Baixe Douglas Santos - As leituras geográficas sobre paisagem e outras Notas de aula em PDF para Geografia, somente na Docsity! Olhares Geográficos Sobre Paisagem e Natureza - 35
Capítulo 2
AS LEITURAS GEOGRÁFICAS SOBRE PAISAGEM?
Douglas Santos
Vamos iniciar? tendo como base algumas aparentes obviedades: as coisas do
mundo, aquelas que de fato percebemos existir e em relação às quais damos nomes,
desenhamos, pintamos, dançamos, pensamos e, para encurtar a lista, de uma maneira
ou de outra, humanizamos, possuem tamanhos, posições, situações, significados muito
diferentes entre si. Para nós, uma imensa montanha é uma coisa bem diferente de um
fragmento de rocha sobre o qual podemos voltar, momentaneamente, nossa atenção.
Da mesma maneira, falamos da Via Láctea, dos planetas, dos átomos e das partículas
subatômicas como se fossem coisas em si mesmas. As palavras parecem fragmentar o
mundo, mas, de fato, o que elas fazem é representar a maneira pela qual somos capazes
de identificar as coisas do mundo (vale lembrar que nesse mundo sobre o qual falamos,
também estamos nós).
Se temos a possibilidade de imaginar o processo pelo qual construímos nossa
capacidade de colocar o mundo como um conjunto de elementos, mais ou menos
ordenados, na forma de um pensamento, havemos de considerar que sobre isso muitas
teorias já foram construídas. A mais conhecida entre nós está desenvolvida nas
primeiras páginas do livro do Gênesis, e coloca a noção de ordem sob a égide da vontade
divina. Se no “princípio era o caos”, o ato divino, fundamentalmente ordenador, separa
coisas, divide, pontua e identifica, para, no limite, criar o Éden: um lugar mais que
prestigioso para sua Árvore do Conhecimento e, vivendo em seus entornos, o humano
— uma ressignificação criada na relação entre a terra e o espírito, entre o barro e o sopro.
Cada civilização com suas explicações, sendo que o ponto de inflexão geral
sobre elas é, justamente, dar ordem ao mundo percebido. Foi assim que fizemos todas
as mitologias, filosofias e tudo o que chamamos hoje de ciência, além de,
cotidianamente, nos relacionarmos com o viver, com a perplexidade que nos cria a
possibilidade de defrontarmo-nos com o desconhecido, com a impossibilidade de
reconhecermos, na caoticidade dos estímulos que nos cercam, alguma ordenação, algo
28 O senso comum (os dicionários — vide bibliografia) nos informa que a palavra paisagem tem origem no
francês, numa associação entre as palavras pays e visage. Numa tradução direta, poderíamos afirmar que
se trata do “rosto” ou da “aparência” de uma área determinada. A expressão alemã landschaft é a mais
utilizada para traduzir paisagem e é dela que deriva a expressão holandesa landschap e inglesa landscape,
transformando a ideia original alemã de produzir a terra em observar a terra, ou terra ao longe.
2º Este texto foi escrito com o objetivo de responder ao tema de uma conferência que proferi no interior
do Seminário Internacional sobre Paisagem e Natureza, realizado na UFGD em junho de 2016.
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que nossa memória reconheça como familiar e em/de cuja processualidade possamos
participar com um mínimo aparente de riscos.
Há, inquestionavelmente, uma relação entre nós e nossa externalidade e, no
limite, entre nós e nós mesmos, na medida em que nos reconhecemos como uma
externalidade. A princípio, nos observamos com os mesmos procedimentos que nos
permitem observar o restante dos elementos que compõem a natureza. Assim, olhamos
e identificamos partes de nosso corpo ou, ainda, somos capazes de colocar nossos
próprios pensamentos sob o crivo da observação, bem como identificamos objetos, (ou
coisas, como já afirmei), reconhecendo em cada um deles uma identidade específica,
associada às escalas dos processos que nos permitam reconhecer uma unidade. Tal
capacidade, por sua vez, é a que nos permite articular a objetividade dos processos em
relação às subjetividades de nossa percepção. Como sabemos, as mesmas coisas,
observadas de uma mesma posição, tendem a provocar diferentes reações em
diferentes sujeitos. Essa mediação entre o sujeito e seus objetos é, ela mesma,
constitutiva da multiplicidade de leituras que, individual e coletivamente, construímos
de nós e, portanto, de nossa relação com o mundo. Um exemplo que nos interessa
sobremaneira é a divisão que fizemos da nossa sensorialidade. Quando identificamos
que possuímos cinco diferentes sentidos, separando o tato da visão, a audição do gosto,
o olfato do tato e assim por diante, em qualquer combinação que quisermos, nada, a
princípio, nos diz que algo que tenha cheiro não tenha gosto, que o que tem gosto não
tenha forma ou, ainda, que o que tenha forma não produza sons e assim por diante. A
questão, quando colocada, nos obriga a refletir sobre a multiplicidade de apropriações
que temos das coisas do mundo, envolvendo tanto a infinidade de variáveis (escalas,
processos) na identificação do fenomênico, quanto à infinidade de possibilidades que se
processa no ato identificador.
A questão, portanto, somente a título de exemplo, não está no fato de uma
determinada placa de vidro ser ou não lisa, mas quem a percebe desta ou daquela
maneira e a relação que define a percepção dos sujeitos em relação a um mesmo objeto.
Isso nos permite compreender o porquê, para um inseto, uma placa de vidro disposta
na vertical é suficientemente rugosa para que ele ali pouse e não deslize, enquanto que
isso, a princípio, é algo impossível para nós sem o uso de ferramentas adequadas.
Retomando: se, como afirmam os fisiologistas e assim o reconhece nosso senso
comum, nossos sentidos são capazes de reconhecer cores, formas, cheiros, texturas,
sons os mais diferentes, mas a combinação dessas capacidades associadas ao
fenomênico, no entanto, não são, em si e para si, suficientes para que as coisas sejam
reconhecidas. O sujeito, a princípio, deve associar a percepção a significados, o que só é
possível quando a experiência imediata é mediatizada pela memória, pela associação
entre o imediato e o mediado. É o constructo que permite associar experiências e delas
e sobre elas construir significados, ordenações que reconhecem e associam processos a
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desenvolvidas a partir do século XIII, principalmente nos Países Baixos e,
posteriormente, na França e Itália.
O ponto central daquela reflexão foi relacionar o declínio das relações feudais
associado aos primeiros movimentos efetivos para a constituição da sociedade burguesa
mercantil. Nesse contexto, o mundo como disponibilidade e o ser humano como criatura
preferencial do criador começam a sofrer alguns reveses significativos. A sociedade
burguesa entende o mundo como condição das relações mercantis e, portanto, como
recurso a ser apropriado, explorado, deslocado, quantificado, precificado, acumulado e
todas as demais variáveis que a realização do comércio impõe a quem dele participa.
Geza Szamosi (1988) realça o fato de a partir do século XIII terem surgido
movimentos de releitura do mundo que, expressos na arte, apontaram para o
desenvolvimento da música septuatônica e da presença da perspectiva na pintura.
Ambos os movimentos se associaram ao uso da linguagem matemática, tendo como
fundamento novos formatos na contagem do tempo e na identificação do espaço. No
que nos concerne nesse momento, vale realçar o desenvolvimento das identificações
matemáticas do ponto de fuga e os novos formatos de sistematização do “olhar do
sujeito” no que se refere à percepção e registro das formas das coisas do mundo e suas
derivações.
Vale citar, igualmente, a reflexão de Manguel (2001) ao chamar nossa atenção
para o fato de que:
Durante a Idade Média, um único painel pintado poderia representar uma
sequência narrativa, incorporando o fluxo do tempo nos limites de um quadro
espacial, como ocorre nas modernas histórias em quadrinhos (...). Com o
desenvolvimento da perspectiva, na Renascença, os quadros se congelam em
um instante único, o momento da visão tal como percebida do ponto de vista
do espectador. A narrativa, então, passou a ser transmitida por (...) meio
daquilo que o espectador, por outras fontes, sabia estar ocorrendo
(MANGUEL, 2001, p.25).
Figura 1: sem título.
Fonte: http: www.taringa.net
A imagem da Figura 01 é um bom ponto de partida para comentarmos as
referências já apontadas. Independentemente do irrealismo da imagem, na qual o Jesus
recém-nascido já se posiciona de forma a abençoar os reis magos, vale considerar que,
numa sociedade majoritariamente composta por analfabetos em relação às escritas
fonéticas, as histórias tomavam ares de realidade quando contadas através de imagens.
A ausência da perspectiva, no entanto, dificulta profundamente a inserção dos
personagens num contexto convincente para os dias de hoje — de qualquer maneira, os
fundamentos da sociedade feudal se propagavam e se garantiam, fundamentalmente,
pelo uso das imagens e da oralidade e, até onde podemos compreender e inferir daquela
sociedade, tais sistematizações pareciam suficientes para que o ideário da época se
reproduzisse com alguma eficácia.
A sociedade burguesa, no entanto, parece ter visto como absolutamente
necessário que os objetos — ou os elementos que compõem a imagem observada —
fossem representados de forma a preservarem sua característica distributiva. O acima,
abaixo, à frente, ao fundo, tornaram-se elementos estruturantes da relação entre o
sujeito, sua relação sensória com o mundo e sua capacidade de sistematização.
Figura 2: O Jardim das Delícias Terrenas (Bosch)
Fonte: https:www.wikipedia.org
Tal como nos vitrais e quadros medievais, os trípticos de Hieronymus Bosch
(1450/1516) carregam consigo temas associados ao panteão cristão. Na Figura 02,
reproduzimos O Jardim das Delícias Terrenas, no formato em que geralmente ele nos é
apresentado, isto é, aberto e mostrando a condição da humanidade ter sido criada no
Éden (primeira folha), viver no pecado (folha central) e sofrer os castigos do inferno.
Muitos são os trabalhos que procuram, detalhadamente, compreender o significado de
cada uma das figuras representadas por Bosch. Mas não é isso que nos interessa no
momento.
Nossa atenção, para os fins a que se destina este texto, é atentar para o
exercício desenvolvido pelo pintor no sentido de nos apresentar santos e pecadores,
demônios e serpentes, rochas e vegetais, espalhados de tal maneira que nos dá a
sensação de que determinados objetos estão mais próximos do observador que outros,
isto é, estão em primeiro plano. O sentido de realismo se materializa, conjuntamente,
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como a intenção da hierarquização. O perto e o distante, o grande e o pequeno, os
elementos que dominam o cenário e os que são coadjuvantes e assim por diante.
A paisagem, nesse sentido, é, para além da pura e simples constatação da
beleza, uma leitura do mundo pela identificação da disposição dos objetos
representados. Trata-se de outro olhar quando o comparamos com as pinturas típicas
do feudalismo. Seria identificar o que aparece e indicar o que se esconde, distribuir
elementos e inferir significados, indicar tamanhos e distâncias e sugerir a
processualidade que os cria e, estruturalmente, os relaciona.
A sociedade burguesa nascente recria a noção de paisagem, não porque,
necessariamente, redefine a localização e a forma dos objetos que percebe (mesmo que,
nesse processo, também o faça), mas, fundamentalmente, porque os ressignifica e,
nesse processo, se obriga a sistematizar seu olhar sob outros parâmetros. Sem mudar o
olhar não será possível enxergar o que se quer ver.
Ainda nos concentrando nessa mudança radical do olhar e suas
sistematizações, vale observar uma das pinturas mais famosas desse período da
revolução burguesa, a Mona Lisa.
Figura 3: Mona Lisa. Leonardo Da Vinci.
Fonte: https://www .wikipedia.org
Cultuada pelo seu sorriso enigmático, a imagem produzida por Da Vinci
(1452/1519) é, de fato, uma revolução. Para além das diferentes polêmicas e variações
mitológicas sobre as intenções do autor na produção de seus quadros, projetos,
cálculos, cursos e manuais sobre o ponto de fuga, observo aqui as imagens que se
encontram às costas da personagem e que dão a ela a evidência de “estar em um lugar
determinado”, localizável por entre um amplo conjunto de referências mais ou menos
conhecidas. O estar, portanto, se torna uma relação entre objetos que, distribuídos em
perspectiva, nos transmitem a sensação de que existem de fato porque existem numa
relação. Poderíamos, voltando ao vitral apresentado na figura 1, afirmar que os
sobre Mont Blanc (nos Alpes) é sua marca mais importante como pintor e comentador
das formas que o mundo possui.
Observar, recolher, categorizar, inserir a parte no todo, entender o todo como
uma expressão específica da relação entre partes; compreender cada parte como parte
de um todo. Distribuir, reconhecer, identificar a localização de cada parte e, no final das
contas, reconhecer que tal distribuição é, ela mesma, a forma e o conteúdo, a aparência
e a essência, porque nela reconhecemos a existência de um todo qualquer, isto é, um
processo sobre o qual se torna possível reconhecer um significado.
Os naturalistas parecem não duvidar de que há na noção de paisagem uma
exigência de empiria (real ou imaginária) e que, tal como o texto, a captura das formas
numa pintura ou num simples desenho, não se limita a expressar um mundo congelado,
paralisado, sem tempo, como imaginava Doreen Massey (2008), mas, sim, a inferir um
movimento, uma processualidade, uma interdeterminação. A crença geral, ao que
parece, é de que a percepção do mundo, na sua imediatidade, está carregada das
mediações que constituem lato senso, o que entendemos por ciência, isto é, pelo “estar
ciente” do sujeito.
Acontece, no entanto, que os nomes de Horace-Bénédict Saussure e Alexander
Von Humboldt não preenchem os diferentes significados de ciência que legamos e nem
os desdobramentos que o significado de paisagem pode produzir. Somente com o
intuito de colocar mais alguns elementos que podem nos ajudar a inferir a complexidade
do processo que envolve a observação das formas do mundo, temos de levar em conta
que tais naturalistas, com seus desenhos, também nos trouxeram a necessidade de
escavar, estudar as rochas e inferir suas dinâmicas, reconhecer suas resistências e
associá-las às formas que produzem, reconhecer nas formas os significados, indicar nos
significados a possibilidade de se reconhecer objetivos.
Nesse movimento se propôs uma nova leitura sobre os seres vivos e,
certamente, uma nova leitura sobre os limites e significados de humano e humanidade.
Os relevos, até então representados com o uso de hachuras, se tornam o alvo principal
das intervenções provocadas pelo comércio, pela fábrica e, nesse contexto, pela
presença estrutural das estradas de rodagem e pelas ferrovias, com elas os túneis e,
assim, se constituíram fenômenos como a disputada unificação territorial da Europa, a
constituição dos EUA e do Canadá, a colonização da Índia e assim por diante.
No final do século XIX, a fotografia e, com ela, o cinema, irão revolucionar a
disponibilização das imagens possíveis sobre o mundo, multiplicarão seus significados e,
portanto, redefinirão a imediatidade da percepção do mundo. A arte pictórica nos dirá,
rapidamente, a necessidade de se redefinir com clareza o significado de sujeito,
colocando a seus pés a pseudo-objetividade da ciência positivista. Impressionismo,
expressionismo, cubismo, surrealismo e abstracionismo buscarão, cada um a seu modo,
falar do mundo recriando-o ou, ainda e simplesmente, fazer do registro gráfico uma
forma mais que definitiva do silêncio, do nada dizer para que algo se diga para além do
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discurso falsamente explícito que denominamos de conhecimento científico.
Do ponto de vista da Geografia, os embates se multiplicaram de forma muito
semelhante à multiplicação das percepções e do rápido movimento de transformação
das representações. Do ponto de vista das suas dimensões técnicas, salienta-se a
disponibilização com que a fotografia, os computadores e as redes eletrônicas
planetárias permitiram a parcelas cada vez mais significativas de pessoas a capacidade
de capturar as formas num formato mais ou menos significativo. Por outro lado, temos
o fato de que a consolidação do imperialismo é, de fato, a tensa relação entre um
determinado projeto de sociedade procurando (ou forçando) criar simbioses mais ou
menos perenes com a diversidade do mundo em todos os seus recortes.
No geral, isso significa uma mudança direta nas formas do mundo e, no limite,
no significado das formas que permanecem, pois, de uma maneira ou de outra, a
constituição do capitalismo nada mais é que a realização de uma maneira de viver e o
que chamamos de imperialismo é o seu formato necessariamente planetário: a nossa
maneira de viver redefiniu a escala de abrangência de nosso ecúmeno, redefinindo os
elementos que permitem e estimulam a produção e reprodução de um novo ecúmeno.
Nesse contexto o discurso geográfico também sofre mudanças e suas
categorias precisam ser reconceituadas. De Kant a Hegel e a Marx, de Humboldt a Ratzel,
de La Blache a Lacoste, de Hartshorne a Milton Santos, da geopolítica aos escritórios
estatais ou privados de planejamento, em diálogo mais ou menos tenso com os centros
acadêmicos de pesquisa, estamos nos referindo a novas tecnologias (cartografias,
fotografias), novas perspectivas funcionais (redefinição das rendas diferenciais
provocada pela presença de novas tecnologias, novas bases produtivas, novas
mercadorias), que nos obrigam a redefinir o significado de localização e os meios de
identificá-la.
Explicitar todas essas variáveis e inventariar as polêmicas que criaram
dialogando com os diferentes autores que delas participaram, como é fácil de imaginar,
é uma tarefa que não cabe num simples artigo. Para que o debate, no entanto, não
ficasse sem se realizar, escolhi um autor, um livro, um capítulo desse mesmo livro e,
dentro dele, realcei alguns trechos que me pareceram interessantes. Claro! Todas essas
escolhas envolveram algum tipo de arbitrariedade, mas, de qualquer maneira, trata-se
de um texto relativamente bem conhecido nas lides acadêmicas brasileiras e é isso que
torna o exercício um esforço que me pareceu interessante. Vamos a ele, portanto.
Polêmicas em torno da categoria paisagem e seu uso na Geografia. Um
exemplo a partir de Jean-Marc Besse
Jean-Marc Besse (2006), quando escreveu seu pequeno livro Ver a Terra, o
subtitulou seis ensaios sobre a paisagem e a Geografia, nos quais, entre muitas
provocações, procurou desvendar ou sistematizar um significado para paisagem. Vale
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lembrar, ainda, que o quarto ensaio do livro de Besse (2006) toca diretamente nos
nossos (da Geografia) autores clássicos mais evidentes?*: Humboldt e Vidal de la Blache.
Trata-se, como nos afirma o título, de buscar nesses autores algum tipo de diálogo com
o objetivo de explicitar seu embate com noções de paisagem que a “resumem” a uma
dimensão estética (de resto, essa parece ser a intenção geral da publicação). Vejamos:
Um dos postulados teóricos e historiográficos mais disseminados atualmente
(e talvez dos menos discutidos) referentes à noção de paisagem na
modernidade faz dela essencialmente uma representação de ordem estética,
cuja origem seria, antes de tudo, pictórica. De fato, três termos são
encadeados (representação, estética, pintura) para afirmar que a paisagem é,
de maneira geral, uma construção cultural, que ela não é um objeto físico,
que ela não deve ser confundida com o ambiente natural, nem com o
território ou o país. A paisagem é da ordem da imagem, seja esta imagem
mental, verbal, inscrita sobre uma tela, ou realizada sobre o território (in visu
ou in situ) (BESSE, 2006, p. 61).
Da leitura do primeiro parágrafo de Besse (2006) se infere um tom de protesto,
mesmo que não nos indique uma alternativa de fato. Ao que parece, o autor tem alguma
restrição a esta relação, aparentemente, do senso comum da literatura, de associar
paisagem com a estética e à “ordem da imagem”. Por ser imagem (representação) ela,
em si mesma, não existiria como coisa (nos nossos termos) e, ao que parece, tal
tratamento incorre em algum erro conceitual que só seria desvendado mais à frente.
Um pouco mais adiante (Besse, 2006, p. 64), Besse (2006) cita Max Sorre (cuja afirmação
se encerra com um pressuposto: Todas as ideias de um biogeógrafo são extraídas da
contemplação da paisagem), sobre o qual faz alguns comentários bem pertinentes:
Não se trata, portanto, de negar o visível, mas de lhe atribuir, além da
experiência sensível que dele se pode fazer, um outro estatuto, uma outra
função: o visível revela algo. Ele exprime. O que quer dizer que ele não é
unicamente uma representação (SORRE apud BESSE 2006, p.64).
Alguns pontos a se comentar, o primeiro deles é o que nos responderia a uma
pergunta aparentemente muito simples: ser o visível é o mesmo que ser paisagem?
Todo visível é paisagem e, portanto, tais palavras são sinônimas? Na continuação, vale
questionar igualmente: o que é visível? Bem... sem complicar muito a resposta,
poderíamos afirmar que se trata dos fenômenos que podem ser percebidos pela visão.
Assim, o que vemos não é o visível, mas “as coisas” que nosso sentido de visão é capaz
de perceber. Não existe um objeto geral chamado visível (da mesma maneira que, como
já observamos, não existe um objeto geral cujo nome seja paisagem).
Mas, devolvamos a palavra a Besse (2006). Na página seguinte, teremos uma
abordagem aparentemente mais direta do assunto:
35 O título do artigo é “A Fisionomia da Paisagem, de Alexander von Humboldt a Paul Vidal de La Blache”.
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1. O presente texto está muito distante de dar conta das relações fundantes
que dão identidade ao nosso campo do conhecimento, o que exige que um novo texto
seja elaborado com o objetivo de montar, de forma completa, o quadro geral de
articulação das categorias;
2. Por outro lado, trata-se do ponto de partida necessário à reflexão como um
todo. A retomada da discussão sobre o mundo tal como ele se apresenta aos sentidos e
as categorias tal como elas nos permitem articular a relação entre o sensório e o
sensório pensado, é o fundamento ontológico e, por isso mesmo, epistemológico que
deve dar sustentação às discussões sobre o sentido do discurso geográfico.
Dessa maneira, e procurando sistematizar o texto como um todo, reproduzo
aqui a proposição que tenho apresentado sobre o significado de paisagem e, assim,
encerro aqui, provisoriamente, o artigo.
A Paisagem, para a Geografia, é:
* A dimensão da aparência:
— A percepção das formas — o olhar, o olfato, a audição, o tato e o gosto.
— Uma construção nomenclatural.
— O sentido da descrição.
— A busca primária da significação.
* Paisagem — um movimento na construção do conhecimento e, portanto, não
é uma identidade do objeto, mas condição da construção do conhecimento pelo sujeito,
isto é, paisagem não é o fenomênico na sua pura externalidade em relação ao sujeito,
mas a forma pela qual a externalidade se torna “coisa para o sujeito” ou “objeto”.
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