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Tipologia: Redação
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Introdução O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), órgão administrativo e judicante vinculado ao Ministério da Justiça, é responsável pela chamada política de defesa da concorrência ou política antitruste. Essa política pública baseia-se em uma premissa central do liberalismo econômico que afirma que situações de maior concorrência nos mercados trazem maiores benefícios econômicos para consumi- dores e para as economias nacionais. A concorrência entre as empresas pela venda de produtos e serviços permitiria aos consumidores comprar produtos a preços menores e tornaria as empresas mais inovadoras e produtivas (Hovenkamp, 2005). Na prática, o órgão brasileiro que implementa essa política tem a tarefa de inves- tigar concentrações e práticas empresariais, buscando verificar se essas infringem a chamada Lei da Concorrência, prejudicando outras empresas e consumidores^1. Na investigação de casos de concentrações empresariais – como fusões, aquisições, joint ventures, entre outras –, a autoridade antitruste brasileira é responsável por autorizá- -las ou proibi-las, verificando se essas uniões prejudicam ou não a concorrência em
110 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 29, n. 1 algum mercado. Entre as práticas empresariais consideradas “anticompetitivas”, que são investigadas quando há uma denúncia ou algum indício de que foram realizadas, estão a prática de cartel, preço predatório e venda casada^2. Se o tribunal do Cade, formado por sete membros economistas e juristas, decidir que houve conduta desse tipo, pune-se administrativamente as empresas envolvidas. Cada caso do conselho, seja ele referente a uma concentração ou conduta, cons- titui um processo administrativo, que é instruído e, em seguida, julgado pelo órgão^3. Os “atos de concentração”, como são conhecidos os processos de concentrações em- presariais, são instaurados quando empresas protocolam um requerimento ao Cade solicitando autorização para prosseguirem com a união desejada. Os funcionários do órgão instruem o processo por meio de uma análise que tenta obter informações sobre os mercados em que essas empresas atuam, incluindo informações sobre as outras empresas e os consumidores dos produtos ou serviços correspondentes. Essas informações indicam aos analistas a probabilidade de a fusão investigada alterar as condições de concorrência nos mercados de maneira a prejudicar outros participantes. Para decidir se aprovam ou não uma fusão, os profissionais do Cade precisam primeiramente saber quem são os participantes do mercado analisado – todas as empresas que nele concorrem, incluindo as próprias requerentes – e quanto cada um tem de participação no mercado, ou seja, quanto cada um responde em termos de receita ou oferta de algum produto ou serviço (conhecido como o market share de cada participante). Essa informação é necessária, pois entende-se que um núme- ro pequeno de empresas participantes/concorrentes em um mercado aumenta a probabilidade da fusão requerida “concentrar” demais o mercado, produzindo uma empresa com “poder de mercado” elevado, isto é, com grande participação em relação aos outros. Por outro lado, quando um mercado possui várias outras concorrentes além das requerentes, é mais provável que a fusão não seja danosa à concorrência, pois a nova empresa não seria capaz de prejudicar outros participantes do mesmo mercado ou seus consumidores. Baseado em uma pesquisa de campo na sede do Cade em Brasília, este artigo descreve a dificuldade enfrentada e as soluções apresentadas por funcionários do Cade quando os concorrentes de um mercado não são facilmente visualizados ou
112 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 29, n. 1 Na terceira seção, demonstro como o desenvolvimento do mercado financeiro tem dificultado essa identificação. Em seguida, apresento uma descrição dos procedimen- tos que foram realizados para identificar um concorrente na análise de uma fusão empresarial no ano de 2013. Concluo com algumas observações a respeito do modo como a sociologia e a antropologia têm se debruçado sobre o tema dos agentes ou agenciamentos econômicos. Das pessoas jurídicas aos agentes econômicos O “xerife da concorrência”, como a imprensa denomina por vezes o Cade, é conhe- cido no Brasil pelo julgamento de fusões entre grandes empresas, como aquelas entre a Brahma e a Antarctica, a Gol e a Webjet ou a Sadia e a Perdigão. Mais recentemente, o órgão tem chamado a atenção pelas investigações de condutas empresariais ilícitas, principalmente cartéis de processos licitatórios, como o “cartel do metrô” de São Paulo ou aqueles mencionados na Operação Lava-Jato da Polícia Federal. A legisla- ção concorrencial, entretanto, não restringe seu escopo apenas a certas empresas de tamanho suficientemente grande para serem largamente conhecidas do público. A lei sequer define um tipo específico de personalidade jurídica sobre a qual ela deve ser exercida. Conforme o artigo 31: Esta Lei aplica-se às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como a quaisquer associações de entidades ou pessoas, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal (Brasil, 2011). O “sujeito da Lei Antitruste”, como o denomina a jurista Paula Forgioni, é “qual- quer um que possa praticar ato restritivo da concorrência” (2013, p. 145, grifo meu). No entanto, esses tipos de ato são ou costumam ser cometidos apenas por entidades cuja forma legal tende a ser uma pessoa jurídica, devido às tipificações legais de tais atos. Em relação aos atos de concentração, diz a lei, no artigo 88, que: […] serão submetidos ao Cade pelas partes envolvidas na operação os atos de concentração econômica em que, cumulativamente: i – pelo menos um dos grupos envolvidos na operação tenha registrado, no último balanço, faturamento bruto anual ou volume de negócios total no País, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 400.000.000,00 (quatrocentos milhões de reais); e ii – pelo menos um outro grupo envolvido na operação tenha registrado, no último balanço, faturamento bruto anual ou volume de negócios total no País, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de reais) (Brasil, 2011). O agente econômico e suas relações, pp. 109-
abril2017 113 Essa qualificação dos atos que devem ser notificados ao Cade implica, na prática, que apenas empresas relativamente grandes enviam pedidos de aprovação de atos de concentração. Por outro lado, no sistema econômico que caracteriza países indus- trializados, não são indivíduos, mas sim sociedades empresariais aquelas responsáveis pelas produção, distribuição e comercialização da maior parte dos produtos e dos serviços consumidos pela população. As infrações à ordem econômica, apontadas na introdução, são cometidas, portanto, por essas sociedades, que concorrem com outras nos mais diferentes mercados. A forma legal capaz de estruturar empresas que exercem tais condutas ou que possuem tamanha escala de faturamento é, na prática, aquela de uma pessoa jurídica. Essa indefinição ou não especificação da personalidade jurídica do sujeito admi- nistrado pela legislação concorrencial não deve ser entendida como uma falha do legislador, mas sobretudo como uma característica da própria política antitruste, que baseia suas decisões em análises econômicas sobre o funcionamento dos mercados e das empresas. Nessas análises, as formas jurídicas nas quais as partes envolvidas em uma fusão se estruturam – seja na forma de sociedades anônimas, abertas ou fechadas, seja na forma de sociedades limitadas, pessoas físicas, entre outras – são menos relevantes que o modo como essas partes agem e se relacionam com outros participantes do mercado, ou seja, é a definição de quem concorre em um mercado, quem é o “agente econômico” específico, qualquer que seja sua personalidade jurídica, que importa na análise do órgão antitruste^5. Ao receber um requerimento de concentração empresarial enviado por duas pessoas jurídicas, o papel do Cade, como já dito, é verificar se essa união será pre- judicial para outros concorrentes ou para os consumidores dos mercados afetados pela fusão. Esse prejuízo à concorrência tem como base o capítulo ii, artigo 36, da legislação concorrencial, que especifica: Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou que possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: i – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudi- car a livre concorrência ou a livre-iniciativa; ii – dominar mercado relevante de bens ou
abril2017 115 agentes econômicos não costuma ser difícil, pois, na grande maioria dos processos instruídos pelo Cade, os responsáveis pela análise normalmente consideram que as pessoas jurídicas que enviaram o requerimento de concentração são também as en- tidades que concorrem entre si nos mercados analisados. As pessoas jurídicas quase sempre são tomadas como representando, na prática, diferentes agentes econômicos. Contudo, a identificação de entidades econômicas concorrencialmente autôno- mas pode também ser bastante complexa. Com o desenvolvimento cada vez maior do mercado financeiro no Brasil, a equiparação entre certas pessoas jurídicas com certos agentes de um mercado tornou-se um problema, pois os próprios limites desses agentes ou, melhor dizendo, dos concorrentes de um mercado ultrapassam aqueles definidos pelas formas jurídicas adotadas pelas empresas requerentes ou pelas marcas empresariais conhecidas. Quando uma empresa a e b, atuantes em um mesmo mercado, são propriedade de um fundo de investimento c, como é possível saber se a e b são concorrentes no mercado, considerando que suas ações podem estar sendo coordenadas por meio de um mesmo corpo administrativo? Questões de fundo A dificuldade do órgão antitruste em definir quem e quantos são os concorrentes em um mercado específico é um problema relativamente recente no Brasil. Como vimos, na maior parte dos casos, as pessoas jurídicas que enviam requerimentos para unir-se com outras podem ser consideradas, para efeito de análise, como sendo os agentes que concorrem nos mercados. Essa consideração só é possível quando os proprietários e os controladores das empresas requerentes não possuem parcelas de outras ou, dito de outro modo, quando a propriedade das sociedades empresariais está nas mãos das mesmas pessoas físicas que as controlam administrativamente. Ainda hoje a maioria das empresas brasileiras tem como proprietários e administradores uma família, tornando simples a reunião de empresas, seus proprietários e admi- nistradores em uma única unidade econômica independente – um só concorrente. Porém, o desenvolvimento do mercado de capitais e, principalmente, o cresci- mento dos fundos de investimento têm tornado mais complexa a visualização dos proprietários e controladores das empresas. O crescimento do mercado financeiro tem promovido a dispersão da propriedade, ao possibilitar a posse de títulos e ações empresariais por qualquer interessado que esteja disposto a adquiri-los. Se a propriedade de uma empresa e, consequentemente, sua administração podem ser distribuídas entre um grande número de pessoas físicas e/ou jurídicas, torna-se mais difícil saber onde estão as fronteiras entre uma empresa e outra, quais são seus limites. Cada vez mais as empresas estão relacionadas por meio de proprietários ou Gustavo Gomes Onto
116 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 29, n. 1 administradores em comum, o que confunde o trabalho de um órgão que precisa definir claramente, como exposto na seção anterior, os agentes que concorrem nos mercados, visando a obter uma estimativa de sua participação. Como precisar quem são os agentes autônomos e independentes de um mercado quando as pessoas jurí- dicas e físicas que têm a propriedade acionária e o controle administrativo de várias empresas estão relacionadas? Na recente jurisprudência do órgão, esse problema tem sido mais frequente em casos em que as requerentes de um ato de concentração são propriedade de fundos de investimento, que também as controlam, gerando uma “sensível questão concorrencial”, segundo os funcionários do Cade. Caso um fundo possua ações e o controle administrativo de mais de uma empresa em um único mercado, ele poderia influenciá-las ao mesmo tempo, fazendo com que não concorressem entre si, pois isso seria prejudicial aos interesses do fundo. A questão enfrentada pelos analistas é como saber se a pessoa jurídica que enviou o requerimento de fusão concorre com as outras empresas do mesmo mercado quando um fundo de investimento possui ações tanto dela quanto de algumas das outras, supostamente suas concorrentes. Será que os investimentos de um fundo, quando divididos entre várias empresas de um único mercado, pode acabar tornando todas essas empresas parte de um mesmo grupo que agiria em comum acordo e orientação? Se este for o caso, todas essas em- presas que receberam investimentos não poderiam ser consideradas concorrentes entre si nem agentes econômicos distintos, mas sim parte de um único agente ou grupo econômico. Embora relativamente recentes no Brasil, problemas e questões de política pú- blica decorrentes do desenvolvimento do mercado de capitais já eram comuns há muito tempo em países como os Estados Unidos. O próprio surgimento da política antitruste naquele país estava ligado ao combate a grandes empresas, muitas delas formando conglomerados atuantes em vários setores da economia. No final do século xix, as corporations, empresas organizadas juridicamente para permitir e incentivar mais facilmente a dispersão acionária, expandiam-se enormemente no país^6. Nessa época, a chamada separação, ou “dissociação”, da propriedade acionária e do controle administrativo passou a ser considerada uma questão econômica, jurídica e social relevante (Barrionuevo Filho, 1987). Entre os pensadores sociais que tinham interesse particular no fenômeno da sepa- ração entre propriedade e controle, produzida pela forma corporativa das empresas, pode-se mencionar Karl Marx e Marcel Mauss Para os dois autores, as corporações,
118 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 29, n. 1 A separação entre os proprietários e os controladores das empresas também gerou grande interesse na sociologia organizacional a partir dos anos de 1980. Esses trabalhos, que acabaram sendo considerados fundantes da chamada “nova sociologia econômica”, procuraram explicar, por meio de variáveis institucionais, relacionais ou políticas, o modo como as organizações se comportam. Tendo em vista que a propriedade dessas organizações estava distribuída entre muitos acionistas, entre eles famílias, companhias de seguro, bancos, fundos de pensão e de investimento, e que sua administração poderia ser direcionada tanto por esses proprietários como por gerentes, conselheiros e diretores das empresas, pesquisadores tentavam de- terminar quais eram os fatores – relações pessoais (Burt, 1983; Mintz e Schwartz, 1985), posição no “campo organizacional” (DiMaggio, 1985; Fligstein e Brantley, 1992), “concepções de controle” (Fligstein, 1990), entre outros – que influencia- vam a formulação das decisões e dos objetivos empresariais. Em resumo, parte da literatura sociológica procurava esclarecer como as empresas ou outras organizações se comportavam num ambiente em que as corporações estão inseridas – embedded (Granovetter, 1985) –, em um conjunto de relações mais ou menos formais com outras organizações, até mesmo com o Estado. Este artigo não oferece uma explicação adicional às abordagens sociológicas – ou econômicas (Fligstein e Brantley, 1992) – sobre como decisões organizacionais são tomadas ou ainda sobre os potenciais danos ou benefícios de novas formas orga- nizacionais. Como fica claro na próxima seção, muitos dos argumentos utilizados pelos sociólogos, inclusive suas técnicas de investigação, são utilizados pelos próprios analistas do Cade para explicar como as ações empresariais podem estar interligadas e, por vezes, direcionadas ao mesmo objetivo. O conhecimento sobre quem controla administrativamente as empresas, tendo em vista compreender suas orientações, é um desafio da própria análise antitruste, não apenas de sociólogos ou economistas. Porém, essa questão é apenas parte do problema mais essencial para a decisão anti- truste, a saber, a identificação de quem são os agentes que concorrem no mercado analisado para definir suas respectivas participações e, assim, estimar o impacto da fusão ou aquisição empresarial. Como podemos ver na próxima seção por meio de alguns procedimentos de análise de uma aquisição no mercado de ensino superior privado, a política antitruste explicita a necessidade de uma concepção pragmática das agências econômicas em concorrência num mercado, levando em conta as relações de propriedade ou administrativas entre pessoas físicas e jurídicas. O agente econômico e suas relações, pp. 109-
abril2017 119 Duas concorrentes e um professor 8 Durante seis meses acompanhei o trabalho de investigação necessário à instrução de processos, realizado pelo gabinete de um dos conselheiros do Tribunal Adminis- trativo de Defesa Econômica do Cade. O Tribunal, composto por seis conselheiros mais o presidente do órgão, tem como missão instruir e julgar os processos admi- nistrativos. Cada um dos gabinetes do terceiro andar da sede do Cade em Brasília costuma abrigar três ou quatro assessores e um ou dois estagiários que produzem ofícios, fazem pesquisas e redigem relatórios ou parte dos votos que o conselheiro leva a julgamento. Em uma manhã de novembro de 2012, uma assessora de outro gabinete entrou na sala em que eu e outros quatro funcionários estávamos e perguntou se alguém já havia utilizado as ferramentas de um website de nome MarketVisual. Como nenhum de nós havia ouvido falar desse website, ela nos explicou sua finali- dade, mostrando, em uma folha impressa, a Figura 1.
abril2017 121 não parecia que fosse resultar no impedimento da fusão, como ela mesma me disse. Primeiramente, ela contou que havia descoberto algo que já havia sido uma fonte de preocupação entre alguns conselheiros do Cade durante julgamentos. Estes aponta- vam para uma crescente aquisição de participações societárias por parte de fundos de investimento em empresas que atuavam no mercado de educação superior privada brasileiro. Como relatado no voto do conselheiro-relator do processo instruído, o jurista Alessandro Octaviani, a formação de grandes grupos privados de educação no país é um processo “sem precedentes na história mundial” (Idem, p. 1859). Dos cinco maiores grupos educacionais brasileiros, quatro são comandados por empre- sas do setor financeiro (Idem, p. 1861)^10. No caso relatado, Camila descobriu pela internet, tanto em reportagens como no sítio eletrônico da própria requerente, que duas empresas do mercado de educação superior privada, a Anhanguera, empresa adquirente, e a Anhembi Morumbi, uma outra suposta concorrente, tinham alguma forma de relação por meio de pessoas jurídicas e físicas. Segundo a reportagem “Duas concorrentes e um professor em comum”, publicada no jornal O Estado de São Paulo em 11 de junho de 2012 e encontrada pela assessora, o “professor Gabriel”, como era conhecido, havia vendido o “controle” administrativo da Anhembi Morumbi, o equivalente a 51% da propriedade da empresa da qual fora fundador, para uma multinacional do setor de educação, a Laureate Education Inc. Contudo, mesmo sem o controle da universidade, que supostamente estaria nas mãos dos acionistas majoritários, ele continuava “dando palpites na administração dos sócios” (Idem, p. 1883). A empresa responsável por essa reestruturação societária da Universidade Anhembi Morumbi era uma empresa conhecida de consultoria financeira e gestão de fundos, Pátria Investimentos, cujos executivos eram conhecidos da filha de Gabriel, Ângela Rodrigues, que, por sua vez, trabalhava no departamento financeiro da universidade. Para a assessora, a questão “começa a se complicar” quando, de acordo com a reportagem, dois anos depois da venda parcial da Anhembi Morumbi, o Pátria foi responsável também pela abertura de capital da Anhanguera. Para isso, o Pátria criou um fundo específico, o Fundo de Educação para o Brasil (febr), que comprou 17% das ações da Anhanguera, sendo que a “família Rodrigues”, proprietária da Anhembi
122 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 29, n. 1 Morumbi, garantiu, por meio de uma negociação, 70% de participação nesse fundo. Mesmo com apenas 17% das ações, o febr, uma pessoa jurídica, tornou-se a acionista controladora da Anhanguera, segundo a reportagem. Camila descobrira, portanto, que o fundador da Universidade Anhembi Morumbi, Gabriel Rodrigues, que con- tinuava influente nas decisões de sua empresa, era também um dos acionistas de um fundo que, por sua vez, tinha ações e controlava a Anhanguera. Como a assessora explicou, a “questão Gabriel” gerava uma dificuldade prática para a análise do mercado de educação superior privada, no abc e em todo o país, que exigia determinar a participação de mercado da requerente Anhanguera. Para Camila, mesmo que o caso dissesse respeito à aquisição de faculdades de uma ter- ceira empresa – Anchieta – era necessário saber quanto a Anhanguera possuía de participação de mercado e qual era o tipo de relação entre ela e uma suposta grande concorrente, a Anhembi Morumbi. Caso a presença comum de Gabriel impusesse às duas empresas um comportamento tal que inviabilizasse a concorrência entre elas, a participação de mercado das duas empresas, Anhanguera e Anhembi Morumbi, teria que ser considerada em conjunto, pois “atuariam como um só agente no mercado”. Além da pesquisa em jornais, revistas e sítios da internet, a assessora procurou por informações relevantes em registros das juntas comerciais do Distrito Federal, dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, que são acessíveis pelos seus respectivos sítios eletrônicos. Essas e outras informações colocaram em dúvida a declaração prestada pela requerente Anhanguera na petição inicial, na qual afirmava que nenhum membro da diretoria ou do conselho do grupo educacional exercia função de conselheiro ou de diretor em empresas atuantes no mesmo setor. Segundo constava da Ata da Reunião do Conselho de Administração da Anhanguera de 15 de setembro de 2010, documento enviado ao Cade pela requerente, Ângela Regina Rodrigues de Paula Freitas, filha de Gabriel Rodrigues, era membro do conselho de administração da empresa. A assessora encontrou, entretanto, um registro na Junta Comercial do Estado de São Paulo ( Jucesp) que apontava Ângela também como diretora da iscp, a sociedade mantenedora da Universidade Anhembi Morumbi/ Laureate (Idem, p. 1888). Ângela também tinha outras relações comerciais e societá- rias que a uniam às duas supostas concorrentes. Por exemplo, de acordo com a Ata da Assembleia Geral Extraordinária da Anhanguera, de 29 de outubro de 2010, Ângela Rodrigues tem escritório na rua Casa do Ator, n. 99, no bairro da Vila Olímpia, em São Paulo. Porém, conforme a consulta realizada na Jucesp, esse mesmo endereço coincidia com o de um dos campi da Universidade Anhembi Morumbi Laureate (Idem, p. 1889). A utilização do MarketVisual e da rede produzida por esse meio apenas produziu mais uma evidência de que Ângela, assim como Gabriel, estava de alguma forma vinculada a duas empresas supostamente concorrentes. O agente econômico e suas relações, pp. 109-
124 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 29, n. 1 de uma “orientação concorrencial central,, definida na cúpula do referido grupo, seja qual for sua forma de constituição, da qual se espera o cumprimento pelos demais integrantes” (Idem, p. 1908). Para o conselheiro-relator, as participações e as relações entre as pessoas jurídicas e físicas tornavam razoável inferir que as duas empresas tinham conhecimento mútuo de suas ações e estratégias e que não agiriam de forma alguma em desacordo com a outra ou para prejudicá-la. Se todas as entidades presentes nesse arranjo, pessoas físicas e jurídicas, podem ser consideradas “como se fossem uma” concorrente para fins da política de defesa da concorrência, devem ser somadas, segundo o conselheiro, “as participações e os recursos conexos dos grupos Anhanguera/Anhembi Morumbi Laureate/Pátria” (p. 1913), não apenas na instrução desse processo, mas sempre que houver a neces- sidade de se calcular o market share dos participantes em uma análise que envolva alguma dessas empresas. A investigação realizada neste caso conseguiu provar que a requerente Anhanguera tinha uma participação maior no mercado, tendo em vista que sua alegada concorrente, a empresa Anhembi Morumbi, estava vinculada a ela de diversas formas, de modo que só poderiam constituir um mesmo “arranjo” figura 2 Quadro intitulado “Novelo de participações societárias” Fonte: Cade (2013, p. 1900). O agente econômico e suas relações, pp. 109-
abril2017 125 organizacional agindo de maneira coordenado. Portanto, não era possível considerar a Anhanguera e a Anhembi Morumbi como concorrentes entre si no mercado de educação superior privada. Ao descrever seus procedimentos, o conselheiro afirmou que as participações acionárias de pessoas físicas, mesmo que minoritárias, as estratégias empresariais coincidentes e os corpos dirigentes cruzados entre empresas (a conhecida interloc- king directorates estudada pelos sociólogos organizacionais) possibilitam conhecer e definir aquilo que ele chamou alternadamente de “novelo”, “organizador central das decisões”, “núcleo organizador real”, “grupo econômico” ou “arranjo”. Esse agente econômico, concebido com base nas relações de propriedade e de controle entre pessoas físicas e jurídicas, escapa ou extrapola as formas jurídicas nas quais certas entidades se constituem e se apresentam. Segundo o conselheiro, essas formas, pelo contrário, podem acabar ocultando o verdadeiro agente que a política antitruste necessita identificar. Em um trecho do voto, o conselheiro critica o uso das formas oficiais, sejam elas administrativas ou jurídicas, como critério analítico: […] como sugere Mark Granovetter, aqueles que acreditam que a estrutura da empresa reside no seu organograma oficial ou nas estruturas societárias formais “não passam de bebês perdidos na floresta da sociologia”, pois a organização “formal” (e, em muitos casos, também a “informal”) da sociedade empresária não são suficientes para a análise antitruste (Idem, p. 1917)^11. Dessa forma, aproximando a análise antitruste de certos estudos sociais das organizações, a análise realizada nesse caso conseguiu provar que um dos agentes econômicos do mercado, o requerente, possuía uma participação maior no mercado, tendo em vista que seu suposto concorrente, Anhembi Morumbi, era constitutivo de um mesmo arranjo organizacional. Essa definição do agente não resultou em um resultado diferente para a requerente Anhanguera, que teve sua aquisição aprovada pelo Cade. Os conselheiros entenderam que a concorrência nos mercados afetados na região do Grande abc paulista não seria tão reduzida com a aquisição, mesmo que considerassem Anhanguera e sua suposta concorrente, Anhembi Morumbi, como parte do mesmo grupo. No entanto, as descobertas decorrentes da investiga- ção, que enfatizaram a importância de uma análise detalhada de concentrações que envolvem fundos de investimento, construíram uma nova jurisprudência para casos no mercado de educação superior privada no Brasil.
abril2017 127 “nova sociologia econômica”, para justificar uma interpretação das agências econô- micas da política da concorrência em termos relacionais. Este sociólogo empregou a noção de redes sociais para explicar que toda ação econômica é necessariamente imbricada (embedded) em relações sociais. Autores mais contemporâneos como Michel Callon (2008) e Donald MacKenzie (2009), provenientes dos estudos sociais das ciências, também têm buscado oferecer uma alternativa a supostas concepções correntes da teoria econômica, chamando atenção para as condições que possibi- litam conceber e construir agentes ou agências (agencements) econômicas como entidades calculadoras ou racionais. Não seria possível entender o funcionamento do mercado financeiro, por exemplo, levando em consideração apenas a agência dos humanos. As ações de operadores de mercado (traders) seriam parte de um arranjo sociotécnico que inclui “equipamentos” como calculadoras, softwares, algoritmos, documentos, entre outros “actantes”, que, em conjunto, os tornam capazes de tomar decisões econômicas. Esses autores, e outros também – por exemplo, Bourdieu (2000) –, não estão apenas construindo um argumento crítico em relação à teoria econômica (ou mesmo aos antropólogos e sociólogos que concordavam com essa teoria), segundo a qual as unidades básicas para a análise da vida econômica poderiam ser consideradas os indivíduos racionais maximizadores de escolhas entre custos e benefícios – os homo economicus. Os autores estão basicamente descrevendo como agências econômicas são construídas ou como variam enormemente entre contextos. Neste artigo, de- monstro como a questão da visualização e da concepção de agências alternativas não é apenas monopólio dos cientistas sociais, mas também dos próprios especialistas, muitos deles educados na teoria econômica moderna, responsáveis por implementa- rem uma política pública presente em praticamente todos os países industrializados. A descrição de como os profissionais do Cade conceberam um agente concorren- te do mercado, unindo as empresas Anhanguera e Anhembi Morumbi, ilustra como a política antitruste não está tão distante de perspectivas socioantropológicas que pensam o agente como uma rede híbrida composta de pessoas (jurídicas e físicas) e coisas (propriedade). No caso aqui observado, a identificação dos concorrentes passa também, como vimos, pela identificação de relações de propriedade e controle empresariais, que incluem também relações de parentesco (família Rodrigues), formando um “novelo” com objetivos e intenções singulares. Se a análise concorrencial usa uma abordagem relacionalista, não é improvável que outras formas de governar a economia também tenham necessidade de produ- zir continuamente formas de agência econômica contextuais e específicas. Criticar o modo como alguns economistas ou certas políticas econômicas simplificam a realidade, utilizando, na prática, variações possíveis de “indivíduos maximizadores Gustavo Gomes Onto
128 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 29, n. 1 autointeressados”, não parece ser suficiente ou mesmo válido quando consideramos a diversidade de agências ou sujeitos econômicos potencialmente concebidos e construídos por meio de políticas públicas, teorias econômicas alternativas e outras práticas econômicas, eruditas ou ordinárias. Cabe aos cientistas sociais investigarem mais profundamente as diferentes formas de agências ou sujeitos econômicos, como o “concorrente” neste caso, que atravessam e formatam modos de pensar e agir eco- nomicamente nas sociedades modernas. Referências Bibliográficas Barkan, Joshua. (2013), Corporate sovereignty: law and government under capitalism. Min- neapolis, University of Minnesota Press. Barrionuevo Filho, Arthur. (1987), “A separação entre propriedade acionária e controle administrativo: revisitando os clássicos”. Revista de Administração de Empresas, 4 (27): 31-37. Berle, Adolf A. & Means, Gardiner C. (1932), The modern corporation and private property. Nova York, MacMillan. Bourdieu, Pierre. (2000), Les structures sociales de l’économie. Paris, Seuil. Brasil. (2011), “Lei n. 12.529, de 30 de novembro de 2011”. Disponível em http://www.pla- nalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/Lei/L12529.htm, consultado em 8/11/2014. Burt, Ronald. (1983), Corporate profits and cooptation: networks of market constraints and directorate ties in the American economy. Nova York, Academic. Cade – Conselho Administrativo de Defesa Econômica. (2013), “Voto do conselheiro Ales- sandro Octaviani no Processo Administrativo n.^ 08012.0038886/2011-87. Requerentes: Anhanguera Educacional Ltda. e Grupo Anchieta”. Disponível em www.cade.gov.br, con- sultado em 15/2/2014. Callon, Michel. (2008), “Economic markets and the rise of interactive agencements: form prosthetic agencies to habilitated agencies”. In: Pinch, Trevor & Swedberg, Richard (orgs.). Living in a material world: economic sociology meets science and technology studies. Cambridge, The mit Press. DiMaggio, Paul. (1985), “Structural analysis of organizational fields: a blockmodel approach”. Research in Organizational Behavior, 7: 335-370. Elyachar, Julia. (2005), Markets of dispossession: ngos, economic development, and the state in Cairo. Durham, Duke University Press. Fligstein, Neil. (1990), The transformation of corporate control. Cambridge, Harvard Uni- versity Press. Fligstein, Neil & Brantley, Peter. (1992), “Bank control, owner control, or organizatio- nal dynamics: who controls the large corporation?”. American Journal of Sociology, 2 (98): 280-307. O agente econômico e suas relações, pp. 109-