor para licença dos livros a serem remetidos para Pernambuco, 164 apresentavam a assinatura de procuradores, ou seja, aproximadamente 49% do total de petições. Talvez o uso constante dos procuradores se deva ao fato de que alguns dos remetentes estivessem na América Portuguesa e solicitassem aos seus representantes o envio de livros para Pernambuco. Também é possível pensar que os li- vreiros instalados na praça de Lisboa exercessem a função de procuradores 120 , mediante um adicional pago pelos que queriam comprar livros, ou como uma mercê aos compradores, co- mo meio de atraí-los para a compra das obras em suas lojas, uma vez que a praça de Lisboa 119 TOLLENARE, L. F. Notas Dominicais. Recife: Secretaria de Educação e Cultura, 1978, p. 94. 120 Não era raro que os remetentes nomeassem livreiros como seus procuradores. VILLALTA, Luiz Carlos. Cen- sura literária e circulação de impressos entre Portugal e Brasil (1769-1821). In: Eliana de Freitas Dutra & Jean- Yves Mollier (Org). Política, Nação e Edição – O lugar dos impressos na construção da vida política. São Pau- lo: Annablume, 2006, p. 125. TABELA I: Petições enviadas ao Desembargo do Paço para despacho de livros com destino a Pernambuco (1795-1820) Petições Números Absolutos Números Relativos Totais 333 100% Com procuradores 164 49% Sem procuradores 169 51% 55 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco que daquela vez os livros haviam chegado e a parte que pertencia a Duarte fora entregue 129 . Curiosamente, observando-se as petições e listas de livros enviadas para Pernambuco não é encontrado nenhuma vez o nome de Cavalcanti de Albuquerque. Talvez a petição e a lista re- ferentes a esses livros enviados se perderam, ou Cavalcanti de Albuquerque mandara livros sem passar pelos censores, ou seja, havia contrabandeado obras e as enviado para Pernambu- co. Chegando ao porto do Recife, é bem provável que os impressos sofressem nova fisca- lização 130 . Nesse caso, as autoridades competentes exigiam a licença concedida pelo Desem- bargo do Paço para comprovar que os livros desembarcados haviam sido autorizados e inspe- cionados pelos censores. Caso os livros não trouxessem a licença, eram retidos na alfândega. De acordo com Luiz Carlos VILLALTA: Os livros eram retidos por não terem licença do tribunal censório para en- trarem. Isso ocorreu, por exemplo, com o padre frei José de Santa Ana, mis- sionário apostólico no Real Seminário da Bahia. Ele remeteu livros a Salva- dor pelo navio Nossa Senhora da Boa Viagem e Santo Antônio, tendo para tanto retirado a respectiva licença. Mas o capitão da embarcação perdeu-a e, por isso, os livros ficaram retidos na alfândega da Bahia. Em 20 de julho de 1775, a Real Mesa Censória ordenou ao juiz da alfândega que fossem en- tregues os livros ao missionário. O juiz da alfândega da Bahia procedeu de forma similar com Antônio Ferreira Andrade, que viu seus exemplares da Oração Acadêmica do Pe. Maciel serem retidos por falta de licença e, de- pois, liberados por provisão em 11 de junho de 1776. O mesmo sucedeu com João Amado da Costa, que obteve provisão liberando seus livros em 11 de maio de 1781. Em 1776, Domingos de Bastos Vianna remetera livros com a devida licença para a mesma cidade, mas “porque sucedeo perderse a dita licença”, nas alfândegas soteropolitanas se duvidava “dar Despacho aos referidos sem que apareç[esse] a ordem respectiva” 131 . Dessa forma, as obras estariam sujeitas a duas fiscalizações, uma no porto de embar- que, em Lisboa, mais intensa, de responsabilidade do Desembargo do Paço, outra, no porto de desembarque, por oficiais reais, possivelmente, com maior probabilidade de ser burlada. En- 129 Provavelmente, trata-se de Duarte Guilherme Ferreira, frequentador assíduo da casa dos Suassuna, como de- monstra a devassa feita em 1801. DH, CX, p. 137. 130 Após o impacto causado pela Revolução Francesa na Europa, a Coroa portuguesa enviou uma ordem a todos os juízes das alfândegas do Brasil (São Paulo, Santos, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Pará, Maranhão, Para- íba e Santa Catarina) para que fiscalizassem os recém-chegados navios nacionais e estrangeiros e que não dei- xassem entrar os livros que não viessem acompanhados das devidas licenças. VILLALTA, Luiz Carlos. Censura literária e circulação de impressos entre Portugal e Brasil (1769-1821). In: Eliana de Freitas Dutra & Jean-Yves Mollier (Org). Política, Nação e Edição – O lugar dos impressos na construção da vida política. São Paulo: Annablume, 2006, p. 114. 131 VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura: Usos do Livro na América Portuguesa. São Paulo: FFLCH-USP, 1999, (Tese de Doutorado), pp. 258-59. 56 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco tretanto, as diligências por parte dos organismos encarregados da censura não foram suficien- tes para impedir a entrada, a posse e a leitura de livros proibidos nos domínios portugueses 132 . Após a inspeção da alfândega e não havendo nenhuma evidência suspeita, por fim, de- sembarcavam no porto do Recife e eram entregues aos remetentes. Das mãos do remetente, os livros podiam seguir outros caminhos: ir compor bibliotecas pessoais, serem emprestados aos parentes e amigos, trocados ou mesmo vendidos após sua leitura. Se porventura os impressos comprados ficassem em posse somente de seu comprador ou de um pequeno grupo de conhe- cidos, ainda assim haveria alguma circulação de suas principais ideias. Elas poderiam transitar dos que leram para os que não leram, por meio da cultura oral, através de ensinamentos, co- mentários, citações, debates etc. Robert DARNTON, ao estudar o livro e a leitura na França, diz que os livros eram mais ouvidos do que lidos 133 . É certo que o autor pensa o livro e a leitu- ra para a realidade da França – que era bastante diferente da realidade pernambucana –, onde, ao longo do século XVIII, em algumas regiões, os livros eram lidos na hora das refeições pelo pai protestante à família, ou por algum camponês que soubesse ler, aos seus pares, no fim dos trabalhos diários. Em Pernambuco, como logo se verá, os livros eram lidos pelos membros da elite local, que também os divulgavam a outros homens igualmente distintos, mas que não sa- biam ler, tamanho era o iletramento 134 que abarcava quase todos os habitantes de Pernambu- co, independentemente de cor, credo ou riqueza. Eventualmente, esses poucos leitores disse- minavam também algumas ideias aos homens de baixa estirpe através da cultura oral, uma vez que livros eram mais ouvidos que lidos. Maria Beatriz Nizza da SILVA afirma que, nos gran- des centros urbanos, havia alguns locais privilegiados de conversa, como as boticas e bote- quins, nos quais os livros eram comentados quanto ao seu conteúdo. Além disso, circulavam entre a população cópias manuscritas de livros inteiros ou em partes 135 . 132 VILLALTA, Luiz Carlos. Censura literária e circulação de impressos entre Portugal e Brasil (1769-1821). In: Eliana de Freitas Dutra & Jean-Yves Mollier (Org). Política, Nação e Edição – O lugar dos impressos na cons- trução da vida política. São Paulo: Annablume, 2006, p. 113. 133 DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 158. 134 Tomo emprestado o conceito de letrado e iletrado utilizado por Christianni Cardoso MORAIS. De acordo com a pesquisadora, letramento é a apropriação da capacidade de uso dos códigos escritos em suas variadas formas. (...) ser letrado é estar capacitado a utilizar socialmente os códigos escritos, mesmo que o sujeito em questão não saiba ler ou escrever. É estar envolvido em uma cultura letrada e conseguir se utilizar dessa cultu- ra. Não é uma capacidade circunscrita à habilidade da leitura/escrita e muito menos a um processo de escolari- zação. MORAIS, Christianni Cardoso. Posse e usos da cultura escrita e difusão da escola de Portugal ao Ul- tramar, Vila e Termo de São João del-Rei, Minas Gerais (1750 -1850). Belo Horizonte: FAFICH-UFMG, 2009, (Tese de Doutorado), p. 20. 135 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A cultura luso-brasileira: da reforma da Universidade à Independência do Brasil. Lisboa: Estampa, 1999, p. 140. 57 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco Sobre a importância da cultura oral em Pernambuco, basta lembrarmo-nos do episódio citado no início do capítulo, quando várias pessoas descobrem o motivo da prisão dos irmãos Suassuna, incluindo uma negra vendedora de peixe e alguns homens pardos que eram seus próximos. Mesmo assim, é necessário salientar que as ideias que esses livros traziam não eram fixas e imutáveis, imunes a alterações, mas podiam ser apropriadas de maneiras diversas pelo leitor; ao serem lidas e/ou ouvidas, podiam também ser apropriadas de outras maneiras, ganhando novos tons 136 . 1.4 Comércio legal e contrabando de impressos Para o período estudado, várias foram as petições para o envio de impressos ao Recife. Entretanto, em Pernambuco não existiu um comércio de livros exercido exclusivamente por livreiros, que vendessem obras religiosas e profanas, como havia no Reino e mesmo no Rio de Janeiro e Salvador 137 . O que existiu em Pernambuco foi um intenso comércio de obras religio- sas, com locais fixos e reconhecidos, como o convento da Madre de Deus no Recife. Havia, ainda, a venda de livros profanos feita por comerciantes de diversos artigos, como predomi- nava no Rio antes da chegada da Corte portuguesa – e não por livreiros 138 : segundo Maria Be- atriz Nizza da SILVA, na última década do século XVIII, o Rio de Janeiro contava com ape- 136 Para Roger Chartier, ocorre uma tensão operatória: de um lado, há a tentativa do autor (e também dos edito- res, ou mesmo da Coroa e da Igreja, por meio dos controles que exerciam sobre os livros) passar com os seus es- critos determinadas ideias para o seu leitor e, de outro, há a inventividade dos leitores, a produção pessoal de sentido em contato com o texto lido. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 121. 137 Um comércio livreiro voltado para a venda de livros profanos, tais como dicionários (não religiosos), enciclo- pédias, livros de história, jurídicos, manuais, romances etc. Para o Rio de Janeiro, antes da chegada de D. João, o comércio de livros exercido exclusivamente por livreiros também era bastante reduzido, com demanda bastante específica voltada para áreas profissionais, tais como obras para sacerdotes, magistrados e médicos. Após 1808, observou-se, na referida cidade, uma intensificação do comércio livreiro, liderado por franceses, que não só ven- diam livros, mas também outros itens, ou seja, o comércio de livros não era feito propriamente por livreiros e sim por comerciantes. NEVES, Lúcia Maria Bastos P. Trajetórias de Livreiros no Rio de Janeiro: uma revisão historiográfica. X Encontro Regional da ANPUH. Rio de Janeiro: ANPUH, 2002, (Encontro), p. 2. 138 Faço uso do termo livreiro no sentido definido no dicionário de Raphael Bluteau, e também utilizado por Luiz Carlos VILLALTA, de agente comercial que se volta exclusivamente para a venda de livros. BLUTEAU, Ra- phael. Vocabulário Portuguez & Latino, áulico, anatômico, architetonico [...]. Lisboa: Officina de Paschoal Sil- va, 1716, vol. 4, p. 263. Veja: VILLALTA, Luiz Carlos. Os livreiros, os “livros” proibidos e as livrarias em Por- tugal, sob o olhar do Antigo Regime (1753-1807). In: NEVES, Lúcia Bastos Pereira das (Org.). Livros e Impres- sos: retratos dos setecentos e dos oitocentos. Rio de Janeiro: Eduerj/ Faperj, 2009, pp. 223-68. Podiam esses li- vreiros ainda acumular outras funções além da venda de livros, como editar, traduzir e mesmo escrever livros. Pensei o termo comerciante, imaginando que eles vendessem de tudo um pouco, não sendo tão especializados quanto os livreiros. Lendo os Documentos Históricos, notei que havia uma diferenciação implícita entre os ter- mos comerciante e negociante. Enquanto o primeiro se dedicava ao comércio miúdo e tinha pouca importância social, o segundo se dedicava ao comércio de grosso trato e era bem visto socialmente. 60 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco Como bem reparou o viajante inglês, uma vila do tamanho do Recife, pólo do Norte da América Portuguesa, deveria trazer ao menos uma tipografia ou alguns livreiros. Não sabia Koster das enormes dificuldades de se instalar tipografias no mundo luso-brasileiro, sobretudo porque instalar uma tipografia era uma concessão de privilégio feita pela Coroa. A vinda da família real para o Brasil, não melhorou a sorte de Pernambuco e, até a escrita do relato do vi- ajante, nenhuma tipografia havia sido instalada. 147 . Ao que parece, até 1817, havia apenas du- as tipografias no Brasil: uma, no Rio de Janeiro, por determinação da Coroa, e outra, na Ba- hia, fruto dos esforços de Manuel Antônio da Silva Serva 148 . Oliveira LIMA menciona docu- mentos que comprovam que, se no ano de 1817 a Revolução não tivesse ocorrido, Pernambu- co contaria com o funcionamento de sua primeira tipografia. Em 1815, o negociante Ricardo Fernandes Catanho teria encomendado um prelo da Inglaterra e requerido junto ao Governo Português a necessária licença para utilizá-lo. Caetano Pinto Montenegro, que governava Per- nambuco na época, teria encaminhado o pedido de licença em maio de 1816 ao ministro Mar- quês de Aguiar, com um parecer favorável. A licença foi concedida em 9 de novembro do mesmo ano, devendo o governador organizar com o bispo da diocese o serviço de revisão e aprovação e o corpo de censores 149 . Não tiveram tempo para isso, pois, quatro meses depois, ocorreu a Revolução de 1817, com a expulsão do governador de Pernambuco e a adesão do deão – que substituía o bispo de Pernambuco há anos – ao levante. A Revolução foi, enfim, o momento em que a tipografia em Pernambuco trabalhou pela primeira vez. É importante sublinhar que, malgrado a falta de tipografias, não havia restrições formais ao comércio de livros no Norte, que distinguissem a região em relação a outras partes do Im- mercado de livro. No original, porém, Koster não menciona o mercado de livros, mas os livreiros. Suprimi a ex- pressão mercado de livros, utilizada por Câmara CASCUDO, substituindo-a pelo termo livreiros. No original, encontra-se o seguinte trecho: It will appear surprising to English persons, that in a place so large as Recife, there should be no printing press or bookseller. At the convent of the Madre de Deos, are sold almanacks, prints and histories of the Virgin and saints, and other productions of the same description, but of very limited size, printed at Lisbon. KOSTER, Henry. Travels in Brazil. London: Printed for Longman, Hurst, Rees, Orme and Brown, 1816, p. 36. 147 Lúcia Maria Bastos P. Neves cita um caso ocorrido em 1799, quando negociantes portugueses tentaram im- pedir que a Junta do Comércio em Lisboa concedesse passaportes a Paulo Martin e a Francisco Rolland, ambos filhos de livreiros com intenções de se estabelecer na América. Diziam que os mercadores estrangeiros causavam vários prejuízos aos negociantes portugueses e, não contentes, queriam aumentá-los ao desejarem instalar casas de comércio de livros no Rio de Janeiro. NEVES, Lúcia Maria Bastos P. Trajetórias de Livreiros no Rio de Ja- neiro: uma revisão historiográfica. X Encontro Regional da ANPUH. Rio de Janeiro: ANPUH, 2002, (Encontro). 148 O referido personagem era reinol, tendo chegado ao Brasil em 1797. Instalou-se na Bahia para cuidar de seus negócios. Em 1810, foi administrador da Real Fábrica de Cartas de Jogar da Capitania. No mesmo ano, dirigiu ao governador, Conde dos Arcos, uma petição requerendo autorização para abrir uma tipografia com prelos comprados da Europa. Em 1811, sua petição foi deferida. SILVA, Maria Beatriz Nizza da, op. cit., p. 163. 149 LIMA, M. Oliveira. Annotações. In: TAVARES, Francisco Muniz. História da Revolução Pernambucana de 1817. Ed. revista e anotada por Oliveira Lima. 2ª ed. Recife: Imprensa Industrial, 1917, pp. 153-54. 61 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco pério Português. Koster percebe que, na verdade, obras religiosas podiam ser adquiridas mais facilmente. Tanto que, no convento da Madre de Deus, situado no coração do bairro do Reci- fe 150 , era fácil a aquisição de impressos religiosos. Entre os títulos enviados pelos clérigos da Congregação do Oratório em Portugal, provavelmente com destino ao convento da Madre de Deus, que estava sob a jurisdição da ordem, há menções continuas às populares folhinhas de rezas, sendo exceções somente quatro anos, no período entre 1795-1820: 1795, 1801, 1804 e 1815 151 . Há também menção aos missais, cartilhas e novenas. Em 1799, por exemplo, foram enviadas 180 folhinhas de reza, ao passo que, em 1803, foram remetidos 200 livrinhos de de- voção, cujo título era Escudo admirável para os males da vida, escrito pelo padre Manoel Jo- sé, da Congregação do Oratório do Porto 152 . Aliás, os clérigos da Congregação do Oratório em Portugal tiveram importante atuação no comércio legal de livros em Pernambuco. Das 333 petições enviadas ao Desembargo do Paço entre 1795-1820, 31 foram feitas pelos oratorianos, quase 10% do total. O maior número de solicitações, tomadas isoladamente, também foi feito por um oratoriano: o padre José da Silva, da Congregação do Oratório, que por 14 vezes soli- citou autorização para o envio de obras a Pernambuco. É possível supor que os oratorianos de Portugal se beneficiassem do comércio livreiro em Pernambuco. Os livreiros figuram um pouco mais do que os oratorianos no envio de petições, no total de 37. Borel, Borel e Cia ocupa o segundo lugar em números de solicitações ao Desembargo do Paço, com 11 petições, atrás do oratoriano padre José da Silva 153 . É possível também supor que, além de se dedicarem a esse comércio, os oratorianos estivessem montando uma biblio- teca no Recife. Gláucio VEIGA diz que só no final do século XVIII, o Convento da Madre de Deus abrigava mais de 2.000 obras 154 – sobre essa biblioteca tratarei no Capítulo 2. Dessa forma, portanto, o lamento do inglês não recaía sobre uma ausência de comércio de impressos em si – porque esse comércio existia –, mas sobre a dificuldade de se adquirir impressos em lojas especializadas na venda de livros. Isso nos permite dizer que havia um público que comprava impressos, ainda que não fosse constituído totalmente por letrados e cuja preferência era mais estimulada pela religiosidade. Para esses compradores, livros religi- osos eram preferíveis aos demais impressos. Uma carta enviada por um comerciante de grosso 150 Como assinala o mapa de Henry Koster, o bairro do Recife também era conhecido por ser um espaço tradici- onal onde os negociantes se reun[iam] para seus tratos, Henry Koster, p. 34. 151 As petições analisadas referem aos anos 1795-1796, 1799-1804, 1807-1808, 1813-1820. IANTT-RMC (Insti- tuto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo – Real Mesa Censória/ Real Mesa da Comissão Geral para a Censura de Livros/ Desembargo do Paço). Livros Destinados a Pernambuco, caixas 161 (1768-1808) e 162 (1808-1820). 152 IANTT-RMC. Livros Destinados a Pernambuco, caixas 161 (1768-1808) e 162 (1808-1820). 153 Ibidem, loc. cit. 154 VEIGA, Gláucio. A biblioteca dos Oratorianos. RIAHGP, Recife, vol. L., pp. 51-66, 1978. 62 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco trato, instalado na América Portuguesa, para um livreiro em Portugal, indica essa predileção. Dizia que o comércio de livros era rentável no Rio de Janeiro, sendo que os livros de religião (missais, breviários, horas latinas etc.) eram os mais vendáveis, ainda que os livros fora do comum fossem mais atrativos 155 . Em outras palavras, a anemia de um comércio de obras pro- fanas em Pernambuco pode ser justificada também por uma demanda maior, sobretudo quan- tativamente, por obras religiosas. O comércio de obras religiosas era notável em Pernambuco por conta de quatro fatores principais, que não se isolam, mas que estão intimamente imbricados. Com a popularização dos livros, após o advento da imprensa, os fiéis e súditos portugueses procuravam por obras católicas, que retratassem a vida dos santos, missais, livros de horas, comentários sobre a Bí- blia e mesmo as obras que tratavam de amplas discussões teológicas. Assim, os compradores desses livros, no final do século XVIII e início do século XIX, mesmo que não soubessem ler, teriam tradicionalmente uma relação cultural com os mesmos. Não haveria de ser diferente em Pernambuco, parte do Império Lusitano e cuja sociedade também era católica, interessada em assuntos que diziam respeito à fé. O segundo fator é que os impressos religiosos eram tidos pelos fiéis compradores como objetos sagrados e passíveis de devoção, cuja posse nem sempre implicava que o seu possui- dor fosse capaz de lê-lo. Não era raro que esses impressos religiosos tivessem uma utilidade além daquela de ensinar ou informar, servindo também para a função sagrada de proteger, como se fossem amuletos que, guardados dentro da algibeira ou no fundo do bolso pelo seu tamanho diminuto, confeririam ao seu portador proteção divina. O Livro de Santa Bárbara, protetora contra raios, trovões, coriscos, maremotos e terremotos, é um caso clássico que ilus- tra essa hipótese, pois foi bastante comercializado no século XVIII – e ainda o é nos nossos dias –, sendo utilizado tanto para a leitura, quanto para amuleto de proteção. Nenhum dos im- pressos religiosos superou em termos de quantidade em circulação os Livros de Santa Bárba- ra, escritos de devoção remetidos aos milhares para todos os cantos da América Portugue- sa 156 . A compra de um impresso religioso, diferentemente da compra de um impresso de outra 155 NEVES, Lúcia Maria Bastos P. Trajetórias de Livreiros no Rio de Janeiro: uma revisão historiográfica. X En- contro Regional da ANPUH. Rio de Janeiro: ANPUH, 2002, (Encontro). Também: CURTO, Diogo Ramada. Cultura escrita: séculos XV a XVIII. Lisboa: ICS, 2007. 156 VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura: Usos do Livro na América Portuguesa, op. cit., p. 379. O Livro de Santa Bárbara trazia informações sobre a santa e diversas rezas que, fei- tas em seu nome, conferiam as mais variadas formas de proteção. Geralmente eram bastante diminutos, cabendo nos bolsos, e de preço desprezível. Em 1768, seu valor de venda em Minas Gerais, ou seja, considerando os ga- nhos dos vendedores, não ultrapassava $170 réis. Ibidem, p. 372. 65 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco lusitana 165 . As próprias proibições dos órgãos censórios, às vezes, funcionavam como estímu- lo para a compra de obras proibidas. Os órgãos censórios tinham consciência disso. Em 1776, por exemplo, o livro Memórias Turcas foi proibido, mas não por meio de edital, pois havia o receio, por parte dos censores, que a curiosidade dos leitores fosse instigada e que esses pro- curassem saber o que a sobredita obra continha 166 . Um dos estímulos para o contrabando de livros proibidos estava na curiosidade em sa- ber quais eram as ideias que eles traziam. Possivelmente, outros fatores contribuíram para a prática do comércio ilegal de livros em geral (não apenas das obras defesas), tal como a de- mora na concessão de licenças 167 – o que obrigaria os leitores a se valerem de meios mais rá- pidos para adquirir livros – ou as inquirições dos órgãos censores aos remetentes sobre alguns livros. A facilidade que possíveis contrabandistas poderiam oferecer aos compradores era de que seus livros não seriam submetidos à censura e, portanto, ser-lhes-ia possível adquirir li- vros proibidos (e permitidos) e usufruir de uma circulação mais rápida, sem se comprometer com a fiscalização 168 . Evidentemente, essas facilidades tinham um preço. Como bem obser- vou o viajante Carl Ruders, em Portugal, os livreiros que vendiam obras proibidas cobravam um preço maior, se comparado ao das obras permitidas 169 . Fenômeno semelhante acontecia na França. Roger CHARTIER revela que os livros filosóficos, além de levar muita gente para a Bastilha ou para as galés, apresentavam um preço que era o dobro dos livros comuns 170 . 165 Obras que trouxessem críticas desses tipos poderiam ser proibidas. Em 1768, no reinado de D. José I, a Real Mesa Censória fixou 15 condições que tornariam as obras passíveis de proibição, sendo que sete dessas condi- ções diziam respeito às críticas à fé católica: eram proibidas obras que contivessem críticas à autoridade do papa, que fossem produzidas por ateus e que dessem apoio ao fanatismo e à superstição, dentre outras condições. Ha- via também quatro condições de ordem política, como a que pesava contra as obras que diziam que o soberano tudo podia contra o bem comum do vassalo ou, ao contrário, que concediam ao povo todo o poder político, in- clusive, o direito de destituir seus reis. A rainha D. Maria I e o príncipe regente D. João continuaram as tendên- cias censórias seguidas no reinado josefino. VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura: Usos do Livro na América Portuguesa. São Paulo: FFLCH-USP, 1999, (Tese de Doutorado), pp. 202-06. 166 Ibidem, p. 241. 167 Diz o viajante sueco Carl Israel Ruders que se algum particular, mesmo estrangeiro, cai na asneira de decla- rar na alfândega os livros que mandou vir, é de recear que tenha de esperar por eles longo tempo, e até, talvez, de ficar sem alguns, sobretudo se dizem respeito a Portugal.(...) Os livros de que aqui me sirvo, segundo presu- mo, nunca passaram pela alfândega; de contrário não teriam chegado às mãos sem reclamações e dificuldades, o que não vale a pena se se não trata de porções consideráveis. RUDERS, Carl Israel, op. cit., p. 225. 168 Segundo Luiz Carlos VILLALTA, os órgãos censórios colocavam obstáculos à impressão, ao comércio, à posse e à leitura. A censura era uma máquina “burocrática” lenta frente ao dinamismo editorial e ao comércio li- vreiro. A retenção de livros, mesmo que temporária, poderia ser bastante longa, durando anos. VILLALTA, Luiz Carlos. Censura literária e circulação de impressos entre Portugal e Brasil (1769-1821). In: Eliana de Freitas Du- tra & Jean-Yves Mollier (Org). Política, Nação e Edição – O lugar dos impressos na construção da vida políti- ca. São Paulo: Annablume, 2006, pp. 113-127. 169 RUDERS, Carl Israel, op. cit., p. 225. 170 CHARTIER, Roger. Origens Culturais da Revolução Francesa. São Paulo: Editora Unesp, 2009, p. 119. 66 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco Um dos pontos de partida de livros contrabandeados era a França. Em Portugal, havia notória presença de franceses no comércio de livros, que não deixavam de tecer entre si uma colaboração mútua, com o estabelecimento de vínculos familiares, empréstimos e socieda- des 171 . Esses livreiros franceses, mas também outros livreiros em geral, agiam como interme- diários na compra de livros proibidos oriundos do exterior e os revendiam em Portugal 172 . De acordo com o viajante sueco Carl RUDERS, os livros proibidos estavam ao alcance de toda a gente, sem por isso incorrer em censura, pode ler e possuir livros proibidos; ninguém faz in- quéritos a tal respeito 173 . De qualquer modo, era preciso fazê-los chegar aos leitores. Uma maneira prática de conseguir esses livros era através da ajuda de algum mestre de embarcação ou marinheiro que navegasse entre diversos países. É necessário ressaltar, no entanto, que al- guns livreiros gozavam de permissões para vender livros defesos às pessoas autorizadas pelos tribunais censórios a possuir obras proibidas. Outra forma de se adquirir esses livros era atra- vés de contatos com os membros do corpo diplomático, que gozavam de imunidade em rela- ção à censura, ainda que tivessem que passar pelo controle da alfândega 174 . As obras também poderiam ser contrabandeadas por parentes e amigos que, ao voltarem para a América, pode- riam trazer alguns volumes escondidos em meio aos pertences sem serem fiscalizados. Por outro lado, a Coroa Portuguesa não era alheia à existência do contrabando de obras proibidas. Oficiais régios atuavam na fiscalização dos impressos que eram embarcados em Lisboa, como também em seu desembarque nos diversos portos da América Portuguesa, como foi demonstrado anteriormente neste Capítulo. Se havia fiscalização tanto no embarque quan- to no desembarque, o governo português reconhecia que, mesmo após a vistoria dos navios em Portugal, de alguma forma, as embarcações ainda podiam conseguir levar alguns impres- sos proibidos para a América. Por isso, havia a necessidade de funcionários atentos ao contra- bando nos portos do Brasil 175 . A constante vigilância da Coroa sobre os impressos que circu- lavam dentro do Império Português talvez seja um desdobramento de uma preocupação ainda 171 VILLALTA, Luiz Carlos. Os livreiros, os livros proibidos e as livrarias em Portugal sob o olhar do Antigo Regime (1753-1807), op. cit., p. 227. Veja também: NEVES, Lúcia Maria Bastos P. Trajetórias de Livreiros no Rio de Janeiro: uma revisão historiográfica. X Encontro Regional da ANPUH. Rio de Janeiro: ANPUH, 2002, (Encontro). CURTO, Diogo Ramada, op. cit., p. 216. 172 VILLALTA, Luiz Carlos. Os livreiros, os “livros” proibidos e as livrarias em Portugal, sob o olhar do Antigo Regime (1753-1807), op. cit., p. 234. 173 RUDERS, Carl Israel, op. cit., p. 225. 174 Só no ensaio de Luiz Carlos VILLALTA, há menção do envolvimento de três membros do corpo diplomáti- co, de origens nacionais distintas: um austríaco, um holandês e um sueco. O Intendente de Polícia, Diogo Inácio de Pina Manique, desconfiava que alguns ministros do corpo diplomático eram responsáveis por fazerem apare- cer junto ao público livros sediciosos. Ibidem, pp. 233-34. 175 Luiz Carlos Villalta também concorda que as autoridades tinham consciência da vulnerabilidade das alfân- degas. VILLALTA, Luiz Carlos. Censura literária e circulação de impressos entre Portugal e Brasil (1769-1821), op. cit., p. 114. 67 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco maior. O governo português entendia que a leitura de impressos proibidos teria o poder de corromper os súditos leitores, fazendo-os questionar os pilares da monarquia portuguesa, bem como as da moral cristã 176 . Em análise do alvará sancionado pelo príncipe regente D. João VI em 30 de julho de 1795, que regulava os critérios pelos quais os livros deveriam ser censura- dos pela Inquisição, pelo Ordinário, pelo Desembargo do Paço, Luiz Carlos VILLALTA diz que: no campo político, as condições demonstram a preocupação com as ideias que se voltassem contra a monarquia, as relações entre súditos e vassalos e que suscitassem a sedição ou proclamassem que os soberanos tudo poderi- am fazer. Quanto à religião, vê-se a rejeição ao deísmo, ao ateísmo, ao ma- terialismo, à liberdade de crença, ao paganismo, ao judaísmo, ao maome- tismo, à falibilidade papal, às dúvidas sobre a autoridade dos bispos e sobre a disciplina eclesiástica 177 . Para a Coroa Portuguesa, os súditos que tomassem ciência dessas ideias semeadas pelos impressos proibidos poderiam propagá-las para os demais através da venda/troca/empréstimo de impressos ou, ainda mais facilmente, através da cultura oral, o que poderia acarretar em uma série de problemas para as autoridades reais. O Intendente Geral de Polícia Diogo Inácio de Pina Manique, que atuou entre 1780-1805 nesse cargo, prendeu, em 1794, na cidade de Lisboa, dois franceses que eram donos de uma casa de pasto, espécie de local para hospeda- gem e alimentação. Entre os bens deles, encontrou, além de papéis sediciosos, estampas mais obscenas em atos pecaminosos, figurando religiosos em ações torpes com mulheres. O Inten- dente presumiu que esses papéis combinados talvez tivessem por objetivo arrastar ali gentes libertinas, que fossem fáceis abraçarem princípios revolucionários 178 . Como aquela casa de pasto era muito frequentada, concluiu que era natural a disseminação daqueles princípios re- volucionários também por vias da cultura oral 179 . No que diz respeito à fiscalização que buscava evitar o contrabando, a observância so- bre a circulação de impressos não recaía somente sobre as embarcações que faziam o trajeto Portugal-América Portuguesa, mas também sobre aquelas que navegavam entre os portos do Brasil. Henry Koster, ao descrever sua viagem de navio entre Pernambuco e Maranhão, conta que foi fiscalizado no momento em que desembarcava: 176 VILLALTA, Luiz Carlos. Censura Literária en el mundo Luso-brasileño (1517-1808): Órganos censorios y criterios de interdiccion y obras prohibidas. Cultura Escrita y sociedad, Alcalá, 2008, p. 114. 177 Ibidem, loc. cit. 178 IANTT, Intendência Geral de Polícia, Livro 4, pp. 164-65. 179 VILLALTA, Luiz Carlos. Os livreiros, os livros proibidos e as livrarias em Portugal sob o olhar do Antigo Regime (1753-1807), op. cit., p. 249. 70 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco los, com o intuito de tomarem conhecimento dos temas que eles tratavam. Nessa parte, pode- mos perceber que os funcionários não estavam tão bem preparados para fiscalizar os impres- sos que chegavam aos seus portos. Decerto, eles não conheciam o idioma inglês, que era me- nos difundido que o francês naquele tempo. Porém, o despreparo dos funcionários está na confiança da tradução dos títulos feita pelo próprio proprietário (!) das obras, aliás, a incum- bência de listá-las cabia legalmente aos seus proprietários, situação em que a eficácia da fisca- lização sobre a circulação dos livros ficava em boa parte dependente da colaboração dos que os transportavam ou remetiam. A possibilidade de os funcionários da alfândega mandarem os proprietários traduzirem os títulos das obras publicadas em idioma que não dominassem, con- forme sugere o relato de Koster, traz mais um elemento facilitador para se ludibriar a fiscali- zação aos impressos nas alfândegas, bem debaixo das barbas daqueles oficiais régios. Após a tradução dos títulos das obras, Henry Koster se deparou com outro incômodo: o oficial que as inspecionava, tomando conhecimento do que elas tratavam, resolveu não devol- vê-las. Para o viajante inglês, aquela postura do funcionário real era espantosa, talvez tão abu- siva quanto adentrar num navio e alimentar-se de suas provisões, pois os livros que ele trazia não eram nada demais, somente livros de história. Por que, então, um oficial da alfândega, que não sabia ler os títulos em inglês, resolveu embargar uma caixa com todos os livros do vi- ajante? Para isso, ao que parece, há três possibilidades de explicação. A primeira explicação seria a de que o oficial apenas cumpria o seu dever ao confiscar a caixa, uma vez que os livros que ela continha não traziam as devidas licenças. Caso semelhan- te teria acontecido anos antes no mesmo porto. Em 1808, Francisco José Dias enviou 370 de Lisboa para o Rio de Janeiro. Porém, antes de chegar ao seu destino, assim que a embarcação tocou o porto de São Luís, os livros foram confiscados. Em seguida, a alfândega daquela ci- dade despachou os livros de volta para Lisboa, para inspeção do Desembargo do Paço. Demo- raram-se mais quatro anos até que fosse autorizada a remessa dos livros de volta para o Rio de Janeiro, impedindo-se, porém, a entrega dos livros que fossem proibidos 184 . No entanto, para o caso dos livros de Koster, o inglês não deixa claro para o seu leitor que o confisco de livros era comum quando não se apresentassem as devidas licenças. A segunda explicação possível estaria no desejo do oficial de exercer um poder desme- dido e caprichoso, no interior de sua esfera de jurisdição, quem sabe à espera de obter algum ganho material, o recebimento de algum suborno. Na história da administração portuguesa, 184 VILLALTA, Luiz Carlos. Censura literária e circulação de impressos entre Portugal e Brasil (1769-1821), op. cit., p. 120. 71 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco são comuns os casos de oficiais régios que exorbitaram do poder de que se achavam invest i- dos. Não seria, portanto, estranho que o oficial cuja conduta analisei se arriscasse a confiscar todos os livros de Koster. A terceira possível explicação, que não exclui as demais, é a de que o funcionário da al- fândega estivesse envolvido com o contrabando de impressos. A princípio, ele não embargou a caixa de livros por desconhecer quais títulos traziam, mas, após a tradução de Koster, houve uma súbita inclinação em confiscar toda aquela caixa repleta de obras de história. Nota-se que Henry Koster diz que o funcionário estava pouco inclinado a devolver suas obras, o que deno- ta, ao menos no discurso do narrador, certa ilegalidade na ação do oficial, beirando a rapaci- dade, pois não parecia haver motivo para tomar posse daquelas obras. O inglês se sentiu ultra- jado com o confisco de sua caixa e, ao comentar com um amigo o que se passara na alfânde- ga, esse o desenganou dizendo que poderia julgá-los perdidos, ou seja, não havia estranha- mento por parte dos habitantes do Maranhão quando havia essas apreensões, lícitas ou não, além do que era de conhecimento público e notório que, se houvesse o interesse do oficial pe- los impressos, dificilmente haveria chances de reavê-los. O conselho do amigo também impli- caria que a tentativa de recorrer a outras autoridades, mesmo que fossem superiores àquele funcionário, seria infrutífera: a solução sugerida era conformar-se com o fado. Amante do hábito de ler e escrever e desenganado pelo amigo sobre a possibilidade de recuperar suas obras, Koster resolveu apelar, em última instância, para a autoridade real de maior poder político do Maranhão, o governador, para se contrapor aos empecilhos que o fun- cionário da alfândega impunha na recuperação dos livros. Será que Koster não recorreu a ou- tras autoridades imediatamente superiores aos funcionários da alfândega porque também era de conhecimento de todos que elas respaldavam àquela prática de confisco? Ou será que Kos- ter apenas recorreu ao governador, para que aquela situação se resolvesse de uma vez por to- das, uma vez que se tratava da autoridade local máxima? É difícil de responder, porém o in- glês concluiu que recorrer à maior autoridade política e militar da Capitania era uma decisão acertada, pois logo a caixa de livros voltou a ser embarcada. Ainda sobre esse mesmo episódio, Henry Koster admitiu que, se não tivesse recorrido ao governador do Maranhão, provavelmente, jamais tornaria a ver os seus livros. Talvez essa fala do viajante seja mais do que uma força de expressão. A hipótese que me parece mais plausível é a de que alguns funcionários da alfândega – ao menos os que atuavam nos portos do Norte da América Portuguesa, por onde Koster viajou, como os do porto do Maranhão – eram propensos a serem agentes facilitadores do comércio ilegal de impressos e/ou usassem de seus ofícios exorbitando das atribuições que tinham, exercendo-os despoticamente. 72 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco Luiz Carlos VILLALTA encontrou um caso, ocorrido no mesmo porto do Maranhão, que mostra a participação de um oficial no contrabando de livros, embora não fosse um oficial da alfândega. Em 1779, foi denunciado à Inquisição que Marçal Inácio Monteiro, guarda- livros da Companhia Geral de Comércio do Estado do Grão-Pará e Maranhão, estava envolvi- do no contrabando de livros. Dizia o denunciante, Dr. Miguel Marcelino Veloso e Gama, ou- vidor geral da comarca de S. Luís, que havia tratado de conversas literárias com Marçal e que queria mandar vir de Lisboa alguns livros de boa instrução. Marçal se ofereceu para arranjar os livros, talvez por ocupar um cargo que facilitasse essas transações. Após alguns meses, Marçal comunicou a chegada dos livros ao ouvidor. Ambos deveriam ir a bordo do navio e procurar por um dos oficiais da tripulação. O oficial, então, entregou a Marçal um saco com várias encomendas e, naquela mesma noite, foram enviados para a casa do ouvidor uns jogos de livros em oitavo. Alguns dos livros enviados eram permitidos, como o Do Espírito das Leis, de Montesquieu, e Cartas do Santíssimo Padre Clemente décimo quinto. Entretanto, ha- via outros que eram proibidos, tais como: Educação do Homem de Helvetius, Questões sobre a Enciclopédia de Voltaire e História do Imperador Carlos Quinto de Willian Robertson. Se- gundo VILLALTA, esses livros somente chegaram à América graças à conivência ou inefi- cácia da fiscalização reinol e à ação de livreiros ou leitores residentes na corte que driblaram a fiscalização censória no comércio marítimo, no Reino de Portugal (e também na América Portuguesa) 185 . As facilidades que Marçal encontrou em 1779, é importante ressaltar, associ- am-se ao fato dele ser funcionário da Companhia Geral de Comércio do Estado do Grão-Pará e Maranhão, que detinha o monopólio do comércio entre Portugal e a região. Guardadas as devidas diferenças, o funcionário que fiscalizou as obras de Henry Koster e se negou a devol- vê-las talvez gozasse das mesmas (ou de maiores) facilidades que Marçal dispunha e também se envolvesse com o comércio ilegal de livros. Concluindo sua narração sobre o episódio da apreensão das caixas de livros, Henry Kos- ter disse que, por todas as partes que percorreu do Brasil 186 , as autoridades reais impunham tantas restrições que criavam dificuldades para a aquisição de impressos. Dessa forma, segun- do Koster, a maneira usual de se adquirir livros era através do contrabando. Esses dizeres re- velam que havia, sim, um comércio de impressos, que não se restringia apenas aos exemplares de matéria religiosa, tal como acontecia no Convento da Madre de Deus em Santo Antônio do Recife. Tratava-se, em parte, de um comércio ilícito, de contrabando, que abastecia os poucos 185 VILLALTA, Luiz Carlos. Os livreiros, os livros proibidos e as livrarias em Portugal sob o olhar do Antigo Regime (1753-1807), op. cit., p. 243. 186 Isto é, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Maranhão. 75 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco timo, de acordo com Gonçalo MOURÃO, era um jornaleco feito para atacar o Correio Brazi- liense 195 . Ademais, sabe-se que o contrabando de outros produtos em Pernambuco também era bastante alto. Segundo o autor anônimo de Revolucções do Brasil, que escreveu sobre Per- nambuco pouco depois da Revolução de 1817, o contrabando era horrível, e tinha muita ra- zão o público, quando falava em quatro alfândegas 196 . As quatro alfândegas mencionadas pe- lo autor seriam: duas legais, controladas pelos funcionários régios, isto é, uma em Portugal e uma em Pernambuco, e duas ilegais, do que se entende que os produtos transitavam entre por- tos improvisados e escondidos na costa pernambucana. Portanto, os impressos poderiam tam- bém chegar a Pernambuco através desse contrabando horrível, recorrendo-se inclusive a an- coradouros clandestinos. Uma das citadas anotações de Henry Koster remete-nos à ideia de que havia um comér- cio de impressos proibidos, pois os periódicos estavam por toda parte. O viajante não se es- quece dos leitores desses mesmos periódicos proibidos: civis, militares e eclesiásticos. Decer- to que a palavra civil não significa o populacho e, sim, os demais homens acima da chusma, mais ou menos letrados e que não se encaixavam na categoria militar ou eclesiástica, tais co- mo os negociantes, funcionários reais, senhores de engenho, médicos, advogados etc. Koster também reconstituiu um pouco da relação desses leitores com os periódicos proibidos, pois, além de adquiri-los de maneira obscura e de os lerem, também fala[vam] publicamente neles, ou seja, difundiam verbalmente as notícias impressas a outros homens dos seus círculos de amizades. Dessa forma, não só a materialidade do papel era importante para difundir as ideias que um impresso trazia, mas também os próprios leitores, quando difundiam as notícias oral- mente. Por sua vez, essas notícias poderiam ser contadas e recontadas para outros, formando assim uma cadeia, que poderia até mesmo abarcar os homens mais simples do sertão. É possí- vel conjecturar que alguns desses leitores de periódicos proibidos – civis militares e eclesiás- ticos – transitassem pelo Norte da América Portuguesa e se encontrassem com a curiosidade irrequieta dos homens do sertão. Assim, não é de todo improvável que alguns temas retratados nesses periódicos pudessem ser conhecidos nos lugares mais remotos do Norte. O mesmo po- deria acontecer em relação a outros impressos, não proibidos, já que dificuldades menores lhes eram impostas. No início deste Capítulo, foi mostrado como os homens de longe eram curiosos para saber notícias do Recife. 195 MOURÃO, Gonçalo de B. C. e Mello, op. cit., p. 233. 196 IAHGP – Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Revolucções do Brasil. Revista do IAHGP, Tomo quarto, nº 29. Recife: Typographia Industrial, 1884, p.66. 76 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco Por fim, Koster revela um dos temas que traziam esses periódicos: invectivas contras as pessoas poderosas. Lidas e comentadas, essas invectivas poderiam ajudar tanto aos leitores, quanto aos ouvintes, a perceber os homens poderosos de uma maneira mais crítica ou mesmo ridícula, despindo-os de toda a sacralidade que o poder lhes conferia. Em suma, o que se tentou demonstrar é que havia um comércio de obras religiosas con- solidado, movimentado principalmente pela religiosidade. O livro religioso não era exclusi- vamente para leitores letrados e, sim, para os fiéis católicos em geral. Nesse caso, os impres- sos, além trazerem conhecimento, eram percebidos como objetos sagrados, devocionais, que conferiam proteção. Por outro lado, em Pernambuco, inexistia um comércio de livros condu- zido exclusivamente por livreiros: havia comerciantes que vendiam vários tipos de mercadori- as, inclusive os livros, assim como ocorria no Reino 197 . A inexistência de livreiros em Per- nambuco era favorecida pela proibição de tipografias, que sempre obrigava os compradores de livros a importá-los, direta ou indiretamente, de Portugal. Igual efeito tinha a ação do apa- rato censor, que dificultaria a circulação de impressos. Mesmo assim, havia demanda por im- pressos legais e proibidos, que era suprida pela importação legal de livros do Reino ou pelo contrabando. Embora o contrabando remeta também à circulação de impressos proibidos, é bem possível que ele também fosse feito para a aquisição de livros permitidos, por causa das dificuldades que impediam a circulação das obras. O governo português conhecia a prática desse comércio ilegal e, obsessivamente, fiscalizava os livros no seu embarque em Portugal, bem como no desembarque dos mesmos nos portos da América. Essa constante vigilância evidencia que o governo português acreditava que os impressos eram capazes de disseminar ideias perniciosas à monarquia, à religião católica e à moral cristã, pilares do Império Lusita- no. Nos portos do Norte da América Portuguesa, como ficou evidenciado em relação ao porto do Maranhão, funcionários da alfândega poderiam estar envolvidos com o contrabando de li- vros e/ou na usurpação de suas próprias atribuições, de que é indício o confisco da caixa de livros de História de Koster, que só conseguiu reavê-la com a intervenção do próprio gover- nador daquela Província. O citado viajante inglês ainda relata que o comércio ilegal de im- pressos era bastante comum, abastecendo leitores com periódicos proibidos. Esses leitores, por meio da cultura oral, além disso, poderiam comentar com outros homens o que os escritos traziam, e estes últimos com outros mais, até que as notícias se espalhassem, chegando até mesmo aos homens que habitavam o Sertão. Se a fiscalização da Coroa Portuguesa visava a 197 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A cultura luso-brasileira: da reforma da Universidade à Independência do Brasil. Lisboa: Estampa, 1999, p. 105-182. 77 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco impedir a circulação de livros e de certas ideias pelo Império Português, a sua relativa falha, com o contrabando, permitia que diversos títulos proibidos circulassem entre os leito- res/receptores do Norte, alcançando-os por meio do impresso em si ou por meio da cultura oral. 1.5 Livros enviados para Pernambuco Entre 1795 e 1820, muitos foram os livros enviados para Pernambuco, por vias legais e ilegais. Como foi demonstrado anteriormente neste Capítulo, o contrabando, ou seja, o co- mércio ilegal, era bastante comum. Mesmo sendo uma prática ordinária, não nos legou tantos detalhes. Por outro lado, nem todos os livros que desembarcaram em Pernambuco por vias le- gais foram registrados pelo Desembargo do Paço, ou se o foram, os documentos não chega- ram ao nosso tempo. Não há registros, por exemplo, de livros submetidos aos órgãos censó- rios, com destino a Pernambuco, nos anos de 1797-98, 1805-06, 1809-12, 1814, 1818. Além disso, nos anos em que há registros, foi percebido que nem todas as listas sobreviveram ao tempo. O ano de 1804 e 1808 apresentam dados bastante lacunares sobre a circulação de li- vros. Por causa dessa ausência de fontes – sejam elas a respeito dos livros que circularam pelo contrabando, sejam elas a respeito das obras que vieram aprovadas pelo Desembargo do Paço –, a ideia que se faz dos livros que desembarcaram em Pernambuco é difusa e opaca, por mais que o trabalho dos historiadores que se debruçaram sobre esse tema tenha sido detalhado e exaustivo. Gilda Maria W. VERRI foi a primeira – e a única até o momento – a estudar os li- vros enviados a Pernambuco, com o recorte temporal de 1769 até 1807, isto é, antes da che- gada da Corte Portuguesa ao Brasil. Os resultados de seu trabalho foram publicados em dois volumes, no livro Tinta sobre papel, em 2006. Esta dissertação tem como recorte temporal o período que vai de 1795 até 1820. Entre a pesquisa de Gilda Maria W. VERRI e este trabalho há fontes comuns, a saber: as listas dos li- vros enviados entre 1795 e 1807. Embora parte da documentação utilizada nesta dissertação seja a mesma analisada por Gilda Verri, nem sempre as conclusões o são, sobretudo no que diz respeito aos números. Encontrei cifras bastante diferentes daquelas apresentadas pela cita- da pesquisadora 198 , coincidindo apenas aquelas que se referem ao ano de 1795. O GRÁFICO I demonstra essa diferenciação. 198 VERRI, G. M. W. Tinta sobre papel: Livros e leituras em Pernambuco no século XVIII. 1 ed. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2006, p. 470. 80 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco Fonte: IANTT-RMC - Livros Destinados a Pernambuco, caixas 161 e 162. Para abordar a circulação livreira em Pernambuco entre 1795 e 1820, serão contrapostas cifras registradas em dois gráficos: o GRÁFICO II e o GRÁFICO III. Analisando-se o GRÁFICO II, percebe-se que se registrou apenas o envio de 37 títulos para Pernambuco em 1795. A possível explicação para essa cifra tão pequena encontra-se na reformulação do apa- rato censório, ocorrida em 1794, quando o governo português, com o intuito de aumentar o ri- gor da censura, restabeleceu o sistema de censura tríplice, realizado pelo Ordinário, Inquisição e Desembargo do Paço 202 . É bem provável que o sistema de fiscalização tenha ficado parali- sado, ou então que a documentação produzida tenha se perdido parcialmente. O alvará que apontava para essa mudança é datado de 30 de julho de 1795: portanto, somente os livros en- viados após essa data passariam pelo novo sistema. A primeira petição de que se tem notícia solicitando envio de livros para Pernambuco no ano de 1795 é datada de 6 de outubro, pouco mais de dois meses após a publicação do alvará 203 . O GRÁFICO III revela, por sua vez, a baixa quantidade de petições registradas na documentação do Desembargo do Paço no perío- do que se estende de outubro a dezembro de 1795 (no total, 6). 202 VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura: Usos do Livro na América Portuguesa, op. cit., pp. 196-203. 203 Ibidem, p. 200. 37 414 483 224 330 474 534 78 338 57 315 381 659 240 657 476 134 1795 1796 1799 1800 1801 1802 1803 1804 1807 1808 1813 1815 1816 1817 1819 1820 1821 Livros Enviados a Pernambuco GRÁFICO II – Quantidade de Livros Enviados a Pernambuco por Ano (1795-1820) 81 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco Fonte: IANTT-RMC - Livros Destinados a Pernambuco, caixas 161 e 162. Voltando ao GRÁFICO II, no ano de 1796, há o envio de 414 livros, registrados em 34 petições. A tendência de aumento persiste para o ano de 1799, com o envio de 483, registra- dos em 22 petições. Entretanto, na virada do ano de 1799 para 1800, há uma considerável di- minuição na quantidade de obras (224 livros) com destino a Pernambuco. Não há motivos aparentes para essa queda. Com ajuda do GRÁFICO III, é possível constatar que, nos anos de 1799 e 1800, foi registrada a mesma quantidade de petições: 22, em cada um desses dois anos. Luiz Carlos VILLALTA, analisando as petições submetidas ao Desembargo do Paço nesses mesmos anos, para envio de livros para a Bahia, o Maranhão e o Rio de Janeiro, cons- tata que houve uma tendência à diminuição na quantidade entre 1799 e 1800. Se em 1799 fo- ram enviadas 39 petições solicitando licença para o embarque de livros com destino à Bahia, em 1800, o número caiu para 31 petições. Para o Maranhão, houve uma queda de 22 para 14 solicitações, enquanto para o Rio de Janeiro, a diminuição foi ainda maior, de 63 pedidos para 39 204 . O referido autor, contudo, não apresenta cifras sobre a quantidade de livros enviados para essas localidades nos anos supracitados. Com a ajuda desses números, seria possível ve- rificar se, de fato, há uma diminuição na remessa de livros para o Brasil na virada do ano de 1799 para 1800. De qualquer forma, pode-se afirmar que, se para Pernambuco, nos anos de 1799 e 1800, a quantidade de petições manteve-se a mesma (22), para as outras localidades supracitadas (Bahia, Maranhão e Rio de Janeiro), houve um declínio – de qualquer modo, tra- ta-se de cifras baixas. Tais cifras poderiam ser explicadas por algum revés na economia do Império Português? Teriam alguma relação com o momento de incerteza vivido pela Europa 204 VILLALTA, Luiz Carlos. Censura literária e circulação de impressos entre Portugal e Brasil (1769-1821), op. cit., p. 117. 6 34 22 22 21 24 25 4 26 4 20 23 25 14 37 26 3 0 5 10 15 20 25 30 35 40 1795 1796 1799 1800 1801 1802 1803 1804 1807 1808 1813 1815 1816 1817 1819 1820 1821 Petições Enviadas GRÁFICO III – Petições de licença para envio de livros para Pernambuco submetidas ao Desembargo do Paço (1795-1820) 82 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco de então? Napoleão Bonaparte tornou-se cônsul no final de 1799, os ânimos dos franceses contra os portugueses, alinhados à Inglaterra, já vinham se desgastando desde 1793 com a Campanha do Rossilhão. O mar de Portugal ficava cada vez mais infestado de corsários fran- ceses, a ponto de um dos Suassuna, em 1800, escrever aos irmãos que próximo de desembar- car no Reino ainda teve que combater uma fragata francesa 205 . Talvez esses fatos expliquem os números acima mencionados. Nos anos seguintes, a quantidade de petições referentes a Pernambuco é próxima às desses anos difíceis. Todavia, a quantidade de títulos aumenta con- sideravelmente. Entre 1801 e 1803 a tendência é de nova ascensão. Em 1801, foram enviados 330 livros, ao passo que, no ano seguinte, rumaram para Pernambuco 474 obras e, no ano de 1803, o va- lor atingiu o pico de 534 títulos. Porém, de acordo com o GRÁFICO III, a quantidade de pe- tições permaneceu praticamente a mesma para o período examinado: 21, para o ano de 1801; 24 e 25, para os anos de 1802 e 1803, respectivamente. Em 1804, a queda na quantidade de livros enviados é explicada por uma lacuna nas fontes. A pouca quantidade de informações também se repete para o ano de 1808. Para outros anos, sequer há informações e, por isso, eles não aparecem nos gráficos (1797,1798, 1805, 1806, 1809, 1810, 1811, 1812, 1814 e 1818). De acordo com o GRÁFICO III e GRÁFICO II, para o ano de 1804, há somente 4 petições enviadas ao Desembargo do Paço, pedindo licença para o envio de 78 obras com des- tino a Pernambuco. Se for considerada a média de livros por petição observada em 1804, en- contra-se a cifra de 19,5 livros. Se também for considerado que, em 1804, manteve-se a quan- tidade de pedidos do ano anterior (25), ao multiplicar-se essa cifra pela média de livros por petição de 1804 (19,5), atinge-se um resultado provável de 488 livros. Se esse raciocínio for válido, seria constatado que o ano de 1804 manteve uma quantidade de livros enviados pró- xima ao valor dos anos anteriores. Em 1807, a quantidade de petições volta a manter o padrão dos anos de 1802-1803 (26), mas a quantidade de livros é menor (338 obras) do que a observada nos anos de 1802-03 (474 e 534, respectivamente). Em novembro daquele ano, Portugal sofria a primeira invasão fran- cesa, que resultaria na vinda da Coroa Portuguesa para o Rio de Janeiro. Dessa forma, por motivos óbvios, o ano de 1808 nos legou apenas 4 petições. Nos anos seguintes, entre 1809- 12, como foi dito, há um hiato na documentação, certamente, porque nesse período Portugal 205 ANDRADE, Breno Gontijo. Os Filhos Pagam pelos Pais: (In)Fiéis Vassalos e Outros Termos Utilizados na Devassa sobre a Suposta Conspiração dos Suassuna de 1801. Opsis, Catalão, v. 11, 2011, pp. 240-41. 85 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco quantidade de títulos 208 . De todas as classificações que estudei, a mais adequada parece-me ser a retirada da Biblioteca do Conde da Barca, em 1818, e utilizada por Maria Beatriz Nizza da SILVA, Lúcia Maria Bastos Pereira das NEVES e Guilherme P. C. Pereira das NEVES 209 . Essa classificação, como qualquer outra, apresenta problemas, mas preferi usá-la por achar que ela permite classificar as obras de maneira clara e por ter sido criada no período em exa- me. Essa classificação divide os livros em cinco grandes categorias, a saber: Jurisprudência (obras de direito canônico, civil, público, da natureza e das gentes); Ciências e Artes (livros de filosofia, ética ou moral, economia, história natural, medicina, veterinária, hidrografia, físi- ca, química, matemática, astronomia, música, mecânica, desenho, arquitetura, arte militar, educação e outros afins); Belas Letras (gramáticas, dicionários, retórica sacra e profana, poe- sia, teatro, fábulas, apologias, contos, novelas, romances, sátiras e críticas, provérbios e cor- respondências); História (cronologias, antiguidades, viagens, geografia, memórias e relatos de acontecimentos); e Teologia (orações, instruções pastorais, histórias eclesiásticas, catecis- mos e obras de devoção). Sobre a categoria de Ciências e Artes, Maria Beatriz de Nizza SILVA pondera que as fronteiras entre ciências e artes (aqui entendidas como ofícios e artes manuais, fabris) não eram tão nítidas no século XVIII, tampouco no início século do XIX. Alude ao dicionário de Antônio de Moraes SILVA, que definia ciência como o conhecimento certo e evidente das cousas por suas causas; v.g. a geometria é uma ciência. Por sua vez, a arte tinha por definição: coleção de regras, ou métodos de fazer alguma coisa; v.g. a arte de falar corretamente, a arte da ourivesaria, da carpintaria. Conclui a historiadora que nas ci- ências os homens se baseiam em princípios; nas artes, eles se apoiam em regras 210 . De acordo com o GRÁFICO IV, entre 1796 e 1820, Teologia, Belas Letras e Ciências e Artes estiveram entre as áreas de conhecimento que ocuparam as três primeiras posições em termos de quantidade de livros remetidos a Pernambuco. Entre 1796 e 1803, houve uma alter- nância entre Teologia (1796, com 150 livros e 1799, com o envio de 165 livros) e Belas Le- tras (1800, com 70 livros e 1801, com o envio de 106 livros) na primeira posição, exceto no ano de 1802, quando as Ciências e Artes lideraram (121 livros enviados). O ano de 1803 foi atípico, com o empate entre Teologia e Belas Letras na primeira posição (174 títulos envia- 208 Esse trabalho ficaria mais completo com a citação de todos os livros enviados a Pernambuco, mas isso ultra- passaria o propósito inicial desta dissertação e a tornaria ainda mais extensa. Ademais, este trabalho já se encon- tra em parte feito, uma vez que Gilda VERRI apresentou os títulos encontrados nas listas submetidas ao Desem- bargo do Paço entre 1795 e 1807, analisando-os em duas grandes obras, que totalizam mais de 1000 páginas. 209 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Cultura e Sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821). São Paulo: Editora Na- cional, 1977. Também: NEVES, Lúcia Maria Bastos P., & NEVES, Guilherme P. C. Pereira das. A Biblioteca de Francisco Agostinho Gomes: A Permanência da Ilustração Luso-Brasileira entre Portugal e o Brasil. Almanack Braziliense, São Paulo, pp. 11-28, 2006. 210 SILVA, Maria Beatriz Nizza da, op. cit., p. 114. 86 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco dos de cada gênero). Em 1800, a Teologia ficou em terceiro lugar (57 obras). Em 1802, quan- do as Ciências e Artes ocuparam a primeira posição, a Teologia também esteve na 3ª posição (74 livros), ficando atrás da Jurisprudência, mas isto deve ser relativizado porque justamente em relação a esse ano houve dificuldade para classificar um grande número de obras. Desde 1807, os livros de Belas Letras ocuparam o primeiro lugar, só perdendo esta posição em 1821, para Ciências e Artes. Essa diminuição também deve ser relativizada, pois 1821 foi o ano do fim da censura e, portanto, nem todos os livros legalmente remetidos foram registra- dos. Os livros classificados como de Teologia seriam ultrapassados pelos livros de Belas Le- tras. De acordo com Maria Beatriz Nizza da SILVA, o consumo de livros religiosos no início do século XIX, no Rio de Janeiro, dava-se da seguinte maneira: as obras mais caras, encader- nadas em vários volumes ou in-fólio, eram adquiridas por instituições religiosas e membros do alto clero, enquanto os livros de devoção, de caráter prático (eles ensinavam a cumprir os ritos religiosos), publicados em papel comum, tinham um público consumidor mais amplo 211 . Pernambuco não fugiu à regra, pois são abundantes os livros de Teologia enviados em vários volumes e/ou in-fólio, como também aqueles que se preocupavam com os ritos religiosos. Exemplos de livros enviados para Recife, passíveis de classificação na categoria Teologia, são: História do Futuro, do padre Antônio Vieira; Horas Marianas, do P. Fr. Francisco de Je- sus Maria Sarmento; Horas Lusitanas, do Fr. Fortunato dos Santos; Teologia Moral; Retiro Espiritual, traduzido por Francisco Nepeu; Flos Sanctorum, do P. Fr. Diogo do Rosário; Bí- blia Sagrada, traduzida pelo padre Antônio Pereira de Figueiredo; Cabo da Enganosa Espe- rança, de Nicolau Fernandes Calares; Espírito do Cristianismo; Ministro de Enfermos, de Carlos Solfi; Pároco Instruído; Relicário Angélico; e Gênio do Cristianismo, de François Au- guste Chateaubriand 212 . O envio de obras de Jurisprudência quase sempre foi menor, se comparado aos livros de outros gêneros. Somente no ano de 1802 os livros de Jurisprudência ocuparam a segunda posição, entre os títulos mais enviados para Pernambuco. Em 1802, dos 474 livros enviados para Pernambuco, 86 (18%) livros eram sobre Jurisprudência. No ano seguinte, há o registro do envio de 534 livros, dos quais apenas 32 (6%) são sobre Jurisprudência, o que confirma uma menor procura de livros desse gênero. Exemplos de livros de Jurisprudência encontra- dos são: Discursos Jurídicos, de Francisco de Almeida Botelho; Primeiras Linhas sobre o Processo Criminal, de Joaquim José Caetano Pereira e Sousa; Prática Criminal do Foro Mili- 211 Ibidem, p. 91. 212 Os livros escolhidos repetem-se em vários anos. 87 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco tar, de Carlos de Magalhães Castelo Branco; Prelecções de Direito Pátrio, de Francisco Coe- lho de Souza e S. Paio; Princípios de Direito Mercantil e Leis de Marinha, de José da Silva Lisboa; Tratado Orfanológico e Prático: Firmado com as Disposições das Leis Pátrias, de Jerônimo Fernandes Morgado Couceiro; e Manual Prático Judicial, Civil e Criminal, de Ale- xandre Caetano Gomes. Os livros de História parecem sofrer oscilações similares às observadas entre os livros de Jurisprudência. Em alguns anos, houve uma demanda maior por seus títulos, enquanto que em outros a quantidade de livros enviados é bastante baixa. Em 1816, houve um ápice no envio de livros de História para Pernambuco: 93 livros (14%), de um total de 659 obras. Al- guns dos livros de História que embarcados para Recife foram: História da Invasão dos Franceses, História de Portugal, Mapa Cronológico de Portugal, História Universal, Histó- ria do Brasil, Compêndio das Épocas, História Geral da Espanha, História da Perseguição do Clero Francês e Castrioto Lusitano etc. A circulação de Castrioto Lusitano, do frei Rafael de Jesus, no Norte, é mais do que natural, pois a obra trata em particular da História de Per- nambuco no século XVII e do enfrentamento contra os holandeses. No seu frontispício, en- contram-se os seguintes dizeres: Castrioto Lusitano ou História da Guerra entre o Brasil e a Holanda, durante os anos de 1624 a 1654, terminada pela Gloriosa Restauração de Pernam- buco e das capitanias confiantes; obra em que se descrevem os heroicos feitos do ilustre João Fernandes Vieira e dos valorosos capitães que com ele conquistaram a independência nacio- nal, por Fr. Raphael de Jesus 213 . Essa obra foi escrita pelo frei Rafael de Jesus, sob o patrocí- nio de João Fernandes Vieira, o “herói” por ela focalizado, com a intenção de garantir maior distinção, junto à Coroa portuguesa, a este último. Como seu título sugere, ela se inscreve na linha das “histórias mestras da vida”, eliminando da trajetória do “herói” aqueles traços que o faziam distanciar-se dos princípios estamentais vigentes na sociedade de então e, ainda, pro- curando construir uma imagem do personagem como fiel vassalo da Coroa portuguesa (o que esteve longe de ser verdade em todo o seu percurso) 214 . Como se verá no Capítulo IV desta dissertação, a fidelidade dos vassalos de Pernambuco foi um traço sublinhado pela Coroa ao 213 JESUS, Raphael de. Castrioto Lusitano ou História da Guerra entre o Brasil e a Holanda, durante os anos de 1624 a 1654, terminada pela Gloriosa Restauração de Pernambuco e das capitanias confiantes. Paris: J. P. Aillaud, 1844. 214 Sobre este livro, veja: ALMEIDA, Mário Sergio Pollastri de Castro e. Castrioto Lusitano: História, Encômio e "Tirania" no Nordeste Colonial. Belo Horizonte: FAFICH-UFMG, 2011 (Dissertação de Mestrado em Histó- ria). 90 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco No ano de 1802, como já foi destacado anteriormente, o grupo de livros de Ciên- cias e Artes foi o mais demandado em Pernambuco, alcançando o envio de 121 títulos (25%), de um total de 474 livros. Dentre as obras de Ciências e Artes enviadas a Per- nambuco, destacam-se: Manual de Medicina Prática; Exame ou Arte dos Sangradores, de Manuel José da Fonseca; Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinhar, de Lucas Rigaud; Cálculo de Câmbios, Institutiones Philosophiae Praticae sive Principia Ethicae Universalis conhecido popularmente como Ética de Job, de Eduardus Job; O Guarda- Livros Moderno, de Manoel Teixeira de Cabral Mendonça; Discurso Fundamental so- bre a População, de Jean Herrenschwand; Engenheiro Português, de Manuel de Aze- vedo Fortes; Aritmética Prática; Prognóstico geral; e Lunário Perpétuo, de Gaspar Cardozo de Sequeira. Como já foi dito, somente após 1808 as Belas Letras se tornaram o grupo que as- sumiu a primazia entre os livros enviados para Pernambuco (com exceção de 1821). Ao estudar a circulação de livros na França, Roger CHARTIER diz que a mudança mais espetacular no mercado livreiro daquele país foi o declínio dos livros religiosos. Se na década de 1720 um terço da produção de livros era sobre religião, essa proporção caiu para um quarto na década de 1750 e a um décimo na década de 1780. As demais catego- rias bibliográficas, como o direito, a história e as belas letras, continuaram estáveis ao longo daquele século. A categoria que se destaca no século XVIII, na França, é a das ar- tes e ciências, cuja participação duplicou entre 1720-80. Foi a produção desses livros que mais se beneficiou com o declínio dos livros religiosos. Mesmo com esse incremen- to na produção, as obras de artes e ciências, na análise de Roger CHARTIER, ficaram por muito tempo atrás das belas letras, mas ultrapassaram este grupo em 1780, quando encabeçavam a lista, com 40% de todos os pedidos 216 . Na América Portuguesa, Luiz Carlos VILLALTA e Christianni Cardoso MORAIS, analisando a posse de livros (não à sua produção) em Minas Gerais, entre 1714-1874, constataram que havia tanto obras de religião quanto de ciências, ou seja, uma mescla da tradição e da inovação 217 . Perfil si- milar também encontrado para Pernambuco entre 1795 e 1821, o que me permite pensar que a hipótese de ambos os historiadores pode ser válida para outros espaços que não Minas Gerais. Na circulação legal de livros de Portugal para Pernambuco, os livros reli- 216 CHARTIER, Roger. Origens Culturais da Revolução Francesa. São Paulo: Editora Unesp, 2009, p. 118. 217 VILLALTA, Luiz Carlos & MORAIS, Christianni Cardoso. Posse de Livros e Bibliotecas Privadas em Minas Gerais (1714-1874). In: BRAGANÇA, Aníbal & ABREU, Márcia. (Org.). Impresso no Brasil – Dois Séculos de Livros Brasileiros. São Paulo: Editora Unesp, 2010, p. 401-418. 91 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco 21 150 165 57 103 74 174 37 79 3 90 82 155 54 159 119 21 2 66 75 58 56 121 73 3 73 6 49 53 100 33 124 69 43 6 121 133 70 106 73 174 12 108 19 109 150 222 103 206 195 29 1795 1796 1799 1800 1801 1802 1803 1804 1807 1808 1813 1815 1816 1817 1819 1820 1821 Teologia Ciências e Artes Belas Letras Teologia (Tendência) Ciências e Artes (Tendência) Belas Letras (Tendência) giosos, aos poucos, começaram a perder sua hegemonia, ainda que fossem largamente enviados. O GRÁFICO V, a seguir, detém-se apenas três em três categorias de livros: de Teologia, Belas Letras e Ciências e Artes. Ele também registra linhas de tendência para cada gênero citado. A Teologia perdeu a sua hegemonia, mas continua sendo bas- tante presente na circulação de livros de Portugal para Pernambuco. Fonte: IANTT-RMC - Livros Destinados a Pernambuco, caixas 161 e 162. De acordo com as linhas de tendência, é perceptível um leve decréscimo no nume- ro dos livros de Teologia, ao passo que o dos livros de Belas Letras cresce ao longo dos anos. O ano de 1802 foi o marco dessas tendências, pois nele as retas se encontram, confirmando a tendência das duas categorias até 1820: das Belas Letras, de ascensão e da Teologia, de leve declínio. Os livros de Ciências e Artes também se encontram em leve ascensão numérica, mas até 1820 não haviam ultrapassado os livros de Teologia, algo que já havia acontecido no final do século XVIII na França. Dentre os livros de Belas Letras enviados a Pernambuco, podem ser destacados os seguintes títulos: Fábulas de Fedro, traduzido por Manuel Moraes Soares Lisboa; Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga; Novo Dicionário da Língua Portugue- sa, de Antônio Ribeiro de Mattos; Elementos da Poética, de Pedro José da Fonseca; Mil e uma Noites, de Antoine Galland, Caramuru, do Fr. José de Santa Rita Durão; Rimas, de Manuel Maria de Barbosa du Bocage; Robinson Crusoé, de Daniel Defoe; Aventuras de Telêmaco, de François Salignac de la Mothe; Lances da Ventura, de Felix Moreno de GRÁFICO V – Livros de Teologia, Belas Letras e Ciências e Artes nas remessas de Portugal para Pernam- buco (1795-1821) 92 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco Monroy; O Piolho Viajante, de Antônio Manuel Policarpo da Silva; Esposos Desgraça- dos; Carvoeiro de Londres, de Nicolau Luís; Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões; D. Quixote, de Miguel de Cervantes; e Noites de Young, de Edward Young. Fonte: IANTT-RMC - Livros Destinados a Pernambuco, caixas 161 e 162. Conforme se observa na TABELA III, 5697 títulos foram enviados a Pernambu- co entre os anos de 1795-1820. Sua distribuição diferenciada pelas diferentes categorias certamente relaciona-se a dois fatores não excludentes: de um lado, as políticas editori- ais governamentais e as estratégias dos editores e, de outro, o gosto dos leitores. Pouco mais de um terço era de Belas Letras (1807, ou 31,72%), ao passo que a Teologia ocu- pou o segundo lugar (1522, ou 26,72%). A preponderância das Belas Letras indica um interesse por uma categoria de livros que visava a distrair e/ou a informar, servindo muitas vezes para uso no ensino e para o domínio da norma culta e, sobretudo no caso dos romances, colaborando para a difusão de determinados valores e ideias entre um público mais amplo, fosse no sentido de conservar a ordem, fosse, como faziam os filó- sofos das Luzes, para alterá-la. No entanto, a permanência da Teologia em segundo lu- gar, com grande número de livros, indica uma sociedade ainda marcada pela religião e onde os textos impressos colaboravam de alguma forma para o acesso ao sagrado, em alguns casos, pondo em xeque dogmas e visões estabelecidas. As Ciências e Artes (961, ou 16,87%) ocupam a terceira posição. Sua presença certamente respondia à de- manda por livros mais técnicos, voltados para as atividades profissionais exercidas pe- TABELA III: Nº de livros (em títulos) enviados a Pernambuco por gênero (1795- 1820) Gênero Números absolutos Números relativos (%) Total de Livros Enviados 5697 100,00% Teologia 1522 26,72% Jurisprudência 536 9,41% Ciências e Artes 961 16,87% Belas Letras 1807 31,72% História 532 9,34% Indeterminado 337 5,92% 95 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco cer. Muitos implicados na Revolução foram presos, mas sabia-se que outros também es- caparam das garras da justiça real, não só no Recife, mas também no interior da Capita- nia. Após a Revolução de 1817, houve uma intensificação da presença militar em Per- nambuco. O novo governador de Pernambuco, enviado do Rio de Janeiro, parecia ter disposição para controlar a Capitania com mãos de ferro. Segundo Muniz TAVARES, com a chegada de Luiz do Rego Barreto, o novo governador, aumentou-se o terror, afecção vil, que mais degrada o homem fazendo pensar que com repetidas baixezas po- de melhorar a triste condição 220 . A Coroa não confiava nas antigas forças militares de Pernambuco, pois enviou os soldados da tropa de 1ª Linha que participaram da Revolu- ção Pernambucana para a campanha militar de D. João VI na conquista de Montevidéu, como forma de degredo 221 . Para preencher o vácuo de tropas, Luiz do Rego Barreto re- crutou homens da terra à força, independentemente de suas condições 222 . Lembrava-se Muniz TAVARES que, dedicado com frenesi à arte militar, pretendia Luiz do Rego re- duzir a província (sic) que governava em uma praça de armas, e assim adestrava invo- luntariamente vigorosos jovens 223 . Portanto, após 1817, o aumento no envio de livros sobre a Arte Militar para 26 livros, em 1819, e 21 livros, em 1820, provavelmente se deve ao treinamento dessas novas forças, ou mesmo à inexperiência de alguns novos comandantes das tropas, que recorreriam ao aprendizado usando esses livros. Alguns tí- tulos de livros sobre a Arte Militar enviados em 1819 e 1820 sustentam a hipótese de que se tratava de obras destinadas ao aprendizado dos comandantes militares e dos ofi- 220 TAVARES, Francisco Muniz. História da Revolução Pernambucana de 1817. Ed. revista e anotada por Oliveira Lima. 2 ed. Recife: Imprensa Industrial, 1917, pp. CCLXII-III 221 Ibidem, pp. CCLXII-CCLXVI. Kalina Vanderlei Paiva da Silva diz que, em diferentes épocas, o go- verno real utilizou-se da medida de expatriar tropas que se amotinaram. O degredo útil, todavia, só apa- rece empregado em casos de ameaça à boa ordem da sociedade. SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. Mi- serável Soldo e Boa Ordem da Sociedade Colonial: Militarização e Marginalidade na Capitania de Per- nambuco dos Séculos XVII e XVIII. Recife: UFPE, 2000 (Dissertação de Mestrado em História), pp. 238-39. 222 Uma questão pode ser feita: não seria arriscado o governador recrutar gentes da própria terra para compor a tropa, já que tinham acabado de sair de uma Revolução? A resposta é não. Os soldados das tro- pas de 1ª Linha eram recrutados das camadas mais marginais da sociedade, dos pobres, criminosos e va- gabundos que não conseguiram proteção de algum senhor. Nesse caso, aqueles que participaram da Revo- lução foram expatriados para Montevidéu. Restaram aqueles que eram jovens e marginais. Era mais co- mum eles desertarem por conta da condição de extrema penúria que a vida militar lhes impunha, do que eles se unirem contra o governador, ou reacenderem por si só a Revolução. O recrutamento já era feito desde o século XVII – era, portanto, conhecido na região – e usado para resolver a questão social do ex- cesso de párias na sociedade e a questão administrativa do pouco número de soldados nas tropas. SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da, op. cit., pp. 84-100. 223 TAVARES, Francisco Muniz. História da Revolução Pernambucana de 1817. Ed. revista e anotada por Oliveira Lima. 2 ed. Recife: Imprensa Industrial, 1917, p. CCLXVI. 96 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco ciais sob seu comando, a saber: Instruções de Infantaria, Instruções de Caçadores, Ins- truções do Regimento de Milícias, Instruções Provisórias para Cavalaria, Manobras Militares e Livro de Fortes. Apesar da severidade do novo governador, os habitantes de Pernambuco não se deixaram intimidar. No ano de 1821, Luiz do Rego Barreto sofreu uma tentativa de as- sassinato, da qual escapou ferido no ombro e no braço direito 224 . 1.6 Os “mentirosos” e os santos: a ideia geral sobre os homens que sabiam ler Alguns aspectos sobre a leitura e sua importância no Norte da América Portugue- sa também não passaram despercebidos aos olhos de Koster. Em seus relatos, o inglês defendeu a ideia de que a leitura era uma habilidade quase inexistente no sertão e bas- tante rara no litoral, este último espaço, local das principais áreas urbanas do Norte. Provavelmente, nos espaços urbanos, os leitores fossem mais comuns, mas ainda muito poucos, se comparados com a população total, restringindo-se aos eclesiásticos e aos membros das camadas superiores (nem todos familiarizados com a habilidade de ler), aos quais se juntavam alguns poucos que vinham dos estratos inferiores da sociedade 225 . Ainda assim, entre essas poucas pessoas, segundo os relatos de Koster, o gosto pela lei- tura era bastante diminuto. Os homens de posses, por exemplo, cultivavam o hábito de jogar cartas por dinheiro, o que, para Koster, era uma das causas ou consequências do pouco interesse pelos livros. Dizia o inglês que o amor pelo jogo pode ser facilmente explicado [pelo] pequeno ou nenhum gosto pelas leituras 226 . Houve outra ocasião vivi- da por Koster que evidencia certo distanciamento de alguns leitores em relação aos li- vro. Trata-se do episódio em que o inglês estava lendo em seu engenho quando foi sur- 224 Ibidem, pp. CCLXXX-CCLXXXI. 225 Todavia, para a capitania de Minas Gerais, entre 1750-1808, ao menos habilidade de ler encontrava-se razoavelmente disseminada entre a população branca livre, mas também negra e mulata forras. SILVEI- RA, Marco Antônio. O Universo Indistinto: Estado e Sociedade nas Minas Setecentistas (1735-1808). São Paulo: Hucitec, 1997, pp. 87-95. Também: VILLALTA, Luiz Carlos. Ler, escrever, bibliotecas e es- tratificação social, op. cit., pp. 289-311. 226 KOSTER, Henry, op. cit., p. 245. Márcia ABREU defende o argumento segundo o qual, nas pinturas feitas por viajantes estrangeiros, o leitor “brasileiro” (sic) é retratado com pouca civilização, acumulando sobre ele sucessivos rebaixamentos. ABREU, Márcia. Bananeiras, negros e livros: retratos da cultura le- trada no Brasil colônia. In: 7º Encontro do GT Produção Editorial, Livro e Leitura. Manaus: Universida- de do Amazonas, 2000, pp. 1-12. Não é o caso de Henry Koster, que, embora não tenha feito pinturas so- bre o hábito de ler, deixou-nos relatos importantes. No meu entender, no trecho citado, o inglês apenas narra um costume que percebe entre os homens abastados que sabiam ler, sem querer rebaixá-los. Ele mesmo descreve como fazia suas próprias leituras, quando lia sem esforço, sentado à porta de sua casa, ao clarão do luar. KOSTER, Henry, op. cit., p. 359. 97 Capítulo 1 – Livros: circulação, mercado, contrabando e leitura em Pernambuco preendido por um vizinho, possivelmente, outro senhor de engenho ou proprietário de terras: Ás vezes um dos meus vizinhos, em Itamaracá ou Jaguaribe, chegava no momento em que eu estava lendo e ficava surpreso por saber como me divertia com aquela ocupação. Recordo que um amigo exclamou: Não és padre e sempre estás lendo. É um breviário que lês? 227 Ao interpelar o inglês, o vizinho demonstrou conhecimento sobre aquem eram os maiores familiarizados com a cultura escrita, pois associou o hábito de ler aos padres, bem como citou um dos gêneros que eles liam, os breviários. Sutilmente, Koster critica seu vizinho pelo fato dele não conceber a leitura como um divertimento e, sim, como um hábito praticado apenas por eclesiásticos. Do supracitado trecho, pode-se inferir que, na sociedade pernambucana, havia quem tivesse preconceitos em relação ao hábito de leitura, mesmo entre os que sabiam ler ou que conheciam a cultura escrita, pois, como se vê, para o leitor em questão, a leitura era concebida como pertencente ao cotidiano dos padres. Louis François de Tollenare, em 1816, teceu alguns comentários sobre a instrução do clero, grupo teoricamente em contato contínuo com livros. Convidado por alguns padres para um jantar, em suas conversações, logo constatou que eles eram muito ins- truídos, que mesmo nenhum aspecto da Revolução Francesa era-lhes estranho. Na oca- sião, os padres, com sede de instrução, a todo tempo inquiriam Tollenare, mas segundo o francês, não contribuí[ram] a instruir-me do que um estrangeiro deseja[va] saber so- bre o Brasil. Tollenare reclamava que tentava conversar sobre o interior do país, mas que os padres só queriam discutir sobre a política europeia, o que causou uma situação constrangedora, pois, mesmo sendo francês, o viajante sabia menos do que os padres a respeito daquela matéria. Por isso, L. F. Tollenare reconhecia que era menos instruído que os seus interlocutores, que era menos hábil do que eles na arte de fazer perguntas que decidem o assunto de uma conversação 228 . Na percepção de Tollenare, era o clero a classe mais instruída, e essas luzes cobriam até mesmo os frades mendicantes 229 . Aliás, 227 KOSTER, Henry, op. cit., p. 399. 228 TOLLENARE, L. F., op. cit., p. 26. 229 Não é esta a primeira vez que noto que entre os frades, mesmo mendicantes, se encontra mais espírito de instrução do que nas outras classes. Ibidem, loc. cit.