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Guias e Dicas
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Curso Política e Cultura no Brasil - Olavo de Carvalho, Transcrições de Ciência Política

Transcrição do curso sobre a politica e a cultura no Brasil, ministrado pelo filósofo Olavo de Carvalho

Tipologia: Transcrições

2019

Compartilhado em 24/10/2019

fred-pontes
fred-pontes 🇧🇷

4.9

(52)

13 documentos


Pré-visualização parcial do texto

Baixe Curso Política e Cultura no Brasil - Olavo de Carvalho e outras Transcrições em PDF para Ciência Política, somente na Docsity! Política e Cultura no Brasil – História e Perspectivas OLAVO DE CARVALHO Aula 1 12 de abril de 2016 [versão provisória] Para uso exclusivo dos alunos do Seminário de Filosofia. O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor. Por favor, não cite nem divulgue este material. Boa noite, sejam bem-vindos. Parece que algumas pessoas ainda estão com dificuldade de acesso. O Silvio Grimaldo está passando um email para cada um, talvez demore um pouco pois o Gmail possui um limite de emails que pode ser mandado ao mesmo tempo, dando a solução do problema, portanto, vamos entrar logo no assunto. Desde o início da década de noventa eu comecei a reparar que algumas coisas muito estranhas estavam acontecendo no Brasil. Na medida em que fui investigando essas coisas, eu percebi que elas já estavam acontecendo desde muito antes, desde pelo menos a década de sessenta. Durante o período militar, nós observamos que enquanto a esquerda se refazia da pancada recebida e se articulava numa nova estratégia de acordo com os cânones de Antonio Gramsci, o governo militar não sabia absolutamente nada e durante vinte anos eles não prestaram atenção ao que estava acontecendo, permaneceram impávido colosso achando que estavam por cima da carne seca, até que de repente viram que estavam pisando em terreno minado e foi uma debandada – era tudo quanto é general querendo ir para casa o mais rápido possível.1 Na fase seguinte houve aquele fenômeno, que eu documentei no livro O Imbecil Coletivo, que foi a total destruição da alta cultura no Brasil. Na época ela ainda subsistia, mas todos os melhores representantes eram nonagenários. Era de se prever que a coisa ia terminar em breve, como de fato terminou. Se vocês compararem a lista de grandes escritores que o Brasil tinha nas décadas de cinquenta e sessenta e os que vieram depois é um negócio devastador, um fenômeno como nunca se viu no mundo. Mais adiante começou este crescimento extraordinário do banditismo, da violência assassina, chegando a setenta mil assassinatos por ano e sem que houvesse um único debate a respeito na grande mídia e também o fenômeno da total destruição da educação brasileira, onde os nossos alunos do ensino secundário, sistematicamente, tiravam os últimos lugares nos testes internacionais, e também não havia nenhum debate na mídia, e assim por diante. Ou seja, várias coisas esquisitas que mostravam um hiato, uma defasagem, um abismo, entre o que estava se passando e o reflexo disso na consciência nacional; consciência essa que parecia completamente morta, o corpo do país estava sofrendo e a sua mente não estava reparando em absolutamente nada. Toda essa lista de fenômenos são coisas inéditas. Também o fenômeno do Foro de São Paulo, que estava se formando, que era a maior organização política que já existiu na América Latina e estava conquistando um país atrás do outro. E, ao mesmo tempo, a mídia ou fazia de conta que não via ou negava taxativamente que a coisa sequer existisse. Ela só passou a admitir a existência do órgão 1 “Sto. Antonio Gramsci e a Salvação do Brasil”, In A Nova Era e a Revolução Cultural, Olavo de Carvalho. quando o próprio Lula fez dois discursos reconhecendo a atividade, o trabalho, desenvolvido no Foro de São Paulo, declarando inclusive: “fomos nós quem colocamos o companheiro Chaves na presidência” – e coisas desse tipo. Daí aos poucos começaram a tomar alguma consciência, até que finalmente veio o vídeo do terceiro congresso do partido, onde o PT reconhecia o Foro de São Paulo como comando estratégico da esquerda da América Latina, aí não deu para esconder mais, mas mesmo assim ainda vieram tentativas de minimizar. Bom, a coisa está muito grave, pois quando vemos um sujeito que está desempregado, doente, a mulher dele fugiu, o cachorro morreu, ele perdeu a casa, o carro quebrou, e ele está aparentemente normal e tranquilo, obviamente é porque ele está maluco. Então, é claro, o país estava doido nesse sentido e alguma coisa precisava ser feita. Já desde antes dos anos noventa eu me preocupava com este problema da ciência política. O que eu notava era que todos os grandes representantes, tanto da filosofia política, quanto da ciência política na modernidade, todos eles – Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau, Kant, Hegel, Marx, até o próprio Nietsche – raciocinavam sempre com base numa ideia de sociedade ideal a ser alcançada no futuro. A partir desse modelo da sociedade ideal, diagnosticavam o que estava se fazendo por contraste com essa sociedade totalmente imaginária. É claro, isso introduzia uma distorção completa no quadro pois, se o sujeito não consegue nem mesmo obter uma visão clara, estruturada, detalhada, da sociedade existente, cujos dados estão na sua frente, estão fisicamente visíveis, como é que ele vai conceber uma sociedade que só existe em sua mente? É claro, a imagem da sociedade futura é um negócio esquemático, resumido, sumário – Karl Marx não chegou a escrever trinta linhas sobre como seria o comunismo – e todos esses acreditavam, então, nessa imagem vaga e sumária de uma sociedade futura, tomando-a como régua de medida para aferir o que estava acontecendo na sociedade presente – isso é uma inversão. Ao invés de tentarem sondar o desconhecido pelo conhecido, estavam fazendo o contrário, estavam sondando o conhecido pelo desconhecido. É claro, isso nunca poderia dar certo. No entanto, isso era uma coisa tão disseminada entre os pensadores políticos que eu cheguei à conclusão de que todo esse negócio está viciado desde o começo. E, [mesmo] quando surge a ideia mais própria de ciência política, entre os séculos XIX e XX, ela não muda, não se cura, desse vício. [Na verdade], apenas acrescenta o uso de alguns procedimentos cognitivos das ciências naturais – estatística, medição, etc., [ou seja], não adianta nada absolutamente. Pois estavam pegando uma fantasia e medindo ela. Há alguns anos houve um livro publicado no EUA que testava a ciência política. Este, consultou os cientistas políticos, os mais destacados, mais de uma centena deles, quanto algumas previsões sobre os desenvolvimentos possíveis da situação [corrente] para os próximos anos e 98% deles erraram da maneira mais escandalosa. Então, é a mesma coisa que responder à pergunta: Para que serve essa ciência? Para absolutamente nada. Ou seja, é um cabide de emprego. É algo que serve bem a um monte de picareta, tagarela, isto quando não serve ela própria de instrumento para enganar a população. Bom, esse negócio está muito malparado, nós temos de consertar essa coisa. Então, algumas decisões cognitivas eram preciso serem tomadas. A primeira decisão era declarar taxativamente: “eu não sei como é a sociedade melhor do futuro”. Eu não sei, Maquiavel também não sabia, Kant também não sabia, Rousseau também não sabia, mas eu estou declarando: “eu não sei, não sei como a sociedade deve ser e muito menos como ela será daqui a cinquenta, cem ou duzentos anos.” Segunda decisão: “eu não sei para onde a história está indo”. Eu fiquei muito contente quando li no Eric Voegelin a observação de que “não podemos saber o sentido da história porque não sabemos quando ela vai terminar”. É evidente que se pode perceber, por exemplo, o sentido de uma peça de teatro ou de um romance, pois este tem um fim. Para a História, como não sabemos qual é a data do fim do mundo, então não podemos saber qual é o sentido da História – essa me parece uma observação Terêncio: “nada que é humano me é estranho”. Ou seja, eu tentei levar isso a sério. Isso ainda não é um método evidentemente, mas é o começo do método. Colocados esses problemas, eu voltei ao tema do bastardo, do excluído, do ponto de vista do excluído. Karl Marx dizia que só o proletariado pode ter uma visão objetiva da história porque ele é a última classe, porque ele vem depois de todas as outras. A visão de todas as outras estava nublada, deformada pelos seus interesses de classe, ao passo que os interesses do proletariado coincidem com os interesses da humanidade inteira, então ele pode ter uma visão objetiva. É claro, esse é um conceito totalmente idealizado, o proletariado não tem nada disso e, além disso, nos sobra o enigma: se só o proletariado pode ter uma visão integral e correta da história, como é que o primeiro que apresentou a visão integral da história, que foi Marx, não era um proletário? Portanto já começa com esse problema. Mas o que é o excluído realmente? Daí, por coincidência, alguém tocou para mim aquela musiquinha, aquela cançãozinha do Enzo Jannacci, “Vengo anch’io. No tu no”, é uma letra muito engraçada, é sobre um menino que fala: “vamos ao zoológico e vamos nos esconder e gritar o ‘leão escapou’, para ver o efeito que faz”. Daí chega um menino pequenininho e fala: “vengo anch’io” – eu também vou. Mas os outros respondem “no, tu no” – não, tu não. “Ma perché?” – porque não? – pergunta o menino. “Perché no!” – porque não – eles respondem. Depois eles já são adolescentes e dizem: “nós vamos sair com as garotas etc. para ver se chove e se estraga o nosso passeio”. E vem o pequenininho e fala: “vengo anch’io”. Os outros respondem: “no, tu no”. “Ma perché?” – ele pergunta. Eles respondem: “Perché no”. E assim vai.... Tudo o que eles inventam de fazer o pequenininho quer entrar também mas eles dizem: “não, você não”. Até que chega o dia em que eles falam que vão se reunir para ir ao seu enterro. Daí a mesma coisa: “vengo anch’io – no, tu no –ma perché? – perché no!”. Daí eu digo: esse é o excluído total, esse não tem chance mesmo. Existe alguém assim para que nós possamos adotar o seu ponto de vista? Existe, é Nosso Senhor Jesus Cristo. Na cruz, Ele foi abandonado por todo mundo, os apóstolos todos saíram correndo, era a solidão total. Mas ele era só a solidão total, foi só vítima da crucificação? Não, Ele é o logos, ele é a razão divina, o fundamento de toda a ordem possível, só Ele conhece a ordem inteira. Então, eu vi que a ideia do Sartre, e tantos outros como ele, era uma caricatura remota dessa ideia. Aquele que está no centro e que tem perspectiva total é ao mesmo tempo o que está mais por fora e mais excluído. Bom, evidentemente essa é a pista. Quer dizer, quando o sujeito adota o ponto de vista do excluído, ao mesmo tempo ele não pode entrar em uma outra comunidade de excluídos, ele tem de continuar excluído sozinho. Em segundo lugar, se ele não entra numa outra comunidade ele não está contra nenhuma comunidade. Ele não vai se definir pela sua oposição a isto ou aquilo, assim como o próprio Jesus Cristo não se definiu por sua oposição a coisíssima alguma. Ao contrário, pendurado na cruz, Ele mesmo orava para que Deus Pai perdoasse os seus carrascos. Então, o Evangelho, nesse sentido, nos dava um modelo da ciência. Também me lembrei do verso, acho que do capítulo seis do evangelho de Mateus, que diz que João Batista estava na cadeia e mandou os discípulos dele irem a Jesus perguntarem: “é você o messias ou temos que esperar algum outro?”. Jesus responde: “vocês vão lá e digam a João Batista o que vocês viram e ouviram, vocês viram o leproso ser curado, viram o paralítico andando, viram o cego enxergando, vão lá e contem isso para ele.” O que é isso aí? É um critério de verificação científica. Por que se o sujeito diz que um milagre aconteceu, onde é que ele tem de ter acontecido? Tem de ter acontecido num campo não miraculoso, que é no campo da experiência terrestre. Então, o sujeito não vai vir com um critério miraculoso para confirmar o milagre, o critério tem de ser materialista na verdade. Este conjunto de coisas, a busca do ponto de vista privilegiado, a assimilação da exclusão para que o sujeito possa adotar verdadeiramente o ponto de vista daquilo que Sartre chamava de “bastardo”, tem de concordar que o sujeito pode ficar sabendo de coisas que ninguém mais vai saber e que, portanto, ninguém vai concordar, todo mundo vai achar que ele está maluco. Eu coloquei isso para mim há muito tempo. E se acontecer isso? Se acontecer, aconteceu. Eu quero saber o que está acontecendo ainda que ninguém acredite em mim. Eu já tinha um emprego regularmente bom na mídia, não tinha maiores ambições além daquilo e bom, então eu vou descobrir as coisas, escrever, contar, se ninguém acreditar, dane-se. Isso tudo foi o começo da história. Foi a partir daí que eu comecei a colocar as perguntas fundamentais que poderiam criar um método da ciência política. Evidentemente nós teríamos de dividir o campo em dois, um se chama filosofia política, o outro se chama ciência política. Que é filosofia política? É o estudo dos métodos e critérios e o estudo do ponto de vista cognitivo privilegiado que nós temos de alcançar para compreender os fenômenos desta área que nós chamamos de política. O que é a ciência política? É a aplicação desses critérios e conceitos à descrição e compreensão de processos históricos e políticos reais, de preferência aqueles que estão acontecendo na nossa frente. Pode se estudar os de outras épocas também, mas temos o privilégio de sermos testemunhas diretas de tudo isso que está acontecendo e, sem dúvida, isso ajuda. Por onde vamos começar? Existe uma documentação, uma coleção de fatos, a que precisamos ter acesso, e esses fatos estão registrados em documentos e testemunhos. A maior parte deles documentos escritos ou documentos gravados. Em suma, é a linguagem humana, é através da linguagem humana que se toma conhecimento do que acontece e grande parte da ação política consiste em falar ou escrever. Por exemplo, o (???), quando levavam um problema para ele, ele dizia: “Eu vou fazer alguma coisa. O quê que eu vou fazer? Eu vou falar”. Então, chamava o canal de televisão, falava e o que ele falava tinha consequências. Então, grande parte da ação política se dá através da linguagem e, portanto, o material à disposição do cientista político consiste de documentos linguísticos, escritos ou gravados. O primeiro problema que tínhamos era este: “Como é que vamos entender esse material? Como vamos coletar, como vamos olhar e como vamos compreender esse material?” Daí me ocorreu a famosa distinção criada por Aristóteles: “O começo de toda ciência é o repertório das opiniões admitidas”. São as opiniões correntes dos agentes políticos e dos seus intérpretes e toda a documentação daí decorrente. E, dizia ele: “no campo específico da política nós temos de levar em conta, em primeiro lugar, a diferença entre o discurso dos agentes e o seu próprio discurso”. Isto é, o discurso do cientista que está observando e querendo compreender, esse discurso se distingue pelo seu objetivo. Portanto, o discurso do agente político visa a produzir uma ação ou uma situação, mas o discurso do cientista não, este visa apenas compreender o que está acontecendo. É claro, esses elementos se interpenetram. Por exemplo, o discurso do agente político pode incorporar parcelas enormes do discurso científico para legitimar a ação que ele pretende empreender. Do mesmo modo, o próprio cientista político pode pretender que a observação que ele está fazendo dos fatos interfira nos próprios fatos. Mas, de qualquer modo, há uma diferença que é baseada eminentemente na famosa teoria das funções da linguagem do Karl Bühler: a função denominativa, que é dizer o que as coisas são; a função expressiva, que é expressar os seus estados interiores; e a função apelativa, que é agir sobre a cabeça ou a alma do ouvinte. No caso do discurso político, evidentemente, a função apelativa predomina sempre. No caso do discurso do cientista, é a função denominativa que predomina. Então, mesmo que o discurso do agente incorpore elementos teóricos e científicos, e mesmo que o discurso do cientista pretenda ter algum efeito [vocativo], a modalidade de discurso sempre permanecerá distinta. É claro que para começar um estudo da ciência política seria necessário em primeiro lugar abdicar de qualquer consequência. Se o sujeito não está fazendo nem questão de ser compreendido, quanto mais de desencadear efeitos, mudar o mundo, etc., portanto, desistir em primeiro lugar. Isso quer dizer que, se o que eu estou falando for compreendido e desencadear efeitos benéficos, muito bem, se não acontecer nada disso, a sua função científica foi cumprida. Dito isso, o passo seguinte era entender o que é o agente político. Isso colocava diretamente o problema da ação e do poder. O que é a ação humana? É a intervenção deliberada num estado de coisas. Dada uma situação, o sujeito intervém para transformá-la em uma outra situação. O que não quer dizer que o que se busca seja sempre a mudança e a novidade. O sujeito pode interferir [0:30] para impedir que um estado de coisas mude, isso também é agir. Por exemplo, tem um golpe de estado. Então alguém se mobiliza para impedir que aquilo aconteça, como os nazistas tentaram na Áustria. Os caras estavam tentando um golpe de estado e o primeiro ministro, Engelbert Dollfuss, fez uma constituição autoritária para impedir que aquilo acontecesse. Essa é uma ação reacionária, por assim dizer. Ela reage a um estado de coisas para que ele não mude. Isso também é ação. Notem bem, tudo isso é um estudo teórico e apriorístico, um estudo puramente filosófico, eu não estou fazendo ciência política ainda, estou fazendo apenas filosofia da política para tornar possível uma ciência política mais tarde. Que é exatamente o que eu prometi fazer nessa aula, que era dar os conceitos, métodos, e critérios da ciência política. Depois, mais tarde, eu vou entrar no caso específico do Brasil e mostrar como que eu apliquei isso e como foi possível em muitas situações descrevê-las corretamente e prever o seu desenvolvimento com grande margem de acerto – na verdade eu não me lembro de ter errado nunca, às vezes eu não acertei na mesma hora aquilo que eu previ, aconteceu mas demorou um pouco mais, mas sempre aconteceu. [Graças a esses acertos eu pensei]: bom, é claro que estou na pista certa, a ciência política é exatamente isso, é isso que tem de ser feito. Se os outros não fazem é porque não sabem ou não querem, estão interessados em outras coisas. O problema do agente nos colocava então duas questões. Primeira: quem age politicamente? A ação política só se denomina política quando ela alcança uma sociedade inteira – é claro, existe política local também, mas se falarmos em uma escala municipal, então a ação política na escala municipal será a que alcance o município inteiro, e assim por diante. Segunda: quem é capaz desse tipo de ação? Daí me ocorreu um problema, um negócio que eu chamei de pensamento metonímico. O pensamento metonímico consiste em confundir o agente com um dos seus aspectos, ou com seus instrumentos, ou um de seus estilos etc. Por exemplo, quando se diz: “em 1789 a burguesia tomou o poder”. Isso é claramente uma metonímia, não é uma realidade. O que se quer dizer de fato é que duas ou três pessoas, que talvez não fossem nem burguesas elas mesmas, tomaram o governo e tomaram algumas medidas que favoreceram essa classe burguesa, mas não que a burguesia tenha tomado o poder. Uma classe social pode tomar o poder? Bom, para agir politicamente é preciso combinar as coisas, não se age a esmo, não é tudo fruto do acaso. Então, como é que se reuniria uma classe social inteira para ela examinar, traçar planos, deliberar e agir? Isso é impossível. O número de pessoas que participa de uma conspiração, de uma revolução, de um golpe de estado, é ínfimo em relação à sociedade inteirinha e em relação à sua classe social. Mais ainda, quantos burgueses, quantos capitalistas, haviam na liderança da Revolução Francesa? Nenhum. Para não dizer que não tinha nenhum, tinha o Necker, era o único. Se nos perguntarmos: “quantos proletários haviam no primeiro comitê central da URSS?” Nenhum. Então, é claro que isso é um pensamento metonímico. Algumas pessoas ou um grupo determinado [é quem] derruba o governo, toma o poder. Mas, tem gente que alega que eles representam uma classe, a qual não foi consultada a respeito e a qual pode inclusive se incluir entre as vítimas do novo governo. Então, eu vi que esse tipo de pensamento metonímico era um vício geral praticamente da modernidade inteira. O modo de se dizer, por exemplo, “a Argentina declarou guerra ao Paraguai”. Quando vamos ver, morreu mais gente na frente interna lutando contra o serviço militar do que no campo de batalha. acontece no caso do Partido Comunista — que essa entidade, apesar das deficiências, falhas e distrações de seus membros, continua agindo coerentemente e convergentemente ao longo do tempo. Isso aí nos permite fazer uma distinção que eu aprendi com o Georg Jellinek, no livro Teoria Geral do Estado, é um dos grandes livros de teoria política do mundo, onde ele diz: “princípio número um...” – eu tinha alguns anteriores a este, mas para ele este é o começo” – “...distinguir na sociedade o que é resultado de um acúmulo fortuito de causas e o que é resultado de um plano e de uma deliberação”. Isto é, discernir intenções por baixo de similaridades e convergências. Ora, confundir essas duas coisas é um dos preceitos fundamentais da ciência política e do comentário político, hoje. Por exemplo, todo este pessoal que escreve sobre os Illuminati. “Ah, os Illuminati estão no poder” – eles dizem. Bom, os caras que estão aí podem ter algo a ver com os Illuminati, mas os caras que falam isso não têm a menor evidência da continuidade dessa organização ao longo do tempo, podem aparecer quinhentas organizações diferentes que, por eles veem uma similaridade entre o que eles estão fazendo e o que os Illuminati queriam fazer, eles dizem que são os Illuminati. Ou seja, eles estão conferindo uma unidade substantiva a uma convergência de aparências. Outra forma de pensamento metonímico: o organicismo. O organicismo é uma teoria inventada por um pensador alemão conservador no começo do séc. XIX chamado Adam Muller, que propunha considerar a sociedade como se fosse um organismo, um corpo animal vivo. Bom, é claro, heuristicamente, como maneira de estimular a imaginação, o organicismo pode até funcionar pois ele faz ver ligações que normalmente passariam despercebidas. Porém, uma sociedade ou um país pode ter um tipo de unidade orgânica que tem um corpo animal? É claro que não, para que ele tivesse essa unidade seria preciso que os indivíduos que o compõem não fossem unidades, mas apenas partes. Muitos indivíduos na sociedade humana não são, de fato, individualidades, mas apenas partes, ou seja, entram num processo que as transcende, que elas não compreendem, mas ao qual elas colaboram passivamente, por assim dizer. Mas, tem outros indivíduos que são eles a matriz do que está acontecendo, por exemplo: Napoleão, Lenin, Mussolini, Hitler etc. Então, o organicismo falha na medida em que ele não reconhece o verdadeiro padrão de unidade, ele pega a presença de todos os fatores, a pertinência de todos os membros de uma sociedade, como se fosse uma pertinência orgânica. É claro, isso aí não é uma metonímia, é uma metáfora, e como metáfora ela não é um conceito descritivo apropriado. A metáfora é um tipo de pensamento analógico, é aquilo que tende a uma unidade lógica a ser alcançada. O analógico é uma síntese de semelhanças e diferenças, tudo misturado e o sujeito só entrará no terreno lógico quando ele separar o que tem a ver daquilo que não tem a ver. A metáfora serve para despertar intuições, percepções, ideias, etc., mas ela não é uma descrição da realidade, ela serve subjetivamente para ajudar a pessoa. Por exemplo, não se pode fazer sexo com um comprimido de viagra. Ele é um componente que a pessoa usa para facilitar o seu desempenho, mas não é com ele que a pessoa está transando – espero que não seja, pelo menos; já inventaram tudo ultimamente. Então, a metáfora é como um comprimido de viagra, ela faz a pessoa funcionar mais rápido, mas não quer dizer que a visão que ela está tendo da realidade seja a mais adequada. O próprio Karl Marx entra um pouco no organicismo sem perceber, porque ele vê a sociedade como uma unidade conflitiva marcada sempre pela luta de classes. O que é a luta de classes? É também uma metáfora. Que existem as classes sociais nós sabemos, mas onde termina uma e começa outra? O historiador marxista inglês E. P. Thompson chegou à conclusão que não há critério econômico suficiente para distinguir as duas classes, que é necessário levar em conta elementos culturais, psicológicos, subjetivos etc. Ou seja, existem proletários honorários e burgueses honorários, que não são proletários nem burgueses. Então, a própria distinção entre as classes já é um problema. E, descrever a convivência delas como uma luta é também uma metonímia de fato, porque quando não está havendo conflito de classe algum, se pode dizer que há um conflito de classe latente. Vejam, durante trezentos anos não houve nenhum conflito, daí aparece o conflito e eles dizem: “Estão vendo? O conflito já estava latente nesses trezentos anos”. Portanto, o sujeito está confundindo o potencial com o atual. Se vocês lerem qualquer história das ideias políticas verão que quase 90% das ideias políticas são erros desse tipo. São metáforas, metonímias, etc., quase sempre construídas em função daquela tomada de posição prévia em favor de um certo modelo de sociedade que a pessoa nunca viu ou da qual só se vê “as sementes”. Por exemplo, quando John Locke cria toda a teoria da democracia moderna, alguns elementos dessa democracia já existiam na Inglaterra, mas nem todos. Aquilo que estava ali em semente ele já via como produto acabado e, em função desse produto acabado, julgava o que estava acontecendo no tempo dele e assim por diante. Se para ser um agente é preciso ter uma unidade, então o quê que define, que determina o curso da ação tomado por um indivíduo ou um grupo? É o que ele tem na consciência. Então aí surge a noção, que eu acho fundamental, do horizonte de consciência: aonde o sujeito não enxerga ele não age, ou, se agir, age às tontas, não sabe o que está fazendo. Se a ação é uma transformação deliberada do estado de coisas, então ela pressupõe uma deliberação e essa pressupõe, portanto, um conhecimento da situação e esse conhecimento deve ter os seus limites, ou seja, há um ponto a partir do qual o sujeito não enxerga mais. Por exemplo, um exercício que eu fiz sobre o horizonte de consciência foi o livro que eu escrevi sobre Maquiavel6. Tem uma série de coisas que ele sabe, mas tem outras tantas que são essenciais para aquilo que ele está dizendo que ele não sabe absolutamente. No caso de Maquiavel, o horizonte de consciência é bastante estreito, o que explica que o teórico da tomada do poder e o teórico da vitória na política estivesse sempre do lado perdedor, ou seja, se ele entendesse realmente a sua teoria, ele saberia escolher o lado vencedor. É um fracassado que vira o teórico do sucesso e não fez sucesso nem mesmo com isso porque terminou a vida muito mal. Nós vemos que no julgamento das situações reais o Maquiavel falhava miseravelmente e ele compensava essa sua incapacidade de diagnóstico com uma espécie de pessimismo que simula o realismo, isto é, quando ele não sabe o que está acontecendo então ele aposta no pior e isso dá a impressão de que ele é realista. Mas vejam, apostar no melhor ou no pior é como diz George Bernanos: “o otimista e o pessimista são apenas o gordo e o magro da filosofia, não há diferença entre eles”. Quer dizer, se o sujeito apostou no melhor ou no pior, é tudo uma preferência subjetiva dele, não é uma coisa da realidade. Portanto vejam, aquilo que no Maquiavel foi tido, de forma monstruosamente errada, como fundador do realismo na ciência política, faltava totalmente o realismo e abundava o pessimismo, a aposta no pior. Esse problema do horizonte de consciência pode ser resolvido na medida em que, conhecendo historicamente a ação que o sujeito desempenhou e conhecendo os elementos da situação em torno, nos vemos quais os pontos fundamentais que ele ignorou. O horizonte de consciência é definido pelo – noção que eu tirei Jean Fourastié – mapa da ignorância. Não se trata de uma ignorância fortuita – todo mundo ignora alguma coisa, evidentemente – e sim, como já me ensinava meu professor Stanislavs Ladusãns, da diferença entre a nesciência e a ignorância. Nesciência é ignorar alguma coisa, e ignorância é ignorar aquilo que se deveria saber. Por exemplo, um motorista de ônibus que não sabe dirigir ônibus. O passageiro não precisa saber dirigir o ônibus, então isso é nesciência: “eu não sei dirigir essa porcaria, mas o outro está dirigindo por mim”. O mapa da ignorância não é o mapa da nesciência – o qual seria infinito, o número de coisas que nós ignoramos é infinito. Mas, dentro da minha esfera de ação existem coisas que para desempenhar a 6 Maquiavel ou a Confusão Demoníaca, Olavo de Carvalho. ação que estou querendo desempenhar eu precisaria saber e se eu não sei, então se trata de ignorância autêntica. Então, o mapa da ignorância delimita o horizonte de consciência. Particularmente, se o indivíduo está estudando uma certa situação com vistas a agir nela ou obter um conhecimento, existem certas perguntas fundamentais que ele precisa fazer, sobretudo aquelas perguntas que surgem da experiência direta que ele tem da realidade. Eu agora mesmo dei o exemplo de Marx, dos proletários que seriam os únicos portadores da visão integral e objetiva da história. Ora, se eu sou Marx, se eu sei que só os proletários podem ter essa visão objetiva, e ao mesmo tempo eu estou tendo essa visão objetiva antes deles, eu tenho de explicar isso. Eu tenho que fazer esta pergunta: “Como foi possível que eu, não sendo um proletário e aliás, jamais tendo visto um proletário, tenha chegado a compreender aquilo que eu mesmo estou dizendo que somente um proletário pode compreender?”. Essa pergunta é essencial e ele não faz a pergunta. Não fez porque foi desonesto? Não sei. Não estamos aqui fazendo um julgamento moral, estamos fazendo um julgamento cognitivo. Então, vemos um ponto cego em um aspecto essencial da questão. A teoria da ideologia de classe exigia que Marx colocasse esse problema – não sei como ele poderia resolver, mas pelo menos colocar o problema ele teria de colocar; se ele não coloca é porque não viu. Do mesmo modo, se pode aplicar isso a várias situações políticas concretas. Por exemplo, eu mesmo citei, e depois neste curso vou estudar um pouco mais, quando Raymundo Faoro, que foi sem dúvida um dos grandes cientistas sociais do Brasil, talvez o maior depois de Gilberto Freyre, apostou na fundação do PT. Por que ele apostou? Porque ele tinha descoberto que no Brasil a luta de classes no Brasil não é entre proletários e burgueses, é entre o povo, de um modo geral, e os donos do estado, quem ele chamava de estamento burocrático, a faixa burocrática, são os donos do estado, quer dizer, o Estado, no Brasil, é propriedade particular de certos grupos, não é um organismo anônimo, impessoal e científico como é a administração estatal em outros lugares7. E, ele falava que era preciso destruir o estamento burocrático e ele acreditava que o PT podia fazer isso. Por que ele acreditava? Porque ele nunca estudou a estratégia comunista, ele não sabia nada a esse respeito. Mas, o pessoal do PT estudava. É só vermos os documentos que eles liam, as ligações que eles tinham, a tradição a qual pertenciam, que saberemos que, é claro, eles são herdeiros e continuadores do Movimento Comunista. Então, se eu não conheço a estratégia comunista eu não posso saber o que eles vão fazer e não posso apostar ingenuamente que eles vão destruir o estamento burocrático, como, de fato, não apenas não o destruíram, mas se transformaram nele. Era previsível? Era. Contanto que o cientista tivesse feito a pergunta decisiva: “Quem são estes caras nos quais estou apostando para destruir o estamento burocrático?”. Por que ele nunca fez essa pergunta? Porque primeiro, ele nunca teve interesse nisso. Vocês vão ver que, nos livros dele, ele quase nunca ele menciona isso. Não vemos ali um livro sobre estratégia comunista que ele tenha citado ou que tenha lido, nada. Em segundo lugar, porque ele estava naquele momento da destruição da ditadura militar, então, evidentemente, ele formulava tudo em termos de mocinhos e bandidos – os bandidos são os que estão a favor da ditadura, e os mocinhos são os que querem destruí-la. Como tem gente que até hoje vê assim, o PT inteiro está vendo assim, quer dizer, o Brasil inteiro, 90% da nação brasileira representa os golpistas militares e aquela fração mínima, que gosta da Dilma, é o povo – é uma maneira louca de ver. Vejam, a chamada “luta contra a ditadura” formou mentalidades inteiras. Tem personalidades inteirinhas montadas com base nisso – nós vamos estudar isso nas próximas aulas. E evidentemente elas vão tentar repetir os mesmos esquemas cognitivos [1:00] para tentar obter uma visão do que está acontecendo. 7 Os Donos do Poder, Raymundo Faoro. sujeito [objeto de estudo] começa realmente a praticar ações com as quais a pessoa realmente não pode se identificar, não haverá compreensão íntima daquilo, existirá apenas compreensão externa do tipo científico – a pessoa pode compreender os atos do maníaco do parque, ou de Stálin, ou do Fidel Castro, pelos conceitos da psicopatologia, mas não por uma compreensão íntima, não é uma compreensão por identificação, mas ao contrário. Então, justamente porque a pessoa tem os sentimentos morais é que ela pode compreender o que é a ausência deles, mas não compreender por identificação, ou seja, ela não pode suprimir os seus próprios sentimentos morais só para entender a mente de um psicopata. Isso seria a mesma coisa que a pessoa arrancar o seu cérebro para estudar a fisiologia cerebral, não dá para fazer. Quando se alcança esse limite, se vê que adentrou em um terreno que, a rigor, é incompreensível. Ele é descritível e explicável cientificamente pela psicopatologia, mas não o poderá ser pela ciência política. Aí será preciso pedir auxílio a psicopatologia para que se possa entender este aspecto das coisas. Mas na quase totalidade das suas ações o psicopata não difere de uma pessoa normal, só naquelas onde entra o problema do sentimento moral. Mesmo no caso dos psicopatas mais monstruosos e disformes, será preciso tentar exercer essa compreensão e para exercer essa compreensão será preciso se colocar do ponto de vista do excluído total, ou seja, eu não tenho um grupo com o qual eu me identifico e por isso mesmo eu posso me identificar com qualquer um, eu estou livre de algum modo. O que é a mesma coisa que dizer: “todo mundo me rejeitou, eu estou lá no alto da cruz, e não estou com raiva de ninguém”. Esta aí é a importância fundamental da figura de Nosso Senhor Jesus Cristo para todo este campo de estudos. É claro que nós não chegaremos à amplitude de consciência de Nosso Senhor Jesus Cristo, nós nunca seremos o logos, nós não sabemos como Ele criou o universo, porque o criou, etc., nem porque Ele criou os seres humanos, mas dentro de uma escala humana a nossa compreensão pode se estender indefinidamente. Só que o sujeito ser colocado fora de um determinado grupo, de uma determinada sociedade, pode ser uma coisa tão aterrorizante que imediatamente ele busca um grupo compensatório, com o qual ele se identifique. Que é exatamente o caso que acontece com Sartre e outros. Esse erro tem de ser evitado de qualquer maneira. Notem, a mais absoluta solidão cognitiva é necessária para essas coisas, mas essa solidão ao mesmo tempo te abre para toda a humanidade através da compreensão e da compaixão. Vocês não estarão sozinhos pois estarão com todo mundo, no fim das contas. Justamente na medida em que vocês foram postos para fora, vocês poderão compreender quem está dentro e quem está fora do mesmo modo.8 Em seguida, a partir da “ideia da ação”, surge a teoria do poder. O que é o poder? Poder é capacidade concreta de ação, não abstrata. Porque abstratamente eu posso ser Papa amanhã, mas concretamente... O que eu, dentro da minha situação, posso fazer nos momentos seguintes? Qual é a minha liberdade, a faixa da minha liberdade de ação? Do mesmo modo que é possível delimitar o horizonte de consciência, é possível delimitar o raio de ação possível de um indivíduo ou grupo. E isso é da mais alta importância, porque aí vocês vão descobrir uma coisa fundamental: “O que esse indivíduo ou grupo não pode fazer de jeito nenhum? O que é impossível ele fazer?”. E aí se usa o método do Sherlock Holmes: elimina o impossível e do que sobrar alguma coisa será verdadeira. Por exemplo, quando eu disse, na primeira eleição do Lula, todo mundo acreditando que o Lula seria derrotado, que era impossível que ele não vencesse a eleição. Eu não falei improvável, eu falei materialmente impossível. Por quê? Eu tinha analisado o horizonte de consciência e as possibilidades de ação das várias forças concorrentes, e vi que só uma tem força, só uma tinha uma ação contínua e, sobretudo, só uma tinha uma estratégia, os outros tinham apenas táticas eleitorais limitadas a aqui e ali. A diferença de poder aí era avassaladora. Podendo descontar, poderia haver um milagre, mas excluído o milagre... E o milagre deve ser sempre excluído porque ele não está ao alcance da nossa ciência. 8 A Vida Intelectual, A. D. Sertillanges. Lembrem-se sempre do seguinte: o conceito fundamental em qualquer ciência é o conceito de necessidade. Necessidade quer dizer nec cedo, que vem de nec cedere, não ceder, ou seja, é uma coisa que não cede, que não quebra. A necessidade significa apenas impossibilidade do oposto. Quando uma ciência busca formular uma lei, uma regularidade ou constância, ela está querendo dizer que o contrário é impossível. Existe, evidentemente, a impossibilidade absoluta e a impossibilidade relativa ou estatística, com a qual a ciência em geral se contenta hoje em dia. Abaixo da impossibilidade absoluta existem graus de possibilidade que são demarcados justamente na teoria dos quatro discursos de Aristóteles.9 Há o absolutamente certo, ou necessário, ou impossibilidade do contrário; há o provável, que é a certeza razoável, estatística – quantificada evidentemente, pois probabilidade não quantificada é bobagem; em seguida há o verossímil, o que parece verdadeiro, o que desperta nas pessoas um sentimento de que é verdadeiro; e por baixo disso há o meramente possível. Então, o que é analisar uma situação política? É aplicar todos estes conceitos, o conceito do agente, da unidade do agente, do horizonte de consciência, da disponibilidade dos meios de ação e tentar chegar a um desenlace certo ou necessário, provável, verossímil ou meramente possível. Ou seja, classificar os dados de acordo com os graus de credibilidade dos quatro discursos de Aristóteles. Feito isso, está encerrado o assunto. Logo, a filosofia política é o estudo dos métodos e critérios necessários para o conhecimento desse setor específico da ação humana. Dizemos: “a política é um modo de ação”. A ação é a mudança deliberada de um estado de coisas, e esta ação se torna política quando ela alcança toda uma sociedade, alcança em princípio, não precisa alcançar imediatamente. Por exemplo, na hora em que um sujeito assina um decreto, um presidente por exemplo, a ação dele está limitada àquele papel que ele está rabiscando. Mas no dia seguinte aquilo é publicado no Diário Oficial, os agentes do estado passam a exigir aquilo das pessoas e aquilo se alastra para a sociedade inteira. Então, esse modo de alastramento das ações também é importante, quer dizer, quanto tempo leva para isso ou aquilo entrar em ação. Por exemplo, o pessoal diz assim: “na idade média, a Igreja dominava toda a Europa”. Dominava como, meu filho? O papa baixava um decreto e até o decreto chegar ao último padre, na Sibéria por exemplo, levava dez anos e em geral o emissário ainda era assaltado ou morto no meio do caminho. Ou seja, a rigor o papa não mandava em nada, ele era reconhecido oficialmente como se mandasse, mas o poder efetivo era muito limitado. Isto é uma norma para se estudar a Idade Média: os poderes locais eram muito mais fortes do que qualquer poder central. Por exemplo, quem nomeava os bispos? Era o papa? Não. Era o duque, o conde, o sujeito que mandava na cidade, ele era quem nomeava o bispo e pronto, estava decidido. Para o papa conseguir autoridade de nomear os bispos foi só depois da Renascença. Em geral o pessoal tem uma visão invertida, a autoridade, o poder do Papa cresceu enormemente depois da Renascença, mas antes era bem menor – é o contrário do que o pessoal pensa. E tudo isso por quê? Pensamento metonímico. Do fato de que a civilização inteira era cristã, era católica, o sujeito acredita que o papa mandava em todo mundo. Uai, mas para o papa mandar em alguém basta o sujeito ser católico? Não. É preciso que, de algum modo, as ordens dele cheguem até o sujeito e que alguém o obrigue a cumprir. Mas, ele não tinha esses meios. Se pegarmos a patrística, grega e latina, do Jacques Paul Migne – uma coleção majestosa de dois mil volumes gregos e dois mil latinos –, ali tem um monte de autores heréticos que estão incorporados no patrimônio da igreja. O sujeito era herético e nem sabia que era. Então, só quando começou a Inquisição foi que eles começaram a mandar os caras averiguarem o que fulano estava falando lá no fim do mundo. E, mesmo assim, quantos hereges foram entrevistados pela Inquisição? Um número ínfimo. Os outros continuavam propagando heresias sem nem saber, passaram a vida inteira falando aquilo e nunca foram entrevistados, investigados, punidos nem coisa nenhuma. Isso quer dizer que a 9 Aristóteles Sob Nova Perspectiva, Olavo de Carvalho. própria unificação doutrinal da Igreja foi um processo longo, demoradíssimo e muito complicado. Portanto pensar: “A Igreja na Idade Média tinha um poder monolítico” – está sonhando. Na verdade, poder monolítico só surge no século XX, com o rádio. Antes do rádio não havia poder monolítico. As ordens simplesmente não chegavam, levavam meses para chegar. Quando chegou o telégrafo já aumentou muito, mas o telégrafo era só de um em um. Para passar uma ordem para toda a população ao mesmo tempo, só o rádio. É por isso que a era do rádio foi também a era dos grandes governos totalitários: na Itália, na Alemanha, na Rússia, na Espanha etc. Meios de ação fazem parte do raio de ação. Meios de ação podem ser, por exemplo, pessoas que retransmitem as suas ordens, podem ser instrumentos de propagação, pode ser mil e uma coisas, mas uma regra é certa: se o sujeito não tem os meios, a ação não se cumpre. Então, horizonte de consciência, raio de ação e meios de ação – isso é básico. À filosofia política incumbe discutir os conceitos, métodos e critérios. À ciência política incumbe estudar os fenômenos históricos e políticos reais, tentando obter a descrição mais exata e realista possível e, portanto, o prognóstico mais razoável do seu desenvolvimento. Quando se estuda fatos do passado não adianta fazer prognóstico. Quem vai ganhar a batalha de Waterloo? Não é preciso prever porque já se sabe. Porém, aí entra aquele negócio que Max Weber chamava de “experimento imaginário”. Para entender o que aconteceu é preciso imaginar o que não aconteceu, o que poderia ter acontecido e é aí que a formação literária ajuda, a inventar outros enredos possíveis que num dado momento poderiam ter ocorrido mas que foram afastados, quer dizer, na hora em que foi tomada uma decisão foram afastados outros desfechos ou possibilidades. É esse o entendimento das situações reais, passadas, ou futuras dentro de um limite previsível. O que é limite previsível? Para mim, é o prazo da minha existência, supondo-se que eu não fique gagá nos próximos vinte anos – eu espero não ficar, mas depois dos 88 eu estou autorizado – e até lá pretendo continuar exercendo as coisas de uma maneira razoável. Depois que eu convivi com tantos nonagenários monstruosamente lúcidos, como Paulo Mercadante, Roberto Campos, Meira Pena, etc., então bom, eu tenho obrigação de até os oitenta e poucos anos continuar funcionando. Acho que não é preciso recapitular, essa aula foi bastante contínua. Esses foram os conceitos básicos. Se vocês quiserem mais, está na minha apostila Problemas de Método nas Ciências Humanas, disponível no Seminário de Filosofia ou no meu site, e na série de apostilas que se chama Ser e Poder. Tudo isso está monstruosamente fragmentário e muito mal escrito, isto é, ainda não é um livro, são apenas apostilas, mas o material está lá. E está também nas transcrições e gravações do curso de Filosofia Política que eu ministrei na Universidade Católica do Paraná. Tudo o que eu estou dizendo aqui é um resumo, é um condensado daquilo, feito só para preparar as análises que a partir da próxima aula eu farei sobre a situação brasileira. Faremos uma pausa e depois partimos para as perguntas. *** Vocês notaram que o site do Seminário foi alvo de um ataque. Não foi coisa de moleque, foi um negócio devastador, feito por profissional, feito por algum governo ou por uma grande empresa ou uma grande organização. Atacou diretamente o provedor, que foi obrigado a tirar a página do ar para denunciando, a fachada de denúncias já era para encobrir uma outra coisa. Isso eu estou dizendo desde noventa e três. Eu avisei que iam fazer isso e avisei também o pessoal da Odebrecht: “não se metam com esses caras senão vocês vão se ferrar”. Mas quem sou eu? Sou um zé mané, um jornalista que estava lá fazendo um serviço para eles. E, eles preferiram ouvir os assessores iluminados, deu no que deu. Aluno: Parabéns pela aula, notei que muito da metodologia aplicada remete a Voegelin. Olavo: Remete em parte. É claro, eu devo muito ao Eric Voegelin, mas todos esses conceitos que eu desenvolvi são meus. O conceito de horizonte de consciência, conceito de agente histórico, etc., tudo isso é meu. Vejam, quando Voegelin fala da progressiva diferenciação dos símbolos, é um processo importantíssimo, ou seja, coisas que aparecem compactamente como símbolos numa certa época, aparecem diferenciados em esquemas doutrinais, etc., numa época seguinte. Como acontece isso? Acontece pelo processo de transformação de um discurso em outro – do poético para o retórico, do retórico para o dialético, e do dialético para o lógico. Quando eu mostrei isso para o pessoal do Eric Voegelin Society eles disseram que aquilo era como um pilar que faltava no edifício do Voegelin, isto é, estava tudo certo em cima, só que ele não sabia ou não explicou como a coisa acontecia. Com isso foi possível dar mais concretude às teorias dele, assim como vários outros conceitos servem para isso também. De fato, eu não me inspirei no Voegelin, eu aprendi muita coisa com ele – todos nós. Aliás, a simples descoberta de que havia um cientista político que não fazia essas burradas logo no começo já foi um grande negócio. Eu acho que é isso. Novamente, muito obrigado a todos, desculpem a falha da transmissão, mas as gravações ficarão online para os inscritos nas próximas horas, o site do seminário voltará ao ar e lá estarão as gravações, vocês vão ter acesso a tudo conforme prometido. Na próxima aula já tomaremos as providências para que mesmo um ataque gigantesco, mesmo que seja empreendido pelo governo da China, não consiga parar o nosso trabalho. Isso aí, no fundo, é prova de que os camaradas estão realmente muito inseguros. Para uma organização bilionária, com centenas de milhares de militantes como o PT, para eles ficarem com terror e pânico a esse ponto, ficar com medo de um sujeito isolado, que não tem nada por trás – eles podem pensar que tem a CIA, o Mossad, a Maçonaria, o raio que o parta, é tudo invenção; a única coisa que tem por trás de mim é minha casa que está aí atrás –, é porque estão muito fragilizados. E estão fragilizados por causa de falhas no seu horizonte cognitivo que se consolidaram ao longo do tempo e nós vamos ver nas próximas aulas quais foram. É isso aí. Até semana que vem. Muito obrigado! [1:38:22] Transcrição: Francisco Jr., Deko Izarrigues e Leonardo Yukio Afuso Revisão: Leonardo Yukio Afuso e Rahul Gusmão Política e Cultura no Brasil – História e Perspectivas OLAVO DE CARVALHO Aula 2 19 de abril de 2016 [versão provisória] Para uso exclusivo dos alunos do Seminário de Filosofia. O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor. Por favor, não cite nem divulgue este material. Então vamos lá. Boa noite a todos, sejam bem-vindos. Eu queria antes de tudo anunciar que em compensação ao atraso e demais problemas que houve na semana passada eu vou dar um presentinho a vocês, vou prolongar, vou completar um pouco as explicações teóricas que eu havia dado, portanto esta aula vai ser um complemento da aula teórica da semana passada, assim, o curso terá cinco aulas ao invés de quatro. A aula teórica ao invés de ser só a primeira serão duas, e depois mais três com a análise do problema concreto brasileiro do momento. Para esse complemento de hoje, eu gostaria de levantar alguns temas teóricos que eu explorei nas minhas apostilas e no curso do Paraná, mas que eu não mencionei na aula passada. O primeiro desses itens, que eu acho que é excessivamente desprezado pela ciência política em geral e até pela filosofia política, é o tema da diferença de poder. De todas as espécies animais, a espécie humana é aquela em que a diferença de poder entre os seus membros é a mais ampla, a mais destacada e a mais invencível; a mais impossível de eliminar. Se imaginarmos quaisquer espécies animais, veremos que sempre há uma diferença entre os mais fortes e os mais fracos, porém a diferença de poder não é tanta assim. Imaginemos, por exemplo, um leão. Os leões vivem em famílias que agregam um certo número de fêmeas e filhotes. Se notarmos o leão mais forte e mais rico, ele tem o quê? Um grupo de umas quinze a vinte fêmeas e mais alguns filhotes, não vai passar disso aí. Não veremos um leão que tenha um milhão de fêmeas e outro que só tem uma ou nenhuma, isso aí não existe. A diferença entre o mais poderoso e o menos poderoso é muito menos destacada – em qualquer espécie animal. Num confronto, numa luta, a diferença de poder entre membros da mesma espécie não é grande – dois ursos, dois elefantes, dois camelos; a coisa não é tão diferente. Agora, no ser humano, a diferença é tão grande, mas tão grande, que desde o início dos tempos vemos uma tendência de dar ao chefe, ao governante, o estatuto divino. Júlio César se considerava seriamente um descendente carnal da deusa Vênus, todos os césares tinham estatuto divino e isso não mudou com os tempos. Na Idade Média veio a famosa teoria dos dois corpos do rei, tão brilhantemente exposta pelo historiador Ernst Kantorowicz, inclusive o livro foi traduzido no Brasil, Os Dois Corpos do Rei. Era uma teoria de que o rei tinha dois corpos: um era o seu corpo físico e o outro era o corpo cívico, o qual era imortal, evidentemente este último tinha um estatuto divino. A ideia do direito divino dos reis surge um pouco mais tarde, por volta da Renascença, pois até então os reis adquiriam o seu direito divino por uma delegação da Igreja, isto é, o sujeito era ungido pela Igreja e então era cercado, a partir deste momento, de um direito divino. Daí veio a teoria de que os reis tinham o direito divino por natureza, de que eles já nascem com o direito divino. Notem que ao invés da passagem do tempo atenuar a diferença entre o divino e o humano na escala social, ela aumenta. Quando chega ao caso de Napoleão Bonaparte que se coroa a si mesmo, passando por cima do Papa – “opa, a distância aumentou um pouco mais”. Essa tendência à divinização das pessoas poderosas e importantes não diminui de maneira alguma, se vermos as figuras das grandes socialites, os bilionários, estrelas de cinema, etc., a atmosfera de glamour e adoração que existe em torno deles não parece diminuir, de maneira alguma. Porém, a isso se acrescenta um fator ainda mais decisivo, que é o dos meios de ação. Os meios de ação disponíveis para que um ser humano exerça o seu poder sobre outro se multiplicam, aumentam e se aprimoram com o tempo. E isso não se pode deixar de ser levado em conta. Se pensarmos assim: na Idade Média, que armas uma pessoa comum, um camponês ou um morador da cidade poderia manobrar? Bom, ele poderia manobrar um porrete, um machado, uma espada, uma adaga, uma lança... E que instrumentos o senhor das terras poderia manipular? Exatamente os mesmos. Então, a única diferença que havia era a da quantidade de armas e da quantidade de subordinados que podiam empregar essas armas. Ainda em Roma, o conceito de cidadania plena só era atribuído ao indivíduo que tivesse terras e os meios físicos de defendê-las, ou seja, ele precisaria ter uma certa quantidade de guardas armados para ele poder ser considerado um cidadão de pleno direito, capaz de votar, de exercer a sua cidadania, etc., os outros tinham um estatuto menor, mas em princípio as armas eram as mesmas. Com o que mataram César? Com punhais, que qualquer pessoa poderia ter. Ao longo do tempo surgem as armas de fogo. No início elas são de uso muito privilegiado, pois eram armas muito complicadas, levava-se às vezes quase um minuto para carregá-las e elas só adquiriam um valor efetivo se houvesse muita gente utilizando aquilo. Vamos supor, numa disputa de um atirador contra dois atiradores, os dois atiradores com certeza venceriam, porque, dado o primeiro tiro, o nego precisaria, primeiro, carregar aquele negócio de pólvora, botar ali uma espécie de rolha com um tampão, depois enfiar uma bolinha, depois socar a bolinha até o fundo e depois ajeitar mais um pouquinho de pólvora no cão – que aqui, [no EUA], eles chamam de martelo (hammer) – e assim por diante, o negócio levava quase um minuto. Calcula-se que a velocidade máxima de carregamento dessas armas, não as da Renascença, mas, ainda no século XIX, na Guerra Civil Americana, era de dois ou três tiros por minuto. Quer dizer, se tivesse um de um lado e dois do outro, os dois venceriam inevitavelmente. Portanto, o número de combatentes era um fator decisivo. No instante em que se cria os cartuchos de papelão, depois os cartuchos com invólucro de metal, essa vantagem diminui e, portanto, o número de combatentes tem de ser maior ainda para criar uma diferença. Quer dizer, de um para dois, no tempo da arma de carregar pela boca era um negócio decisivo. Quando vêm os cartuchos de metal essa diferença já não conta tanto, então é preciso multiplicar o número de combatentes. E basta isso para explicar porque a Guerra Civil Americana foi a maior guerra que tinha havido na história até então, porque todo mundo já não usava mais a arma de carregar pelo cano, todo mundo tinha algum tipo de arma com cartuchos de metal e isso provocou uma segunda mudança, uma grande preocupação, que era a velocidade dos tiros. A primeira arma de “repetição” que aparece é o revólver de tambor, mas ele ainda era carregado da mesma maneira que antigamente: cada buraquinho do tambor era preenchido de pólvora e se socava ali uma bolinha. Daí apareceu um sujeito engenhoso que inventou os tambores removíveis. Se vocês assistiram ao filme Josey Wales, com o Clint Eastwood, vocês verão como funcionava esses tambores removíveis. A história se passa logo no fim da guerra civil, e as armas mais populares ainda eram essas, não eram armas de cartucho de metal, ainda eram as de carregar com pólvora e bolinha. Então o sujeito quando dá seis tiros ele troca o tambor por outro já carregado, ele tem de trazer tudo carregado de casa. A partir do momento em que inventam os cartuchos de metal o problema passa a ser a velocidade. Então, naturalmente se adaptam os revólveres de tambor a esses cartuchos e isso dá uma vantagem muito grande. Mas, como se sabe, as armas de mão não são de longo alcance. Então como adaptar isso para as armas de longo alcance, os rifles ou as espingardas? O governo Lincoln, governo do norte, lança uma existe a seguinte observação – que eu também acho fantástico que ninguém tenha feito: para que haja qualquer posse dos meios de produção, para que exista qualquer sistema de propriedade, a sociedade já tem de estar altamente organizada e diferenciada. Se existe um tipo de propriedade e essa propriedade é reconhecida pela sociedade, então é porque antes mesmo de existir essa propriedade já existia uma organização social capaz de reconhecê-la. E, ora, isso quer dizer que o elemento fundamental, o elemento diferenciador, antecede o sistema de propriedade; ele não pode ter sido criado por ele – este é o item um. Este elemento fundamental que criou, que fundamentou o sistema de propriedade, tem de continuar existindo ao longo de toda a história do sistema de propriedade, pois, se eliminar o fator fundante, os outros também caem – item dois. Portanto, a diferença de poder entre os seres humanos não é determinada pela propriedade dos meios de produção, porque a própria propriedade dos meios de produção é determinada pela diferença de poder que a antecede. Então deve haver outros fatores. Se esses fatores fundantes antecedem a diferenciação do sistema de propriedades e têm de continuar existindo ao longo da história da propriedade, então eles é que são os fatores decisivos. E na análise de qualquer situação política concreta são estes fatores que nós devemos levar em conta, antes mesmo de levar em conta a diferença da propriedade dos meios de produção, ou qualquer sistema de propriedade. Que fatores são esses? Em primeiro lugar, existe o fator cronológico, este é o mais básico de tudo. Quem nasceu antes tem mais poder do que quem nasceu depois; ninguém nasce mandando – isso é uma coisa tão óbvia né. Então, os pais mandam nos filhos, não o contrário. Para que se chegue a uma situação em que os filhos começam a mandar nos pais, como nós temos hoje, é preciso uma sociedade já muito diferenciada e sofisticada. Mas, evidentemente esta não é a situação básica. Mais ainda, os filhos que mandam nos pais começam a fazê-lo depois da adolescência, eles não nascem mandando. Então eu comecei a pensar: vamos ver em que medida essa diferenciação cronológica, que se repete igualmente a cada nova geração, ela tem uma presença na sociedade como tal, afetando não somente a vida dos indivíduos, mas dos grupos – isso é outra coisa óbvia: os grupos que duram mais, mandam nos que duram menos. A ação de longo prazo é uma condição de toda ação histórica; isso eu já mencionei na aula passada. Quer dizer, uma ação adquire uma dimensão histórica quando os seus efeitos ultrapassam a duração de uma vida humana. Isso quer dizer que o grupo que for capaz de se perpetuar e de garantir que as novas gerações prosseguirão a obra dos seus antecessores, terá uma imensa vantagem. E é claro que isto é um fator material que tem de ser levado em conta – mas eu não encontro isto em Thomas Hobbes, nem em John Locke, nem em Karl Marx, praticamente em ninguém. Quer dizer, é o estudo da antiguidade e durabilidade como uma das fontes de poder. Ou seja, se existisse um homem que durasse trezentos anos, ele teria uma imensa vantagem sobre os outros, porque os seus inimigos iriam morrendo enquanto que as novas gerações não o conhecem. É claro que não existe ninguém que dure trezentos anos, mas existem organizações que duram trezentos anos, ou que duram muito mais – a Igreja Católica tem mais de 2 mil anos. A maçonaria tem sabe-se lá quantos séculos, o Islã tem mil e quatrocentos anos, e assim por diante. O simples estudo da durabilidade dos elementos em ação nos permite, às vezes, fazer previsões muito acertadas. Ou seja, aquele que tem o plano de mais longo prazo, que vem prosseguindo numa ação coerente ao longo dos tempos, terá uma ação mais eficiente do que aquele que chegou agora e que, do mesmo modo que está limitado cronologicamente, estará limitado “espacialmente”, ou seja, estará limitado na sua visão de campo. Onde se tem governos eletivos que duram quatro ou cinco anos, esses governos sempre estarão em desvantagem em face de organizações mais duráveis. Daí eu me lembro da famosa entrevista do general Giap que disse: “Nós levamos vantagem no Vietnã porque os americanos lutavam no campo militar, ao passo que nós lutamos em todos os campos; nós lutávamos no campo cultural, religioso, geográfico, psicológico, tudo ao mesmo tempo”. E por que eles faziam isso? Bom, eles tinham mais de cem anos de experiência no Partido Comunista. E, mais ainda, o Vietnã é uma civilização guerreira que sempre esteve em guerra com a China, então eles têm uma experiência militar enorme. De repente, chega um presidente que acabou de ser eleito e que não está nem entendendo em que situação está se metendo. Nesse ponto se vê que, em geral, as democracias são mais indefesas do que as ditaduras, pelo simples fato de que as ditaduras duram mais. E dizer que as democracias duram? Bom, as democracias como sistema abstrato duram, mas os governos não duram, nem o executivo nem o legislativo. Então, acontece uma outra situação que é característica das democracias: os governantes eleitos ficam nas mãos dos funcionários de carreira. Quer dizer, o sujeito que é funcionário há vinte ou trinta anos tem um domínio muito mais completo da situação do que o presidente que acaba de ser eleito. E, portanto, aquele que dominar o funcionalismo público dominará o governante, quem quer que ele seja. A história do Brasil é um exemplo típico disso. Vejam, quando o PT começou a angariar adeptos no funcionalismo público ele sabia exatamente o que estava fazendo. Não que eles tenham feito uma análise tão detalhada disso, mas há uma espécie de instinto de se apegar aos meios de ação mais duráveis. Mesmo não tendo feito essa análise eles agem assim quase que por instinto. É claro que no caso do Partido Comunista não é bem um instinto, eles já têm uma experiência histórica. Um segundo elemento diferenciador do poder é, evidentemente, o conhecimento e o controle intelectual que o indivíduo tem da situação. Nós veremos que, muito antes de surgir qualquer diferenciação de poder pela propriedade dos meios de produção, surge uma diferenciação de poder pelo conhecimento. Um pajé para mandar na tribo inteira não precisa de propriedade alguma, ele simplesmente conhece os elementos fundamentais que estruturam a vida da sociedade, ele sabe como aquilo funciona. Se vocês lerem o trabalho do Levi Strauss, O Feiticeiro e sua Magia, vocês verão que essas operações mágicas, essas feitiçarias destinadas a matar pessoas, elas funcionam, mas só dentro de um meio sociocultural homogêneo. É mais ou menos como dizer que macumbeiro só consegue matar macumbeiro ou seus crentes, porque é preciso ter o suporte sociocultural para que a pressão da sociedade inteira sobre a mente de um coitado, de uma vítima, o aterrorize suficientemente para paralisar a sua circulação capilar e matar o desgraçado. A posse desses meios de conhecimento é, portanto, um elemento diferenciador muito anterior à posse dos meios de produção. E, pior, depois de diferenciadas as várias propriedades dos meios de produção – quer dizer, vem primeiro a comunidade primitiva, o feudalismo, [0:30] o capitalismo, o socialismo, o raio que o parta – este elemento diferenciador baseado no conhecimento continua existindo e continua por baixo da diferenciação dos meios de produção. Hoje todo o mundo fala: “O conhecimento e a informação, hoje, é poder” – ora, e quando não foi? Sempre foi. É coisa básica. Ou seja, quando o Sun Tzu escreveu aquela regra – “Conhece teu inimigo” – isso já era verdade naquele tempo. Portanto, este elemento diferenciador é o que vai determinar a minha ideia do horizonte de consciência. Logo, ao analisar as várias situações políticas, os conflitos, etc., tem de mapear os horizontes de consciência e ver quem está enxergando mais – este sem dúvida levará vantagem. Nos últimos anos, vemos que a partir de 64/65, o pessoal comunista no Brasil virou quase que um monopolizador do conhecimento, eles sabiam o que estavam fazendo. Por exemplo, eles começaram a estudar Antonio Gramsci por volta de 64/65, alguns já conheciam um pouco antes, mas a coisa se dissemina na esquerda a partir de 65, quando o Ênio Silveira da editora Civilização Brasileira publica uns 70-80% das obras do Antonio Gramsci com tradução brasileira. E, uma parte dos comunistas foi para a guerrilha e a outra parte ficou em casa estudando Antonio Gramsci, sabendo que os guerrilheiros iam morrer, mas que eles iam levar a vantagem, portanto usando os guerrilheiros como boi de piranha. Eu pergunto: o pessoal que estava no governo, que estava nominalmente no poder, que eram os militares e seus associados, não tinha a menor ideia do que estava se passando; quando eu publiquei o livro A Nova Era e a Revolução Cultural, que foi o primeiro livro não gramsciano sobre o Gramsci que saiu no Brasil, depois de trinta anos, quanto tempo depois levou para aparecer um sinal de vida no meio militar? Levou oito anos. Em 2001, o general José Fábrega, escrevendo em um publicação do meio militar, deu sinal de que tinha percebido, leu o livro e falou: “opa, é isso mesmo”. Mas aí o governo militar já tinha acabado. E como foi que ele acabou? Acabou através da revolução cultural e da ocupação de espaços, evidentemente. O governo que de repente se viu cercado e, sem que ele percebesse como, estava todo o mundo contra ele, no Brasil e fora. O que foi isso? Foi propriedade dos meios de produção? Não, foi simplesmente um horizonte de consciência mais amplo que, de certo modo cercou o inimigo dentro de um ponto cego. O governo estava em Brasília, cercadinho por forças que compreendiam a situação melhor do que ele e, portanto, o conseguiam manipular. Portanto, na análise de qualquer situação político-militar o horizonte de consciência é uma coisa básica. Ora, a análise do horizonte de consciência tem o seguinte problema: só se consegue mapear um horizonte de consciência que é menor do que o seu. Portanto, isso já coloca para o estudioso de ciência política este desafio: o sujeito tem de estar mais consciente do que os personagens que ele está estudando – isso é básico. E isso implica não somente um horizonte de informações mais amplo, mas uma capacidade de integração dos conhecimentos maior. Por quê? Ou na guerra ou no conflito político, todos os elementos, todas as correntes de causa, atuam ao mesmo tempo, e o sujeito não sabe qual delas que vai predominar. Portanto, tem de ter uma visão suficiente dos fatores econômicos, sociais, políticos, culturais, religiosos, morais, psicológicos, etc., e conseguir ver essa sociedade como um todo, sem cair no negócio organicista – que eu expliquei na semana passada. Tem de entender que esses fatores não estão ligados uns aos outros como os órgãos de um corpo humano, de um corpo animal; eles não têm esta coerência. Estes são apenas uma simultaneidade e uma interação. Justamente porque não há uma ligação orgânica, a relação entre eles pode ser enormemente variada, quer dizer, o peso relativo desses vários fatores pode mudar. Isto é, num certo momento os fatos de ordem econômica podem predominar e passar adiante e determinar todos os outros, mas em outros momentos pode haver fatos de ordem psicológica e, às vezes, até fatos fortuitos, que podem exercer uma influência determinante no curso dos acontecimentos. A interação desses vários fatores, como não é de natureza orgânica, e sim, [por assim dizer], da natureza de um somatório, de um paralelogramo de forças, todos esses fatores, todas essas linhas causais, sempre têm de ser levadas em consideração ao mesmo tempo e continuamente serem reavaliadas. Isso vai fazer da filosofia e da ciência política uma área absolutamente fascinante, porque é como se fosse um jogo de xadrez com milhões de peças, de agentes. E, no entanto, a atuação dessas milhões de peças também está limitada pelo fato de que o conhecimento disponível a cada momento é limitado. O conhecimento disponível para toda a sociedade também é limitado e em alguns casos é tão limitado que um indivíduo, se quiser, pode subir acima disso e enxergar mais do que a sociedade inteira – isso é perfeitamente possível, e aconteceu no Brasil. Graças a isso ser possível, também é possível que a ciência política, em certos momentos, consiga mapear o campo de forças com muito mais clareza do que os próprios agentes têm no momento. Foi justamente nesta linha de análise que eu trabalhei ao longo de todo esse tempo. Eu queria saber qual A primeira é a seguinte, nós temos de traçar o horizonte de consciência de todos os agentes que se apresentaram ao longo da história brasileira. Os agentes considerados individualmente quando forem pessoas de grande gênio e grande capacidade como, por exemplo, Joaquim Nabuco, que foi um líder da campanha abolicionista; e em grupo quando forem agentes mais anônimos, que contam mais pelo número e pela ação repetida do que por outra coisa. Isso foi feito? Não, nunca foi feito, mapear o horizonte de consciência dos grupos agentes nunca foi feito. A pergunta seria essa: pega os vários agentes, por exemplo, os fundadores do império, os propagandistas republicanos, os fundadores da República, os líderes da revolução de 30, de 64 (...) até hoje, vai pegando todos eles, e perguntar pelo horizonte de consciência e pelo limite do horizonte de consciência. A pergunta é muito simples, o que esses camaradas não sabiam, mas que era essencial para o que eles queriam fazer? É uma espécie de história negativa, história da ignorância – uma proposta, um modelo de Jean Fourastié. As coisas que se descobre nesse caminho são absolutamente assombrosas, porque se pode tomar como regra geral que, ao longo da história brasileira, todos os agentes tinham um horizonte de consciência muito limitado. Ou seja, todos eles ignoravam elementos essenciais que eles precisariam saber para fazer aquilo que queriam fazer, todos eles, sem exceção. Então, em geral, há um baixo nível de consciência e isto é uma constante na história brasileira, ainda hoje. Se vocês compararem isso com grupos agentes de outros países, vocês ficarão abismados com a diferença. Um elemento interessantíssimo é o que foi assinalado por um autor comunista, Roberto Schwartz, que diz que os fundadores do império brasileiro (portanto, os homens da Independência) eram todos senhores de terra. Portanto, do ponto de vista marxista, eles tinham um interesse de classe muito claro e muito determinado, que era a manutenção da antiga estrutura. Esta não era propriamente feudal, como demonstrou outro autor comunista, o Jacob Gorender, no livro O Escravismo Colonial, que é um dos grandes livros da história brasileira. O Jacob Gorender demonstrou demostrou que o sistema brasileiro não era um sistema feudal; ele era menos baseado na posse da terra do que na posse de escravos. E, o Brasil foi o maior comerciante de escravos, o país mais escravagista do Ocidente — comparado com os árabes foi nada, mas no Ocidente foi o grande escravagista. Toda a economia brasileira era baseada na mão de obra escrava. Notem, no feudalismo isso nunca aconteceu. No feudalismo, aliás, não havia escravidão. No feudalismo havia a servidão da gleba, que era uma coisa completamente diferente. Porque, por exemplo, o servo da gleba legava aos seus filhos a terra que ele tinha; ele não podia vendê-la, mas continuava sendo dele, e os seus filhos tinham direito à herança. Os escravos, no antigo meio romano, não tinham família, eles procriavam coletivamente. Juntava todo o mundo, todo mundo comia todo mundo e daí ninguém sabia de quem eram os filhos. Então, não havia naturalmente o direito de herança. Graças a uma luta de séculos, desenvolvida pela Igreja, se transmutou a escravidão na servidão da gleba, onde os antigos escravos já podiam constituir família, legar os seus bens etc. É claro que isso foi uma modificação profunda na história europeia. No Brasil nós nunca tivemos a servidão da gleba, nós tínhamos a escravidão pura e simples. Eu me lembro de ter lido no antigo Pasquim, que era um jornalzinho admirável, uma entrevista feita com um senhor negro, que já estava com mais de 100 anos de idade, que tinha o emprego de reprodutor. Era um negão alto, forte, bonito, saudável e a função dele era ir de fazenda em fazenda comer as mocinhas para fazer filhos. Ou seja, a situação do escravo no Brasil se parecia muito mais com a do escravo romano do que com a do servo da gleba. Então, falar em feudalismo é um nonsense completo. Segundo Jacob Gorender – e ele está 100% certo – o regime colonial brasileiro não era um feudalismo, era o que ele chamou de escravismo colonial. E os líderes do movimento da independência (portanto os fundadores do Império) eram todos senhores de terra, portanto senhores de escravos que viviam do escravismo colonial. Muito bem, a que eles apelaram para fazer a justificativa ideológica da independência e, portanto, da fundação do Império? Ao discurso da moda, que era o discurso da revolução francesa, que era um discurso contra eles mesmos; mas serviu. Então você vê toda aquela gente falando em termos de democracia, de liberdade, etc., um discurso totalmente deslocado da sua situação econômica real deles e do papel efetivo que eles tinham na realidade da sociedade brasileira. Este deslocamento entre o discurso e a situação é outro elemento estrutural da história brasileira: nós observamos isso na ação de quase todos os agentes, quer dizer, junto com um horizonte de consciência limitado se tem este hiato, este descompasso, entre a ação real e o discurso que o justifica. Por exemplo, eu citei na aula passada o discurso do senador (ou deputado?) ???, em que ele faz uma defesa do escravismo de maneira muito nobre e elevada. Você não encontrará isso no Brasil. Nenhum escravagista acreditava no escravismo. E acreditavam no contrário? Também não. Isso quer dizer que o discurso é escolhido em função daquilo que se acha que vai soar bem no ouvido das pessoas. Ou seja, esse elemento de fingimento é uma constante na história política nacional. Ora, mas se as suas ações são justificadas na base do fingimento, eu pergunto: qual é a possibilidade que um sujeito tem de montar aqui um discurso fingido só para a publicidade e ter, secretamente, por dentro outro discurso racional, organizado e que expresse exatamente o que ele vai fazer? Só se for um gênio ou um grupo muito organizado. Em geral, o próprio agente se confunde pelo seu discurso auto-justificador e, portanto, não pode agir de maneira eficiente. Quando você vê a longa sucessão de fracassos em grandes planos governamentais, que às vezes dão resultados opostos ao que pretendiam – começa por aí. Este elemento teatral da conduta brasileira tem efeitos materiais portentosos. Existe algum estudo sobre isso? Não. Inclusive a sugestão do Schwartz, que é muito boa, caiu no vazio. Ninguém prosseguiu aquilo. E se prosseguiu tentou prosseguir na base do marxismo mais vulgar e bobo, buscando explicar tudo pela posse dos meios de produção. Quando na realidade o próprio Roberto Schwartz ouviu o galo cantar, mas não sabia onde, porque ele também explicou este fenômeno em termos marxistas tradicionais; eu acabo de dizer que ela, a propriedade dos meios de produção, por si mesma não explica nada, porque ela tem de ser explicada por um fator mais básico. Mais material, por assim dizer. Afinal de contas, o que é propriedade? Propriedade é um elemento jurídico. A propriedade não é uma coisa física. Se você disser: “Ah, o sujeito tem um latifúndio de não sei quantos milhões de quilômetros quadrados”. Ora, como ele tem? Ele segura na mão, ele está lá o tempo todo? Eu me lembro de uma vez em que visitei um latifundiário em Goiás – se você andasse o dia inteiro de jipe o terreno dele não acabava. Então, é claro que ele não tinha o menor controle de tudo aquilo. Tanto ele não tinha controle que eu vou dizer o que aconteceu: deram um casal de porcos para ele e o casal de porcos começou a proliferar, e proliferar (...), de modo que todo o território do terreno por onde você andava estava cheio de porcos; e era tanto porco que ele não conseguia cercar os porcos. O que ele fez? Cercou a casa dele. Ele se pôs no chiqueiro e os porcos ficaram em volta. Então você vê que o controle material que ele tinha de sua propriedade era quase nulo, mas existe um controle jurídico, um direito. O que é um direito? É a obrigação de um terceiro. Se um terceiro aceita esta obrigação, ele reconhece o seu direito. Então é claro que é um elemento totalmente abstrato, que só existe no papel; não é um elemento material. Mas como Karl Marx diz que ele é materialista se ele acredita que tudo é decidido pela propriedade, que é um elemento puramente abstrato, puramente mental? Materialista sou eu, ora. Então nós temos de procurar por baixo da diferenciação do sistema de propriedades qual é o elemento efetivamente material, concreto, que está ali presente. Por exemplo, a propriedade é um elemento abstrato, mas o conhecimento não é; o conhecimento é um poder efetivo que o sujeito tem, aonde ele vai ele carrega aquilo. O conhecimento é algo como a força física, ela está onde você está, você não pode estar aqui e bater no outro neguinho lá na esquina. O conhecimento também é a mesma coisa: ele só será ativo onde você estiver agindo pessoalmente. O estudo deste elemento – o do fingimento no Brasil – eu comecei a ficar impressionado com isso a partir do livro do Roberto Schwartz, que eu li nem lembra quando. Eu vi e pensei: isso aqui tem de ser aprofundado, é uma ideia genial. Mas como isso funciona? Muito mais tarde eu li no livro do Conde Hernann von Keyserling, [1:00] Meditações Sul-Americanas, um depoimento que para mim foi um estalo. Ele esteve no Brasil e disse: a elite brasileira é diferente de todas no mundo; porque no mundo inteiro, eu vi que quando as pessoas fingiam ser alguma coisa é porque elas queriam ser aquela coisa, queriam se tornar aquela coisa – por exemplo, estavam copiando Abraham Lincoln ou Winston Churchill porque queriam ser um ou outro – mas no Brasil não é assim, as pessoas se contentam com a imitação enquanto tal. [Ou seja,] eles não querem ser aquilo que eles imitam, querem ser bons imitadores. A ideia de ser um bom imitador vem da ilusão de você controlar a situação pelo fingimento; controlar tudo pela mentira. Como é que sem este fator nós conseguiríamos explicar o fenômeno “PT”? Nunca. Em vão vocês e procurem uma história do fingimento brasileiro. Ora, duas pessoas tão diferentes quanto o Roberto Schwartz e o Conde Hermann von Keyserling – que era um homem rico e viajava o mundo inteiro estudando um pouquinho sobre cada país –, quando esses dois caras começam a ver a mesma coisa é porque essa coisa provavelmente existe; é importante e precisa ser estudada. Então, o estudo desse elemento de fingimento na política brasileira, eu acho, é o fenômeno decisivo. Porque é o fator mais constante; isso nunca mudou. Hoje mesmo eu fiz uma notinha dizendo: Vocês já repararam que, no Brasil, todo o mundo que diz qualquer coisa o faz em nome do estado democrático de direito? Bom, procure outros agentes históricos. Você vai ver Mussolini defendendo o estado democrático de direito? Não, ele falava contra a democracia porque ele queria um regime ditatorial fascista, o estado fascista. Na obra do grande teórico do fascismo, Giovanni Gentile, ele diz claramente: “nós queremos um estado autoritário, o estado tem de estar acima de todo o mundo, os seres humanos são apenas subprodutos do estado e o estado tem de mandar em tudo”. Se fosse um fascista brasileiro chamaria de estado democrático de direito. Notem, da Dilma até o Reinaldo Azevedo, o Villa, todos estão defendendo o estado democrático de direito. Quem não percebe que isso faz parte do elemento estrutural brasileiro de fingimento? E quem é que, depois dessa explicação, não perceberá “opa, sem entender isso nós não vamos entender nada do que está acontecendo”? Estão compreendendo em que sentido foi se dirigindo, ao longo dos anos, o meu tipo de análise? Eu parto do princípio de que todos os agentes são seres humanos como eu, portanto têm uma psique que funciona mais ou menos do mesmo jeito. E o que aconteceria a mim se eu começasse a levar adiante esse discurso fingido? Eu teria de ter três discursos: um que eu apresento para uma plateia, outro que eu apresento para os meus parceiros que vão agir realmente junto comigo e um terceiro para mim mesmo. Quem consegue fazer isto? Tente fazer. Eu conheci um sujeito que tinha quatro amantes; ele era casado com uma mulher e tinha mais três. Aquilo durou certo tempo, mas houve uma hora em que todas descobriram e foi uma desgraça. Ele era um homem muitíssimo inteligente, era um escritor, um negão bonitão, bem afeiçoado, bem falante, mas ele não conseguiu manter essa pluralidade de discursos; não deu. Se você tiver uma amante já vai se atrapalhar. Você conhece algum caso de um sujeito que teve uma amante secreta durante a vida inteira? Eu não conheço nenhum caso. Portanto, vemos que o fingimento requer muito mais investimento intelectual do que a vida sincera. Vocês nunca mentiram na vida? Eu já menti. Quando adolescente eu era um mentiroso, acho que desde criança. Eu inventava cada coisa doida. Uma vez eu inventei que tinha descoberto um túnel que ia da minha casa até a Praça da Sé e consegui enganar o meu irmão, ele ficou lá cavando para achar, e eu rindo. Mas quanto tempo durou o fingimento? Dez minutos, logo fui descoberto. O Gugu Eu recomento muito os vídeos de um sujeito chamado Mike Beliveau, que é o especialista em armas de pólvora negra, as armas que se usava antigamente na Guerra Civil, etc., porque ele vai mostrando cada arma. Ele explica a origem da arma, como era o funcionamento e em seguida testa a arma para você ver como funciona. Outro que faz a mesma coisa, mas com armas modernas, chama-se Hickok45. São excelentes, os caras realmente conhecem o negócio. Agora, são centenas de vídeos. Você tem de ver um por um para saber como cada arma funciona. O que eu posso fazer é depois no curso normal do seminário, o COF, é selecionar alguns livros e mostrar para vocês. Mas de cara o que me ocorre são os vídeos. Aluno: Antes de mais nada parabéns pelo conteúdo, é a primeira vez que estou fazendo um curso com o senhor e estou muito entusiasmado... Olavo: Obrigado. Aluno: ...essa situação estrutural de fingimento pode ser atribuída diretamente ao marxismo em sua concepção, uma vez que o próprio Marx viveu e pensou uma teoria alheia à própria ideia que ele gerou? Olavo: Bom, em primeiro lugar não vamos confundir o fenômeno do fingimento em geral com o do fingimento nacional e particular – que é uma situação muito peculiar – com a paralaxe cognitiva. Uma coisa não tem nada que ver com a outra. A paralaxe cognitiva pressupõe a honestidade do agente. E a paralaxe cognitiva só acontece na filosofia, é um fenômeno especificamente da história da filosofia, não pode ser transposto. Só se pode falar em paralaxe cognitiva quando você tem um corpo doutrinal pronto. Por exemplo, a obra de Kant, a obra de Marx etc. Meras opiniões soltas e opiniões de política não entram na categoria de paralaxe. Pode entrar na do fingimento em geral, mas o fingimento brasileiro tem características peculiares que eu vou explicar nas próximas aulas. Então é claro que não pode ser atribuído ao marxismo, mesmo porque é anterior ao marxismo. Você já observa isso claramente na própria independência brasileira. E também não houve um conhecimento do marxismo no Brasil até, eu acho, antes de 1910. Aluno: Existe algum livro de história do Brasil em que se possa ter uma visão menos alienada dessas situações? Olavo: Eu acho que não, eu nunca encontrei nenhum. Onde eu busco documentos dessa coisa do fingimento é na História da Inteligência Brasileira, do Wilson Martins, porque ele vai acompanhando ano por ano os livros que foram publicados e você vê a circulação das ideias. E evidentemente 80% das ideias que estão ali são apenas ideias esquisitas, absolutamente despropositadas, totalmente fora do contexto, meras esquisitices e assim por diante. Ali você tem uma documentação enorme, mas note bem, o Wilson Martins não está fazendo uma história do fingimento brasileiro, muito menos uma análise política baseada nisto. Ele está apenas documentando os livros publicados. Eu espero que saia daqui algum historiador capacitado a fazer uma história psicológica do Brasil. Nem uma história psicológica existe. Por exemplo, o Gilberto Freire fez alguma coisa com relação à história psicológica do Brasil colônia, depois o começo da República, mas o ponto de vista dele é muito limitado; ele está interessado apenas em alguns fenômenos. E eu acho que precisaria fazer uma história da mente brasileira. Mas em certos períodos vocês vão encontrar dificuldades imensas. Dos últimos quarenta anos não se tem documento. Praticamente você tem de lidar com os fatos brutos. Por exemplo, você pode pegar vídeos – eu mesmo citei vídeos sobre essa violência brutal que a gente vê hoje nas escolas, juntando vinte para bater em um e outras coisas desse tipo; quanto a isso nós temos este material bruto. Mas o material já depurado, aquele com que o historiador geralmente lida – romances, peças de teatro, ensaios, estudos monográficos –, nós não temos. Então é uma dificuldade imensa, mas eu espero que as pessoas continuem se formando, se preparando, para um dia nós fazermos estas coisas. Aluno: Os elementos da ciência política ajustam-se ao caso da sociologia como ferramenta de contaminação do pensamento técnico de gestores e operadores de polícia? Olavo: Sem sombra de dúvida. Note, se nós todos estamos operando em cima de um quadro muito mal conhecido, muito nebuloso, muito caótico, sobre o qual nós temos um domínio intelectual muito precário, os operadores de polícia não são exceções, eles são gente que nem nós e estão com o mesmo problema. Ninguém está sabendo exatamente onde está pisando. E, neste ambiente, quanto menos segurança se tem, mais se tende a criar uma falsa segurança na base da reiteração histérica de afirmações. Sempre tem um sentido hiperbólico... Vocês se lembram de quando caiu o Collor? Por todo lado você via manifestações patrióticas, todo o mundo batendo no peito, aquilo era o resgate da nacionalidade, agora seria o império da moralidade; todo o mundo falou isso. Só eu que disse – baseado na Operação Mãos Limpas, que foi um truque do Partido Comunista na Itália: “Vocês estão querendo imitar a Operação Mãos Limpas, que é investigar todo o mundo, menos o Partido Comunista”. Então a Operação Mãos Limpas nunca passou de uma propaganda de sabonete. Então, pegaram uma farsa italiana e a copiaram no Brasil, já é uma farsa elevada à segunda potência. Então é claro que esse resgate da moralidade não vai acontecer, a corrupção vai piorar. Tudo isso eu disse no tempo do Collor, porque para mim era óbvio, eu já estava estudando esse negócio do fingimento naquela época. Do mesmo modo, agora que teve o impeachment está todo o mundo batendo no peito: “É o resgate da nacionalidade” – meu Deus do céu! Vamos ver o que aconteceu realmente. O que aconteceu realmente foi o seguinte: nós tivemos uma eleição que foi totalmente fraudulenta. Eu pergunto a vocês, quantos eleitores brasileiros, em 2014, votaram sabendo que a apuração seria secreta? Nenhum foi informado. Todos foram enganados, ludibriados. Todos acreditaram que a apuração seria normal como sempre, todo o mundo teria acesso, seria transparente. E daí vem o golpe na última hora: só vinte e três pessoas teriam acesso [à apuração] e chefiadas por um homem do PT. Aluno presente: Secreta e inalditável. Olavo: Secreta e inalditável, absolutamente inalditável. Quem votou consciente disto? Então a eleição foi fraudulenta na base. Mesmo se nenhum voto foi falsificado o sistema era fraudulento, não podia ser aceito. Então o candidato “derrotado”, o seu Aécio Neves, tinha a obrigação de exigir a anulação das eleições e a realização de uma nova eleição com a eleição transparente. Isso que ele tinha a obrigação de fazer. Quando ele deu para trás, apareceram os que deram para trás junto com ele e vieram com aquela conversa: “Nós temos de resolver dentro do sistema institucional do estado democrático de direito etc.” – ou seja, temos de passar para a mão da classe política, a qual não vai anular as eleições, não vai realizar novas eleições, vai adiar, adiar e adiar o máximo que puder e no fim vai dar, no máximo, a cabeça da Dilma numa bandeja; vai demorar, vai ser difícil, e essa cabeça terá de ser arrancada a fórceps. Enquanto que tudo podia ter sido resolvido já em março de 2015. Com aquela pressão popular, aquele monstruoso apoio popular, o maior da nossa história, precisaria surgir um líder ali que fizesse a reivindicação efetiva: anulação da eleição já, realização de novas eleições já – isso é o que tinha de ser exigido. O pessoal saiu protestando, mas sem levantar nenhuma bandeira específica. Então surgem duas bandeiras absolutamente alienadas: a primeira é a intervenção militar; os caras pedindo para os milicos intervirem. Ora, mas você conversou com os milicos, você perguntou para eles se eles querem? Isso é a mesma coisa que você ficar na arquibancada torcendo para que o jogador faça isso ou faça aquilo, quando ele nem está ouvindo você falar. Então, ninguém consultou os milicos. E tem outra coisa, se houver intervenção militar tem de ter o elemento surpresa, mas vocês já acabaram com o elemento surpresa. Então, se vocês querem intervenção militar, vocês já a estão boicotando desde já com todo este falatório. Em segundo lugar, nem pararam para pensar em – suponhamos que haja uma intervenção militar, que teremos um governo militar – como este governo militar vai se virar perante o mundo? Você tem uma estratégia para lidar com a pressão internacional em seguida? Não. Nem penaram nisso. “Queremos intervenção militar e não interessa o que vai acontecer depois” – totalmente alienado. E o próprio pessoal do impeachment. O primeiro cara que falou em impeachment, eu disse: o impeachment é justo, tem de tirar a mulher daí, só que, se você pede o impeachment, você está legitimando a eleição fraudulenta. Porque você não pode fazer um impeachment de um usurpador, de quem não é presidente da República. Então o que nós temos de fazer é negar que ela seja presidente da República desde já. Mas preferiram o impeachment. Por quê? Porque se houvesse a reivindicação efetiva, isso seria a desmoralização de toda a classe política. O agente verdadeiro seria o povo e os líderes dele – mas tem os interesses da classe política. Notem, jornalista no Brasil: o número dos que recebem dinheiro de partido é muito grande. A mim já vieram oferecer [dinheiro], o pessoal do PFL veio me oferecer dinheiro para eu escrever a favor deles. Eu respondi: “Se vocês fizerem a coisa certa, eu escrevo a favor de vocês de graça, se fizerem errado eu escrevo contra, também de graça; eu já tenho o meu salário que é pago pelo jornal, pronto, acabou”. Agora, jornalista ganha muito pouco, para complementar o orçamento sempre aparece uma coisinha assim e então a pessoa acaba defendendo. Quando você vê um estilo muito grandiloquente – “O estado democrático de direto...” — pode ter certeza que tem dinheiro por baixo. – é batata, isso aí é inevitável; eu conheço a classe jornalística há muito tempo e sei como as coisas funcionam. Este emocionalismo barato faz parte do fingimento. E não é fazendo um fingimento anti-Dilma que nós vamos corrigir este país. “Ah, vamos acabar com a corrupção” – mas espera aí, quem não sabe que pelo menos 50% dos que votaram a favor do impeachment votaram para ver se eles mesmos escapam das investigações? Aliás, este era o único problema: “Como fazemos para escapar das investigações?” Tem dois jeitos: apostamos no PT, aceitamos o dinheiro do PT e daí o PT fica lá em cima e nós ficamos em paz; ou “ah, o PT vai cair, então é melhor a gente apostar do outro lado” – este foi o critério de 80% dos votos. Desses 80%, 40% preferiram apostar na continuação do sistema e 40%, vendo a queda do sistema, decidiram apostar no outro lado para se salvar. Este foi o critério único. Quem não sabe que foi assim? E quem acha que este é um bom jeito de acabar com a corrupção? São loucos. Daí vem esse boboca, amador, esse coitado do Reinaldo Azevedo, que deve estar gagá, que durante muitos anos ele fez um bom serviço, mas de repente começa a ir acima das chinelas, falar de coisas que ele não entende e dizer: “O impeachment era o caminho certo.” Mas o impeachment foi um adiamento, gente. Conseguiu adiar por um ano. Agora, imagine o dano que o PT fez para o país durante este ano. Era para cair no dia seguinte, com a pressão popular exigindo novas eleições imediatamente. Se houvesse um líder com cabeça e com coragem teria feito [1:30] isso. Este líder tinha de ser o Aécio Neves, mas ele também tinha rabo preso. Então nós temos todo o problema do fingimento: você tem o falso herói, levantando uma falsa bandeira, fingindo que quer ganhar uma eleição, mas na verdade ele quer perder – foi isso que aconteceu. É sempre assim: mais fingimento para consertar o fingimento anterior – assim não dá, gente. Isto é um processo neurótico. O neurótico troca de mentira. Isto é doença. E é isso que nós temos de cortar. Uma coisa é a mentira política normal. Isto existe em toda política do mundo, todo o mundo mente. Mas não tem um sistema total de fingimento. Você não tem personagens que são inteiramente fingidos. Aqui nos Estados Unidos o primeiro foi Barack Obama, você não vê nenhum caso anterior. Você vê políticos que mentem aqui e mentem ali. Mas um sujeito que mente na sua própria identidade? Nunca houve antes. Porém, no Brasil são muitos. Então quanto a ideia do impeachment, é claro, eu nunca fui contra. Mas ele é a alternativa número 15 ou 16. Agora, os caras diziam: “O impeachment é só o começo”. Mas o começo não era em março de 2015? Por que adiar o começo em mais de um ano? Por que fazer uma volta toda? “Ah, primeiro isso pronto para que amanhã ou depois algum estudioso possa trabalhar esse material” – se ninguém quiser fazer este servicinho humilde, não vai acontecer nada. Aluno: É possível perceber, seja em discurso político seja na produção literária cultural brasileira, esse estrato de fingimento cultural e diferencia-lo de um período posterior quando este já estava com uma parcela de psicopatologia? Olavo: Sem sombra de dúvida. Eu não acredito que o tipo psicopático predominasse na política brasileira até os anos 60. A introdução da psicopatia na política brasileira a partir daí é obra da esquerda, sem dúvida. Tipos absolutamente amorais, como Lula e Dilma, não tinha nenhum. Veja, Getúlio Vargas era um homem mau. Consta que ele matou um índio quando era adolescente. Sob muitos aspectos era um homem mau. Quando pressionado pela população, ao ver a população revoltada, o que ele fez? Se matou. A vergonha foi tanta que se matou. E a Dilma? Vocês esperam que a Dilma renuncie, que ela se mate? Não! É impérvia, é uma cara de pau total, cínica. Ou seja, ela é uma psicopata, muito mais do que o Getúlio jamais poderia ter sido. Ele [Getúlio] podia ser moralmente insensível em certos pontos, mas não na sua totalidade. Veja, quando aparece um tipo como Zé Dirceu, que se casa com a mulher sob falsa identidade, que fica com ela anos a fio e depois diz “tchau, eu vou embora, sou o Zé Dirceu, não sou esse com quem você casou” – precisa de algo mais para dizer que é um psicopata? Como você vai confiar num sujeito desses? Um sujeito que diz que é ex-agente do serviço secreto militar cubano. É ex? Como que ele fez para sair, meu Deus do Céu? Me mostra a certidão de baixa. Não tem. Saiu coisíssima nenhuma, o homem é agente do serviço secreto cubano até hoje. Ou seja, é uma vida inteira de fingimento deliberado – isso não é fingimento histérico, mas deliberado, aí se entra na psicopatia mesmo. Esses tipos começaram a aparecer uns atrás dos outros. Marco Aurélio Garcia, Gilberto Carvalho... Então a introdução da psicopatia no Brasil foi a partir da radicalização das coisas, depois [da instituição] do governo militar, já dentro do governo militar é que a coisa já começa a acontecer. Aluno: Existem personagens históricos que o senhor estudou e que tinham esses discursos duplos, triplos, somente evidenciado após esse estudo? Olavo: A história da URSS é isso, o tempo todo. Só que no caso soviético não há, entre seus grandes dirigentes, um fingimento histérico, mas um fingimento psicopático total, estudado, controlado, obra de engenharia – isto você tem o tempo todo. A vida de Stálin é isto o tempo todo. A vida do Krushev [também]. Por que ele denunciou Stálin? Ele denunciou Stálin assim como metade do parlamento votou contra a Dilma: para se limpar na sujeira do outro. É claro que é isto. Bom eu acho que por hoje é só, né. Voltamos na semana que vem. Alguns desses assuntos dessas perguntas eu vou retomar de uma maneira mais ordenada. Mas vejam: vocês estão tomando consciência de como e até que ponto nós ignoramos a situação real? Vocês estão tendo uma ideia do déficit de informação que tem? É uma coisa monstruosa. E vocês têm ideia do número de pessoas que querem intervir e agir sem saber o que está acontecendo? E do número de pessoas que têm opinião formada, o número de vezes que bateram no peito dizendo que o país estava a salvo. Estava a salvo do comunismo na data tal. Estava a salvo da ditadura na data tal. Estava a salvo da corrupção na data tal. E, no entanto, tudo continua. Eu sei o seguinte: o destino que eu escolhi foi este: eu quero saber o que está acontecendo e vou documentar. Se eu explicar e ninguém acreditar, problema deles. Eu não ligo. O que eu quero é fazer o meu serviço. Eu gosto de fazer isso. Fazer isso me deixa feliz, mesmo que ninguém preste atenção. O simples fato de eu ter conseguido entender já é alguma coisa. O entendimento das situações é um reconforto que prova a superioridade da inteligência humana. “Eu não sou um mosquitinho, não sou um feixe de reflexos condicionados, não sou um cachorrinho de Pavlov, eu sou um ser humano e estou exercendo a inteligência humana na medida em que Deus me deu, com o máximo do que eu posso” – isso já é uma satisfação, um orgulho, uma superioridade real e é uma demonstração da liberdade humana. Tudo isto é bom. Obter uma repercussão disso é bom, para quem se deu a repercussão. Você leu Olavo de Carvalho e aprendeu alguma coisa? Bom para você, meu filho. Para mim também é um pouco bom, mas não é tão bom quanto o trabalho em si. É um caso em que o trabalho vale mais do que sua própria recompensa, seja em dinheiro, em audiência etc. Eu fico muito feliz por ter toda essa audiência, porque prova que os brasileiros não são imbecis. Agora, o pessoal de mídia, os opinadores, os líderes, são todos imbecis. O Reinaldo Azevedo é imbecil, o Villa é imbecil, Kim Kataguiri é imbecil, Ostermann é imbecil, todo esse pessoal do parlamento é imbecil. Vocês viram os discursos deles? Que coisa mais ridícula. Todo o mundo ali batendo no peito, querendo ser grandiloquente e sendo apenas ridículos. Não se vê um presidente americano fazendo isto. Vemos eles falando simples, como um sujeito fala com os amigos, todos são assim. Hoje mesmo chegou esse livro aqui – eu ainda não li ainda: African Game Trails (Trilhas de Caça na África), Theodore Roosevelt. Você é capaz de imaginar um presidente brasileiro matando um elefante? Ele viu o elefante ele já está correndo, já está lá em Vila Nhocunhé. O elefante ‘tá na Bahia e ele já ‘tá lá em Vila Nhocunhé. Então, é uma diferença monstruosa de qualidade humana. Por exemplo, Theodore Roosevelt era um excelente escritor, um ensaísta, um literato. Um homem sério. Você pode divergir da política dele em mil coisas, mas é uma divergência política e não um abismo de diferença de qualidade humana. Aluno: Churchill. Olavo: Churchill é um dos grandes escritores do século XX. Vejam, eu estudei a vida do Lincoln e eu acho que a vida política dele foi uma sucessão de erros monstruosos. Não precisava ter guerra civil, não precisava ter nada disso. Ele era um cara doutrinário, ele tinha lido o tal do List, o homem da economia autárquica, ele era um protecionista 100% – eu não sou contra o protecionismo doutrinariamente, também não sou liberal doutrinário; eu acho que quando deve haver protecionismo tem que ter e quando não for preciso não deve ter. Depois de ler os dois livros do DiLorenzo a respeito do Lincoln eu falei “arrasador, o Lincoln era biruta”. Mas, ele foi um dos grandes escritores da língua inglesa de todos os tempos, não se pode negar isto aí. Ele era um gênio. Era maluco, mas era um gênio. Eu não acredito que fosse um santo, como os caras dizem. De santo ele não tinha nada, sob muitos aspectos ele era um homem mau. Mas era de uma eloquência literária fora do comum, tanto quanto o Churchill. Nós temos de reconhecer. Bom, vocês conhecem algum governante brasileiro que é um clássico da língua? Clássico da língua foi só Getúlio Vargas, que foi o sujeito que conseguiu escrever cinco volumes de discurso que até hoje ninguém sabe o que ele disse lá, esta era a especialidade [dele]: falar, falar, falar, e não dizer nada, absolutamente nada. Mas isto era uma arte que ele fazia e fazia de propósito, ele sabia o que estava fazendo, mas ele não queria que ninguém soubesse, então ele embromava. É o gênio da “embromation”. Aluno: E o Lacerda. Olavo: O Lacerda é o melhorzinho, mas não é um clássico da língua. Ele é um bom escritor e pronto, acabou. Não vai passar daí. José Américo de Almeida é um bom escritor, mas também não vai passar daí. Aluno: Rui Barbosa. Olavo: Rui Barbosa sim era um grande escritor, mas nunca chegou a ser um homem que efetivamente teve o poder, e na política fez muita besteira. Bom, então eu acho que por hoje é só. A mensagem fundamental é este alerta: “Nós temos de saber o que está acontecendo, meu Deus do céu! Antes de querer fazer isso ou aquilo”. Este é o apelo. Pelo amor de Deus, vamos compreender a situação. Em todo país tem de ter um número suficiente de pessoas dedicadas a compreender a situação. E deixem os tagarelas e demagogos, isto sempre vai ter. Eles têm a função deles e nós temos de cumprir a nossa. Então até semana que vem, muito obrigado. [1:51:39] Transcrição: Francisco Jr., Alex Voos e Israel Kralco Machado Revisão: Leonardo Yukio Afuso e Rahul Gusmão Isto é uma constante no Brasil, quer dizer, a civilização se limitou ao litoral e deixou o interior todo vazio. “ ...mentalmente de costas voltadas para o país. Iam mal as coisas no Brasil? Ah, isto não era com ele. Ademais, o que poderia fazer se era só contra todos?” Vejam, muito deste estado de espírito nós vemos ainda hoje, não podemos negar isto aí. “Na vida pública como na vida privada, nunca seria por sua culpa ou negligência que isto acontecia. A culpa seria sempre dos outros. E assim, recusando-se, racionalizando, contradizendo-se, não participando, reduzindo ao mínimo seus esforços físicos, espirituais e morais para o saneamento e elevação do meio em que vivia, pagando para não se incomodar quando se tratava de interesse coletivo; lisonjeando, transigindo, corrompendo, revolvendo céus e terras quando se tratasse de seus próprios interesses, ninguém como ele para contaminar o ambiente de tristeza, imoralidade, indiferença e derrotismo. Inesgotáveis como eram suas reservas de má vontade para com tudo que se referisse ao Brasil, vivia a escancarar sua simpatia para tudo quanto fosse europeu.” Vejam que essa visão idealizada que o indivíduo tinha da Europa, que ele tinha deixado pelas costas, se expressa também no desprezo não só pelo local, mas também pela América do Norte. Percebam que, no século XIX, o EUA já tinha uma civilização que em muitos aspectos era superior a tudo quanto havia na Europa. E no Brasil ninguém admitia isso, achavam que os americanos eram bárbaros. É uma coisa que ainda tem na mente de muita gente até hoje: “Se está na América não pode prestar, porque só o que é da Europa, ou Portugal, ou da França é que presta no mundo.” Muitas dessas condutas a gente ainda observa. É claro, se olharmos para o Lula ele se encaixa ali na descrição de mazombo. E muitos outros políticos também. Mas ainda assim estamos no impressionismo. Contudo, se transpomos essas informações para a noção do horizonte de consciência, o que observamos? Em primeiro lugar, o núcleo das informações que chegavam a estas pessoas era Europeu; da América elas não recebiam nada e localmente também não estavam produzindo nada. Significa que o horizonte cultural se limita àquilo que está vindo da Europa, mas o que vem da Europa não chega muito facilmente, leva meses para chegar pelos navios. Existe, portanto, aquela aspiração de uma riqueza cultural que está distante, que é de difícil acesso e que apenas uns poucos privilegiados é que podiam viajar para a Europa e ver o que estava acontecendo lá e se informar das últimas novidades. Esta situação se consolida num dos traços mais constantes da cultura brasileira e, portanto, da política brasileira. É o seguinte: o que é tido como o topo da civilização, como o valor supremo que deve ser incorporado com muita dificuldade à cultura local, é a cultura europeia, a cultura estrangeira do momento. Isto é o traço mais constante e é cientificamente comprovado. Por exemplo, se observarmos em uma bibliografia quais são os autores estrangeiros que são citados nas discussões brasileiras percebemos que são sempre os autores do momento, nunca os antigos. Quantos brasileiros citaram Leibniz a propósito de qualquer coisa? Eu, até hoje, só vi um fazer isto em discussões públicas – em teses, é claro, existem estudos especializados, uns dois ou três. Em discussões públicas quem usa esse material como moeda corrente hoje em dia? Só eu. E material de outras civilizações? Da Ásia? Do mundo islâmico? Procurem, por exemplo, citações de Ibn Khaldun, um historiador tunisino. Eu vivia citando ele, mas não o via por parte alguma. E ele é simplesmente o inventor da ciência social moderna. O inventor não foi Émile Durkheim, foi Ibn Khaldun. O desinteresse por esse material é imenso. Houve algum interesse por material estrangeiro, mas que paradoxalmente vinha da África pelo impulso de, por assim dizer, valorizar as tradições africanas que restavam no Brasil. Ora, mas essas tradições eram de ordem tribal, nunca fizeram uma contribuição científica a humanidade, não há nenhuma filosofia altamente desenvolvida – este material eles buscavam. Mas e o resto? Vocês vão encontrar pessoas no Brasil que estudaram mais culturas tribais da África do que estudaram Aristóteles e Platão. E isto, então, cria, cristaliza-se, num hábito praticamente invencível: a escravidão ao tempo, a sua época. O que eu chamei de “cronocentrismo”. O fato de algumas coisas estarem acontecendo hoje não significa que elas são mais importantes ou decisivas do que as que aconteceram antes, não há a menor prova disto aí. Elas podem nos atrair a atenção porque elas aparecem na televisão, nos debates públicos, as pessoas falam disto, mas não quer dizer que estas coisas sejam decisivas. Se vocês virem o número de autores importantíssimos, que atraíram a atenção dos brasileiros durante décadas, que foram estudados como mestres, como se fossem ensinamentos definitivos, mas que depois desapareceram para sempre – por exemplo, Augusto Comte. Comte domina o pensamento brasileiro por várias décadas. De repente aquilo desaparece e as pessoas têm até vergonha de ter prestado atenção naquilo. Outro exemplo, Ernst Haeckel. Era um discípulo meio bastardo de Darwin. Foi o sujeito que desenhou aqueles diagramas mostrando a evolução das espécies – que hoje a gente sabe que aquilo foi tudo inventado, que não existe. Teve várias edições em português que foram muito lidas no Brasil – era lido e ouvido como se fosse um mestre. Hoje em dia está na lata de lixo da história. Mas alguns não. Outros que foram lidos na época ainda são bastante respeitados, como Schopenhauer, por exemplo. Ninguém jogou Schopenhauer no lixo. Embora já não tenha o destaque que chegou a ter no meio do século XIX no Brasil. Mas outros autores que eram imensamente maiores não receberam esta atenção. Sobretudo aqueles que eram de épocas anteriores. Por exemplo, quando eu publiquei o meu livro Aristóteles em Nova Perspectiva, que foi em 95, fazia trinta anos que não saía um livro sobre Aristóteles no Brasil. Até para disfarçar um pouco o vexame, o pessoal da USP, mais que depressa, retirou da gaveta uma antiga tese do Oswaldo Porchat Pereira – a tese não estava ruim, mas era apenas escolar, não tinha novidade nenhuma – e publicaram para dizer “não é só você que está falando sobre Aristóteles”. Digo: “Eu sei que não sou só eu, mas todo mundo ‘tá falando aí em segredo, dentro de casa”. Publicamente não existe nada, não se vê um interesse efetivo por Aristóteles em todo o establishment universitário brasileiro durante trinta anos, meu Deus do céu! Vejam, enquanto isso o livro do Lincoln Secco, Gramsci e o Brasil: Gramsci foi o autor mais citado em trabalhos universitários durante trinta anos. Gramsci pode ser interessante, etc., mas ele não é um Aristóteles, não é um Leibniz, ou alguma coisa deste porte. Gramsci não fundou nenhuma ciência, não fez nenhuma contribuição a ciência alguma. Ele apenas criou uma estratégia revolucionária – que em muitos lugares fracassou. Ele não é nenhum Aristóteles, nenhum Santo Tomás de Aquino, nenhum Hegel. Mas Gramsci entra no Brasil em 1965, através da Editora Civilização Brasileira, e aparece para toda uma facção política como se fosse a salvação da lavoura. Então, automaticamente as atenções se concentram naquilo. Parece, para as pessoas envolvidas no processo, que é uma grande novidade que está acontecendo. Mas o que está acontecendo é a repetição de um mesmo padrão de horizonte de consciência que vem desde o Brasil Colônia. Ora, vejam que o característico não é tanto, vamos dizer, a idealização da Europa, não é tanto o europeísmo, ou seja, nós não podemos captar uma característica positiva efetiva e dizer que ela continua ao longo dos tempos, mas o lado negativo, a exclusão das informações, ainda continua. Mas interpretando errado o europeísmo como se fosse ele um sinal de alienação, começa a surgir a partir do romantismo e se intensifica, no começo do século XX, com o movimento modernista, a ideia de que era preciso voltar as costas a Europa e começar a pensar no panorama local. Porém, culturalmente este panorama local era pobre; não oferecia material para que se tivesse uma problemática suficientemente rica para criar uma cultura. Então, o pessoal se volta para a paisagem, para o território. Eu acho, por exemplo, interessante contrastar o poema do Raul Boop, Cobra Norato, com o livro A Selva, do Ferreira de Castro, um romancista português meio comunista, mas um gênio, que esteve um tempo na Amazônia e escreveu este livro que integra a experiência amazônica no corpo da civilização inteira. Ao passo que os autores como Gastão Cruls, Raul Boop, etc., se concentram na paisagem física, na flora e na fauna – falam de macacos, de tatus-bola. E, é claro, isto não é uma reação eficiente ao europeísmo, porque o problema não era o europeísmo. Era o cronocentrismo. Ora, quanto ao europeísmo: o que há de tão absurdo em o sujeito que está em um país primitivo, recém-descoberto, considerar que a cultura europeia é superior, enquanto que a dali é uma porcaria? Não há nada de errado nisto. É claro que é mesmo. É uma concorrência desigual. Neste sentido, os americanos, que odiavam a Europa, sempre foram buscar na Europa sua fonte de inspiração. Vocês veem os Founding Fathers citando Platão, Aristóteles, Cícero, etc., o tempo todo. Ou seja, eles tinham uma visão da Antiguidade – não como uma coisa meramente histórica ou folclórica, mas como uma fonte atual de inspiração. No Brasil não vemos isto de jeito nenhum. Só se vê o pessoal buscando inspiração na moda europeia do momento – e que em seguida é esquecido. Portanto, o europeísmo é a face externa e falsa do problema. O europeísmo era, por assim dizer, natural. O problema era o cronocentrismo, a escravidão, não a um continente, mas a um momento do tempo. Na medida em que o pessoal do romantismo – José de Alencar e outros – reage contra o europeísmo e, o pessoal modernista do século 20 também, eles estão reagindo contra um falso problema e, evidentemente, eles não acertam o alvo. O modo de se libertar de uma espécie de escravidão mental ao estrangeiro não era voltar as costas à cultura europeia e começar a prestar atenção em tatu-bolas e macacos, pelo amor de Deus, era fazer o que um único indivíduo fez, que foi o Mário Ferreira dos Santos. Era se libertar do cronocentrismo, da escravidão ao momento. Era reconhecer: “Eu estou aqui no Brasil e não pertenço à cultura europeia, embora receba um pouco dela, portanto estou livre também das limitações dela e eu posso me abrir universalmente a todas as épocas e a todos os continentes”. Isto é, tirar proveito da sua situação, ao invés de amaldiçoa-la – como faziam os mazombos – ou de forçar para louvá-la – como se estar no meio de macacos e tatus-bolas fosse um grande valor civilizacional. Ao longo de toda a história do Brasil só um sujeito pegou o truque. Ou seja, se queremos criar uma uma civilização, uma cultura, que tenha um valor universal, só tem um jeito: temos de nos aproveitar da nossa posição de marginal, de excluído da Europa, e aproveitar isto para nos libertar das próprias limitações cronocêntricas da cultura europeia, meu Deus do céu. Ou seja, eu também percebi isto e pensei: “Mas isto é uma maravilha, nós no Brasil estamos de fato numa posição privilegiada”. Nas culturas europeias há certas coisas que o sujeito não pode falar porque eles não entendem. Um exemplo que eu dou é o seguinte: quando apareceu a obra do René Guenón na Europa, por volta dos anos 20, falando da metafisica oriental, da espiritualidade islâmica, etc., aquilo era tão estranho que ninguém prestou atenção. Vejam que o homem não estava falando em nome próprio, ele estava falando em nome de uma civilização inteira que tinha ali bem do lado e que estava destinada a invadir a Europa e até ocupa-la mentalmente – como veio a acontecer depois. No entanto, se vocês procurarem menções ao René Guenón – existem estudos sobre isto, “a repercussão de René Guenón na cultura francesa” – verão que as repercussões eram muito discretas e, em geral, não foram análises profundas, foram apenas aplausos entusiásticos daqueles que se tornaram discípulos dele e se fecharam num universo guenonista quase como se fosse uma religião mesmo, ou reações de rejeição um pouco caipiras – o sujeito ficava com raiva mas não sabia o que dizer – como André Gide, por exemplo, que disse “bom, se Guenón tem razão, toda a minha obra cai por terra” e daí lhe perguntaram “mas porque você não revê tudo”, ele respondeu “é muito tarde”. Isso é uma impotência intelectual. Vejam que na Europa, o único país em que houve de fato um processamento crítico do pensamento de René Guenón foi na Romênia. Lá todo o mundo leu René Guenón em profundidade e raciocina a respeito. Mas qual é a importância do René Guenón? Ora, ele está anunciando desde a década de 30 que o Islã vai tomar conta [da Europa]. Naquela época isto parecia tão remoto, tão absurdo, que soou apenas como se fosse uma criatura exótica. Isso mostra o despreparo da cultura europeia, especificamente a francesa, para lidar com o que lhe é estranho. Isso não é eurocentrismo, quer dizer, “nós somos superiores e nós queremos impor os nossos valores em todo lugar” – a simples existência da obra de René Guenón mostra que os europeus não impuseram coisíssima alguma, que as tradições orientais continuavam perfeitamente vivas e, sob certo aspecto, tinham até algumas superioridades Uma vez, eu conversando com o Roberto Campos, nós fizemos a seguinte pergunta: “Quanto tempo demora para que uma revolução cultural se transforme numa revolução política?”. Calculamos e fechamos o negócio em cerca de trinte anos. Ora, quando entra o Gramsci no Brasil? Década de 60. Quando o PT alcança pela primeira vez o seu esplendor? Década de 90. Então, a nossa conta não está muito errada. Notem bem, tudo isto que estou lhes explicando é baseado, não na ideia de uma repetição automática de padrões de conduta, não num impressionismo baseado em personagens típicos, mas tão somente numa noção quantitativa – e na verdade quantificável – que é o horizonte de consciência. Ou seja, o que os sujeitos estavam lendo? Quais eram as ideias que circulavam? Em volta, quais as ideias importantes sobre o mesmo assunto que eles não estavam estudando? É muito simples fazer isto. Eu nunca quantifiquei porque isso não é trabalho para uma pessoa só, mas é uma noção perfeitamente quantificável, na verdade é uma noção material. Por exemplo, a partir dos anos 90 eu comecei a divulgar a lista dos livros faltantes no mercado brasileiro e uma coisa que me impressionou muito foi o tal Dicionário Crítico do Pensamento da Direita feito por 104 autores da esquerda com imensos patrocínios estatais e privados. E, ao procurar, eu não via [ali no livro] nenhum dos autores de direita que eu tinha lido. Eu só via tipos insignificantes e os mais absurdamente notórios que qualquer zé mané poderia conhecer. O que quer dizer que o horizonte inteiro do pensamento conservador, sobretudo o anglo-americano que é um oceano, é totalmente ignorado. E o que é isso? Estreitamento do horizonte de consciência. Se vocês se perguntarem: “Por que o PT caiu do muro?” – foi por causa disto. Fazia trinta anos que ele ignorava o pensamento de direita reduzindo-o àquela imagem estereotipada, caricatural, decorativa, que ele mesmo tinha inventado. Isso quer dizer que se os direitistas fossem tão idiotas quanto o PT os traçava em suas cátedras, o PT ficaria eternamente no poder. Jamais haveria essas manifestações populares, esse protesto todo, esses 95% de oposição ao governo, nada disto teria acontecido. O estreitamento do horizonte de consciência implica duas coisas: primeiro, você não conhece o seu inimigo; segundo, você não conhece a si mesmo. Você viola as duas regras do Sun Tzu. Até os anos 60 o pessoal da esquerda absorvia as outras correntes – liberal, conservadora, cristã, legalista, etc. –, havia debates públicos entre essas pessoas. A partir dos anos 60, com a noção da hegemonia, a ideia era ocupar os espaços, não deixar mais ninguém falar e fazer com que, nas palavras do Antonio Gramsci, “todo o mundo seja socialista sem saber”, até os anti-socialistas – isto de fato aconteceu. Só que isto agrava o problema do estreitamento do horizonte de consciência até um nível catastrófico. Por que a ascensão da hegemonia veio junto com a queda do nível cultural do Brasil? Veio junto com a destruição do sistema educacional, da alta cultura, com a desaparição da literatura brasileira por trinta anos? Por causa disto. Ou seja, a hegemonia estanca o debate cultural porque o reduz a uma conquista de espaços. É claro que, nesta altura, nós vemos uma baixa no nível de consciência e os problemas maiores e mais complexos se tornam absolutamente inacessíveis às mentalidades dos dois lados. Quando vemos hoje as discussões internas do PT tentando diagnosticar o que está acontecendo e tentando explicar tudo como um golpe da elite capitalista, percebemos que eles estão totalmente fora do mundo, porque a elite capitalista está maciçamente a favor deles. Agora, depois de tantas denúncias, etc., eles pegaram um pouquinho de vergonha na cara e começaram a reagir um pouco contra a corrupção, não contra o comunismo. Então, o PT está fora do mundo. E, o pessoal do outro lado também está fora do mundo. Não existe debate quando não existe uma mútua fecundação das ideias. Não há nenhum problema em ler a obra de um autor com a qual não se concorde no essencial e ser inspirado por coisas que ele sugere. Eu nem posso dizer, por exemplo, quantas ideias interessantes me vieram do livro do Jacob Gorender, o Escravismo Colonial, que é um autor mais comunista que Karl Marx. Ou mesmo do próprio livro do Caio Prado Junior, que inaugurou a guerrilha no Brasil, que é A Revolução Brasileira. Ele escreveu este livro para convencer as pessoas de que deviam apelar para a luta armada – ou seja, que a velha estratégia de aliança do Partido Comunista com a burguesia nacional não ia funcionar –, mas até isso não deixa de ter a sua verdade – “Se você quer tomar o poder, não pode ser por esse lado assim, e assim (...) tem de ser pelo outro” – tem lá a sua cota de razão. Ou seja, só é possível vocês debaterem quando se deixarem impregnar e fecundar pela ideia do adversário, quando vocês a trabalharem e a transcenderem. Se vocês se isolam dela, se afastam, se só querem vê-la à distância, sob forma reduzida, pejorativa, e caricatural, aí vocês estarão usando a política do avestruz. Então, o gramscismo no Brasil virou uma política de avestruz – “Só nós falamos, então não queremos saber o que os outros pensam. E, ignorando o pensamento da direita, aconteceu que o PT foi surpreendido de repente por uma massa popular que foi às ruas pedindo a cabeça deles.” Por outro lado, o pessoal da direita também entrou no mesmo negócio do estreitamento do horizonte de consciência. Na medida em que foram descobrindo algumas correntes de pensamento da direita – que eu mesmo fui o primeiro a mostrar por aí; é claro, não quer dizer que fui o primeiro a citá-las, mas fui o primeiro a citá-las no debate público, isto é importante; se vocês procurarem em trabalhos universitários poderão achar alguém que estudou o Burke e outros autores de direita como, por exemplo, o Djacir Menezes, que é um filósofo conservador, um grande estudioso de Hegel sob o ponto de vista conservador; ‘tá lá, mas tudo isto fica restrito. Na hora em que eu comecei a divulgar centenas e centenas de livros que estavam ignorados, naturalmente o pessoal começou a lê-los. E, quando se descobre, por exemplo, a história austríaca de economia, depositam naquilo uma esperança monstruosa. Quando o pessoal diz: “Menos Marx, Mais Mises”. Digo: “Um momento, ‘pera aí. O Mises é um grande economista, é o cara que demonstrou a impossibilidade da economia estatista socialista e, sem dúvidas, deu uma contribuição monstruosa; mas Karl Marx tem uma amplitude imensamente maior, ele era um filósofo da cultura, em primeiro lugar; segundo, tem uma interpretação da história inteira, o Mises não tem; terceiro, Marx foi o fundador da 1ª Internacional, ou seja, um líder de massas; o Mises não foi”. Então, não se pode nivelar essas duas coisas. O Mises é muito melhor do que o Marx em economia, sem sombra de dúvidas. Mas e o resto? Então, vendo a superioridade da economia capitalista, que é uma coisa óbvia – é só olhar a publicação da Heritage Foundation, o Índice de Liberdade Econômica no mundo, lá vocês veem que os países mais ricos são aqueles que têm mais liberdade econômica, isto é o mais óbvio do óbvio, nem precisa discutir. E a questão da economia estatizada o Mises matou em 1923 com o livro Socialismo, uma Análise Econômica e Sociológica, e pronto! Acabou, está enterrado! Os próprios comunistas leram aquilo e concordaram, meu Deus do Céu. Tanto concordaram que nunca mais insistiram muito na ideia da economia estatizada. Eles querem estatizar a sociedade, ter o controle da sociedade. A economia é a parte menos controlável da sociedade. Na URSS 50% da economia soviética era economia privada clandestina, o governo sabia. “É clandestino, mas se nós fecharmos vamos todos para o buraco, então deixa os caras fazerem a economia clandestina deles.” Agora, uma análise em profundidade do Antonio Gramsci eu até hoje não vi. Eu vi análises ensaísticas, como a minha própria, A Nova Era e Revolução Cultural. Foi o primeiro livro escrito no Brasil sobre Gramsci que não fosse do ponto de vista gramsciano. Depois apareceram os do general Coutinho, mais uns dois ou três, mas estamos ainda na esfera ensaística. Um estudo aprofundado sobre o Antonio Gramsci nós não temos até hoje. Pior ainda, no Brasil até hoje não temos sequer um mapeamento da esquerda nacional – quem são os personagens, quais são as organizações, em que esfera elas atuam, da onde vem o dinheiro delas, etc. Nós não temos uma visão do inimigo, temos apenas dois grupos de avestruzes, um lutando contra o outro. Nenhum quer ver o inimigo. Têm tanto horror do outro que, quando o vê, sabe o que faz? Ele cospe. Eu até anotei durante um tempo o número de pessoas que reagiam aos meus livros com sintomas físico-fisiológicos – dor de cabeça, ânsia de vômito, náuseas, um montão – é o protótipo da impotência intelectual. “O que você consegue fazer diante disto é sentir-se mal?”. Então, do mesmo modo, eu vejo pessoas que também têm náuseas diante da esquerda. Mas enquanto elas estão tendo náuseas, quem está sofrendo é elas, são elas que vão apanhar. Quem está na briga, não pode ter náuseas. Como é que a pessoa vai pegar um cara para a briga se ela tem nojo de tocar no corpo dele? Enquanto ela está assim, ele está enchendo ela de porrada. É uma coisa simples, se não existe uma certa interpenetração, uma certa promiscuidade intelectual entre a pessoa e o seu inimigo, ela nada conseguirá contra ele. Observando o Brasil desde o tempo colonial, o fenômeno do mazombo explica o porquê da sujeição dele à moda europeia do momento, pois ela representava a vida brilhante, rica, maravilhosa e variada em comparação com a vida pobre e desértica que ele tinha no meio colonial. Então, está perfeitamente explicado que eles se sentissem assim. Porém, o estreitamento do horizonte de consciência dele se propaga nas épocas seguintes onde o pessoal, na verdade, tinha acesso a muito mais informação que a Europa. Vejam, por exemplo, durante o Brasil Império era a mesma coisa. Lembro, por exemplo, do Joaquim Nabuco com o seu livro Minha Formação, que é um livro importante para o Brasil. Qual foi o autor que mais o influenciou? Walter Beckert, que era um economista, fazia análise da bolsa de valores de Londres, era muito bom nisso, mas não passava disto. Ele não era sequer um Maquiavel. E isso fez a cabeça do líder do movimento abolicionista do Brasil. Ele era líder do Partido Conservador e chefe do movimento abolicionista no Brasil. Aliás, é pouca coincidência? Quem fez o abolicionismo no Brasil? Foi o Partido Conservador. Isto mostra o estreitamento do horizonte de consciência de uma das figuras de maior destaque do Brasil Império que foi Joaquim Nabuco. Nas gerações seguintes se observa a mesma coisa. Isso é agravado pelo fato de que as instituições de cultura são muito fracas e são substituídas pela mídia. Isto se observou, sobretudo, durante o governo militar, onde o grande centro de debates não era a universidade – era a mídia. Então, a mídia passa a determinar o horizonte de consciência das universidades. Por exemplo, a Folha de São Paulo com seu suplemento “Mais!”: falam que o “Mais!” é o house organ USP, mas ao contrário, a USP é o house organ do “Mais!”. A palavra do suplemento “Mais!” cai sobre a USP como se fosse palavra de Evangelho. A mídia assumiu a dianteira na luta cultural, no debate cultural, estreitando mais ainda o horizonte de consciência. Então, qual é a solução de tudo isso? Em primeiro lugar, nós temos de nos livrar deste cronocentrismo. Eu escrevi sobre isso no meu livro O Futuro do Pensamento Brasileiro. O preconceito cronocêntrico é muito pior do que o etnocêntrico, ele limita muito mais a mente. Por exemplo, o preconceito etnocêntrico pode fechar você na civilização europeia, mas esta são trinta/quarenta países com culturas nacionais enormemente ricas, você pode viver daquilo o resto da vida; já o cronocentrismo é o que está saindo, sobretudo na mídia. Não há debate universitário fora daquilo que se fala na mídia. Então, a mídia está fazendo a cabeça da cultura superior. Nos anos 70 eu escrevi um ensaio sobre isso, chamado “Imprensa e Cultura”, mostrando que durante um tempo, a mídia, os jornais, televisão, rádio, etc., tinham sido um reflexo da cultura superior; a cultura superior se manifestava, sobretudo, através de livros, de obras mais complexas, e uma parte disso ecoava na mídia de modo a despertar nas pessoas o interesse por ter um conhecimento mais direto daquilo. Porém, a partir dos anos 70 estava acontecendo o contrário: a mídia estava delimitando o horizonte da alta cultura. E isto no Brasil aconteceu de uma maneira avassaladora. A primeira providência que nós temos de tomar é romper a camisa de força cronocêntrica – “Nós aqui no Brasil, não pertencemos exatamente à cultura europeia, nem à cultura americana, a nada; nós estamos soltos no ar”. É aquele poema do Murilo Mendes: o garoto que está sentado na rede que mil ventos diferentes a estão balançando – este é o Brasil. Mas isso é uma sorte. Nós não estamos presos a nada, podemos receber tudo, podemos incorporar todo o patrimônio da cultura universal sem privilegiar isto ou aquilo. Aluno: Como romper a camisa de força do cronocentrismo numa sociedade com perfil mazombo dominada por mídias altamente limitadoras do horizonte consciência sem se utilizar deste mesmo sistema como fizeram os esquerdistas nos últimos anos? A estratégia de quebrar essas correntes apenas com a exposição dos agentes responsáveis por essa limitação do horizonte é suficiente? Olavo: É claro que não é suficiente. Já dizia Stuart Mill: “A crítica é a função mais baixa da inteligência”. Portanto, ela que vem na frente. Mas além disso existe todo um trabalho de reinterpretação da vida brasileira inteira e do pensamento mundial inteiro. É isso que nós temos de fazer. Por exemplo, a história do Brasil, a história dos últimos quarenta anos: você desmentir meia dúzia de lendas urbanas colocadas em circulação por comunopetistas não adianta, isto é só o começo. Vejam, que a história social e política dos últimos quarenta anos transcorreu em total escuridão. Houve modificações psicológicas brutais, mas nada disso foi sequer documentado, quanto mais narrado historicamente, nada disto foi feito. Então, nós temos de começar a criar uma barreira de livros. Não são livros de polêmica, não são livros de combate, são livros que vão restaurar o conhecimento, nós temos de criar esse conhecimento pois ele simplesmente não existe. Agora, a partir da hora em que você começa a elaborar isso aí pode começar a surgir obras de ficção que reflitam isso, mas eu acho que os historiadores têm de vir em primeiro lugar; contar o que se passou. Por exemplo, existem pesquisas sobre mudanças comportamentais causadas pelas novelas da Rede Globo, mas foi uma pesquisa. Existe algum livro inteiro ou um estudo sobre isso? Não. Existe algum estudo em profundidade sobre a manipulação comportamental nas escolas? Não. Se vocês lerem o livro do Pascal Bernardin, ali tem o repertório das técnicas que são usadas, que eu não costumo chamar de doutrinação, pois doutrinação se dirige à inteligência. Doutrinação é você defender uma ideia contra outra ideia, portanto supõe um debate. E o que estão usando nas escolas são processos de mudança comportamental que não passam pela inteligência crítica, não passam pela mudança de opinião, ao contrário, muda a conduta para mudar a opinião depois retroativamente, de uma maneira, por assim dizer passiva. Não há nenhum estudo de grande escala sobre isto, nem sociológico e nem, muito menos, histórico – “O estudo do ingresso das técnicas sociocontrutivistas no Brasil: como entraram, como foram sendo aplicadas e que efeitos estão tendo?” Ninguém fez isto. Isto são no mínimo teses universitárias. Teses de doutorado, não é de mestrado. São obras de grande porte que têm de ser feitas, obras de 500/600 páginas, tudo muito bem documentado. Vejam, a produção da narrativa ainda é monopólio do pessoal petista e/ou tucano, a direita brasileira está atuando apenas na esfera do debate jornalístico. Dificilmente você vai encontrar um estudo em profundidade sobre o que quer que seja. Nem mesmo um estudo meramente documental como, por exemplo, O Imbecil Coletivo. Nem mesmo um estudo documental com aquela amplitude – o Imbecil Coletivo se prolongou, na verdade, por oito volumes. Quer dizer, tem uma descrição fenomenológica do que está acontecendo, mas ainda está na esfera descritiva, apenas. Não é um estudo narrativo, não é um estudo sociológico, não é um estudo explicativo, é feito em tom humorístico, mas com espírito descritivo, um espírito de documentar o que estava acontecendo antes que o pessoal esquecesse completamente. Se vocês forem ver os autores que estou tratando ali, as polêmicas que eu trago: tudo aquilo já foi esquecido. Se vocês perguntarem “quem é Gilberto Felisberto de Vasconcelos” ninguém mais lembra, era um polemista importante na época, se não documentasse estaria esquecido, e na hora em que você esquece a história você cai de novo, e de novo, e de novo no mesmo engodo porque vocês já não sabem que é velho. Eu estou falando só de atuação na esfera cultural, é isso que vai consolidar o poder. Vocês têm de se tornar uma autoridade no campo – não é com polêmica que vocês vão se tornar uma autoridade. Tudo isto está faltando. Um estudo em profundidade sobre a criminalidade no Brasil: não existe. Por exemplo, a sucessão de leis que foram facilitando a atuação dos criminosos. De onde veio isso? De onde esses caras tiraram essa ideia? Quais são as fontes intelectuais disso? Como foi que penetraram no Brasil? Vejam, as grandes mudanças começam em pequenos círculos intelectuais e aos poucos vão aumentando em círculos concêntricos até chegar à política, quando chega ao parlamento e vira lei – aí pronto, fechou. É um processo demorado. Quais são as fontes do nosso código do menor e do adolescente? Quais são as fontes intelectuais? De onde tiraram? Quais são as fontes da ideia de casamento gay? O pessoal não estuda isso. Por exemplo, os movimentos da esquerda americana são a matriz de tudo o que acontece no Brasil nessa área. Toda essa política sociocultural da esquerda é inspirada na esquerda americana, que ninguém está estudando, meu Deus do céu. Se vocês perguntarem “quantas pessoas no Brasil leram o livro do Saul Alinsky”: duas, três, quatro? Está tudo no Saul Alinsky. Nós ainda não estamos contando a história, nós ainda estamos permitindo que a narrativa esteja nas mãos de quem precisa falsificá-la. Por exemplo, toda esta história das torturas: bom, que houve tortura houve, deve ter havido alguma, certamente, porém nada disso está seriamente comprovado, a única prova é testemunhal – um diz que o outro foi torturado e o outro diz que o um foi torturado e os dois levam indenização. Não foi feito um estudo sério. Vou lhes dizer: todos os casos que eu averiguei eram falsos. O que não quer dizer que todos absolutamente sejam falsos. Até onde eu averiguei todos eram falsos. Não averiguei muitos, averiguei alguns em profundidade, como aqueles mencionados pelo Caco Barcelos, investiguei e cheguei à conclusão que a alegação era materialmente impossível. Em outros casos também. Então, até hoje não se fez, por exemplo, uma verdadeira comissão da verdade. Não adianta reclamar e espernear, tem de opor a narrativa a uma outra narrativa bem documentada e séria. Quando o pessoal começou a dizer que o Fome Zero havia tirado da miséria 30 milhões de brasileiros: uai, o governo militar tirou da miséria tirou 30 milhões de brasileiros. Isto foi documentado na época e não foi por causa de esmolinha, foi criando emprego. Ou seja, fizeram uma obra social muito mais digna na esfera econômica – os milicos fizeram um serviço brilhante. Também a história da ignorância militar sobre o gramscismo brasileiro: vocês sabem que o Geraldo Sérgio Coutinho morreu amargurado porque os seus colegas não entendiam o que ele estava falando. Ele escreveu dois livros sobre o Antonio Gramsci, as pessoas não prestaram atenção, não deram importância e enquanto isso a revolução cultural gramsciana ia comendo todo espaço entorno. Por que, ao longo de trinta anos de difamação e calúnia contra as FFAA, elas jamais processaram um difamador? Nem um único? Quer dizer que eles foram concedendo ao adversário o direito de agredi- los. Quando chegou àquele dia em que os estudantes sem-vergonhas pegaram os velhinhos na porta do clube militar e cuspiram em veteranos da segunda guerra, heróis nacionais, meu Deus do Céu, e não lhes aconteceu nada: isso é um efeito do estreitamento do horizonte de consciência. A classe militar não tinha compreensão do que estava se passando, via tudo por estereótipos. Por exemplo, um estereótipo: revanchismo. Será que é só revanchismo? Os caras só querem se vingar do que aconteceu? Eles não querem o poder, não? Eles não têm um esquema muito maior do que a mera revanche, no qual a revanche é um pedacinho assim? Então, é uma figura de retórica que se substitui à descrição correta dos fatos. Pode parecer reconfortante porque o sujeito está tentando depreciar o adversário quando usa este termo, mas na medida em que ele o deprecia ele está encobrindo a ação dele. Este predomínio do emocional no debate público, quando não do fingimento emocional, fingimento histérico: tudo isto tem de ser suprido por conhecimento efetivo, gente. Temos de criar uma nova cultura para criar uma nova política, não tem outro jeito. Aluno: Concordo que é preciso aprender mais e ampliar o horizonte de consciência geral, mas também vejo a necessidade da ação rápida, pois o PT continua roubando o erário numa rapidez estonteante. Se não forem tomadas as medidas de emergência o rombo vai ser tão profundo que vai ser dificílimo recuperar. Olavo: Já é dificílimo recuperar. E, em segundo lugar, quando você diz “precisamos fazer alguma coisa, já” pense o seguinte: nos anos 60, teve uma parte da esquerda que disse “vamos adotar aqui o Antônio Gramsci, vamos fazer a ocupação de espaços e daqui a 30 ou 40 anos nós tomamos o poder” e a outra parte diz exatamente isto “precisamos fazer alguma coisa, já”. Aonde estão estes? Estão todos no cemitério. Eles só serviram para uma coisa: de símbolo funerário para a revolução gramsciana. Nessas horas eu sempre lembro de uma frase do Goethe: “É urgente ter paciência”. Se você ficar apressadinho agora você vai morrer. Enquanto a situação está piorando você tem de desde baixo ir construindo uma situação melhor. Não é tomar medidas urgentes para parar isto aí, vai ser muito difícil parar este negócio. Quando vemos que 35% do território nacional já foi doado para entidades estrangeiras, que o Brasil já chegou aos 70 mil homicídios por ano, que as grandes empresas estatais foram todas falidas e hoje a dívida do Brasil é de mais de um trilhão, aquela dívida que o Lula se gabava de ter sido paga – “não devemos mais nada”; não, só um trilhão! – tudo isto é claro que é muito grave. Eles estão drenando as energias do Brasil. Mas ‘pera aí o que nos impede de ir por baixo, enxertando energia positiva e construindo uma nova cultura para criar uma nova política? Todas as oportunidades de ação imediata devem ser aproveitadas, evidentemente, mas não é para confiar muito nelas. É para dedicar o melhor de si para elas, mas se dedicar com o espírito de obrigação e não de esperança. Por exemplo, quando as outras estratégias foram todas boicotadas e sobrou só a do impeachment, o que eu faço? É claro que eu apoio o impeachment, foi o que sobrou. É a comparação que eu fiz: um boxeador pode nocautear o adversário no primeiro round, mas ele pode esperar para vencer por pontos no último – a estratégia do impeachment é isso. E ainda transformando em agentes do processo os mesmos políticos que colaboraram com a criação de toda a situação atual. Ou seja, é uma estratégia diminutiva, suicida, masoquista, mas preferiram adotá-la. Muito bem, só sobrou isso, então eu não vou ficar contra a última coisa que sobrou. Mas ainda é possível fazer alguma coisa mesmo na esfera da ação imediata. Por exemplo, deve haver algum modo de desencadear uma investigação da polícia federal sobre a questão da eleição secreta; não dos votos roubados, não do voto eletrônico, porque tanto faz os votos serem eletrônicos ou impressos. O que é característico é as máquinas terem sido programadas para não poderem ser auditadas. Por que fizeram isto, meu Deus do Céu? Ou seja, já estavam vetando antecipadamente a possibilidade de uma fiscalização. Segundo, o povo não foi informado que a apuração seria secreta; todos votaram crentes de que seria uma eleição normal com uma apuração normal. Ou seja, o eleitorado inteiro foi enganado, então há evidentemente um crime. Quem praticou esse crime? O TSE inteiro, a começar do seu presidente. Então, pedir ao TSE a anulação das eleições é pedir que um criminoso se investigue e se castigue a si mesmo – é absurdo. Tem de ser feito algo contra o TSE. Daí vem o pessoal: “Não, mas eles têm foro privilegiado, eles devem ser processados não sei aonde...”. E investigados, não podem? Por que tem de acertar direto os ministros? Por que não pode começar investigando o relações públicas ou qualquer funcionário, como fez o Sérgio Moro? Vai pegando os caras de baixo até chegar a cima. Sempre há uma brecha para você agir. Então, uma ação imediata que eu propus já em março de 2015 é esta: “Nós temos de agir contra o TSE”. Se não podemos agir judicialmente, podemos agir policialmente. Vamos começar uma investigação, meu Deus do céu. E a investigação naturalmente na hora em que estes funcionários de baixo forem apertados eles vão fazer o quê? Apontar os seus superiores – “Foi o ministro quem mandou.” Por que não foi feito isto até agora, se estão com tanta pressa, por que não fizeram isto em março de 2015? Porque entrou esse pessoal falando: “Nós vamos fazer a marcha para Brasília, vocês fiquem aí esperando que nós vamos ali a pé e já voltamos”. E o que vão fazer lá? “Vamos entregar a perderam a noção de higiene, a noção de que os corpos devem ser mantidos a uma distância suficientemente segura. Notem que o caos penetrou até na esfera das sensações físicas. Aluno: Em sua opinião, a descrença nas instituições não propicia para que grupos de esquerda permaneçam no poder com promessas limitadas com efeitos imediatos? Com a crise do atual sistema, qual seria em sua opinião a melhor forma para a renovação? Olavo: Muito bem, depende de quais instituições você está falando. Se forem instituições criadas para gerar o caos, então eu não vejo como você se abster de criticá-las sob o pretexto de que derrubar as instituições favorece os revolucionários. Se foram os revolucionários que criaram as instituições para favorecer a revolução, então você respeitar as instituições é você respeitar a revolução. Você precisa ver o seguinte: quaisquer instituições têm de se basear nos princípios universais do direito. A instituição não vale por si só porque foi criada. Instituições que obrigam você ao impossível violam os princípios fundamentais do direito. Instituições que criam uma desigualdade de acesso às informações fundamentais violam o princípio do direito. A eleição que nós tivemos fez o país inteiro ter o acesso vedado às informações fundamentais sobre o seu destino. Então você cria uma estratificação social monstruosa: lá em cima está o Sr. Toffoli, que é o onissapiente, ele está sabendo tudo, está controlando tudo e aqui em baixo estamos que nem baratas tontas, sem saber o que vai acontecer. Então, estratificação social não é só por meio econômico, existem milhares de meios. E o que este pessoal tem criado é uma estratificação monstruosa onde eles sabem tudo, eles podem tudo, eles têm o controle da informação, têm o controle do fluxo das notícias e o povo em baixo, tem de se virar, andar no escuro e dizer amém. Então é isso aí gente. Até semana que vem e muito obrigado. Desculpem novos problemas técnicos, mas não há o que possamos fazer, muita gente terá de assistir a aula na gravação. [1:35:00] Transcrição: Francisco Jr. e Diogo Revisão: Leonardo Yukio Afuso e Rahul Gusmão Política e Cultura no Brasil – História e Perspectivas OLAVO DE CARVALHO Aula 4 03 de maio de 2016 [versão provisória] Para uso exclusivo dos alunos do Seminário de Filosofia. O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor. Por favor, não cite nem divulgue este material. Boa noite a todos, sejam bem-vindos. Hoje eu queria explorar mais a fundo o tema do comunismo, de como que ele penetrou no Brasil e qual a razão da sua influência avassaladora sobre o curso das coisas no Brasil. Porém, quando se fala em comunismo é necessário, em primeiro lugar, afastar uma série de erros grosseiros que se consolidaram na opinião pública – quando falo opinião pública não estou me referindo ao povão, mas aos formadores de opinião, as classes falantes, como os chamava Pierre Bordieu, onde vemos pessoas como Reinaldo Azevedo, Marco Antônio Villa, Magnolli, etc., opinando a respeito frequentemente a partir de um ponto de vista barbaramente amadorístico. Mas, ainda que as opiniões sejam amadoras e não fundamentadas, elas se consolidaram como senso comum, sobretudo no meio empresarial, entre os liberais etc. Em primeiro lugar, devo dizer o seguinte: eu não conheço um único liberal que tenha estudado marxismo em profundidade, nem um único. Em geral não estão qualificados para estudar, não são capazes de acompanhar aquele tipo de raciocínio. Em primeiro lugar, ninguém vai entender uma palavra de Karl Marx se não passou um tempinho mergulhado no Hegel, neste o sujeito já quebra as pernas, Hegel é uma [espécie de] mata-burro, o sujeito vai andar e já quebra as pernas ali mesmo e não prossegue mais. Então, este assunto, o comunismo, não é para amadores, não é para palpiteiros jornalísticos; é um negócio enormemente complicado, difícil, desafiador, que deveria mobilizar os melhores cérebros de um país. Mas, o mito de que o comunismo acabou na URSS em 1990 se espalhou de tal modo que até mesmo a disciplina de Guerra Revolucionária, que estudava o comunismo nas academias militares, foi suprimida pelo governo do Sarney. Quer dizer, mesmo a classe militar, que teoricamente estaria incumbida de proteger o país contra o perigo de guerrilhas comunistas, de ataques por parte da Venezuela, etc., está totalmente desguarnecida e despreparada para estudar o assunto. No máximo sobraram na cabeça deles algumas noções que pegaram de informes da ABIN dos anos 70 – quando sabem alguma coisa sabem isso. Eu acho que o estudo do comunismo no Brasil ainda está para começar, tudo tem de ser feito desde o início. Em primeiro lugar, temos de estar conscientes de que nada se sabe sobre um movimento político qualquer quando nos deixamos guiar pela sua definição dicionarizada. Eu estou aqui para dizer que alguns de nossos formadores de opinião, tudo o que eles sabem a respeito do comunismo é mera definição dicionarizada. “O comunismo é um movimento que visa criar uma sociedade sem classes por meio da estatização dos meios de produção” – portanto, primeiro a estatização dos meios de produção, depois, no fim, a sociedade sem classes – muito bem, este é o objetivo proclamado do comunismo. Agora, se dissermos: “O que é a Igreja Católica?”. A Igreja Católica é uma entidade que tem por finalidade levar as pessoas para o Céu – é assim que ela se auto-define. Vocês acham que a partir desta definição vocês entenderam alguma coisa historicamente da Igreja Católica? Basta este paralelo para vocês verem que o conhecimento que as pessoas têm do comunismo é puramente verbal, não vai passar daí e, portanto, as conclusões que tiram a respeito são sempre estapafúrdias. Isso é regra geral, eu não conheço uma única exceção. Eu conheço alguns comunistas que têm conhecimento sólido em marxismo. Conheci o Jacob Gorender, o Nabor Caires de Brito, que eram homens que tinham uma compreensão profunda do marxismo, eles não estavam ali para brincadeira. Hoje em dia, nem mesmo na esquerda, eu sei se ainda existe isso. Na direita, entre liberais e conservadores, não tem nenhum, podem tirar o cavalo da chuva, não existe nenhum. O que quer que este pessoal diga sobre comunismo ou é apenas uma efusão emocional, ou é a repetição de argumentos retirados do Von Mises e do Hayek dos anos 20 e 30 que continuam repetindo como se fosse a última novidade, ou não é absolutamente nada. Portanto temos de começar do zero. Como começar? Regra nº 1: os objetivos proclamados de um movimento político, de uma entidade, ou de uma instituição, são parte dela evidentemente, eles existem e algum peso exercem no conjunto. Porém, o processo de consecução dessa ideia, o trajeto a ser percorrido para chegar a essa ideia, nesse ideal, nesse objetivo, vai consumir 99,999% dos esforços, pois é evidente que ninguém pode criar nenhum tipo de sociedade se não tiver o poder para fazê-lo. Então, o problema que se coloca imediatamente é o da conquista de poder e não o da construção da sociedade sem classes. Mesmo que os comunistas tomem o poder, como aconteceu na URSS, a construção da sociedade sem classes é um objetivo de remotíssimo prazo, porque primeiro é preciso remover os remanescentes da classe inimiga – a burguesia – e isso pode levar décadas ou séculos. Podemos dizer que na URSS ou na China, a construção da sociedade sem classes nem chegou a ser cogitada. O esforço todo foi para destruir os resíduos da ex-classe dominante. Além disso, temos de considerar outra coisa: um movimento político ou uma entidade qualquer que atue na sociedade tem de ser considerada na sua materialidade, ou seja, nos seus meios de ação materiais e na substância material efetiva de suas ações. O ideal pode surgir como uma espécie de bússola: indica mais ou menos a direção na qual se está indo. Mas este negócio é tão remoto que vejam, até mesmo o próprio Lula disse “nós não sabemos o tipo de socialismo que queremos” – isso depois de estar no poder durante dez anos, já ter criado o Foro de São Paulo etc. Mas como eles puderam fazer tudo isso sem saber aonde chegar? É porque o tipo de socialismo não é o objetivo primeiro, nem o segundo, nem o terceiro. Eles têm uma série de etapas a serem percorridas para chegar lá e isso qualquer líder comunista sabe. Por exemplo, Nikita Kruschev não ia ficar sentado na sua mesa pensando em sua sociedade sem classes quando tinha problemas muito mais imediatos para resolver. Que problemas eram esses? Em primeiro lugar, fato básico do comunismo e que todos estes iluminados da mídia e da universidade ignoram: o Movimento Comunista é o único movimento político mundial há 150 anos, é o único! Prestem atenção, quando se fala de outros partidos, todos operam apenas em escala nacional. Por exemplo, o Partido Republicano: existe um candidato Republicano a presidência do Paraguai? A presidência a Serra Leoa? Não, não tem. Por exemplo, o Partido Democrata Cristão da Itália. Tem um candidato do partido Democrata Cristão da Itália a presidência da Somália, que já foi uma possessão italiana? Não, não tem. Então, o simples fato de usar a mesma palavra – partido – para designar todos os partidos existentes e o Partido Comunista já leva a um equívoco. Metam isto em suas cabeças: é o único movimento político que opera em escala mundial. Não há uma cidade do mundo onde não se tenha pelo menos um representante do Partido Comunista – nas suas várias versões, é claro, também tem as suas divisões internas. Este é o fato básico que tem de ser levado em consideração. Significa que mesmo quando se proclama, como Stálin, a construção do socialismo num só país, isso tem de ser entendido de maneira limitada e até irônica, porque nunca houve uma época em que o Partido Comunista atuasse tão intensamente no mundo inteiro quanto na época do socialismo num só país; a grande expansão do comunismo para tudo que é lugar foi no tempo do Stálin. Socialismo num só país era, vamos dizer, um programa nominal, não era uma orientação efetiva. “Nós vamos esquecer o Movimento Comunista mundial e cuidar só daqui, da URSS” – não era isso, Stálin nunca fez isso. o partido dessa última alternativa, enquanto o comitê central do partido, o Prestes e outros, advogavam a continuidade da antiga estratégia da luta com a burguesia nacional. Agora, imaginem como seria a situação num país africano onde a maior parte da população é tribal. Por exemplo, na história da África do Sul, existe uma facção do Partido Comunista constituída inteiramente de indígenas, população tribal, que se dedicavam à causa comunista de corpo e alma e tiveram uma importância extraordinária. Porém, se são tribais, não fazem parte nem do proletariado, nem do campesinato, eles são uma terceira coisa. E quais são os interesses de classe dessa gente? Como articular esses interesses de classe, que é o interesse de uma tribo, na verdade, com a estratégia global dos comunistas? Mais ainda, dentro mesmo de países que correspondem mais esquematicamente à descrição sociológica de Karl Marx, temos o problema da convivência entre as várias classes. Por exemplo, nos anos 30, era mais ou menos doutrina oficial que a classe média é inimiga natural do comunismo e ela tende naturalmente ao fascismo. As diferenças entre comunismo e fascismo, na verdade, em muitos aspectos são irrelevantes, mas até certo ponto isso se verificou. Só que hoje nós sabemos que quem mais contribuiu em dinheiro para a formação do partido nazista foi o proletariado alemão. A classe média estava lá fornecendo mártires antinazistas a toda hora. E, mais ainda, se nós procuramos a história dos líderes comunistas ao longo do desenvolvimento europeu, vemos que o número deles pertencente ao proletariado é ínfimo, quase nulo – eram quase todos eles de classe média ou alta. Como é que se administra isso? Por exemplo, quando um destes líderes falha, os outros dizem: “Ah, é que ele ainda tem um resíduo de classe média”. Então ele tem uma tendência ou fascista, ou anarquista, ou irracionalista, alguma dessas coisas. Porém, o próprio sujeito que fala isso também tem um resíduo de classe média. Imaginem a complexidade da administração dessas coisas. Isso quer dizer que se pegarmos a totalidade da ação dos partidos comunistas no mundo, não veremos nenhuma unidade ideológica nessa coisa. Porque os discursos que têm de ser levantados nas diferentes situações são distintos e, portanto, têm várias formas ideológicas. Por exemplo, no Brasil é clássico o discurso nacionalista como instrumento do Partido Comunista, aqui ele sempre fomentou o nacionalismo brasileiro. Mas que nacionalismo? O culto dos heróis nacionais, o culto dos símbolos nacionais, o culto da história nacional? Não, é o culto ao anti-imperialismo ou anti-americanismo e só – aliado, um pouco, ao senso de propriedade do solo, tipo “o petróleo é nosso”. Pelos fatores que eu analisei na aula anterior, já vemos que existe a tendência brasileira a um nacionalismo geográfico, por assim dizer. Em todo lugar os movimentos nacionalistas se baseiam na história, nos grandes feitos em comum da população, nos heróis etc. No Brasil não, se baseiam eminentemente num fator material, que é a posse do território. “São as nossas riquezas minerais, o petróleo é nosso etc.” – já é um nacionalismo sui generis. O Partido Comunista viu nisso uma grande oportunidade, pois se o nacionalismo é baseado no senso de propriedade da terra, então isso naturalmente coloca o país em antagonismo com interesses estrangeiros que visam a propriedade da mesma terra. Conclusão, durante longos anos não haverá discurso comunista em público, só haverá discurso nacionalista. E impulsionado por quem? Pelo Partido Comunista e assim por diante. A simples necessidade de adaptar o Movimento Comunista à variedade de situações locais já faz com que se torne irreconhecível nele a presença do ideal da sociedade sem classes, porque ele não está falando disso em parte alguma, isso aí aparece como uma referência muito longínqua. Em nenhum lugar é disto que se trata: “Ah, nós vamos criar aqui no Paraguai a sociedade sem classes; vamos criar na Zâmbia a sociedade sem classes”. Para criar uma sociedade sem classes é preciso partir das classes existentes e elas não são as mesmas, a grade de hierarquia social não é a mesma em toda parte. Isso quer dizer que só podemos entender o comunismo como um movimento mundial voltado à conquista do poder em toda parte e pelos meios mais variados e imprevisíveis e, portanto, com as justificativas ideológicas mais variáveis e imprevisíveis. Então, a pergunta é: “Se ele não tem unidade ideológica e não há unidade de discurso, onde está a unidade então?”. Esse é outro item absolutamente fundamental para entender o comunismo: a unidade do comunismo é do tipo hierárquico, é a obediência a um comando estratégico que determina as variações locais, as controla e as administra, usando o acelerador e o breque e vários outros instrumentos. O comunismo tem de ser entendido como uma organização material, tão material quanto um exército ou um Estado, porém uma organização transnacional, transestadual e transcontinental. Por que quando o Fidel Castro começa a organizar a sua guerrilha ele convoca uma conferência tricontinental? Isso já mostra que o Movimento abrangia, no mínimo, três continentes – na verdade mais do que três. Hoje o que vemos, qual a versão atual? É o BRICS. O BRICS tem países de quatro continentes: Europa, América Latina, África e Ásia. Isso quer dizer que o comando dessa coisa é um negócio enormemente complicado. A central de comando está onde sempre esteve: na KGB, obviamente. Não está no governo soviético, isso é importantíssimo entender. O governo soviético se constituía do comitê central do partido, do governo constituído com seus ministérios, e da Duma (ou parlamento) – isso é o governo soviético. A KGB é outra coisa. Essa, teoricamente, é um órgão do governo soviético, mas acontece que ela é muito maior do que o governo soviético. A KGB é a maior organização de qualquer tipo que já existiu no mundo. Só dentro da URSS ela tinha mais de 700 mil funcionários – depois diminuiu um pouco, hoje está entre 300 e 400 mil – e que tem uma rede de colaboradores mundial. Os russos sempre tiveram a mania de registrar tudo, os arquivos soviéticos contêm tudo. O acervo da KGB consistia-se de oito bilhões de dossiês – na época em que fizeram a mudança de sede, [0:30] que foi coordenada por um agente russo que escreveu um livro junto com o historiador Christopher Andrew, The Sword and the Field, ele era o cara encarregado de fiscalizar a entrada e saída dos documentos no transporte de um edifício para outro e só o transporte destes documentos levou dez anos. Então vocês imaginem a abrangência do campo de informações que essa gente tinha de administrar. Comparado com isso a CIA é uma escolinha de bairro, a CIA não tem essa abrangência. Hoje, talvez, está lutando para ter. Só que eles estão muito atrasados nisso aí. Não podemos esquecer que os EUA não tiveram um serviço secreto para atuar no exterior até a segunda guerra mundial. Na segunda guerra, a KGB já era uma potência e o EUA, pela primeira vez, foi que tentou criar a OSS (Office of Strategic Services), o que depois virou a CIA. A OSS foi criada durante a guerra, nesse tempo os EUA eram aliados da URSS, então não havia prevenção contra a presença de agentes comunistas ali dentro. Resultado: a OSS estava repleta de agentes comunistas e assim nasceu a CIA. A história da CIA é recheada de contradições e absurdidades por causa dessa origem. A KGB não tem concorrentes. Não teve e não tem. Nada se compara com o tamanho da KGB. E, é ali que se dá o controle dos movimentos comunistas nos vários lugares. Isso quer dizer que, às vezes, nem o governo soviético sabia o que eles estavam fazendo. O parlamento soviético e o ministério soviético jamais tiveram acesso ao orçamento da KGB, eles não sabem quanto dinheiro tinha na KGB – isso é a mesma coisa que dizer que praticamente só a KGB tem dinheiro. Nós só podemos entender o Movimento Comunista se o tomarmos nessa sua materialidade, na variedade das estratégias e sub-estratégias locais e na articulação dessas várias estratégias num único objetivo. Qual é o objetivo? A sociedade sem classes? Talvez. Antes da sociedade sem classes precisamos ter o poder. Isso quer dizer que 100% do esforço é para a conquista do poder – “Quando tivermos o poder total, aí pensaremos na sociedade sem classes”. Porém, o poder total quer dizer chegar ao governo? Não. O poder total é a extinção total da classe antagônica, a qual só começa a ser um problema a partir do momento em que se toma o poder. Como extinguir a classe antagônica? Matando todos? Não dá. Mesmo porque, se forem liquidar com os burgueses, no período em que estiverem fazendo isso, é absolutamente necessário que o capitalismo continue funcionando. Imaginem: eles tomam o poder e no dia seguinte todas as empresas vão embora, todos os burgueses fogem: o país faliu, não tem nem o que administrar. Logo, é preciso que o capitalismo continue funcionando durante o período da sua própria extinção – isso é fundamental no Movimento Comunista. Então, como se faz para extinguir o poder da burguesia? Não é matando todos, não é prendendo todos, não é mandando todos para el paredón ou para o gulag – é usando duas coisas: inflação e impostos. Quem disse isso? Lênin. Vejam, Lênin toma o poder, não numa eleição democrática como o Lula, mas no bojo de uma revolução sangrenta, ou seja, ele tem o poder total sobre o governo desde o primeiro dia. Mas este poder total é só sobre o governo, não sobre toda a sociedade. Ele vai precisar estender este poder a toda sociedade e para isso ele precisa destruir a classe antagônica e para isso só tem um jeito: é aumentado impostos e criando inflação. A burguesia vai se tornando cada vez mais dependente do governo até que se torne um órgão dele e a partir daí ele mete um comissário político dentro de cada empresa, onde será ele quem manda. O empresário continua sendo o dono nominal, por algum tempo. Depois ele tira até a posse nominal. Este processo é enormemente complexo e demorado, sem contar também a variação das situações locais dentro da própria URSS, onde se tinha desde cidades com um parque industrial imenso até uma imensa extensão de terras onde vigorava apenas uma economia agrícola. Em outros lugares não tinha nem isso, se vivia ainda de uma economia extrativista. Como é que se administra isso aí? Por exemplo, Stálin criou muita fama dentro do Movimento Comunista como comissário das nacionalidades. Quer dizer, a URSS abrangia muitas nações, com línguas diferentes e também a variedade das situações locais exigia uma variedade de estratégias e táticas diferentes. Como organizar e unificar tudo isso? Foi o Stálin quem fez este negócio. Stálin era um linguista, ele compreendia as várias linguagens das nações – na verdade ele fez um belo trabalho – e ele sempre conseguiu manter a unidade da URSS por baixo da diversidade de interesses nacionais sempre em conflito. É claro que uma parte dos conflitos ele resolveu na base da brutalidade, mas outros não. Por exemplo, havia lugares onde se podia impor o russo como língua oficial, já em outros lugares não podia, ele teria de aceitar uma duplicidade de linguagens ou então tinha de promover a língua nacional mesmo. E assim por diante. Então, só para administrar a coisa dentro de um só “país” – na verdade eram muitos países – a coisa já era de uma complexidade imensa. Isso quer dizer que não vão reconhecer o Movimento Comunista pela sua unidade ideológica em parte alguma. O Movimento Comunista pode lançar qualquer bandeira que interesse ao aumento do seu poder. Isso aí pode ser, por exemplo, o livre-comércio: Karl Marx sempre defendeu o livre-comércio, porque se não houver livre-comércio, o intercâmbio internacional é frouxo e daí não podem exportar a revolução para parte alguma. É preciso, naturalmente, a livre entrada de revolucionários em todas as nações. Se não houver livre-comércio, fecha a fronteira: “E agora? Como vamos fazer para botar os agitadores lá dentro?”. Hoje em dia vemos o pessoal achando que a coisa mais antagônica ao comunismo é o livre-comércio. Por quê? Porque vão pelo conceito abstrato. Nem estudaram Karl Marx, nem Lênin, nem coisa nenhuma. Quer dizer, este pessoal só pensa de uma maneira simplória, que é para um comunista ler aquilo e dar risada, pelo menos um comunista profissional mesmo, às antigas. Só vamos reconhecer a presença da ação comunista pela via organizacional, não é pelo discurso ideológico, não é pelas bandeiras levantadas. Por exemplo, o comunismo pode ser internacionalista ou anti-nacionalista – em certos momentos, como foi na primeira guerra – e em outros lugares ele pode promover o nacionalismo: como fez na África; ou como fazem na América Latina, porque descobriram que os interesses nacionais têm um potencial anti-imperialista ou anti-americano e, portanto, é preciso explorá-lo. Mais ainda: uma coisa é luta de classes, outra coisa é luta de potências. Não há medida comum entre essas duas coisas. Ora, eles dizem: “Nós queremos derrubar a burguesia”. Mas no momento existe um outro treco que se chama “imperialismo americano”. Então: “Nós estamos lutando contra a burguesia americana? Não pode ser, porque nós precisamos dela para sustentar o Partido Comunista”. Essa foi a instrução que Stálin deu aos agentes comunistas no EUA: “Esqueçam o proletariado, cultivem os burgueses e o beatiful people das artes e espetáculos, porque estes vão dar dinheiro para sustentar o movimento”. Então não é a burguesia americana que estão combatendo, é o Estado americano e a civilização americana, é isso que é preciso combater, mas sem tocar nas grandes fortunas. Vejam como isso pode ser enormemente complicado. Isso quer dizer que um discurso anti- Pode ser até que o gay seja um bilionário e o hétero conservador seja um pé rapado, aliás, isso acontece. Nós sabemos que o povo brasileiro, o povo das camadas mais pobres, é 100% contra essas coisas e nas classes altas tem inúmeros adeptos – classes altas, beautiful people, televisão, cinema etc. Portanto, não é um conflito de classes, mas no conjunto serve à guerra civilizacional que é essencial para a tomada do poder. A questão do conflito de classes e da destruição da burguesia pode e deve ficar para depois, porque não se pode destruir a burguesia antes da tomada do poder. Aliás, nem imediatamente depois, pois é preciso que ela continue trabalhando; não se trata de destruí-la, mas de substituí-la gradativamente. Mesmo que não mude o sistema – que pode continuar capitalista durante muito tempo – o que importa são os agentes que estão ali, o que importa é a submissão dos grandes grupos econômicos à estratégia geral comunista. Quando temos esses conceitos na mão – e acho que esses conceitos são absolutamente irrefutáveis, isso é exatamente assim, não tem como não ser – então vemos, em primeiro lugar, que a visão que as pessoas têm do comunismo nas classes falantes brasileiras é simplória, é bocó e perfeita para fazer deles idiotas úteis. Em segundo lugar, a gente acaba vendo que a influência do Movimento Comunista na política brasileira é imensamente maior que do que aquilo que a gente podia imaginar. Qual é a tradição dominante nessa política? É a tradição trabalhista-getulista, do estado assistencial. Essa política serve obviamente aos interesses do Movimento Comunista, que sempre a apoiou. Se vocês perguntarem: “O outro lado esteve no poder por quanto tempo?”. Esteve durante os sete meses do governo Jânio Quadros, e só. Depois esteve algum tempo com o Collor. Vejam a facilidade com que o país se livrou desses dois governantes: isso basta para vocês medirem a força da influência comunista. O Movimento Comunista domina o cenário político nacional há décadas, quando veio o governo militar prometendo eliminar o comunismo, o que ele fez? Seguiu as mesmas políticas estadistas e assistencialistas do Partido Comunista, porque a imaginação dos caras não vai além disso. E, mais ainda, porque os militares não fizeram nenhuma propaganda anti-comunista? Por inibição mental. É aquela ideia de “não vamos falar por que isso vai dar força ao inimigo” – é a política do avestruz, eles acham que não falando do adversário ele não vai adquirir força. Eles mesmos se colocam dentro da espiral do silêncio e acham que com isso estão negando publicidade ao inimigo – como se eles estivessem loucos para obter publicidade. O Movimento Comunista tem outra característica que é permanente: ele sempre tem dois andares, uma fachada pública e uma fachada clandestina, mesmo onde o partido está legalizado; e o comando está sempre e necessariamente na parte clandestina. Se houver líderes comunistas de alta projeção, eles não estão no comando; o comando está sempre em baixo. Dentro da própria URSS: quando vemos políticos soviéticos brilhantes, das duas uma: ou é um homem da KGB, ou não manda nada. Se for homem da KGB, como o Putin, ele manda não pelas suas ações públicas, mas por ações clandestinas como, por exemplo, mandar matar os adversários. O Putin condena alguém à morte publicamente? Não, alguém vai lá e some com o adversário. Então, o poder do Putin se baseia fundamentalmente em métodos de ação clandestinos, ação da KGB, e não na política normal – política eleitoral, legislativa etc. A variedade das estratégias requerida para manter um governo mundial dá ao Movimento Comunista uma elasticidade de discurso que é uma coisa monstruosa. Por exemplo, há ali desde a pregação ateística oficial soviética até a teologia da libertação. Hoje eu estava ouvindo um rapaz que fez uma gravação dizendo: “Olha, enquanto os soviéticos se infiltravam na Igreja Católica e a dominavam, a CIA não ficou quieta, a CIA começou a fomentar estas igrejas protestantes que fazem a teologia da prosperidade etc.”. A CIA fez isso? Digo: “Está bem, repito para você a mesma pergunta que faço aos comunistas que dizem que a CIA fez o golpe de 64: cite-me o nome de um agente da CIA lotado no Brasil”. Não tem nenhum. Ora, de onde veio esse negócio da teologia da prosperidade? Veio do liberalismo ateu, meu Deus do céu. Eles vão concentrar as coisas no lado econômico, promover a livre empresa, fomentar a atividade capitalista e fugir das questões básicas. Em segundo lugar, a tal da teologia da prosperidade entrou no Brasil fazendo muito mais propaganda anti-católica do que propaganda anti-comunista. Eu não vejo um pastor falar de comunismo, mas eu vejo os caras toda hora: “Não, este negócio de Maria é idolatria, a missa não vale nada, o Papa é satanista”. Isso eu vejo eles falarem toda hora. Então, em que estratégia isso está inserido? Na da CIA? O que é que a CIA pode ter a ver com isso? Este imenso movimento – o crescimento das igrejas evangélicas no Brasil – em parte, tem um certo potencial anti-comunista, mas é só um potencial, isso não apareceu ainda, não está atuando. Não vemos ninguém fazendo discurso anti-comunista – há um ou dois. O Marco Feliciano por quê? Porque eu disse para ele fazer isso e ele entendeu, esse homem é inteligente, ele entendeu. Mas vejam, de modo geral, o crescimento das igrejas evangélicas contribuiu para entregar a Igreja Católica mais ainda na mão da teologia da libertação. Hoje nós podemos dizer que a teologia da libertação domina a Igreja Católica 100%, os focos de resistência que há são de pessoas isoladas, ou que sobraram de outras épocas, ou que se informaram – como o Padre Paulo Ricardo e outros. Mas institucionalmente a Igreja Católica está nas mãos dos teólogos da libertação. E daí o fenômeno do PT. O livro do Luís Mir, O Partido de Deus, está muito certo ao dizer que foram as comunidades eclesiais de base que geraram o PT. Só que ele acredita que as comunidades eclesiais de base agem a favor da Igreja, para consolidação da Igreja, quando na verdade se dirigem à sua destruição. Nós sabemos que, com a ascensão da teologia da libertação no domínio da Igreja Católica, os fiéis fugiram da Igreja e foram tudo para as igrejas evangélicas. É óbvio que a teologia da libertação não é um órgão da Igreja, não é um braço [1:00] da Igreja, é o braço do comunismo infiltrado na Igreja para, em parte, destruí-la, enfraquecê-la, e usar o que sobrar dela, como dizia Antonio Gramsci, como “megafone das nossas propostas”; ele dizia literalmente isto, não devemos destruir a Igreja Católica, mas usá-la, infiltrar-nos nela e usá-la como megafone. Isso quer dizer que vários movimentos culturais, religiosos, morais, etc., no momento todos eles estão convergindo para a estratégia comunista, praticamente todos eles, inclusive o movimento do impeachment. Vocês vejam, o movimento do impeachment surge como uma transformação do protesto popular de março de 2015. Aquele movimento se atribui, em primeiro lugar, como uma revolta contra toda a classe política, aliás, o movimento popular só existiu porque a classe política não fez nada para parar a roubalheira, se ela tivesse feito, talvez nem existissem esses protestos, mas “como os políticos não agem, agimos nós”. A partir daí, sobretudo o pessoal tucano, começou a pensar “como é que nós vamos virar esta situação e transformar em nosso favor uma coisa que neste primeiro momento está contra nós?”. Então para isso é que existem estes líderezinhos criados pela mídia, como Kim Kataguiri, Fernando Holliday, etc., esses meninos são facilmente enganáveis, não têm cultura nenhuma, não sabem coisa nenhuma, apareceram ontem, mal se livraram das fraldas, ou seja, lhes oferece a perspectiva de uma carreira política e eles fazem qualquer coisa pela classe política. E daí surge, em primeiro lugar, a ideia da marcha para Brasília, que consiste em transferir a iniciativa do povo nas ruas para os políticos em Brasília. Um pouco mais adiante já aparecem as figuras de Miguel Reale e Hélio Bicudo inserindo o movimento anti-petista na tradição das nossas lutas, isto é, na tradição das lutas da esquerda que criaram o PT. E hoje praticamente já virou isso. Vejam que o governo Michel Temer anuncia que vai ser o governo dessa gente, imaginem, por exemplo, colocar o José Serra no Ministério das Relações Exteriores. Isso é garantia absoluta e infalível a total submissão do Brasil aos interesses do grupo globalista encastelado na ONU, que é um órgão perfeitamente dominado pelo Movimento Comunista. Isso quer dizer que o movimento contra a classe política se transformou num movimento a favor dela. E hoje qual é o grande objetivo dos “líderes”? Destruir a candidatura do Bolsonaro através do achincalhe, de processo, de calúnia e através do parlamentarismo, que é a grande proposta do PMDB para que não chegue a haver eleições presidenciais em 2018. O que houve no Brasil foi uma transfiguração do movimento, que foi possibilitada pela inépcia e inconsciência dos líderes. O horizonte de consciência desses meninos é deste tamanhinho, qualquer raposa velha do tucanato percebe mais do que isso, e dirigentes comunistas percebem muito mais. Tudo isso é muito fácil de fazer, entre outras coisas porque o Movimento Comunista domina a mídia brasileira 100%, isso não é um modo de dizer. Eu não estou dizendo: “Ah, os jornalistas são na maior parte esquerdistas” – não é isso que eu estou falando. Estou falando que eles estão filiados ao movimento, eles devem obediência a um comando central comunista e estão lá para isso – é em 90% das redações ou mais. Outro dia um jornalista da Folha, contando as suas memórias, dizia: “Quando eu era estudante eu era da Libelu” – Libelu era um órgão da Quarta Internacional Trotskista – “depois mais tarde eu me formei e fui trabalhar na Folha, quando cheguei estava todo o pessoal da Libelu lá dentro”. E estão lá até hoje, então eu digo que a Folha é um órgão da Quarta Internacional. Por isso que colocou o Demétrio Magnoli como colunista, porque ele é a voz da Quarta Internacional. O que é a Quarta Internacional? Houve quatro internacionais, que são momentos decisivos na história do comunismo. A Primeira Internacional, chefiada pelo próprio Karl Marx, é a fundação do Movimento Comunista. Isso não quer dizer que não existissem movimentos comunistas antes, mas Karl Marx foi lá, assumindo, cortando todas as cabeças, e virou ele o chefe lá; então conseguiu fazer das suas ideias a doutrina oficial do Movimento Comunista. A segunda internacional é quando aparecem alguns membros de destaque do Partido Comunista contestando teses fundamentais de Marx e apostando numa estratégia reformista: “Vamos parar com esse negócio de revolução, nós podemos chegar ao comunismo através de reformas progressivas”. Isso é um fato e acabou sendo adotado pelo Movimento Comunista, mas naquele momento deu escândalo. Então, ali teve uma ruptura e cria-se a Internacional Socialista, que é até hoje a representante da esquerda chamada “soft”. E o órgão básico disso aí é a Sociedade Fabiana, na Inglaterra, que é dona da London School of Economics. Acontece que a Sociedade Fabiana foi criada por quem? Por ingleses socialistas moderados? Não. Foi criada pelo governo soviético. Isso quer dizer que o governo soviético, embora oficialmente se colocasse contra as doutrinas reformistas e revisionistas, como eram chamadas, sabia que elas podiam ser úteis no ocidente. Assim mesmo aconteceu com a escola de Frankfurt – “Nós não queremos esta conversa aqui dentro porque vai romper a unidade do nosso discurso, mas isso pode ser útil lá fora”. Nós sabemos que o grande livro escrito por Sidney e Beatrice Webb, que eram os gurus do movimento Fabiano, veio pronto do movimento soviético, eles simplesmente assinaram. Então, tudo isso é órgão do Movimento Comunista. Notem bem, não tem unidade ideológica. Ao contrário, tem uma diversificação ideológica que justamente é o que permite a adaptação da estratégia mundial às diferentes condições locais, culturais, econômicas etc. Se analisarmos agora a história da cultura do século XX, veremos que pelo menos a metade dela – cultura literária, musical, cinematográfica, artística etc. – é função do Movimento Comunista. Tem um artigo que eu escrevi faz tempo chamado “A mão de Stalin está sobre nós”, deem uma olhada lá e vocês verão a imensidão da influência dessa coisa. Nós podemos dizer que no EUA, por exemplo, não teve um escritor célebre que não fosse de algum modo cercado e manipulado pelo Movimento Comunista – isso não quer dizer que todos fossem entrar no partido, aliás, a ideia não era essa. A ideia era fazer deles companheiros de viagem e agentes de influência. Ou seja, pessoas que, sem ter uma carreira nominalmente comunista, aliás, podiam até ter a fama de conservadores, nos momentos decisivos, apoiassem a URSS. Por exemplo, John Dewey nunca foi comunista pessoalmente, mas na hora H ele sempre tomava partido da URSS; partido da sua isenção: “Não sou comunista, sou um pragmatista etc.”, e assim por diante. Frequentemente a identidade pública dessas pessoas é construída pelo Partido Comunista de maneira inversa. Como, por exemplo, vocês já devem ter ouvido a história de que Ernest Hemingway foi espião da CIA. Isso é impossível, vocês acham que o homem pode morar em Cuba durante 30 anos, ser recebido pelo governo, ser bem tratado, e ninguém desconfiar que ele trabalha para a CIA? Isso é absolutamente impossível. O que é certo é o seguinte: que ele trabalhou para a KGB, trabalhou; e, em Ora, se um jornalista de esquerda que trabalha no, por exemplo, La Nation, Le Monde, Figaro, ouve o apelo de uma destas campanhas, ele vai precisar consultar o chefe dele no partido para aderir? Não, ele já sabe de onde vem aquilo, reconhece a voz do dono, e imediatamente vai aderir. Então, esse novo tipo de organização que, ao invés de ser hierárquico, é espalhado, ao invés de ser vertical é horizontal, mostrou que funciona muito mais. E pior, fica muito mais difícil descobrir a origem dos comandos. Tanto que, hoje em dia, as pessoas têm este problema: “Bom, existe o Movimento Comunista, mas quem está comandando?”. É claro que é a KGB, só que é difícil rastrear a linha de comando, porque ela é feita, hoje, de modo difuso. Esse trabalho da Rand Corporation: não pode deixar de estudar isso aí porque foi o grande teste, o modelo de todos os movimentos subsequentes. É esse modelo que se usa, por exemplo, para o feminismo, o abortismo, para a liberação de drogas, os banheiros unissex, o que quiser. É de fato uma presença avassaladora, e é evidente que tem um comando central. Só que, sabe quando nós vamos saber o nome do cidadão? Nunca. Como nunca ficamos sabendo nas situações anteriores. Onde se tem um governante nominal, podemos ter a impressão de que foi ele que mandou, mas em geral não é. Vejam a facilidade com que governantes soviéticos todo-poderosos foram retirados: Nikita Krushov, Leonid Brejnev etc. Quem os retirou? Se alguém os retirou é porque tem um poder maior atrás deles. E esse poder é o da organização super-secreta até hoje, que é a KGB, que é secreta até pelo seu tamanho, ela é inabarcável. Agora, vocês imaginem a inteligência monstruosa das pessoas que dirigem isso. Por exemplo, quando lemos, hoje, o curso de filosofia do Alexandre Kojève, que era evidentemente um homem da KGB, embora não pertencesse ao Partido Comunista. Alguém é capaz de discutir com ele por cinco minutos? Ninguém. Nem com comunistas menores. Esses dias eu estive lendo duas coisas sobre o Jean-Paul Sartre. Um era o livro do Thomas Molnar, que é um filósofo húngaro, residente nos EUA e o outro do Roger Scruton, que fez uma versão aumentada do Thinkers of the New Left: a dificuldade que os caras têm para se orientar nos meandros, para abrir a caixa preta do pensamento de Sartre, é uma coisa monumental. Enquanto isso, o pensamento do Sartre mudou vidas e mais vidas, sempre nesta base de aderir a slogans ou ideais oferecidos apenas na sua fórmula abstrata. De tal modo que, a fórmula abstrata em si mesma aja sobre o centro emocional da pessoa, sem precisar tomar a forma de uma realidade. Na maior parte desses casos se pode neutralizar o efeito disso pelo método da intenção paradoxal do Viktor Frankl – “Vamos realizar essa sua ideia, vamos ver como ela vai ficar”. Na maior parte dos casos, é claro, as pessoas vão resistir a fazer isso, porque elas querem preservar intactos os ideais imantados daquela mágica, portanto, elas não podem trazer isso “do céu para a terra”, não podem materializar a sua ideia, senão ela se desmantela por si mesma. Por exemplo, o pessoal fala em liberação de drogas. O liberal diz: “Ah, o governo não deve interferir, então deve deixar as pessoas fazerem o que quiserem” – teoricamente é isso, é uma ideia imantada do prestígio da liberdade civil. Só que daí a gente pergunta: “E todos os crimes que foram cometidos ao longo do tempo, em função do narcotráfico?”. Terão de ser todos anistiados. Milhares e milhares de homicídios. Em segundo lugar, quem tem o controle da produção e da redistribuição? Os cartéis e as FARC. Quem vai poder concorrer com eles no livre mercado? Terceiro, o fato de haver um comércio legal impede que haja um comércio clandestino? Nunca impediu. Não é proibida a fabricação de cigarros, então por que tem tanto cigarro contrabandeado? Ou bebida, ou qualquer outra coisa. E assim por diante. Então, basta pensar, materializar, a realização da ideia que vemos que a quase totalidade dessas ideias não foi feita para resolver nada, mas para agravar o estado de coisas. Ora, agravar o estado de coisas é sempre necessário porque é preciso manter as nações inimigas sob crise constante, evitando que essas crises aconteçam dentro do campo. Por exemplo, na Rússia e na China, eles têm algum problema com movimento gay ou feminista? Não têm problema nenhum. Se o sujeito começou a dar muito palpite, simplesmente matam-no. Todos os problemas que eles evitam no seu território eles fomentam no território adversário. E, no território adversário – isto é importantíssimo – como não há nenhuma organização anti-comunista mundial, então todos os sentimentos anti-comunistas são dirigidos a alvos particulares e específicos. E a visão da articulação se perde completamente. O sujeito pode ser contra o comunismo – “Ah, o comunismo é ateu”. Muito bem, mas esse mesmo cara pode favorecer o comunismo numa outra coisa qualquer. Do mesmo modo que o comunismo é o único movimento político de escala mundial, é só o Movimento Comunista que tem uma visão global do processo. E isto é uma diferença fundamental: O que o Movimento Comunista quer? Quer baixar decretinhos? Não. Ele quer dirigir o curso da história, isso é um pouco mais complicado, mas eles estão fazendo isso. Vocês devem perceber que o projeto implica uma dificuldade tão imensa que a possibilidade de erros é muito grande, mas no conjunto eles estão obtendo sucesso, mesmo através do seu fracasso; que é a pergunta do Jean François Revel, no ano 2000: “Como foi possível que, após a queda da URSS, o Movimento Comunista crescesse em vez de diminuir?”. As quedas são apenas etapas de um movimento dialético que não para. Enquanto as pessoas que se imaginam anti-comunistas continuarem pensando de uma maneira provinciana, local, sem tentar elevar o seu pensamento à abrangência e a grandeza do projeto comunista, ele vai continuar tendo vantagem, sempre. Imaginem o que é esse movimento quando ele entra em um país como o Brasil, com uma classe intelectual dominante formada do jeito que eu expliquei na última aula: é tomar doce da mão de criança. Quer dizer, o número de idiotas úteis no Brasil – no parlamento, na mídia, sobretudo no empresariado, no clero – é imenso. Os caras não sabem de onde vem as ideias que eles estão defendendo, onde essas ideias se encaixam dentro de uma estratégia mundial, pensam tudo apenas setorialmente. É aí que vemos o mistério, na década de 90 se pensou: “Bom, agora não há mais comunistas, eles sumiram”. Sim, eles sumiram e estão em toda parte, estão governando tudo, mandando em tudo e estão cada vez mais invisíveis. E, é claro que contra isso sempre se levantam os chavões de sempre – “Ah, você está vendo comunista embaixo da cama”. Uma vez um deputado gaúcho falou isso para mim e eu respondi: “Não, embaixo da cama não. Estou vendo em cima da cama: ele foi lá, já comeu você, você acordou com uma vasta dor no traseiro e você não sabe de onde veio essa [1:30] dor” – é exatamente essa a situação. Se vocês perguntarem: “Um tipo como o Reinaldo Azevedo ou Villa tem alguma consciência de para quem ele trabalha?”. Não tem nenhuma consciência e nem pode ter. É o problema do horizonte de consciência. Quando Sun Tzu diz: “Conheça o teu inimigo” – temos de abarcar o horizonte de consciência dele e o transcender, tem de ir além, não tem outro jeito. Agora, vocês acham que algumas dessas pessoas têm um horizonte de consciência comparável, por exemplo, com o de Stálin, capaz de manipular vinte ou trinta países ao mesmo tempo? É claro que não, nem se esforçaram para isso. O tamanho do inimigo é tal que ele se torna invisível – para as mentes pequenas. Quando se consegue abarcar esse horizonte de consciência e o transcender, então se começa a enxergar as limitações desse movimento. A primeira limitação é de natureza intrínseca: já vimos que a sociedade sem classes é o objetivo final do socialismo e ele é inatingível não por dificuldades práticas, mas pela sua própria essência, ele não foi feito para ser atingido, ele é a gasolina que mantém o movimento em ação, se ele for realizado ele se cristaliza e perde liquidez. Então, automaticamente, o movimento revolucionário que não aceita submeter-se a nenhum julgamento deste mundo – que seria o julgamento pela moral burguesa, pela justiça burguesa, então ele se coloca acima disso –, só pode ser julgado pelo futuro. Se ele só pode ser julgado pelo futuro, ele seria louco se esse futuro chegasse, porque daí ele seria julgado; ele não seria mais o juiz, seria o réu. De vez em quando isso acontece: algum comunista decide fazer as contas e diz: “Olha, isso aí deu tudo errado”. O número de defecções, de desilusões, é muito grande, mas o Movimento Comunista sobrevive a isso e frequentemente consegue reciclar e reaproveitar os desiludidos. Vejam, por exemplo, o Leonardo Padura. Ele se desiludiu com o comunismo cubano, mas está colaborando com o comunismo brasileiro – ele acha que aqui no Brasil é diferente. Assim, sempre se consegue reciclar essas pessoas. Por exemplo, o sujeito larga de ser comunista, sai do partido, então ele entra, por exemplo, no PSDB, vira um socialista fabiano. É sempre possível reciclar. O Movimento Comunista só vai ceder na hora em que existir um movimento anti-comunista mundial que tenha uma estratégia abrangente. Eu acredito que só uma entidade pode fazer isso: a Igreja Católica, porque ela é também uma organização mundial. Mas, ela não quer. Mesmo porque já foi mais profundamente infectada do que as pessoas imaginam. Mas há muita coisa que nós podemos fazer. A primeira delas é espalhar a consciência da mundialidade e da complexidade do Movimento Comunista e apagar as noções simplórias de que, por exemplo: “Ah, para ser comunista você tem de pregar a socialização dos meios de produção etc.”. Entenderam? Então, ‘tá bom. Na próxima aula vamos nos aprofundar um pouco mais na situação brasileira presente e nas perspectivas. Vamos fazer um intervalo e daqui a pouco voltamos com as perguntas. *** Aluno: A Igreja Católica está bem infectada, mas qual a visão dos judeus sobre o comunismo? Olavo: Bom, os judeus estão tão divididos. Aqui no EUA, por exemplo, existe uma imensidão de judeus entre os líderes comunistas e entre os líderes do movimento anti-comunista. Hoje a coisa está malparada, porque, vejam, 72% dos judeus americanos votaram em Barack Obama – são absolutamente loucos, são suicidas, é uma coisa de uma irresponsabilidade monstruosa. Depois de tudo que o cara aprontou contra Israel não dava para prever? É claro que dava. Ainda tem gente que diz que os judeus dominam o mundo, ora, os caras estão levando porrada de tudo quanto é lado, nem entendem o que está acontecendo, coitados. Aluno: Em sua opinião, seria possível ocorrer a intervenção constitucional? Seria ela uma alternativa mais efetiva para o combate aos agentes da Nova República e o impeachment? Olavo: Não, de jeito nenhum. Em primeiro lugar, veja que uma intervenção militar... aí é o mesmo caso que eu disse: as pessoas pegam um conceito abstrato e imediatamente têm uma reação emocional, a favor ou contra a coisa, no seu conceito abstrato, mas quando você tenta imaginar como será isso concretamente a coisa se complica de uma maneira formidável. Então, em primeiro lugar, as FFAA assumirem o controle do Estado implica que elas vão trocar 30% ou 40% do funcionalismo público. Quem elas vão colocar lá? Se você tivesse partidos e movimentos de direita organizados, como havia em 1964 – havia a UDN, o PSD e outros, um monte de governadores a favor – então certamente havia os elementos para colocar nos vários postos, mas hoje não tem, é uma situação completamente diferente. Em segundo lugar, se você entende que o PT não é nada, é apenas uma pequena fachada local de um imenso movimento mundial, você entende que a derrubada do PT pelas FFAA colocaria o Brasil contra o mundo. Você acha que nossos generais estão preparados para enfrentar essa situação? Nem em 64 estavam. Tanto que os generais foram derrubados pela pressão da mídia internacional, estava todo mundo contra eles e chegou num momento em que não aguentaram mais. Não foi o movimento das “Diretas Já” que os derrubou, de maneira alguma. Portanto eu acho isso uma coisa muito complicada. Olavo: Não é nas escolas, é em cada escola. Se o seu filho está numa escola, você vai lá e vence os caras lá naquela escolinha. Esqueça a política maior que aparece na Rede Globo, não é lá que se decidem as coisas. Veja, em 1964, quando o Partido Comunista aderiu à estratégia gramsciana, eles lançaram um movimento enorme para conquistar as sociedades de bairros, uma por uma; e os sindicatos, um por um; e as igrejas, e as escolas, uma por uma. Trabalharam nisso durante quarenta anos e chegaram ao poder e dominaram tudo. Agora, querem tirar os caras de Brasília, resolve fazer isso? Eles saem de Brasília, mas estão no resto da sociedade. Os caras levaram quarenta anos, então, digamos, vamos deixar por 20%: oito anos. Façam oito anos desse trabalho em cada escola, em cada sindicato, em cada igreja, e vocês verão os frutos. Agora, se todo o mundo quer um resultado imediato: se um lado tem paciência e o outro é imediatista, qual vai ganhar? Eu já expliquei que para um sujeito ser agente histórico as suas ações têm de durar mais do que a duração da sua vida. Então, se você trabalha para ver o resultado em vida, você não vai conseguir nada. É claro, o horizonte de consciência está limitado temporalmente à próxima eleição, digamos. Eles sabem que o pessoal pensa assim, eles contam com isso – é a famosa tartaruga fabiana. Aluno: Obviamente a estratégia do Movimento Comunista é pelo poder, como o senhor já explicou. Porém, em longo prazo eles esperam mesmo que o mundo se torne a utopia comunista de Marx? Olavo: Sim e não. A utopia continua sendo uma espécie de cenoura de burro, eles são atraídos nessa direção. Mas, por outro lado, os caras mais inteligentes sabem que isso não será realizado e que vão parar no meio do caminho, então vão chegar à economia fascista chinesa – isso é o máximo. Porém, para eles isso é muito bom, porque eles são contra a anarquia do mercado, eles querem uma economia capitalista controlada, mas controlada por eles. Eles acham que isso é bom, todos acham que é bom. Nós sabemos que não é, porque, mesmo que tenha sucesso, os beneficiários do sucesso serão só os amigos do governo, como é na China. Na China tem cinco cidades enormemente prósperas e o resto é uma miséria desgraçada, só que os miseráveis não têm como reclamar. Vocês veem algum movimento de rua chinês protestando contra a carestia, contra a inflação? Nada. Não tem nada, não tem sindicato, não tem greve. Então, vamos dizer, a economia controlada é reconfortante para todos que querem o controle. Não que eles queiram isso para ferrar com a humanidade, essa noção eles não têm. Eles acham que isso é bom. Vejam, não tem um metacapitalista que não pense assim, Zuckerberg pensa assim, Steve Jobs pensava assim, George Soros pensa assim, Rockefeller pensa assim, todos eles pensam assim: tem de controlar, tem de botar ordem nessa coisa e quem tem de botar ordem somos nós. A pergunta é: “Por que você? O que você tem a mais do que os outros seres humanos? Por que você acha que se deixar a sociedade decidir por si mesma vai ser tudo uma anarquia?”. Aluno: Ser conservador é isso. Olavo: Ser conservador é isto, é deixar que a sociedade decida as coisas. Resguardar cada vez mais a margem de liberdade. Não é ampliar os direitos, gente. Se vocês transferem a coisa para a esfera dos direitos: o direito é uma obrigação imposta a terceiros, tem que ter alguém que vigie a aplicação dos direitos, então tem de haver uma vara de justiça especializada, tem de haver burocracia etc. Não se trata de direitos, trata-se de poder. Trata-se de preservar para a sociedade o poder de interferir, não o direito de interferir. O direito é o que está no papel, o direito é o instrumento do poder central, sempre. Então, querem banheiros unissex? “Ah, quero. Quero ter essa liberdade”. Mas não vai ter liberdade, vai ter uma regulamentação. E essa regulamentação vai ser enormemente complicada. A cada vez que você for entrar no banheiro, vai precisar pensar dez vezes, vai ter de consultar um advogado. É isso o que vai acontecer. Vocês não percebem que todas essas medidas, seja a favor do que for, sempre aumentam o controle governamental sobre a sociedade? Por exemplo: “Queremos a liberação das drogas.” Muito bem, liberação quer dizer regulamentação; regulamentação quer dizer burocratização. Terá de haver um imenso aparato governamental para controlar, vai ter de fichar cada viciado – que no momento não é fichado. Para comprar droga numa favela, é preciso ir lá pegar, pagar e ir embora fumar o seu baseado. Agora, se é o governo que fornece, meu filho, você vai ser fichado. Então, é o controle estatal aumentando. Quando o pessoal fala sobre ampliação de direitos, eu digo: “Para mim não, eu não quero direito algum, eu quero o poder de ação, poder de ação real, não o que está nas leis”. Aluno: Se Reinaldo Azevedo e Marco Antonio Villa escreveram seus respectivos livros falando do governo e apontaram diversas coisas irregulares, como eles não sabem para quem trabalham? Olavo: É muito simples: eles entendem o “para quem trabalham” no sentido do contato direto. Alguém que mandou fazer isso e pagou, até isso eles entendem. Mas nós usamos a expressão “para quem trabalham” num sentido muito mais amplo: a corrente histórica à qual eles está servindo. Aqueles que assistiram ao COF se lembram das minhas aulas sobre as camadas da personalidade: camadas da personalidade são etapas que se percorre no desenvolvimento da personalidade e que, cada uma implica e absorve a anterior; elas se definem por objetivos que o sujeito tem e, portanto, pelo seu círculo de consciência. Quando a gente nasce, a primeira [camada] é termos controle do seu próprio corpo, é disso que um bebê se ocupa. Por exemplo, quando ele começa a conseguir mais ou menos controlar o cocô dele: ao invés dele fazer nas fraldas ele avisa a mãe para leva-lo no banheiro – isso é uma grande conquista. Então, a primeira camada é esta, o domínio do corpo. O segundo domínio já é o domínio sobre o corpo alheio e sobre os objetos em torno: o desenvolvimento da força física, a afirmação física do sujeito. Terceiro, o domínio da linguagem, ele aprende o intercâmbio, aprende a tentar dominar as pessoas não na porrada, mas na conversa. E assim sucessivamente. A maior parte das pessoas, pessoas normais, adultas, chegam até a sétima camada, que chamamos de “cidadania”. É o sujeito que tem consciência das suas finalidades de estado, seus direitos e deveres, e sabe se mexer, sabe se virar nisso aí, isso é o máximo. Para o sujeito chegar a conhecer a que corrente histórica ele está servindo, ele tem de chegar à décima primeira camada, que é onde o indivíduo tem consciência do seu personagem histórico, por pequeno que seja. É preciso ver o movimento total da história e ver o seu papel ali dentro – isso não é fácil. Se lhe perguntarem se trabalha para tal coisa, ele responde: “É claro que não, eu estou trabalhando para o impeachment, para a democracia etc.” Porque ele está vendo apenas a sua intenção subjetiva em função de um símbolo abstrato a que ele imagina servir. Ele não está vendo concretamente o movimento da história e em que corrente ele está se encaixando, querendo ou não – ter consciência disso não é fácil. Um pouco antes disso, na nona camada, que é o que eu chamo de “personalidade intelectual”, é quando a conduta do indivíduo já é determinada essencialmente pelo conjunto de conhecimentos de que ele dispõe, é uma posição intelectual face à realidade – a maior parte das pessoas não chega nisso, mesmo pessoas formadas, aparentemente cultas, não chegam nisso. A maior parte das pessoas pode até estar exercendo uma posição intelectual, mas o objetivo dela pode ser um objetivo de camada inferior. Pode ser de camada quatro – de conseguir afeição e aprovação social. Pode ser um objetivo de camada cinco – de autoafirmação do ego. Pode ser de camada seis – de simplesmente ganhar dinheiro. Pode ser qualquer coisa. Se o indivíduo continua evoluindo e crescendo, chega uma hora em que a conduta dele realmente é determinada pela sua concepção mais ou menos organizada. É muito difícil fazer isso. Geralmente as pessoas não têm uma concepção, elas têm opiniões soltas e a ação delas não tem nada a ver com a opinião delas. É por isto que eles não sabem: eles não têm desenvolvimento humano suficiente para saber a função deles dentro das correntes históricas. Aluno: Eu gostaria de saber os nomes dos livros que o senhor citou em sua aula, dos autores americanos que conseguiram compreender a situação atual. Olavo: O primeiro que eu citei foi este: Shadow World de Robert Chandler. É uma visão da Guerra Fria após a queda da URSS. É um livro absolutamente extraordinário. O segundo livro é o da Diana West, American Betrayal. É um livro sobre o domínio exercido por agentes comunistas dentro do governo americano, determinando em muitos episódios toda a política exterior americana. Determinando, por exemplo, a interrupção da ajuda americana ao exército de Chiang Kai-shek e a mudança para a ajuda concedida ao exército de Mao Tsé Tung. Isso determinou que a China se tornasse comunista, só isso. [2:00] Pararam de dar dinheiro ao Chiang Kai-shek e começaram a dar para o Mao Tsé Tung e ele tomou o poder. Quem fez isso? Foi um simples erro? Uma simples distração? Pode ter sido da parte dos políticos e patriotas americanos, mas da parte do agente que estava soprando coisas nas orelhas deles não foi. O terceiro livro é o do Jeffrey Nyquist, Origins of the Fourth World War. Aluno: A Maçonaria pode ser um agente contra o Movimento Internacional Comunista? Olavo: Pode e deve, mas não é. Na Romênia, no tempo do Ceaușescu, metade da maçonaria estava na cadeia e a outra metade estava comendo na mão do Ceaușescu, inclusive o Grão-Mestre, eu fui testemunha pessoal disso. Me apresentaram ao senador Dan Amedeu Lăzărescu, que era o Grão- Mestre da Maçonaria, o ídolo dos maçons – na Romênia todo mundo é maçom, até os cachorros são maçons (a gente vê os cachorros na rua todos trocando símbolos maçons), eu não encontrei um lá que não fosse – só que, passado um tempo, o meu amigo Andrei Pleșu investiga e descobre que esse cara, durante todo o governo do Ceaușescu, estava entregando os companheiros de Maçonaria para a Polícia Secreta e eles todos foram para a cana. Isso foi um escândalo desgraçado. Junto com Dan Lăzărescu havia outros caras, também da elite maçônica, que estavam fazendo a mesma coisa, entregando os seus companheiros. Eu acho uma tolice imaginar que a Maçonaria tem uma ação unificada e coerente, não tem. O maçom que está numa loja não sabe o que está se passando em outra loja. Quer dizer, a sociedade secreta é secreta, em primeiro lugar, para os seus próprios membros. Um dia eu fiz um hangout com um grupo maçons, e eles disseram: “Nós estamos fazendo uma campanha para esclarecer os nossos irmãos maçons etc.” Estava dando um trabalho desgraçado porque eles tinham de ir de loja em loja tentar explicar que focinho de porco não é tomada. Então, é evidente que não há uma ação coerente, existe uma multiplicidade de tendências. Notem que ao longo da história muitos conflitos políticos se originam na Maçonaria; há uma briga interna da Maçonaria e daqui a pouco isso se transpõe para fora. Por exemplo: “Ah, a Maçonaria fez a república”. Não, os republicanos eram maçons e o imperador também era. Na França, a Revolução Francesa, a Maçonaria fez a revolução? Não, o rei da França também era maçom, o governo todo era maçom e os outros caras, os republicanos, também eram maçons. Então a briga foi dentro. Não dá para qualificar a Maçonaria como um agente histórico coerente. Ela tem capacidade para fazer isso, porque ela pode moldar as cabeças dos seus membros de geração em geração, mas não até chegar ao detalhe político. Eles conseguem passar a todos os maçons uma série de regras de conduta às quais eles obedecem. Uma delas é não ferrar com os seus irmãozinhos de maneira muito evidente, se o fizer tem de ser escondido. Uma certa lealdade entre eles existe; há uma certa fidelidade, pelo menos da boca para fora, aos ideais da democracia moderna. Mas eu acho que não chega ao ponto de fazer as cabeças dos seus membros, como faz o Partido Comunista, não chega a esta profundidade. O Partido Comunista cerca o sujeito por tudo quanto é lado. Eles, na verdade, só convivem com comunistas o tempo todo, eles não saem desse meio. Existem livros muito interessantes como este aqui, Raising Reds, do Paul Mishler. Como era a educação das crianças comunistas nos EUA dos anos de 30/40? Vocês vão ver que, desde pequenininho, o sujeito é cercado disso aí o tempo todo. Agora, existe maçonaria infantil? Não. Quando o sujeito vai entrar para a Maçonaria ele já é homem feito, eles não aceitam moleque. Não tem essa profundidade, não cerca a pessoa como o Partido Comunista ou como as religiões cercam. O sujeito nasce e já é batizado dentro da Igreja Católica. É possível, a partir daí, assegurar uma certa continuidade da conduta católica, pelo menos enquanto a Igreja não está, ela do corpo pode ser cristão. Então o que importa é o cristianismo predominar na cultura, na sociedade, não nas leis, não no governo, não no Estado. Aluno: Existe algum país atualmente que seja minimamente ciente desse Movimento Comunista? Olavo: Todos os países do Leste Europeu. Todos estão sabendo, eles conhecem isso e sabem como funciona – Hungria, Polônia, Romênia. Nesses tem a luta efetiva contra o comunismo, só nesses. E a luta está feroz. Aluna: Aquela amiga da Romênia disse que a Polônia já avançou bastante. Olavo: Pois é. Na Polônia, quando eu estive lá em 2011, os comunistas estavam voltando ao poder. Agora já tiraram. O presidente é cristão e conseguiram virar a mesa. Na próxima aula vamos nos concentrar um pouco mais na situação brasileira. Espero que vocês tenham relacionado uma aula com a outra. Toda essa ação avassaladora do Movimento Comunista, no Brasil, ela encontra um terreno propício por causa da formação da nossa intelectualidade, por causa da fragilidade da nossa cultura – fragilidade que aumentou enormemente nas últimas décadas. Então, o que nós temos de fazer? Temos de fortalecer a nossa cultura, meu Deus do Céu! “Ah, mas isso demora, nós precisamos...” – é urgente ter paciência. Se vocês querem fazer as coisas a curto prazo, o esquema vigente vai sempre ganhar, porque ele tem todos os meios de ação e vocês não têm nada. Nós temos de apostar no longo prazo, porque o plano deles é de longo prazo. Agora, se temos urgência – “Ah, a situação está muito desconfortável” – imaginem assim: esse desconforto vai durar até o último dia da minha porca vida, eu só quero que os meus netos ou bisnetos tenham uma coisa melhor. É assim que se faz. Agora, se vocês querem apenas aliviar o desconforto – a luta política não é pomada para hemorroidas, alívio imediato não existe. Até semana que vem e muito obrigado. [2:18:09] Transcrição: Francisco Jr. e Deko Izarrigues Revisão: Leonardo Yukio Afuso e Rahul Gusmão Política e Cultura no Brasil – História e Perspectivas OLAVO DE CARVALHO Aula 5 10 de maio de 2016 [versão provisória] Para uso exclusivo dos alunos do Seminário de Filosofia. O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor. Por favor, não cite nem divulgue este material. Boa noite a todos, sejam bem-vindos. Hoje, completando o nosso roteiro, eu queria falar mais sobre esta questão do Foro de São Paulo e da América Latina, mas a dificuldade aí é de duas ordens. Em primeiro lugar, nós realmente não temos uma elite intelectual qualificada para enxergar e compreender a situação do Brasil dentro do quadro internacional; não têm nem mesmo a ideia do quadro internacional. O que o pessoal pensa a respeito do mundo, no Brasil, é diretamente condicionado por dois elementos: a mídia americana — o NY Times e a CNN — e a mídia nacional. Em segundo lugar, além dessa deficiência, que é puramente negativa, existe a atuação de um fator ativo, que é a hegemonia esquerdista da mídia, a qual não vem de hoje, existe no mínimo há 60 anos, na mais modesta das hipóteses. Creio que eu já tenha mencionado aqui sobre uma publicação do sindicato dos jornalistas de São Paulo chamado “60 Anos de Jornalismo”, publicado na década de 80, onde estão lá todas as grandes figuras do jornalismo paulistano, e mais de 90% delas eram membros do Partido Comunista ou de algum partido parecido – do tipo da 4ª Internacional ou alguma outra variante. Quer dizer, a história da mídia em São Paulo era a mesma história do Partido Comunista, as grandes figuras de um eram as grandes figuras do outro. Esse fator geralmente não é levado em conta, as pessoas, mesmo as que têm essa informação, não costumam levar em conta porque, ignorando o que é realmente o Movimento Comunista e tendo dele uma concepção paroquiana e caipira, não conseguem relacionar esse predomínio dos comunistas na mídia com o conteúdo do noticiário. Eles acham que o sujeito, comunista ou não, é um “profissional de imprensa” cuja função é divulgar os fatos, e cada um tem lá a sua opinião, mas ele não vai deixar que a sua opinião modifique os fatos, quando na realidade a essência da profissão jornalística é a seleção dos fatos. Como é que se faz um jornal? De manhã chega lá um funcionário chamado pauteiro, que vai fazer a pauta, que são os assuntos que serão abordados na edição do dia independentemente do noticiário internacional que possa vir pelas agências. Neste momento o sujeito já faz uma seleção dependendo do seu critério de importância. Esse critério geralmente é baseado no quê? Nos outros jornais. Aquilo que os outros jornais vêm considerando importante será considerado importante na elaboração da pauta. A não ser, na quase impossível coincidência de que haja um pauteiro original, que tenha lá suas próprias ideias e queira fazer alguma coisa diferente – coisa que eu nunca vi em 50 anos de jornalismo. Um colega meu, do tempo do Jornal da Tarde, que era um homem inteligentíssimo, aliás, era professor de filosofia na USP, o Rolf Kuntz, ele dizia que os jornais praticavam autofagia: um só publica o que os outros publicaram, um lê o outro e repete, o outro lê o um e repete. E isso ficou assim no Brasil, sobretudo, depois dos anos 60/70 quando a mídia foi sendo unificada, quer dizer, o sindicato das empresas jornalísticas adquiriu uma unidade de princípios maior, os vários donos de empresas de mídia passaram a discutir as coisas mais constantemente e fizeram uma série de acordos, inclusive políticos, e isso uniformizou os jornais no Brasil inteiro. Além da uniformização empreendida pelas próprias empresas, havia uma uniformização ideológica empreendida por membros da redação. No jornalismo existe uma grande circulação de profissionais entre todas as redações. O sujeito que faz uma carreira inteira em um só jornal é uma raridade – existe, mas eu creio que não passa de 5%. Então, o sujeito está hoje na Folha, amanhã no Estadão, depois na Veja, e assim vai mudando; isso propicia também uma uniformização. É claro que existe a direção ideológica do processo, o pessoal do Partido Comunista dava certas instruções para prestigiar determinados personagens, seja da política, seja das letras, seja das artes, e negligenciar outros. Quando o Partido baixava uma instrução – “do fulano não é para falar” – como fizeram com Antônio Olinto, um escritor brasileiro que tem seus livros traduzidos em mais de trinta idiomas, é um sucesso internacional, a gente chega na Romênia tem lá uma biblioteca dele: durante trinta anos o nome dele desapareceu da mídia brasileira. Depois voltou, já velhinho, voltou para o Brasil e daí foi posto na academia, como uma espécie de prêmio de consolação, mas a cortina de silêncio vigorou durante trinta anos. Isso é um fenômeno que tem de ser levado em conta. O meu próprio nome foi banido por iniciativa do Milton Temer, que era um dos luminares do Partido, ele disse: “Do Olavo de Carvalho não se fala”. Então, de fato, o meu nome desapareceu. É claro que, de vez em quando, aparecia uma coisinha aqui, outra ali, mas totalmente desproporcional com o tamanho da atuação que eu estava fazendo e do efeito social que estava se desencadeando. O sujeito saía na rua, só via cartaz escrito “Olavo tem razão”, mas não havia uma menção a isso em jornal nenhum, noticiário nenhum; isso é o normal, esse é o procedimento da espiral do silêncio. As pessoas sabem que isso acontece, porém continuam lendo os jornais e vendo os noticiários da televisão como sendo a sua principal fonte de informação. Isso está diminuindo hoje, graças à internet, o pessoal se abriu mais para outras fontes, sobretudo para fontes diretas e a credibilidade da mídia no Brasil não passa de 5%. Mas esses 5% são importantes porque é a elite, são os políticos, são os professores universitários, em suma, são as classes falantes. Em geral, o espectador de um noticiário de TV, ou o leitor de um jornal, não faz a conexão entre os fatos que estão chegando para ele e a orientação ideológica que existe por trás; não conecta uma coisa com a outra, não entende que uma publicação, um jornal, por exemplo, é um produto inteiramente programado para impor uma certa visão das coisas. Essa visão não se impõe pela propaganda de opiniões – isso é a coisa mais fundamental –, as páginas de opinião, nos jornais, são as menos lidas. Temos o editorial, que é a opinião do jornal, e tem do lado uma série de artigos assinados, que são opiniões mais variadas, mas dentro de uma gama previamente escolhida. A imposição da visão se dá através da seleção do noticiário e da seleção sobretudo do critério de importância. Uma notícia pode ser publicada numa notinha de dez linhas na página 15 ou pode ser manchete no jornal. Ela pode ter uma sequência – um suíte, como se chama no jornalismo – ou não, podem noticiar a coisa uma vez e desaparecer ou podem continuar e aquilo virar uma espécie de leitmotiv, um tema recorrente como, por exemplo, os famosos crimes da ditadura viraram tema recorrente – mais recentemente, a corrupção virou um tema recorrente. Se não quisessem, eles poderiam controlar isso noticiando só de vez em quando e sem relacionar uma coisa com a outra. Em suma, o jornalismo não é um traslado da realidade, ele é um produto planejado de antemão e que obedece a uma padronização bastante rigorosa. Até o tamanho das matérias é programado. Antigamente se fazia um jornal da seguinte maneira: cada repórter escrevia a coisa que queria do tamanho que queria, daí tinha um diagramador incumbido de fazer aquilo caber nas páginas; ele tinha de fazer um cálculo, centimetrar e desenhar – os diagramadores eram tremendamente inventivos naquele tempo. Depois, a partir dos anos 70, já foi adotado no Brasil o sistema americano, onde a página era pré-diagramada e daí era o redator quem tinha de se esforçar para fazer a notícia caber no desenho que o diagramador concebeu. Por incrível que pareça, embora isso facilitasse o trabalho dos diagramadores, esse trabalho se tornou menos inventivo e não mais inventivo, aí os jornais começaram a se parecer terrivelmente uns com os outros. E o estilo americano, que é aquele estilo limpo, tudo geométrico, arrumadinho, acabou por sabia sequer a data em que as coisas iriam acontecer. Por incrível que pareça, essa mesma gravação desse mesmo telefonema é apresentada até hoje como prova da intervenção americana no golpe de 64. Qualquer pessoa com quem vocês possam conversar, sobretudo no meio universitário, se vocês colocarem a coisa em dúvida, ela vai dizer: “Não, mas isso é óbvio, é um fato histórico comprovado”. Não há comprovação nenhuma, é zero, literalmente zero. Não há nenhum sinal de uma intervenção americana no golpe de 64, zero. Daí as pessoas dizem: “Não, mas o EUA tinha firmas americanas, tinha a Light financiando movimentos de direita no congresso” – a Light não é americana, é canadense. Escuta, mas se eles estavam alimentando uma oposição no congresso, o que isso tem a ver com golpe militar, meu Deus do Céu? Se esperavam agir através do congresso, então certamente não era com um golpe militar que eles contavam. Eles citam, por exemplo, o IBAD, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática, que tinha dinheiro americano, dinheiro da Light. De fato, tinha, mas isso era uma ação dentro do congresso, era propaganda política normal dentro da concorrência parlamentar e, sobretudo, tem o fator que há vinte anos eu digo, que é: “Bom, se o EUA interferiu tanto, se a CIA interferiu tanto, tinha de ter pelo menos um agente da CIA lotado no Brasil; me deem o nome de um agente que estivesse lotado no Brasil”. Desde 1964, até hoje, (meio século) estou esperando o nome do tal agente, até hoje ele não apareceu. Em compensação, a ação da URSS no Brasil naquela época – e desde então – é totalmente ausente na mídia, no mundo das artes e espetáculos, no ensino universitário etc. E, para o cúmulo da ironia, os documentos revelados pelo Mauro Abranches, um brasileiro que vive na Polônia, mas fala tcheco e tem acesso aos documentos tchecos da STB, que é o serviço secreto tcheco, revelam claramente que havia uma multidão de agentes secretos soviéticos no Brasil, com nome, CPF, RG, endereço, número de telefone e cor da cueca! Sabe-se tudo a respeito desses caras! Bom, sabe-se quando se vai direto às fontes, quando vemos a imagem pública, que é aquela que é transmitida na mídia, isso está totalmente ausente. E, falar em ação da KGB, é se arriscar a ser chamado de teórico da conspiração, de saudosista da guerra fria, disso e mais aquilo. Existe realmente um bloqueio e esse bloqueio é do tipo da espiral do silêncio, não é uma coisa da qual seja ostensivamente proibido de falar, ele não é feito de cima, não é que tenha um governo que proíba, não há censura. Os agentes da censura, no caso, são os próprios jornalistas. O termo auto- censura não se aplica. Auto-censura existe quando há uma ditadura e o jornalista, com medo de dizer certas coisas, as omite para não desagradar o governo, isso é auto-censura. O que acontece no Brasil não é uma auto-censura, é uma censura exercida por jornalistas, é completamente diferente. O jornalista, como agente de uma facção ou de um partido, corta as notícias e faz desaparecer o que ele bem entende. Isso é um fenômeno geral e endêmico no Brasil. E, se não começarmos a levar isso em conta, nunca vamos entender nada do que se passa no Brasil e pior, não vamos entender qual a posição do Brasil no mundo. Hoje, quando vemos os documentos do PT, as discussões internas do PT nos últimos meses – que são muito interessantes –, vemos que ali circula livremente a opinião de que o impeachment da Dilma é intervenção imperialista do governo americano, o governo americano está derrubando a Dilma. Escuta, mas o governo americano não é o Barack Obama? O Barack Obama não é o sujeito que favorece a esquerda em tudo, não só no EUA, mas no mundo? Então por que ele estaria contra a Dilma? Nesses meios as pessoas realmente acreditam nisso. É claro, acreditam, em parte, na base da auto-persuasão histérica, porque a revolta popular que eclodiu contra eles é, para eles, um fenômeno inexplicável. Eu posso explicar, eu sei por que ela aconteceu, mas eles não sabem. Para eles isso é um fenômeno estranho, sem motivo, e tem de ter uma mão maligna do imperialismo americano por trás, ou tem de ter outra explicação conspiratória qualquer. E eles estão realmente se apegando a isso como avestruzes, não querem ver o que está acontecendo, e preferem inventar outro cenário que os tranquilize psicologicamente. Embora a situação seja muito ruim, eles acreditam que se entenderem a situação eles podem manipular: “Então este é mais um golpe imperialista e nós temos de reagir a isso”, ou seja, eles estão repetindo o script de 1964. Em 1964 acreditaram na balela da intervenção imperialista e continuam a cultivá-la até hoje de uma maneira avassaladora, não é um, nem dois livrinhos que saíram a respeito disso, tem uma biblioteca inteira a esse respeito, além de filmes. No ano passado fizeram um filme de novo sobre isso e o filme ganhou um prêmio. Um comunista faz um filme sobre isso aqui no Brasil, e lá em Paris outro comunista dá um prêmio para ele – não pensem que isso é uma coincidência. O comunismo é uma rede – eu já disse isto aqui: o comunismo não é uma ideologia, não é um regime, ele é uma organização mundial, vocês têm de entender isso aí. A ideologia pode mudar, os planos podem mudar, a estratégia pode mudar, mas a rede não é destruída, jamais. É claro que um indivíduo pode sair e entrar outro no seu lugar, mas a rede continua funcionando e, na verdade, o número de pessoas que sai é ínfimo, se pensarmos bem; é muito difícil o neguinho se desligar dessa coisa. Por quê? Se o sujeito entra no partido com dezessete, dezoito anos, todo o seu círculo de amizades está condicionado pelo partido. As festas que ele vai são de gente do partido, as conversas de que ele participa são de gente do partido, a namorada que ele arrumou é do partido, o seu casamento e os convidados são de gente do partido – quantos casamentos eu vi assim, gente! Eu tinha um contra- parente que era o ferramenteiro que consertava armas para o e ele estava casando a filha. Eu e o meu amigo Otto fomos convidados e fomos ao casamento, mas a casa era longe – Jardim raio-que-o-parta –, então eu e o Otto ficamos circulando e tentando achar a casa, quando chegamos lá era quase meia noite. Na hora em que nós entramos, um homem falou: “Puxa vida, que pena que vocês chegaram agora, acabei de bater a última foto”. Na semana seguinte, todos que estavam na foto estavam presos como cúmplices da guerrilha. É claro que somente 10% ali tinha algo a ver com a guerrilha, os outros sabiam da coisa, mas não tinham nada a ver pessoalmente, mas eram todos gente do partido, só tinha gente do partido no casamento – eu vi um monte de casamentos desse tipo. Como é que se desliga disso, meu Deus do céu? “Agora eu não pertenço mais ao partido” – o sujeito diz. Está bom, mas onde ele vai arrumar outros amigos que são contra o partido e que estão fora do partido? Tem de refazer a sua vida! [0:30] Geralmente o que o sujeito faz, quando ele sai, é ser considerado como estando num afastamento temporário; ele continua sendo tratado como se fosse um membro do partido. Eu, por exemplo, os caras me chamavam de companheiro vinte anos depois de eu ter saído do partido, o meu círculo ainda era de gente do partido. Quando havia amizade com algum sujeito da direita era uma exceção que era considerada um sinal do seu espírito democrático. Por exemplo, os sujeitos se davam bem com o Carlinhos Brickmann, que era assessor do Maluf, ninguém desgostava dele porque era o direitista de estimação. Algum direitista tem de ter, ó raios! Mas, em geral, os outros direitistas eram odiados, como Lenildo Tabosa Pessoa, Gustavo Corção, etc., mas algum direitista, se tem amizade com um do partido, pronto, já é aceito como a exceção que confirma a regra. Como o sujeito está num afastamento temporário, a sua atmosfera ideológica ainda é a mesma, portanto ele logo trata de se enquadrar em algum tipo de corrente política que não seja diretamente hostil ao partido. Por exemplo, ele vira um social-democrata, qualquer coisa assim, ou então pode entrar no tipo da oposição padronizada, como por exemplo, ele vira um liberal; ele pode ser um liberal, porque os liberais só têm contra os comunistas um ponto, que é o tal do livre mercado. Mas quem disse que os comunistas são contra o livre mercado? Por exemplo, o livre-comércio internacional. Karl Marx escreveu páginas e páginas a favor do livre-comércio internacional. Dentro da estratégia mais ampla do Movimento Comunista, o livre mercado é absolutamente necessário durante muito tempo. Lênin explica que é para estrangular os capitalistas “moendo-os entre as pedras da inflação e dos impostos”. Ora, isso não é incompatível com a iniciativa privada, pelo contrário, exige que exista uma iniciativa privada. Aí fica aquela discussão: mais imposto, menos imposto, a inflação está alta, precisa diminuir, vamos controlar a inflação – a discussão sobre o controle da inflação no Brasil durou sessenta anos. O centro da discussão é rebaixado para assuntos mais imediatos e a disputa ideológica maior desaparece, por assim dizer, e essa desaparição dá a impressão de o comunismo não existir mais. Estão entendendo como funciona isso? Se a única oposição que tem é a de pessoas que pertenceram ao grupo esquerdista e agora estão fora – com esse afastamento temporário – ou se enquadraram na oposição padronizada – que é inteiramente controlável, porque o sujeito pode aderir ao livre mercado, mas ao mesmo tempo continuar apoiando outras propostas da esquerda, como casamento gay, abortismo, educação sexual, etc., ele pode aceitar todo o programa cultural da esquerda – então ele não está atrapalhado porque, se ele quer o livre mercado, nós até certo ponto também queremos, então a oposição não é tão grande assim. Isto não é problema nenhum: aceitar o livre mercado nunca foi problema para os comunistas. Eu mesmo já expliquei em vários artigos que os governos comunistas não tratam de estatizar a economia, mas de estatizar tudo o mais, porque a economia é a parte mais volátil da vida social. É só vocês acompanharem a bolsa de valores que vocês vão ver tal ação, da companhia tal, aqui em cima, no dia seguinte, puft, caiu; o ranking de um país qualquer estava lá em cima, do dia para a noite, cai e depois sobe de novo. Como é que você vai controlar uma coisa dessas? A economia é incontrolável por natureza. Mas tem coisas que são controláveis como, por exemplo, a educação estatal. Quer dizer, os regulamentos da educação têm de ser implantados lá de cima e vão até a última escolinha de Vila Nhocunhé, São Tomé das Letras, está lá, seguindo as mesmas coisas, os mesmos critérios. Saúde pública também, é tudo uniformizado. As leis penais, tudo isso é uniformizado. É mais fácil controlar o resto da sociedade e deixar a economia correndo do jeito que ela está – Lênin já sabia disso, meu Deus do céu! Se o pessoal liberal faz tanta propaganda do livre mercado e faz disso o grande cavalo de batalha que os separa da esquerda – eles juntos, comunismo e fascismo, é tudo estatizante do mesmo modo; não deixam de ter razão, sob certos aspectos –, então a discussão se concentra nisso e o resto todo não tem importância. Por exemplo, convencer um liberal de que este negócio de casamento gay é um item fundamental da estratégia esquerdista: o cara vai levar anos para perceber, porque isso não tem efeito direto na liberdade do mercado, aliás, ao contrário, ele facilita a liberdade de mercado, pois os gays são um setor importante do mercado. A primeira página gay da imprensa nacional foi lançada pela Folha sob este pretexto: “Eles são uma fração importante do mercado e nós não podemos desprezá-los.” Tem toda a razão, é verdade. Se fizessem uma página para os cornudos, também seria uma imensa facção do mercado – “Se tutti i cornuti del mondo portassero un lampione, che brutta illuminazioni”. Só que ainda não existe orgulho dos cornudos. Existe orgulho gay, mas dos cornudos ainda não. Tem cornudo contente, mas não cornudo orgulhoso. [risos] É só por isso que não tem a página dos cornudos. O gayzismo em si não oferece ameaça à economia de mercado, mas oferece ameaça sob outros aspectos. A principal ameaça dele é o ímpeto regulamentador do Estado. Para “resguardar” os direitos da comunidade gay, eles têm de fazer um monte de regulamentos que diminui a liberdade de todo o resto e isso evidentemente é uma delícia, porque é uma reinvindicação de um grupo pequeno que dá ao governo instrumentos para ele controlar todo o resto. Vejam, no EUA tem projetos de lei que proíbe qualquer empresa recusar qualquer tipo de serviço à comunidade gay sob alegação religiosa – “Não, não posso fazer isso porque viola os [meus valores]”. Por exemplo, há uma empresa que faz festinhas e daí a contratam para fazer festinha para casamento gay: “Não, não posso fazer isso porque contraria a minha religião; somos católicos, protestantes, ortodoxos, judeus, sei lá o que”. Eles não mais poderão fazer isso. Significa o seguinte: eles vão forçar toda a população a contrariar os seus princípios religiosos para servir àquela pequena comunidade gay que, na verdade, não passa de 2% ou 3% da população; nunca passou, mesmo hoje. Mas se vocês perguntarem para as pessoas aqui no EUA, por exemplo, a maioria está convencida de que 20% é gay. Não sei de onde tiraram esses 20%. Esse negócio gayzista é apoiado pelas facções esquerdistas por essa razão. Não porque os esquerdistas morram de amores pelo gayzismo, nunca foi assim, mas ao contrário, onde quer que tenha um governo comunista os gays são perseguidos. Em Cuba, eles são jogados numa sessão que só tem aidéticos para morrerem lá dentro. Não vamos nem falar dos islâmicos que matam essa gente a 3x2 com o apoio da esquerda ocidental inteira. O gayzismo é útil para esquerda por causa disto: ele é um instrumento para a geração de controles estatais invasivos, mas não vai tocar na economia. Portanto, o liberal diz: “Ah, quebrado, etc., as fotografias estão lá à disposição. Bom, como é que no meio de não sei quantos mil torturados não tem uma única marca? Uma vez eu li um depoimento de um advogado dizendo: “Não, naquele tempo os caras estavam lá cortando dedos, furando olhos, cortando nariz” – me mostrem um! O único dedo cortado que eu vi foi o do Lula, que ele mesmo que cortou com a sua habilidade mecânica extraordinária. Essa coisa é tão repetida e jamais contestada. Quando é contestada é de maneira absolutamente inábil – o militar mais inteligente que se opôs a isso foi o general Leônidas, mas deixou muito a desejar pois ele já estava com 88 anos. Então, tudo passa como fato notório. Quem quer discutir o assunto, a primeira coisa que tem de dizer: “Bom, caso de tortura houve, mas isso é o máximo de oposição, de enfrentamento, que as pessoas se permitem”. Perguntem para mim: “Naquele tempo você estava na esquerda, você acompanhou, me diz quantos casos comprovados de tortura você ficou sabendo?” – eu respondo: “Nenhum, nunca”. Eu não vi um sujeito machucado, eu não vi ninguém sair lesado. Por exemplo, peguem as fotos dos terroristas trocados por embaixadores: estão todos inteiros, não tem um que sequer pareça desnutrido. Então, na verdade, eu não vi nenhum caso, mas na época eu acreditava porque os colegas diziam. Também nunca vi um sujeito que chegasse para mim e dissesse: “Eu fui torturado”. A minha contraparente que diziam que havia perdido um rim durante uma tortura, eu perguntei para ela: “A senhora foi torturada?”. Ela respondeu que não, mas até hoje o nome dela está na lista dos torturados. Na verdade, não houve nenhuma verificação, nunca. Mas a mera proposta da verificação aparece como uma provocação fascista e o pessoal que está contra os comunistas, que é anti-petista, tem inibição de discutir essa coisa. Escuta, mas se vocês têm inibição é porque o julgamento que os outros fazem de vocês já tem poder sobre vocês, evidentemente. “Ah, eles vão me chamar de fascista!” – mas eles vão chamar de qualquer jeito, eles já chamaram de fascista o Fernando Henrique Cardoso, o José Serra, até o Alckmin. O Alckmin manda reprimir uma greve lá: “Ah é fascista!”. O Alckmin, que é um cara que faz tudo o que eles querem. Vejam, a inibição que as pessoas têm ao pensar que serão massacradas: o que elas querem dizer com massacradas? Quer dizer que vão falar uma coisinha contra elas? Mas eles vão falar de qualquer jeito. Esse temor entrou muito profundamente na cabeça de todo mundo, então isso é uma dominação psicológica total. Se vocês não querem passar pelo teste, se vocês não querem ser rotulados de fascistas, então vocês não vão poder fazer nada, porque eles vão te rotular de qualquer jeito, isso é a primeira coisa que eles fazem. Curiosamente, depois que soltaram o livro da Márcia Tiburi, Como Discutir com um Fascista, começaram a aparecer cursos de como debater com fascistas nas faculdades e dados por pessoas que jamais debateram com ninguém. Isso é uma coisa extraordinária, porque eu só me aventurei a dar algumas lições sobre a arte de debater depois de eu ter participado vitoriosamente de vários debates — eu provei que sabia fazer e depois fui ensinar como se faz, mas eles não. Eles ensinam como faz sem nunca terem feito e isso é aceito como coisa normal. Quantos debates com “fascistas” a Márcia Tiburi teve? Nenhum, zero. E no dia em que se aventurar a ter um vai se dar muito mal, principalmente se o fascista for este que vos fala. Esta situação de anomalia epistemológica está consolidada no Brasil há muito tempo. E as decisões políticas que são tomadas com base nisso serão sempre erradas e acabarão sempre favorecendo o mesmo lado. Vejam, quando decidiram por esta estratégia do impeachment, a primeira coisa que eu falei foi: primeiro, impeachment demora; segundo, impeachment legitima a eleição fraudulenta, pois não se pode fazer impeachment de alguém que não é presidente da República, não se pode fazer impeachment de um usurpador, esse tem de ter o seu mandato cassado e ir para a cadeia. “Ah, mas isso é muito difícil de conseguir, vamos pelo objetivo mais modesto” – eles disseram. Quem disse que o mais modesto é o mais fácil? Imaginem uma moça de um metro e vinte sendo estuprada por um brutamonte, mas ela tem um revólver na bolsa: o que é o mais fácil dela fazer? Matar o cara. Agora, bater nele ela pode? Não pode. Ela não pode vencê-lo, ela só pode destruí-lo. Então, o que é aparentemente o mais difícil é, na verdade, o mais fácil. Do mesmo modo, o impeachment tem de passar pelo beneplácito da classe política, será preciso conquistar um por um. Logo, tem duas forças: de um lado há a intimidação popular e, do outro lado, tem a propina. Vamos ver o que pesa mais? “Eu tenho mais medo de ficar sem dinheiro ou tenho mais medo de a população bater em mim se eu sair na rua?” – foi isso durante meses. Não foi assim? Estou errado? Estou exagerando? Não. Foi exatamente isso. A contabilidade que os caras fazem é essa. “Este aí está me oferecendo dinheiro, mas os votos estão do outro lado. Se eu aceitar o dinheiro agora eles não votam em mim, daí acabou a mamata.” – é um cálculo desse tipo, durante meses e ainda prossegue. Mais ainda, no meio tem um treco chamado STF. Ora, pensem bem, nós queremos tirar a Dilma, mas qualquer proposta da Dilma tem de ser discutida no ministério, tem de passar pela câmara dos deputados, pelo senado, leva um tempo, e aí ela é filtrada, modificada, atenuada, etc., e no fim aprovam alguma coisa. A não ser que ela faça por medida provisória, mas medida provisória é provisória. E as decisões do STF? São nove neguinhos que nunca foram eleitos. Foram todos escolhidos pelo PT, com exceção do Gilmar Mendes. O que eles decidem entra em vigor na mesma hora. Não há instância superior. Então, meu Deus do céu, qual dos dois é mais perigoso, a Dilma ou o STF? É óbvio que é o STF. Qual é o grande problema nosso, é a Dilma? Não, a Dilma é um símbolo de uma situação. Comparem, pedir auxílio do STF para tirar a Dilma é pedir auxílio de um leão para te livrar de um bicho de pé. Todo mundo escolheu isso. Por quê? Porque temos uma atmosfera psicológica preparada para isso há mais de 60 anos. Notem, a palavra hegemonia tem de ser levada muito a sério. Hegemonia quer dizer um controle do imaginário popular, não é das opiniões da massa. Opinião é uma coisa que o indivíduo pensa e sabe que pensa. Imaginar é algo que passa pela cabeça dele e que depois ele esquece, mas que vai determinar a conduta dele na hora H. São conjuntos de símbolos, de reações espontâneas, de emoções impensadas, etc., e é isso que decide a conduta das pessoas. A vontade vai para onde a imaginação for, o que não está na sua imaginação não está na sua vontade – isso aí é batata. O que não formos capazes de imaginar não seremos capazes de fazer e se a nossa imaginação está toda povoada de reações e símbolos que são favoráveis a uma certa política, nós acabaremos favorecendo essa política mesmo que, conscientemente, na esfera das opiniões, nós estejamos contra. Por exemplo, existe cultura cristã conservadora no Brasil? Não, meu filho, nem cultura cristã. O cristianismo virou subcultura especializada – special interest – não faz mais parte da cultura geral. Vejam, até os anos 50/60 tínhamos a opinião cristã personificada em grandes nomes da literatura, como Jorge Lima, Murilo Mendes, Manuel Bandeira, o próprio Ariano Suassuna, Alceu Amoroso Lima, Gustavo Corção, eram todos grandes escritores nacionalmente reconhecidos e eram o pessoal cristão-católico. Aluno: E o Nelson Rodrigues? Olavo: O Nelson Rodrigues um pouco menos, ele era católico, mas não era essa a identidade dele, ele era um católico paradoxal – que nem eu. Ele falava palavrão, falava das putarias e essa coisa todo – eu também sou assim. Por mais católico que ele fosse, ele não fazia parte do grupo católico, por assim dizer – como eu também jamais farei, se Deus quiser. Desde então, a opinião católica – para não falar da protestante – desapareceu da esfera reconhecida como sendo da alta cultura. E, hoje, livros cristãos só saem por editoras cristãs para serem vendidos nas igrejas, nas livrarias das igrejas, assim como a literatura protestante. Como se fez isso? Isso é o que se chama hegemonia. Eles gradativamente vão empurrando [para a periferia da cultura], não vão proibir os livros, não vão censurar os livros, porque para isso seria preciso uma ação de Estado, e essa é oficial, portanto, todos ficam sabendo que aquilo foi decidido. Agora, quando eles vão ocupando espaços, eles vão removendo os seus concorrentes, um a um, um pouquinho de cada vez, sob mil pretextos ou sem pretexto nenhum e, de repente, eles desapareceram. E, depois que seus concorrentes desaparecem, se evidencia aquela norma do Émile Durkheim [1:00] que diz que a capacidade que uma sociedade tem de reconhecer uma anomalia é limitada, quer dizer, qualquer anomalia que dure um certo tempo passa a ser normal. Vejam, esse processo da hegemonia aposta nisso. Quando o Gramsci fala em reformar o senso comum, o que é esse senso comum? O conjunto de opiniões? Não. É o conjunto de símbolos, de reações, etc., que estão antes da opinião, que são, por assim dizer, pré-verbais – é isso que eles estão tentando mudar. O senso comum diz respeito às percepções, imaginações e emoções, não a opiniões. As opiniões são uma expressão parcial, limitada e superficial. Na hora em que eles dominam o senso comum, toda a anomalia que eles inventaram, dentro de uma geração ou menos, se torna normal, se torna uma situação estabelecida. Por exemplo, se falarmos em literatura católica, no Brasil, as pessoas não sabem o que é. Nunca ouviram falar. Se pegarmos a molecada que não está no curso de letras – porque no curso de letras é obrigado a ler de tudo um pouco – e falarmos de Murilo Mendes, por exemplo, nenhum deles sabe quem foi. Cria-se um grupinho de aficionados – como, por exemplo, os aficionados pelo Gustavo Corção que devem ser umas duas ou três mil pessoas – que continua sempre com saudade daqueles escritores, porém eles não têm vigência pública. Os caras que antes representavam uma facção importante da literatura brasileira [sumiram]. Assim como havia os autores comunistas, como Jorge Amado, Graciliano Ramos e outros, havia também os anti-comunistas, que eram também anti- fascistas e não-filiados a igreja, como o José Marques Rebelo, ou o próprio Carlos Drummond de Andrade – que sempre foi anti-comunista, embora fosse meio esquerdista. Quando eles fundaram a União Brasileira de Escritores, que na época se chamava Associação Brasileira de Escritores (ABDE), os comunistas queriam roubar os livros, queria roubar os registros dos votos e falsificar a eleição, o Carlos Drummond de Andrade pegou o livro e o defendeu contra os comunistas a pontapés, aquele homenzinho pequenininho ficou num canto dando pontapé em comunista. Ele foi queimado na mídia por causa disso? Não. Naquele tempo não tinha como fazer isso. Uma vez consagrado como grande escritor o sujeito tinha o seu nicho – hoje em dia não se tem mais. Mas e se o cara fizesse isso hoje em dia? Ia ser pior que o Bolsonaro, pior que o Olavo de Carvalho, iam falar o diabo dele, da mãe dele, da avó dele, do cachorro, do papagaio, da sogra. À medida que essa situação foi se consolidando, ela passa a ser a nova normalidade. Então, ninguém espera, por exemplo, que a opinião católica ou protestante conservadora apareça no jornal da grande mídia. Pode aparecer um pouquinho como, por exemplo, de vez em quando eles aceitam um artigo de algum arcebispo que, muito polidamente, cheio de dedos, etc., ele diz que é contra o aborto – “Mas olha que escândalo, o bispo é contra o aborto, meu Deus do céu!”. O que estou tentando [demonstrar] – nem sei se estou conseguindo dar para vocês a verdadeira dimensão da coisa – não é o problema de que há uma opinião predominante. Há um universo inteiro invisível e isso significa que a posição do Brasil no quadro internacional não é acessível a partir da cota de informações disponíveis. Por exemplo, aquilo que eu expliquei, no debate com o Dugin, que existem os três grupos globalistas, que às vezes concorrem, às vezes colaboram, etc., aquilo é essencial, é exatamente o que está acontecendo. O que nós vemos disso na mídia brasileira? Nada. Ora, mas isso é [diz respeito] ao destino do mundo, é isso que está sendo decidido aí. Não é uma intriguinha de gabinete. É o principal do que está acontecendo. Isso é assim entre o povão? Não. Isso é assim entre as classes falantes, entre os universitários, entre as pessoas diplomadas – tudo bem, é verdade que 50% delas são analfabetos funcionais e isso ajuda mais um pouco. Como poderemos ter uma política internacional vantajosa para o país? O cavalo de batalha do Trump é isto, é uma política internacional vantajosa para o país: ao invés de tirar o dinheiro do nosso bolso, ele põe algum lá dentro – que é uma obrigação, todo governante tem de fazer isso pelo seu país. Como podemos fazer isso no Brasil? Não podemos. Porque nós não podemos sequer enxergar o que os poderes internacionais estão fazendo, isso está proibido.

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