Baixe A Sociedade e a Transformação dos Espaços Sociais: Impacto da Tecnologia e da Economia e outras Teses (TCC) em PDF para Economia, somente na Docsity! LADISLAU DOWBOR A REPRODUÇÃO SOCIAL Propostas para uma Gestão Descentralizada São Paulo, Fevereiro de 1998 PRÓLOGO .............................................................................................................................................. 4 2 INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................... 6 I - MUDANÇA E GOVERNABILIDADE .......................................................................................... 9 1 - TÉCNICAS, TEMPO E ORGANIZAÇÃO SOCIAL ................................................................................... 10 2 - DA GLOBALIZAÇÃO AO PODER LOCAL: A NOVA HIERARQUIA DOS ESPAÇOS ................................... 16 Espaço global ................................................................................................................................ 16 A formação dos blocos .................................................................................................................. 18 A erosão do Estado-nação ............................................................................................................. 19 Os regionalismos ........................................................................................................................... 21 O papel das metrópoles ................................................................................................................. 21 A cidade como base da organização social e política ................................................................... 23 O resgate da dimensão comunitária .............................................................................................. 24 Os espaços articulados .................................................................................................................. 26 3 - AS POLARIZAÇÕES ECONÔMICAS .................................................................................................... 27 4 - A REESTRUTURAÇÃO DEMOGRÁFICA E AS NOVAS DINÂMICAS DO TRABALHO ............................... 33 5 - GOVERNABILIDADE: O DESLOCAMENTO DO PODER ........................................................................ 46 O poder do “primeiro mundo” ...................................................................................................... 48 O papel das empresas transnacionais ........................................................................................... 49 Capitalismo de pedágio ................................................................................................................. 52 II - A REPRODUÇÃO SOCIAL ...................................................................................................... 56 6 - O CICLO DA REPRODUÇÃO SOCIAL .................................................................................................. 59 Os fatores de produção .................................................................................................................. 60 A formação do Pib ......................................................................................................................... 63 Os meios de pagamento ................................................................................................................. 67 Os agentes da reprodução social .................................................................................................. 79 Concentração e distribuição ......................................................................................................... 80 7 - AS GRANDES ÁREAS DA REPRODUÇÃO SOCIAL ............................................................................... 86 8 - ATIVIDADES PRODUTIVAS .............................................................................................................. 90 Agricultura e pecuária ................................................................................................................... 90 Exploração florestal ...................................................................................................................... 94 Pesca .............................................................................................................................................. 96 Mineração ...................................................................................................................................... 98 Construção ..................................................................................................................................... 99 Indústria de transformação ......................................................................................................... 102 9 - AS INFRAESTRUTURAS ECONÔMICAS ........................................................................................... 110 Transportes .................................................................................................................................. 111 Telecomunicações ........................................................................................................................ 114 Energia ........................................................................................................................................ 116 Água e saneamento ...................................................................................................................... 119 10 - INTERMEDIAÇÃO COMERCIAL E FINANCEIRA .............................................................................. 128 Intermediação comercial ............................................................................................................. 130 Intermediação financeira ............................................................................................................ 136 11- AS INFRAESTRUTURAS SOCIAIS ................................................................................................... 144 Saúde ........................................................................................................................................... 147 Da educação à gestão do conhecimento ..................................................................................... 152 Cultura, informação e entretenimento ......................................................................................... 165 Urbanismo, habitação e redes de proteção social ...................................................................... 171 Turismo e esportes ....................................................................................................................... 179 12 - A GESTÃO DO DESENVOLVIMENTO ............................................................................................. 184 Alocação de recursos ................................................................................................................... 185 Justiça e segurança ..................................................................................................................... 187 Representacão política ................................................................................................................ 197 Os atores sociais .......................................................................................................................... 199 A regulação internacional ........................................................................................................... 201 Articulação dos mecanismos de regulação ................................................................................. 204 III - RECUPERANDO O CONTROLE ............................................................................................ 208 13 - ESTADO E SOCIEDADE CIVIL: A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA ................................................... 209 A dimensão do Estado ................................................................................................................. 212 5 insegurança dos poderosos em insegurança de todos. E não se trata somente de justiça social. Com os poderosos instrumentos tecnológicos que hoje manejam o cientista, o operador financeiro, o dono de emissoras de televisão, o militar ou o terrorista, uma melhor organização social torna-se indispensável para a nossa sobrevivência, ricos ou pobres. De ninguém se exige a clarividência de todas as respostas. Mas de todos se exige o comprometimento pessoal por uma humanidade mais justa e solidária. O egoismo como valor universal, frágil construção que herdamos dos utilitaristas ingleses, está deixando de ser útil. Como estão se tornando insustentáveis as grandes simplificações econômicas e sociais da sobrevivência do mais apto, e de uma sociedade baseada no individualismo. Temos assim de iniciar a penosa reconstrução de uma ética social. Temos frequentemente uma curiosa tendência a identificar os culpados do estado de coisas que enfrentamos, e a ficar à espera que de alguma forma desapareçam. A identificação nos sossega, pois podemos nos queixar dos culpados a cada momento, sem carregar as nossas próprias responsabilidades. Sejam quais forem as soluções, exigirão difícil costura política com todos os atores sociais da sociedade realmente existente. E a construção do novo não se fará no caminho simplificado da punição dos culpados. Temos de reconhecer também que muitos dos que identificamos como “inimigos” são também os que contribuiram para a nossa relativa prosperidade, seja descobrindo novos processos produtivos, seja batalhando uma repartição mais justa do produto. Não se trata de olhar para trás, com saudade de uma paz social que nunca existiu. Temos de olhar para a frente, onde ideologias simplificadoras do século XIX, sejam de mercado ou estatistas, já não correspondem às novas necessidades de regulação social. Não é preciso ter uma bússola muito afinada para saber qual é o nosso “norte”. A mesma amplitude de tomada de consciência que permitiu no passado ultrapassar as grandes chagas mundiais que constituiram a escravidão e o colonialismo, é hoje necessária para enfrentarmos o drama da pobreza no mundo, esta trágica articulação de degradação humana e ambiental que nos aflige. Há pouco mais de um século a escravidão aparecia como natural, e até há poucas décadas o colonialismo era visto como legítimo. Hoje temos instrumentos técnicos e meios econômicos amplamente suficientes para enfrentar este novo desafio de humanização do planeta. 6 Introdução “O mundo pode estar se movendo inexoravelmente para um desses momentos trágicos que levará futuros historiadores a perguntar, porque não foi feito nada a tempo?” 1 Todos nos sentimos um pouco cansados com os parâmetros simplificados que nos têm orientado, ou com propostas demasiado globais para se materializarem em políticas aplicadas. É curioso ver como em nome de Marx se tivesse gerado o nacionalismo econômico, o Estado todo-poderoso, a redução dos espaços democráticos. E que em nome de Adam Smith se tenham desenvolvido os gigantescos monopólios mundiais, o encalacramento de direitos adquiridos através de patentes cada vez mais absurdas, o controle manipulador da mídia, os impressionantes sistemas de intermediação e especulação que cobram pedágio dos produtores e dos consumidores. As realidades que enfrentamos são realidades novas, e as bandeiras teóricas que levantamos passaram frequentemente a ser meros engôdos, dando uma aparência de legitimidade intelectual a processos onde predomina simplesmente a despiedada e violenta corrida por vantagens a qualquer preço. O debate econômico, e com isto a teoria econômica, têm se desenvolvido essencialmente na órbita das ideologias. O fato real é que enquanto nos vamos acusando recíprocamente de acabar com o mundo, entre esquerda e direita, o mais provável é que terminemos efetivamente por acabar com o mundo. O nosso consolo será que morreremos todos com a convicção de que tínhamos razão. As boas vontades aqui não são suficientes, porque não se sustentam os paradigmas com que se trabalha a problemática econômica nem na tradicional esquerda “estatista”, nem na direita neo-liberal. O problema que enfrentamos não se coloca em termos de alternativas entre se assegurar justiça social ou as liberdades econômicas, mas de se articular os dois de maneira adequada. Grande parte da esquerda trabalha ainda com uma visão clássica de que a justiça social e a solidariedade virão através do reforço de estruturas estatais. Tabalharemos aqui com a visão de que a própria visão de Estado tem de ser revista, pois o sistema atual não permite que um Estado, reforçado ou não, responda a estes problemas. Forças socialistas que se apropriaram desta “máquina” viram a que ponto é difícil fazê-la funcionar visando o bem público, e terminaram aplicando poíticas contrárias aos seus programas. Neste sentido, batalham-se os ideais corretos através de caminhos que não são adequados. E não é suficiente apontar os ideais sem apontar o “como”. A direita imagina que se possa casar economia do século XXI com política do século XIX. A liberdade inovadora do padeiro e do fabricante de alfinetes perde qualquer 1 - “The World may be moving inexorably toward one of those tragic moments that will lead future historians to ask, why was nothing done in time? Were the economic and policy elites unaware of the profound disruption that economic and technological change were causing working men and women? What prevented them from taking the steps necessary to prevent a global social crisis?” Ethan B. Kaptstein - Workers and the World Economy - Foreign Affairs - May-June 1996, p. 16 7 sentido frente aos gigantes de impacto planetário da indústria automobilística, da mídia, da especulação financeira, do comércio internacional de armas sofisticadas, para citar alguns. E quem manda no planeta não é uma abstração chamade de “forças de mercado”: são poderosas e concretas empresas transnacionais. O capitalismo, na medida em que deixa a empresa se organizar livremente da forma que mais lhe convenha, atinge uma eficiência indiscutível. Mas ao mesmo tempo em que dinamiza a produção, gera estruturas de poder que tornam inviável a sua distribuição equilibrada, e com isso reduz radicalmente a sua utilidade social. Um sistema que sabe produzir mas não sabe distribuir é a médio prazo inviável. Basta lembrar que cerca de 150 milhões de crianças passam fome, e que 3,5 bilhões de pessoas sobrevivem com uma renda per capita situada na média de 350 dólares por ano, que um bilhão de analfabetos pode apenas imaginar o que é a revolução informática. Todas estas cifras focam problemas que não constituem resíduos do passado: pelo contrário, estão se agravando, e só os ideologicamente cegos podem deixar de ver que precisamos de soluções novas. Por trás da visão liberal, há um a priori extremamente simplificador, a de que o mero volume de riqueza produzida levaria necessariamente a que sobrem cada vez mais migalhas, incluindo gradualmente os excluidos. Esta teoria do “gotejamento”, do trickling-down, constitui simplesmente um êrro teórico, na medida em que isola os processos econômicos das estruturas de poder político que os processos econômicos geram. O que existe, quando muito, é um trickling-up, uma elitização universal que coloca em cheque a nossa forma geral de organização social. Na gangorra ideológica que nos hipnotizou a todos, em que a direita quer mais poder para os empresarios, e a esquerda para o Estado, esquecemos que a sociedade não se divide em empresários e Estado, e que devemos restituir ao cidadão, à sociedade civil, formas efetivas de controle tanto sobre a empresa como sobre o Estado, sobre o que chamaremos aqui de macroestruturas do poder. Neste sentido, defensores da economia liberal e da economia social têm de repensar a compatibilidade dos meios e dos fins, ou até de redefiní-los. Na ausência de uma classe redentora, burguesa na concepção do liberalismo, ou proletária na concepção marxista, e numa sociedade que se transforma rapidamente através de um processo complexo de articulações, já não se justifica um “messianismo” social, herança teórica do século XIX. O tempo das grandes simplificações sociais já passou. O universo dividido em nações, e estas em burguesias, proletariados e campesinatos, deu lugar a um conjunto de sistemas mais complexos e intricados, que ademais evoluem e se transformam com grande rapidez. Frente a estas mudanças, o mais importante não é mais definir a sociedade ideal que queremos, e sim gerar na sociedade instituições e mecanismos de regulação que permitam à sociedade ir se transformando e reconstruindo de acordo com os seus desejos e necessidades. Ou seja, o único compromisso real é com a democracia efetiva, enquanto os caminhos que as populações decidirão democraticamente trilhar no futuro pertencem a elas, e não a nós. O que nos propomos aqui, é recuperar as implicações práticas de um objetivo social que hoje já é razoavelmente consensual: a visão de um mundo justo é tão essencial 10 1 - Técnicas, tempo e organização social “The achievements of science outrun our capacity to manage the power they give us” - J.M. Roberts - History of the World2 As mudanças estruturais partem essencialmente das transformações tecnológicas. Quer utilizemos a divisão do trabalho permitida pela máquina, em Adam Smith, ou o desenvolvimento das forças produtivas em Marx, não há dúvida que o motor da história encontra-se nos processos produtivos. As bases tecnológicas do nosso desenvolvimento estão passando pela mais dramática transformação da história da humanidade. Em nenhum momento, nem na imensa abertura que significou a Renascença, com gigantes como Leonardo da Vinci, nem no explosivo final do século passado, que nos deu a energia elétrica, o motor a combustão e as bases da física moderna, houve qualquer coisa que se comparasse com a atual abertura dos nossos horizontes. Considera-se hoje que os conhecimentos novos adquiridos nos últimos vinte anos correspondem grosso modo ao conjunto dos conhecimentos técnicos que a humanidade acumulou durante a sua história. Um balanço do estado da arte em termos de conhecimento do cérebro, por exemplo, constatava em meados de 1995 que 95% destes conhecimentos haviam sido desenvolvidos nos cinco anos anteriores.3 Qualquer balanço nesta área torna-se rapidamente desatualizado. Para efeitos metodológicos, no entanto, identificaremos alguns grandes eixos de transformação, porque muito do nosso futuro já está em boa parte contido nas transformações que hoje se consolidam. O eixo da eletrônica, e particularmente o da informática, já invade literalmente o nosso cotidiano. Em termos de simples poder de tratamento de informações, considera-se que em dez anos este foi multiplicado por cem. A imagem utilizada para dramatizar este processo, é de um carro que hoje anda a 100 quilómetros por hora, e que em dez anos chegasse aos 10 mil. Mas enquanto o carro acelera as nossas pernas, e outras máquinas substituem os nossos braços, a informática coloca nas nossas mãos instrumentos revolucionários de dinamização do próprio conhecimento. Apropriar-se do eletron e do foton como instrumentos de expressão, estocagem, organização, busca inteligente e transmissão de informação significa simplesmente que o conjunto dos processos vinculados ao conhecimento passa a utilizar um meio cuja rapidez é a da velocidade da luz. Significa também que a informação adquire a fluidez da corrente elétrica, podendo ser transmitida a cada casa, a cada indivíduo, a cada empresa ou instituição científica, criando um ambiente global de conectividade e interação de cuja existência mal se podia suspeitar há alguns anos atrás. 2 - J. M. Roberts, History of the World, Penguin Books, London 1995, pág. 1105 3 - Ver Joel Swerdlow, Quiet Mircales of the Brain, National Geographic, vol. 187, n.6, June 1995 11 Estas transformações coincidem com outro processo de avanço vertiginoso, o das telecomunicações. Se em dez anos o potencial informático foi multiplicado por cem, na área das comunicações o aumento foi de um para mil, e nos setores que já utilizam sistemas óticos foi de um para um milhão.4 De repente temos o planeta enfeixada num espaço unificado de comunicações via satélites, cabos óticos e sistemas de retransmissão que, no dizer do Business Week, está transformando “editoriação, distribuição a cabo, programação de TV, filmes e telefone em um só sistema de distribuição”.5 Na realidade, tudo que pode ser expressado através de sinais positivos e negativos da eletricidade ou outro sistema binário de simbolização, como palavras, números, sons e imagens, tornou-se hoje extremamente fluido e universalmente acessível. Um terceiro eixo de avanços fenomenais é o conhecimento da vida. O projeto Genoma está pela primeira vez desvendando o código genético humano, lançam-se os primeiros micro-organismos genéticamente manipulados para digerir poluentes químicos, a agricultura prepara-se para a sua revolução genética, os poderosos microscópios eletrónicos associados aos computadores permitem uma autêntica revolução no conhecimento do funcionamento das células e assim por diante. Não se trata mais de reproduzir apenas os animais e de aproveitá-los de diferentes maneiras, e sim de interferir no próprio sistema de reprodução, criando um espaço econômico de arquitetura de seres vivos. Um quarto eixo importante concerne as energias. O laser já entrou no nosso cotidiano, através do disco CD, da medicina, dos sistemas de gestão de estoques nos supermercados, do microcomputador na nossa mesa. O próprio uso direto da energia solar, através de filmes foto-voltáicos, está abrindo novos horizontes. Novos materiais como os supercondutores já estão saindo da fase experimental, permitindo formas radicalmente novas de utilização da energia. Estes e outros eixos de transformação tecnológica - pode-se citar a pesquisa espacial, os avanços da química fina e tantos outros - provocaram uma ruptura qualitativa na forma da sociedade se relacionar com o conhecimento. A mudança entrou nas nossas culturas como o fato normal, e não a exceção. E esta mudança já não resulta de saltos individuais e pontuais: o microscópio eletrônico e o computador permitem o trabalho com unidades atómicas, o que permite por sua vez desenvolver novos materiais, que permitem novos avanços na informática e assim por diante, num processo sinérgico e cumulativo. É o próprio processo de transformação que se transformou. A verdade é que estamos vivendo a mais profunda e mais acelerada revolução que a humanidade já conheceu. É essencial revermos as nossas ideologias, as nossas concepções sobre as formas de organização social e política, levando esta revolução em conta. Isto porque, na medida em que este prodigioso aceleramento do tempo de transformação se dá de forma profundamente desigual, os referenciais tradicionais perdem boa parte do seu sentido, ou no mínimo se tornam demasiado grosseiros e globais frente a uma realidade muito mais diferenciada. Não é a situação que mudou, exigindo novas políticas: não há mais 4 - Ver a este respeito os relatórios do PACE, Program for Advanced Communications in Europe, da OCDE, vários anos. 5 - Business Week, editorial, August 14, 1995: The Expanding Entertainmente Universe. “Entertainment has replaced the defense and auto industries as the driving force of the U.S. economy”. 12 situação, e sim um processo de mudança permanente, exigindo formas de gestão social radicalmente alteradas. O tempo atinge de forma muito diferente as instâncias da reprodução social. Enquanto as técnicas avançam em ritmo que sequer temos capacidade de acompanhar, mesmo em áreas muito especializadas, o mesmo não acontece com o universo cultural que constitui as nossas formas individualizadas ou sociais de ver o mundo.6 O ritmo incomparavelmente mais lento da evolução das culturas pode ser verificado no nosso cotidiano, na nossa dificuldade de utilizarmos o potencial informático, não por razões técnicas, mas por atitudes enraizadas em décadas de uma determinadas cultura do trabalho. Pesquisas realizadas em empresas informatizadas nos Estados Unidos mostram que somente com a chegada ao mercado de trabalho dos jovens que já se formaram no ambiente informático, é que efetivamente o uso do novo potencial passou a ser inovador e criativo. Antes, só se fazia acelerar os mesmos procedimentos tradicionais. O resultado é que, de certa forma, passamos a “conviver” com as novas tecnologias, mas não as assimilamos efetivamente, e não dominamos nem o seu potencial positivo nem os perigos que representam. De repente chegam às nossas casas as mensagens mais obscurantistas de igrejas ou de demagogos da violência, pelos meios eletrônicos mais modernos e com os mais diversos efeitos especiais, e nos damos conta de que progresso técnico e progresso cultural podem evoluir em ritmos completamente diferentes e inclusive em sentidos inversos. Podemos legitimamente nos perguntar sobre o que faria um Goebbels com as tecnologias modernas de comunicação. Muito mais lento ainda do que o nosso universo cultural é a evolução das instituições que desenvolvemos para gerir a nossa reprodução social. Estruturas empresariais, instituições de governo ou organizações da sociedade civil como sindicatos e outros, acumulam, além das as resistências culturais à mudança que vimos acima, um conjunto de fatores de inércia como interesses corporativos, lutas por poder e prestígio, que fazem com que instituições possam permanecer inertes ainda quando todos os seus membros estejam de acordo que se deva mudar. Se considerarmos o universo jurídico que de certa forma codifica o contexto das próprias mudanças institucionais, esta diversidade de ritmos de evolução das diferentes instâncias de uma sociedade fica ainda mais gritante. Periodicamente afloram leis em pleno vigor sobre o tratamento a se dar a um ladrão de cavalos, datando de quando este era um meio vital de transporte, ou o detalhamento de penas previstas para quem utilize de forma inadequada os seus diversos órgãos sexuais, enquanto não temos sequer embriões de regulamentação das manipulações genéticas descontroladas que se multiplicam em todo o planeta.7 6 - Octávio Ianni utiliza o conceito rico de “não contemporaneidade” dos processos de mudança 7 - José Eduardo Faria lembra que “o Código Comercial , por exemplo é de 1850, o Código Civil é de 1916, o Código Penal na sua parte especial, é de 1940, o Código de Processo Penal é de 1941. Eles têm em comum o fato de terem sido concebidos em função dos valores de uma sociedade rural e patriarcal, organizada em torno de uma economia agrário-exportadora de produtos primários. Hoje, porém, o País tem uma sociedade urbana de massas organizada em torno de uma complexa economia industrial. O descompasso entre os textos legais e o contexto socioeconômico, por isso, é gritante”. Reforma da Justiça, O Estado de São Paulo, 3 de marcço de 1997. 15 controle da sociedade sobre as dinâmicas que gera, já não é mais um luxo de quem gosta de política. Trata-se de uma questão de sobrevivência. A questão da governabilidade emerge assim como questão central. É relativamente pouco importante, frente às explosões sociais e ambientais que se avolumam, inventar un chip mais veloz ou enviar uma sonda a um planeta mais distante. O que é realmente importante, é fazer estes avanços responderem prosaicamente às exigências de uma melhor qualidade de vida. Não podemos mais nos contentar com alternativas que, para privilegiar estruturas eficientes de produção, paralizam o desenvolvimento social; ou, inversamente, para assegurar o desenvolvimento social, terminam por estrangular o processo de crescimento econômico. Na realidade, um não pode evoluir sem o outro. As próprias empresas estão condenadas a assumir as suas responsabilidades sociais e ambientais, enquanto as demandas sociais deverão encontrar formas de organização que assegurem a sua viabilização econômica. Assim, da própria revolução tecnológica em curso, surgem novos pontos de referência: enfrentamos um mundo que muda rapidamente, com complexidade e diversidade qualitativamente mais amplos. Para enfrentar mudança, complexidade e diversidade temos de gerar instrumentos de regulação social mais ágeis, flexíveis, e participativos. E não há mais soluções que não sejam simultaneamente econômicas, sociais e políticas. 16 2 - Da globalização ao poder local: a nova hierarquia dos espaços “Nations-states are weakening as decision-making becomes either local or global” - Nações Unidas, 1994 As tecnologias mudaram radicalmente não só a dimensão temporal, mas também a dimensão espacial da reprodução social. O conceito de espaço no nosso desenvolvimento está sem dúvida gerando interesse crescente, mas também crescente confusão. Afinal, para onde vão as macrotendências: globalização, blocos, poder local? Entre o “Small is Beautiful”12 e o “Global Reach”, há razões de sobra para se discutir de forma mais aprofundada, ou em todo caso mais organizada, o conceito de espaço, e a importância que assume no nosso cotidiano. Referiremo-nos aqui aos espaços da reprodução social. Na realidade, a simples reprodução do capital, ou reprodução econômica, já não é suficientemente abrangente para refletir os problemas que vivemos, inclusive para entender a própria reprodução do capital. Na linha imprimida pelos sucessivos relatórios sobre Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, o objetivo central do desenvolvimento é o homem, enquanto a economia é apenas um meio.13 Ninguém mais se impresiona com o simples crescimento do PIB, e tornou-se cada vez mais difícil identificar bem estar humano com o bem estar da economia. Por outro lado, trabalharemos com o conceito de reordenamento dos espaços, na medida em que conceitos como “globalização” trazem uma visão simplificada de abertura e unificação dos espaços da reprodução social. O que está ocorrendo, é uma nova hierarquização dos espaços, segundo as diferentes atividades, envolvendo tanto globalização como formação de blocos, fragilização do Estado-nação, surgimento de espaços sub-nacionais fracionados de diversas formas, transformação do papel das metrópoles, reforço do papel das cidades, e uma gradual reconstituição dos espaços comunitários desarticulados por um século e meio de capitalismo. E estes diversos espaços em plena transformação e rearticulação abrem novas dimensões para a inserção do indivíduo no processo de reprodução social, permitindo talvez a reconstituição de um ser humano mais integrado a partir dos segmentos hoje fragmentados. Espaço global A globalização constitui ao mesmo tempo uma tendência dominante neste fim de século, e uma dinâmica diferenciada. Um excelente exemplo nos é dado pela dimensão da especulação financeira. A circulação financeira internacional ultrapassa, em 1995, o trilhão de dólares por dia, para uma base de trocas efetivas de bens e serviços da ordem de 20 a 25 bilhões, o que significa uma circulação especulativa 50 12 - No Brasil, o “Small is Beautiful” de Schumacher foi editado com o título de “O Negócio é ser Pequeno”, pela Zahar 13 - “Es posible que los mercados impresionen desde los puntos de vista económico o tecnológico. Sin embargo, revisten escaso valor si no sirven para mejorar el desarrollo humano. Los mercados son los medios. El desarrollo humano es el fin” - PNUD, Desarrollo Humano 1992 17 vezes maior do que a que seria necessária para cobrir atividades econômicas reais. Esta ampliação dramática da especulação financeira é literalmente carregada pelas novas tecnologias: a integração dos espaços mundiais de comunicação, via satélites e fibras óticas, e a capacidade de tratamento instantâneo de informação em gigantescas quantidades com a informática, levaram a um grande avanço, em termos de globalização, de um setor cuja matéria prima – a informação – é particularmente fluida, e que dispõe de amplos recursos para financiar os equipamentos mais modernos. As avaliações da crise de 1987, bem como dos desequilíbrios asiáticos de 1998, permitem hoje entender melhor o ponto crítico deste processo: na era do dinheiro volátil, os fluxos se tornaram mundiais, enquanto os instrumentos de regulação continuam no âmbito do Estado nacional. É curioso ver o banco central norte- americano, o Federal Reserve, confessar a sua incompetência jurídica, na medida em que o seu campo de atuação é essencialmente nacional, e a sua impotência técnica, na medida em que não dispõe de computadores sequer para acompanhar o que está acontecendo.14 Por trás desta desarticulação encontramos aqui a dimensão espacial do descompasso entre a rapidez da evolução das técnicas, e a relativa lentidão das transformações institucionais, gerando uma ampla esfera econômica mundial sem controle ou regulação, e uma perda generalizada de governabilidade no planeta. No conjunto as instituições que surgiram de Bretton Woods, como o Gatt, o Fmi e o Banco Mundial, foram dimensionadas para ajudar a regular relações internacionais, ou seja, entre nações, e não globais, e se econtram amplamente ultrapassadas. Na ausência de governo mundial, formaram-se segmentos bem mais globais do que os outros: trata-se de uma globalização hierarquizada. Navegam com confiança neste espaço as cerca de 500 a 600 grandes empresas transnacionais que comandam 25% das atividades econômicas mundiais, e controlam cerca de 80 a 90% das inovações tecnológicas. Estas empresas pertencem aos Estados Unidos, Japão, Alemanha, Grã- Bretanha e poucos mais, e constituem um poderoso instrumento de elitização da economia mundial. No dizer franco de um economista, neste sistema, “quem não faz parte do rolo compressor, faz parte da estrada”. A verdade é que uma ampla maioria das populações do mundo hoje faz parte “da estrada”. Mas sobretudo, a globalização não é geral. Se olharmos o nosso cotidiano, desde a casa onde moramos, a escola dos nossos filhos, o médico para a família, o local de trabalho, até os horti-fruti-granjeiros da nossa alimentação cotidiana, trata-se de atividades de espaço local, e não global. É preciso, neste sentido, distinguir entre os produtos globais que indiscutivelmente hoje existem, como o automóvel, o computador e vários outros, e os outros níveis de atividade econômica e social. Isto nos evitará batalhas inúteis – não há nenhuma razão para que um país tenha de se dotar de uma indústria automobilística para ser moderno – ao mesmo tempo que nos 14 - Ver Joel Kurtzman, The Death of Money, Simon & Schuster, New York 1993; Wall Street dispõe hoje dos equipamentos e dos softwares incomparavelmente mais avançados, atraindo inclusive a nata dos físicos e matemáticos das grandes instituições de pesquisa. Resumindo a situação, Kurtzman constata que “the financial economy, which used to be the tail, is now the dog...though real exports in America have picked up recently, they still total less in a year than what is traded before lunchtime on the world’s speculative markets”, p. 65. 20 mudanças tecnológicas e de relações sociais de produção extremamente rápidas, o Estado tradicional faz figura de dinossauro, amplamente ultrapassado por uma dinâmica que exige respostas rápidas e flexíveis a situações diversificadas e complexas.18 Isto pode ser visto simplesmente como um problema “estreito”, de eficiência administrativa. Na realidade, quando as decisões são formalmente colocadas em níveis institucionais onde o cidadão não pode influir sobre o seu curso de maneira significativa, é a própria racionalide política que se vê deformada. Esta deterioração, ou crescente inadequação das estruturas tradicionais do Estado, tem alimentado uma visão simplista de privatização generalizada: liquidando-se o paciente, desaparece o problema. Foi-se o tempo das sociedades relativamente homogêneas, com proletariado, campesinato e burguesia, e uma visão de luta de classes relativamente clara. A sociedade moderna é constituida por um tecido complexo e extremamente diferenciado de atores sociais. Assim, políticas globais tornam-se desajustadas, reduzindo-se a competência das decisões centralizadas. Como a intensidade das mudanças exige também ajustes frequentes das políticas, é o próprio conceito da grande estrutura central de poder que se vê posto em cheque. Situações complexas e diferenciadas, e que se modificam rapidamente, exigem muito mais participação dos atores sociais afetados pelas políticas. Exigem, na realidade, sistemas muito mais democráticos.19 A implicação prática deste raciocínio, é que se torna essencial a readequação de como se hierarquizam os diversos espaços institucionais. Neste sentido, por exemplo, o nível central de decisão do país tem de se preocupar com a coerência das grandes infraestruturas econômicas, com os equilíbrios macroeconômicos, com as desigualdades regionais, com a inserção do país na economia mundial, com os eixos tecnológicos de longo prazo. Problemas mais específicos terão de ser transferidos para espaços de decisão mais próximos do cidadão. Finalmente, conforme veremos em detalhe mais adiante, constituimos hoje dominantemente sociedades urbanizadas. Com isto constituiu-se um tecido social organizado, a cidade, frequentemente maior inclusive do que muitos dos Estados- nação herdados do passado. Foi-se o tempo em que tudo tinha de ser feito na “capital”, porque aí estavam localizados o governo, os técnicos, os bancos, enquanto o “resto” era população rural dispersa. E a tendência natural é para as cidades assumirem gradualmente boa parte dos encargos antigamente de competência dos governos centrais, completando assim a transformação do papel do Estado-nação na hierarquia dos espaços sociais. 18 - A tecnologia é um acelerador do tempo. E em termos sociais, tempo e espaço são estreitamente associados: quando produtos como informação comercial ou financeira, ou imagens de noticiário ou de diversão, dão a volta ao mundo em segundos, o tempo passa a reordenar o espaço. 19 - É compreensível que a inadequação do Estado que herdamos, para enfrentar os novos problemas, seja se certa maneira aproveitada para uma ofensiva do setor privado, que busca se apropriar para fins de lucro de setores que devem ser organizados segundo critérios de interesse público. Esta ofensiva do setor privado, no entanto, não justifica atitudes defensivas por parte de forças progressistas. O fato da alternativa simplista oferecida no quadro do neo-liberalismo ser nefasta não afasta a necessidade de transformar o Estado, que continua real. 21 A frase de um relatório das Nações Unidas resume bem o problema: “o Estado-nação tornou-se pequeno demais para as grandes coisas, e grande demais para as pequenas.”20 Os regionalismos Uma sociedade mais global pode ser muito menos “pasteurizadora” das culturas nacionais do que as tradicionais nações. Nos tempos da Espanha fechada, aparecia como uma ameaça à “integridade nacional” uma região ter as suas particularidades, uma escola valorizar linguas locais. Numa Espanha integrada ao espaço europeu, já não há apenas um problema de bascos na Espanha, mas também o dos bretões e dos corsos na França, dos flamengos e walons na bélgica, de lombardos na Italia e assim por diante. No espaço europeu, a pluralidade cultural, a revalorização de tradições e costumes locais ou regionais, não ameaçam mais a nacionalidade de ninguém, e não é surpreendente a Espanha inserida na União Européia adotar o regime de autonomias regionais, ou a Escócia buscar adotar um parlamento próprio. Neste sentido, e na linha das análises de John Naisbitt, a multiplicação de “nações”, de regiões com os seus particularismos, pode ser perfeitamente coerente com a própria globalização e com as novas funções mais atenuadas do Estado-nacional.21 É bastante natural, neste contexto de profundo e rápido reordenamento da expressão espacial da reprodução social, que se gere forte confusão. Numa Iugoslávia criada artificialmente por acordos e interesses internacionais, não há nenhuma razão para que não voltem a existir pequenos países que têm tradição milenar, como a Bósnia ou a Sérvia, de toda forma integrados num espaço econômico mais amplo. O absurdo, é a transformação de uma válida revalorização de culturas e tradições, numa volta tardia aos nacionalismos fascistas característicos das décadas de 1920 e 1930, para os quais já não há sequer espaço econômico. É o próprio conceito de nação que tem de ser revisto. A expressão e vivência do sentimento de identidade são absolutamente vitais para o ser humano, e esta identidade é com um grupo, com tradições, com valores, com uma lingua ou um dialeto, com roupas, com cultura no sentido amplo: não se materializa necessariamente na existência de um exército, de uma polícia política e de guardas nas fronteiras. E não se vê necessariamente afetada pelo tipo de aparelho de música ou pela marca do carro utilizado. De certa maneira, é a visão centrada na “economia nacional” que nos dificulta a compreensão mais profunda das dinâmicas culturais que estão no centro dos processos nacionais. O papel das metrópoles É necessário insistir, antes de tudo, no fato das metrópoles constituirem um fenômeno recente. Somos a primeira geração a conhecer cidades de 15 ou 20 milhões de habitantes, megalópoles com um conjunto de novos problemas e determinações. 20 - UNDP, Human Development Report 1993, p. 5 21 - Ver John Naisbitt, Paradoxo Global, Editora Campus 1994 22 Os grandes espaços metropolitanos constituiram-se em geral na continuidade do processo de urbanização que resultou da industrialização e das transformações do espaço rural. Hoje, no entanto, a indústria entrou no mesmo ciclo de redução de volume de emprego pelo qual passou a agricultura, e problemas tanto sociais como ambientais empurram as empresas para centros menores. O Rio de Janeiro é característico de uma cidade que não teve a visão da sua transição. Foi capital, e com a criação de Brasilia perdeu boa parte das suas atividades econômicas ligadas à função administrativa. Foi um grande centro industrial, mas naturalmente a indústria foi migrando para o vale do Paraíba e outras regiões, pois grandes cidades já não constituem uma base adequada para as atividades industriais. Com a perda do papel de Capital e a redução da base industrial, o porto também perdeu parte de sua importância. Assim, o “tripé” econômico que sustentava o Rio de Janeiro murchou, deixando suspenso um cogumelo demográfico de mais de 8 milhões de pessoas, com toda a dimensão explosiva do problema. As metrópoles surgiram com funções centralizadoras relativamente aos espaços nacionais que as geraram. Hoje, este papel de “dreno” de amplas bacias econômicas internas tende a ser substituido pelo papel de elo numa rede internacional de “cidades mundiais”, na expressão de John Friedmann.22 A cidade de Shanghai, por exemplo, organizou em 1993 uma reunião internacional sobre o seu próprio futuro, optando claramente pela importância do seu papel de “âncora” de atividades econômicas internacionais, e definindo eixos prioritários de ação nas áreas de criação de um polo tecnológico internacional, de infraestruturas portuárias ultra-modernas, e de uma base sofisticada de telecomunicações. O departamento de relações internacionais da cidade de Shanghai já operava na época com 140 técnicos e funcionários. Assim Shanghai prepara a sua transição de centro industrial da provincia, para o de ponte entre o tecido econômico nacional e a economia global. O Rio de Janeiro, num modelo menos preocupado em atrair fábricas de automóveis e mais preocupado em articular os espaços do seu desenvolvimento, teria claramente um imenso papel a jogar como centro turístico internacional, em particular de turismo de convenções e turismo de negócios em geral, combinando o turismo cultural com os serviços comerciais internacionais hoje em franca explosão. Trinta anos de atrazo nestas opções levam hoje a uma situação de difícil reversão, pela própria deterioração social gerada. São Paulo é a primeira cidade brasileira a ter incluido na sua Lei Orgânica o papel das relações internacionais, mas a compreensão desta sua dimensão ainda se resume em buscar “recursos externos”.23 O fato importante é que a economia global não existe no ar, enraiza-se em “pólos” concretos. Por outro lado, muda a composição técnica da produção, com maior peso para serviços. Outro fator importante, reforça-se o tecido de cidades médias ou grandes, que assumem boa parte do papel de sub-centros de bacias econômicas, 22 - Ver John Friedmann, The World City Hypothesis, in Development and Change, jan. 1986 23 - Ladislau Dowbor, São Paulo, cidade Mundial, Economia e Cultura, Nº4, 3º Trimestre 1992; é interessante notar que o papel que já exerceram na Renascença cidades como Veneza, se aproxima bastante do novo papel das metrópoles. 25 deitada na calçada, e seguimos adiante. O tempo urge, e além de tudo são tantas desgraças...26 Não é que o ser humano agora seja menos solidário: ninguém se solidariza com o anonimato. Generais programam tranquilamente bombardeios que possam coincidir com os horários da mídia, e o mundo assiste impassível à destruição ao vivo de seres humanos, mascando chiclete ou comendo pipoca. A humanização do desenvolvimento, ou a sua re-humanização, passa pela reconstituição dos espaços comunitários. O próprio resgate dos valores e a reconstituição da dimensão ética do desenvolvimento exigem que para o ser humano o outro volte a ser um ser humano, um indivíduo, uma pessoa com os seus sorrisos e suas lágrimas. Este processo de reconhecimento do outro, não se dá no anomimato. E o anonimato se ultrapassa no circuito de conhecidos, na comunidade. Em termos econômicos, o grande argumento é que o espaço pequeno não é “viável”. Na realidade, a mesma dinâmica que nos levou aos espaços globais nos fornece as tecnologias para a reconstituição de uma humanidade organizada em torno a comunidades que se reconhecem internamente, mas também interagem, comunicam com o resto do mundo, participam de forma organizada de espaços mais amplos.27 A busca da reconstuição do tecido social é sentida nas mais variadas áreas. É curioso este novo espaço de nome estranho, as “ONG’s”, que se definem absurdamente como organizações não-governamentais. Na realidade, trata-se de um setor não governamental e não empresarial, forma direta de organização das comunidades em torno dos interesses difusos e transindividuais.28 Não há dúvida que para muitos o tema da comunidade “cheira” a passado, a bom selvagem de Rousseau. Na realidade, basta atentar para o fato da pessoa hoje, para ser cidadão, precisar pertencer a uma instituição, ter um emprego, para sentir a dimensão da perda de cidadania ao se desarticular o espaço comunitário. Na linha dos aportes de John Friedmann, o “empowerment”, ou recuperação de cidadania, através do espaço 26 - Não se trata aqui de voltar à comunidade primitiva, à “tribo”: o espaço micro-social pode ser tão opressivo, ou mais, do que o espaço global que não controlamos. As novas tecnologias e a mudança dos referenciais de espaço permitem que o ser humano participe simultaneamente de diversas dimensões. É a liquidação do espaço local, em vez de sua articulação com os demais, que questionamos aqui. 27 - Pierre Lévy traz no seu L’intelligence Collective, La Découverte, Paris 1994, um aporte decisivo para se entender melhor como as novas tecnologias do conhecimento podem contribuir para a rearticulação dos espaços do desenvolvimento: ”L’image mouvante qui émerge de ses compétences, de ses projets et des relations que ses membres entretiennent dans l’Espace du savoir constitue pour un collectif un mode nouveau d’identification, ouvert, vivant et positif. De nouvelles formes de démocratie, mieux adaptées à la compexité des problèmes contemporains que les formes représentatives classiques, pourraient alors voir le jour.” (p.33) 28 - ver Fábio Konder Comparato - A nova cidadania - Lua Nova, 1993, nº 28/29; o Human Development Report 1993 das Nações Unidas faz um balanço mundial das ONG’s que envolviam cerca de 100 milhões de pessoas no início dos anos 1980, e mais de 250 milhões atualmente. Hoje se agregam as CBO’s, Community Based Organizations, igualmente em fase de expansão extremamente rápida. Com a amplitude e diversificação deste tipo de organizações, O Human Development Report de 1997 sugere a utilização do conceito mais amplo de organizações da sociedade civil. 26 local, do espaço de vida do cidadão, é essencial.29 Caminhamos para a reconstituição das comunidades, em outro nível, incorporando e capitalizando as próprias tecnologias hoje desagregadoras. Os espaços articulados O indivíduo econtra-se, neste processo de reordenamento dos espaços, desorientado. As novas tecnologias e a conectividade eletrônica abrem novos canais de articulação social em torno aos espaços do conhecimento compartilhado. Por outro lado, assistimos à dramática marginalização de dois terços da humanidade, no que tem sido chamado de modernização desigual. Citando ainda Milton Santos, a base da ação reativa é o espaço compartilhado no cotidiano. Este espaço tem de ser reconstituido, não numa visão poética de um small is beautiful generalizado, e sim através da rearticulação dos espaços locais com os diversos espaços que hoje compõem a nossa sociedade complexa.30 Esta rearticulação passa por uma redefinição da cidadania, e em particular por uma redefinição das instituições para que os espaços participativos coincidam com as instâncias de decisões significativas. As hierarquizações tradicionais dos espaços já são insuficientes, ou inadequadas. Precisamos de muito mais democracia, de uma visão mais horizontal e interconectada da estrutura social. 29 - John Friedmann, Empowerment: the Politics of Alternative Development, Blackwell, Cambridge 1992 30 - Octávio Ianni exprime esta idéia de forma mais poética: “O todo parece uma expressão diversa, estranha, alheia às partes. E estas permanecem fragmentadas, dissociadas, reiterando-se aqui ou lá, ontem ou hoje, como que extraviadas, em busca de seu lugar” - Octávio Ianni, A Idéia de Brasil Moderno, Brasiliense 1992, p. 177 27 3 - As polarizações econômicas “A melhor coisa que podemos deixar de herança para a próxima geração é a paz social” - Ethan Kapstein31 Voltemos a uma conclusão importante do capítulo anterior: o resultado prático deste reordenamento dos espaços da reproducão social é que, enquanto grande parte das decisões econômicas se dão no espaço global, os instrumentos de regulação continuam sendo nacionais, e os espaços de gestão social ao nível local ainda engatinham. Consequentemente, gerou-se um gigantesco espaço desgovernado. Os resultados práticos deste “no man’s land” podem ser constatados nos dados publicados anualmente pelo Banco Mundial. O quadro abaixo é particularmente importante pois nos permite ter uma visão global, com dados de uma instituição insuspeita de querer denegrir o sistema: Mundo: população, PNB e PNB per capita, 1991 Grupos de paises População 1991 (milhões) % PNB - 1991 (bilhões) % PNB per capita (dólares) Baixa renda 3.127 58 1.097 5 350 Renda média 1.401 26 3.474 16 2.480 Ricos (OCDE) 783 15 16.463 77 21.020 Mundo 5.351 100 21.464 100 4.010 Fonte: Banco Mundial, Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 1993, p. 213, tab. A1/A2. As somas das porcentagens são arredondadas. Este quadro nos dá pontos de referência essenciais das polarizações mundiais. Constatamos, antes de tudo, que o nosso planeta de 5,3 bilhões de habitantes produz em 1991 um valor anual de bens e serviços da ordem de 21 trilhões de dólares, o que significa cerca de 4.000 dólares por pessoa e por ano. Este último dado é particularmente importante: significa que o mundo produz bens e serviços em volume suficiente para assegurar uma vida digna e confortável para todos os habitantes do planeta. Outro ponto importante, constatamos que 3,1 bilhões de habitantes do planeta vivem com uma renda anual aproximada de 350 dólares por pessoa, o que significa uma renda de cerca de 30 dólares por més. Trata-se de 58% da população do planeta. Como esta parte da população tem um aumento anual de cerca de 60 milhões de pessoas, a imagem simplificada que podemos reter neste fim de século é que dois terços da população mundial estão simplesmente marginalizados do amplo processo de modernização que nos atinge.32 Na outra ponta do espectro, encontramos cerca de 800 milhões de pessoas que compõem o chamado clube dos ricos. Trata-se de 27 países que compõem a OCDE, 31 - “Contemporary critics who would say that spending money on labor policies is unfair to the naition’s children forget that the best thing that can be bequeathed to the next generation is social peace” - Ethan B. Kapstein - Workers and the World Economy - Foreign Affairs, May/June 1996 32 - Trata-se de uma média de 350 dólares. O mesmo Banco Mundial considera que 1,3 bilhões de pessoas vivem com até um dólar por dia (dólares ppp de 1985), um terço da população dos países em desenvolvimento. Ver Human Development Report 1997, New York, p. 24 30 países mais bem dotados no mundo para a agricultura, gastam-se rios de dinheiro com medicina curativa para compensar a desnutrição e falta de cuidados preventivos, todas as atividades econômicas se vêm comprometidas pelo baixíssimo nível de educação. Os países desenvolvidos já ultrapassaram este problema, na medida em que as teorias de Keynes sobre a necessidade de redistribuir renda para dinamizar a demanda, e a evolução das políticas de bem-estar social, permitem hoje uma redistribuição de 30% ou mais do produto através de mecanismos públicos. É importante notar igualmente que países como a Coréia do Sul sempre promoveram uma forte redistribuição de renda através do Estado, mesmo na fase inicial do seu desenvolvimento. No caso brasileiro, o mecanismo de concentração de renda tornou-se um círculo vicioso por várias razões, entre as quais a concentração da propriedade, a segmentação dos mercados, a inserção na economia global, e a evolução das estruturas do poder. A concentração da propriedade constitui uma herança. No Brasil, por razões políticas, nunca foi montada uma pesquisa sobre quem é dono do que. Temos apenas indicadores: no caso da terra sabemos que 1% dos estabelecimentos controlam 44% das terras agrícolas do país, com utilização efetiva para lavoura de menos de 5% do total. Em outras áreas, constatamos que algumas familias controlam os grandes bancos do país e as grandes redes da midia. De forma geral, nos setores dinâmicos da economia, como o automóvel, algumas empresa controlam em geral o grosso do mercado, representando uma concentração muito elevada da propriedade produtiva. Esta concentração da propriedade reforça naturalmente os fluxos de renda para as mãos dos mais ricos. A segmentação do mercado constitui outro mecanismo essencial. Quando mais da metade do poder de compra está nas mãos de 10% de familias mais ricas, o resto da renda encontra-se muito atomizado, não permitindo compras sofisticadas. O resultado é que os agentes econômicos, com poucas exceções, tentam produzir para os ricos, para os que podem efetivamente comprar. Em termos de perfil de produção, o país passa assim a produzir muitos bens de luxo, e a se desviar das necessidades básicas da população. É característico que produzamos hoje mais automóveis particulares do que podemos consumir, enquanto não se produz o alimento suficiente para a população. As empresas cuja sobrevivência depende de uma capacidade de compra familiar elevada pressionam no sentido da concentração da renda, pois uma renda distribuida de forma mais justa abriria mercado para bens de primeira necessidade. A concentração de renda passa assim a se reproduzir no próprio processo de modernização produtiva. A abertura para o mercado mundial também contribui, na medida em que formas de organização da economia em função dos interesses sociais tornam-se menos viáveis para os setores sofisticados. A pressão direta de produtos asiáticos ou norte- americanos mais baratos e de qualidade frequentemente superior leva as empresas a seguir as tendências mundiais de automação, enxugamento e terceirização, tornando assim o emprego mais precário e reduzindo a massa salarial. Com o aumento da distância tecnológica entre o primeiro mundo e os países subdesenvolvidos, estes últimos ficam acuados entre o protecionismo que reproduz privilégios e ineficiências 31 das elites locais, e a abertura que atinge os empregos. No mundo que se globaliza com atores desiguais, os efeitos são naturalmente desiguais. Um círculo vicioso ocorre, conforme vimos, no nível internacional. Os países mais ricos têm como investir muito mais em fatores de progresso, como ciência e tecnologia, educação, infraestruturas renovadas. E a distância econômica gera mais uma vez desequilíbrios políticos: quando o primeiro mundo controla 16,5 trilhões de dólares sobre um PIB mundial de 21,5 trilhões, enquanto os dois terços mais pobres da humanidade ficam limitados a cerca de um trilhão, e na ausência de qualquer poder político mundial que permita equilibrar a situação, os países mais ricos, e em particular as suas grandes empresas transnacionais, passam a ditar as regras, o que por sua vez reforça o seu poder econômico, levando o mundo gradualmente para o impasse.36 Os dois processos, de polarização mundial e de polarização interna dos países em desenvolvimento, encontram-se hoje solidamente articulados. Para os países ricos, o mundo subdesenvolvido não é mais essencial, constituindo mercados e fontes de matérias primas secundários relativamente aos fluxos entre as próprias economias desenvolvidas. No entanto, nem por isso deixará cada empresa transnacional ou o respectivo governo de batalhar cada milímetro de espaço econômico destes países. Hoje a chamada ajuda oficial ao desenvolvimento transfere, em geral com critérios políticos, cerca de 52 bilhões de dólares por ano para os países pobres, o que equivale a um movimento de 0,25% do Pib mundial. Mas as transferências inversas, dos países pobres para os países ricos, somando-se as remessas de lucros, serviço da dívida, troca desigual e outros mecanismos que representam custos líquidos representam cerca de 500 bilhões de dólares ao ano, cerca de 10 vezes mais.37 Um processo de transferências deste porte não seria possível sem a existência, nos países do Terceiro Mundo, de grupos privilegiados interessados em reproduzir o sistema. Estas minorias constituem um eixo firme de penetração de produtos e sistemas produtivos dos países desenvolvidos, na medida em que reproduzem em miniatura os modos de vida e níveis de consumo dos países ricos. Geram-se assim estas economias pobres e violentas onde minorias ricas tentam justificar a situação indecente explicando que o luxo que ostentam constitui o início de uma riqueza que será um dia para todos. Na realidade, constituem apenas o elo de uma acumulação que é mundial, e que não mostra nenhum sinal de reequilibramento. Independentemente das amplas teorizações que alimentam em permanência a ilusão de um avanço, o resultado prático é uma dramática regressão. Em termos estritamente econômicos, fixou-se na cabeça dos teóricos a visão simplificadora de uma gradual mas progressiva redistribuição da renda. A avaliação teoricamente correta continua sendo a da escola sueca, em particular de Gunnar Myrdal, que estudou os processos 36 - Um exemplo típico é a evolução do caso do acidente de Bhopal, na India, em 1984: o gás metil- isocianato (MIC) que vasou para o ambiente matando 3.000 pessoas e atingindo a saúde de mais 52.000, causou uma reação mundial e a Union Carbide pagou 470 milhões de dólares ao governo indiano. Esperáva-se maior cautela e uma legislação que protegesse a população: na realidade, hoje as empresas passaram a incluir cláusulas que as eximem de responsabilidade, nos contratos assinados com os Estados onde se intalam. Ver o balanço de Bhopal dez anos depois, Madhusree Mukerjee, Scientific American, June 1995 37 - Os fluxos são acompanhados em diversos números dos Relatórios sobre o Desenvolvimento Humano que as Nações Unidas publicam anualmente. 32 cumulativos de polarização, conceito que resume cada vez melhor a realidade que vivemos.38 As implicações políticas deste processo são claras. O trickling down não existe. O mundo industrializado, e os ricos dos paises em desenvolvimento, cercam-se de medidas cada vez mais surrealistas de proteção, em vez de enfrentar o reequilibramento necessário. O tipo de atitude necessária para se obter um visto para um país desenvolvido se aproxima cada vez mais do que foi a humildade do preto às portas da casa-grande. Estamos globalizando um mundo cada vez mais desigual. É compreensível a irritação neo-liberal com estes problemas políticos que de certa forma atrapalham o modelo. Até se encontrar formas de bilhões de pessoas aceitarem passivamente o seu desenraizamento, desemprego e miséria num planeta cada vez mais rico, no entanto, o problema político não poderá ser afastado. Não podemos esquecer que o próprio surgimento do comunismo e a popularidade de soluções estatizantes resultaram das tendências à polarização e da arrogância de um sistema que, centrado na eficiência econômica e no enriquecimento de uma minoria, esqueceu a sua viabilização social e política. Aqui há poucas dúvidas quanto às responsabilidades. A metade pobre do planeta, com menos de 5% da produção econômica mundial, nenhum acesso a meios de comunicação e praticamente nenhum assento nos foros mundiais de decisão, deverá participar ativamente das transformações, mas a iniciativa tem de vir de outra parte. Quando o nada extremista relatório das Nações Unidas considera uma “obscenidade” 457 bilionários ostentarem riqueza pessoal maior do que a renda anual de metade da população do planeta, está refletindo um sentimento de indignação que é cada vez mais generalizado. Luís XVI, que se irritava que a turba de esfomeados da França perturbasse as suas danças em Versalhes, repetia pateticamente ao ser levado para a guilhotina: “Mais ce peuple m’aimait”, este povo me amava… Assegurar a cada habitante do planeta um mínimo para que possa viver dignamente é moralmente necessário, e sobretudo economicamente viável. Manter as divisões não só nos leva a um desastre ambiental e social, como sai mais caro do que a redistribuição. Não há dúvida que hoje a redistribuição da renda, sob suas mais variadas formas, constitui o eixo principal de humanização social, pacificação política e racionalização econômica do planeta. 38 - Um estudo mais amplo deste processo cumulativo de polarização pode ser encontrado no nosso Formação do Terceiro Mundo, publicado pela editora Brasiliense. Estudamos também a formação destes desequilíbrios no Brasil, como processo histórico, em Formação do Capitalismo Dependente no Brasil, Brasiliense 1982. 35 É importante lembrar que o movimento recente de concentração da propriedade do solo agrícola agrava uma situação que já era dramática. Jorge Caldeira, no seu excelente “Mauá”, resume bem esta contra-reforma ocorrida em meados do século passado, quando os ingleses impunham o fim do tráfico de escravos: “O maior problema estava na agricultura. Era preciso aplacar o temor dos senhores de terra que sempre apoiaram os conservadores, caso se quisesse mesmo extinguir o tráfico. O gabinete mandou preparar em casa de amigos um projeto para uma nova lei de terras, feita para garantir o monopólio dos grandes fazendeiros sobre as vastas extensões vazias do território. Pela nova lei, a posse não daria mais direito à propriedade, o que limitava o número de candidatos a glebas aos que pudessem pagar advogados e/ou nomear os juizes que reconheciam as escrituras. A lei abriria campo para a expansão de grandes fazendas de café com a invasão de terras já abertas e cultivadas por posseiros analfabetos ou sem contatos com o Judiciário, “compensando”os fazendeiros por uma eventual falta de braços”.41 Fizeram-se assim a abolição do tráfico e depois a abolição da escravidão sem abrir espaço para a constituição de uma agricultura familiar de pequenos e médios produtores, base da prosperidade rural dos países hoje desenvolvidos. Outra oportunidade perdida foi a migração de colonos para o Brasil, no fim do século passado e no início deste. Os ruralistas no poder no Brasil se organizaram para evitar que os colonos tivessem acesso à terra. É uma pérola de clareza a declaração do visconde de Itaboraí, citada por Caldeira: “Para fazer com que a produção agrícola do país tivesse o conveniente desenvolvimento era indispensável evitar que as terras devolutas continuassem sendo ocupadas...Se distribuíssemos gratuitamente as terras aos colonos, sucederia que todos os imigrantes, levados do desejo ardente de se tornarem proprietários, procurariam obter sua porção, negando-se a trabalhar por conta dos proprietários existentes, e esses proprietários ver-se-iam destituídos de meios para manter seus estabelecimentos”.42 O então senador visconde de Itaboraí parece aqui ter saído de uma reunião da bancada ruralista do Congresso nos anos 1990. Assim o fim do tráfico de escravos, como depois a política relativa aos colonos, gerariam medidas de defesa dos grandes proprietários, e a absurda estrutura da propriedade rural que herdamos, e que agravamos nos anos recentes. O mundo rural brasileiro foi de certa maneira vítima do seu maior capital, a disponibilidade de terras. O caminho natural indicado por esta gigantesca disponibilidade seria a constituição de uma grande massa de proprietários rurais, como se deu por exemplo nos Estados Unidos, e nas hoje prósperas áreas do Paraná e de Santa Catarina. Mas com isto os grandes fazendeiros perderiam o acesso à mão de obra miserável que exploravam, e se veriam, coisa naturalmente absurda, constrangidos a trabalhar eles mesmos a terra para “manter seus estabelecimentos”.43 41 - Jorge Caldeira, Mauá, Empresário do Império,Companhia das Letras, São Paulo 1995, p. 199 42 - Jorge Caldeira, Mauá... p. 309 43 - É importante lembrar que para romper esta visão da agricultura os Estados Unidos foram levados a travar uma guerra com o “Sul”, a guerra de Secessão, que resultou em ampla reforma agrária na região. É interessante, do ponto de vista metodológico, comparar o Brasil com o que seriam os Estados Unidos caso tivessem vencido os grandes proprietários escravagistas do Sul. 36 Esta herança estrutural é agravada por tres fenômenos mais recentes. Por um lado, vemos a expansão da monocultura, que utiliza pouca mão de obra ou a utiliza de forma sazonal, desarticulando inclusive a formação de empregos estáveis. Por outro, a tecnificação generalizada nas grandes propriedades leva à substituição do homem pela máquina. Finalmente, o uso generalizado do solo agrícola como reserva de valor fechou ao trabalhador rural expulso das grandes propriedades a alternativa de criar pequenas e médias propriedades rurais. Esta grande oportunidade perdida, de se gerar um forte tecido de policultura familiar, levou a população rural às periferias urbanas, gerando o acelerado e caótico processo de urbanização das últimas décadas. Manter esta situação, com milhões de agricultores que querem cultivar e são impedidos por falta de terra – uma pessoa que quer trabalhar a terra é tratada como “invasor” – enquanto dezenas de milhões passam fome, mostra o grau de absurdo que pode atingir a ausência de processos democráticos de decisão no interesse da sociedade. Se nas últimas décadas assistimos à absurda expulsão do trabalhador rural do campo, na década de 1990 assistimos à acelerada tecnificação da indústria e dos serviços, que reduz a oferta de empregos nas cidades, no que as Nações Unidas têm chamado de jobless growth. O conceito significa que a redução do emprego já não resulta de uma falta de crescimento, ou de uma baixa conjuntura, mas do próprio crescimento e de sua característica de substituição do trabalho. Não há nada de muito novo no conceito. Na realidade, quando Marx analisou no fim do século passado a emigração em massa de irlandeses para os Estados Unidos, expulsos da agricultura que se modernizava, e não absorvidos pela indústria que se mecanizava, utilizou o conceito de “superpopulação relativa”, ou seja, população excessiva relativamente às técnicas disponíveis para a produção. O que há de novo, é a generalidade e a potência do movimento. Atingimos a fase em que algumas centenas de empresas transnacionais, gerando menos de 3% do emprego mundial, produzem para o mundo inteiro, substituindo atividades “obsoletas” locais e regionais. Hoje milhões de trabalhadores no mundo ficam de mão no bolso olhando nas vitrines das lojas as últimas maravilhas da tecnologia, produzidas em países distantes, sem saber o que fazer com o seu amanhã. Estes dados merecem ser detalhados, na medida em que as empresas transnacionais assumiram claramente a liderança do desenvolvimento econômico mundial, gerando uma dinâmica sobre a qual mesmo países de porte têm pouca influência. Em termos de volume de produção, as empresas transnacionais são hoje responsáveis por um faturamento da ordem de 5 trilhões de dólares, algo como 25% do Pib mundial. O impacto sobre o emprego, no entanto, evolui inversamente. O balanço mundial realizado pela Organização Internacional do Trabalho deixa poucas dúvidas: “Calcula-se o número total de postos de trabalho criados diretamente pelas empresas multinacionais no mundo em cerca de 73 milhões, o que equivale mais ou menos a 3% da população ativa mundial. Segundo a Comissão de Empresas Trasnacionais das Nações Unidas, para cada posto criado pelas empresas multinacionais pode haver talvez até um ou dois mais gerados indiretamente, o que implicaria que o emprego total relacionado com as empresas multinacionais possa ser 37 de uns 150 milhões. Nos países em desenvolvimento, os 12 milhões de postos de trabalho criados por empresas multinacionais representam apenas 2% da população ativa destes países; se somarmos os 12 milhões de empregos derivados da possível criação indireta de empregos chegaremos aos 4%. Não há como negar que esta contribuição global das empresas multinacionais no emprego parece hoje insignificante”. É interessante notar a distribuição do emprego das multinacionais no mundo: em 1992, do total de 73 milhões de empregos, 44 estão situados nas matrizes nos países de origem (fundamentalmente Estados Unidos, Alemanha, Japão e uns poucos mais), 17 em outros países desenvolvidos, e 12 nos países em desenvolvimento.44 Além disso, os poucos empregos criados no terceiro mundo estão concentrados em poucos países: “A distribuição geográfica dos investimentos diretos externos tornam claro que as empresas multinacionais continuam investindo sobretudo em alguns poucos países em desenvolvimento mais adiantados, e esta concentração tem-se intensificado ultimamente. Em 1992 os dez principais destinatários receberam 76% do total dos investimentos diretos externos no terceiro mundo, em comparação com 70%, mais ou menos, nos dez anos anteriores”.45 Nos próprios países desenvolvidos, o processo gera preocupações crescentes. Uma projeção realizada pelo Business Week sobre as tendências do emprego nos traz uma imagem clara. Por um lado, nas próprias empresas transnacionais e de forma geral no setor dinâmico dos países do primeiro mundo, a tendência é para a criação de um “núcleo” de emprego nobre, obedecendo ao conjunto das tendências estudadas pelos “gurus” da administração empresarial: reengenharia, redução do leque de hierarquia empresarial, a knowledge organization onde os trabalhadores têm mais autonomia, mais poder de decisão e mais compreensão global dos objetivos. Ao mesmo tempo, no entanto, a busca de redução de custos leva à empresa enxuta, lean and mean, com um volume relativamente pequeno de empregos. Assim, um conjunto de atividades acessórias, que envolvem desde segurança, cantinas, limpeza e coisas do gênero até fornecimento de peças e de serviços vinculados à produção, estão sendo terceirizados, gerando uma ampla massa de precarious jobs, empregos precários, onde a pessoa é perfeitamente substituível, e a relação com normas de trabalho e o nível salarial tende a evoluir de modo negativo. Finalmente, tende a crescer a massa de pessoas simplesmente desempregadas.46 Nada melhor do que o próprio relatório da OIT para avaliar os resultados: na América Latina: “Entre 1980 e 1992 diminiu constantemente o emprego no setor moderno, em particular o emprego remunerado, que se reduziu ao ritmo anual de 0,1%, aproximadamente, durante a década de 1980. Com isto se inverteu a tendência das tres décadas anteriores, durante as quais um crescimento econômico ininterrupto trouxe uma grande expansão do emprego no setor moderno. No mesmo período, a proporção do emprego no setor urbano não estruturado passou de 13,4% para 18,6% da população ativa. Em quase todos os países, o salário médio real (em todos os setores) diminuiu durante a década de 1980, e só se recuperou em uns poucos países no final 44 - OIT - El empleo en el mundo 1995 - Geneva 1995, p. 52; os cálculos da OIT são generosos, pois para uma população ativa de mais de 2 bilhões nos paises em desenvolvimento, os 24 milhões de empregos gerados representariam na realidade pouco mais de 1% do emprego. 45 - OIT - El empleo...p. 50 46 - Ver artigo de capa do Business Week de 17 de outubro de 1994 40 elevados. Isto leva a novas formas de organização empresarial que buscam aproveitar as diferenças. Um estudo americano apresenta um caso típico de “network firm”: “Nike, uma das grandes empresas do calçado, se considera uma “empresa em rede”. Isto significa que emprega 8 mil pessoas em gestão, design, vendas e promoção, e deixa a produção nas mãos de cerca de 75 mil trabalhadores contratados independentemente. A maior parte desta produção terceirizada acontece na Indonésia, onde um par de Nikes que será vendido nos Estados Unidos ou na Europa por $73 a $135 é produzido por uma valor de cerca de US$5,60, por meninas e jovens pagas inclusive a 15 centávos por hora. As trabalhadoras vivem em barracos da empresa contratante, não há sindicatos, a hora extra é frequentemente obrigatória, e se houver greve, os militares podem ser chamados para quebrá-la. Os US$20 milhões que a estrela de basquete Michael Jordan teria recebido em 1992 para promover os calçados Nike foram mais do que a massa de salários pagos em um ano nas empresas da Indonésia para produzí-los...O caso Nike constitui um exemplo impressionante das distorções de um sistema econômico que transfere a remuneração dos que produzem valor real para aqueles cuja função primária é de criar ilusões de marketing para convencer consumidores a comprar produtos que não necessitam a preços inflados”.50 De certa forma, o processo extremamente dinâmico de modernização econômica controlado pelas empresas transnacionais gera um imenso volume de produtos, que atinge toda a população mundial, mas gera um fluxo de renda incomparavelmente menor, e um impacto de emprego menor ainda. O produto barato que invade o mundo da economia globalizada reduz o espaço de sobrevivência de pequenas empresas locais e regionais, de formas tradicionais de responder às necessidades, substituindo centenas de empregos locais por um emprego extremamente produtivo, ainda que mal pago na periferia, de uma multinacional. Isto pode garantir um temporário pleno emprego no Japão ou na Coréia, na medida em que produzem para este mercado mais amplo e mantêm nas suas fronteiras o impacto de renda e de emprego. Mas simplesmente não pode funcionar para o conjunto. Convergem assim para a problemática do emprego e do desemprego um conjunto de fatores de transformação social. A urbanização torna o emprego mais vital, pois enquanto no campo a terra é simultâneamente um emprego e a base espacial da vida, permitindo no pior dos casos uma razoável atividade de autosubsistência, na cidade uma familia sem os rendimentos provenientes do emprego é imediatamente jogada em situação crítica, sobretudo no terceiro mundo onde as “redes” de segurança são simbólicas. A transformação das bases produtivas da reprodução social levou à formação de gigantescos bolsões de empregos “não viáveis”, na expressão do Banco Mundial, sobretudo numa economia globalizada.51 A dinâmica tecnológica está simplesmente colocando fora do mercado grandes segmentos profissionais, como por exemplo hoje o emprego em agências bancárias. Finalmente, é importante lembrar que hoje uma pessoa que não está vinculada a um emprego simplesmente perde 50 - David Korten - When Corporations Rule the World - Berrett-Koehler, California 1995, p. 111; a obra foi edita no Brasil pela Futura/Siciliano, com o título Quando as corporações regem o mundo. 51 - ...”large groups of workers stuck in unviabale jobs”...”growing underclass with few opportunities for employment”. Ver World Development Report 1995, p. 110 e 120. De forma geral, o conjunto das atividades propriamente produtivas está reduzindo rapidamente a sua capacidade de absorção de emprego, tendência que atingiu inicialmente a agricultura e agora atinge a indústria de transformação. O emprego se desloca para novas áreas, e os países com menor capacidade de reciclagem e reordenamento das atividades encontram-se simplesmente marginalizados, mantendo artificialmente segmentos de emprego cada vez menos viáveis nas estruturas atuais. 41 cidadânia, na medida em que desapareceram em boa parte as estruturas comunitárias tradicionais de apoio social. Não há dúvida que gerar produtos mais performantes, mais baratos, e com custos menores em termos de mão de obra e de matérias primas, constitui um fator positivo em termos de produtividade global. No entanto, se não se reorganiza a sociedade para fazer face a estas transformações, teremos custos humanos e sociais incomparavelmente maiores, levando a uma desarticulação política que tornará estes processos produtivos inviáveis. Os instrumentos para enfrentar estes novos desafios são frágeis. De forma geral, as pessoas não especializadas mas também instituições técnicas e políticas de alto nível acreditam que em última instância as coisas tenderão a se “arrumar”, e que os dramas hoje vividos representam simplesmente as dores da transição entre um perfil de emprego herdado e as novas tendências tecnológicas. Acena-se sempre para o fato do progresso que suprime empregos gerar outros empregos. Este argumento na realidade constitui mais uma visão otimista do que uma avaliação científica, e se baseia no fato de que dificuldades semelhantes no passado foram ultrapassadas. Nada justifica tal otimismo, e a situação é nova, devendo ser estudada como tal. Os mecanismos de mercado são particularmente limitados nesta área. A evolução do desemprego estrutural está fragilizando os sindicatos e a capacidade de negociação frente a empresários de forma geral. As profissões passam a funcionar em “circuitos” estratificados onde o mercado tem ação reguladora limitada. Médicos de mesmo nível profissional poderão ganhar 20 mil dólares mensais se pertencerem à casta da medicina de luxo em São Paulo, ou ganharem salários aviltantes se foram capturados pelas modernas fabriquetas privadas de saúde chamadas de “intermédicas”, ou ganharem 6 mil dólares se tiverem a sorte de entrar em alguma organização internacional, ou ainda trabalharem nos limites da sobrevivência se estiverem na área da medicina comunitária das periferias pobres. Há cada vez menos espaço profissional homogêneo onde as pessoas estariam competindo por emprego, salário e normas, e na era dos circuitos estratificados os mecanismos instituicionais de regulação tornam-se cada vez mais necessários. O mercado, nesta área, desempenha apenas o papel de ampliação de desigualdades. Na ausência de instituições adequadas, e frente à inoperância dos mercados, formam-se movimentos corporativos de defesa de privilégios, gerando-se nas sociedades poderosos quistos de interesses bem defendidos e desequilíbrios ampliados. O próprio Banco Mundial, tão propenso a deixar a mão invisível agir de maneira irrestrita, conclui o seu relatório sobre o emprego no mundo afirmando que “as alternativas não são de laissez-faire ou de intervenção governamental; trata-se de definir ações públicas efetivas capazes de dar suporte ao funcionamento eficiente do mercado, encorajar o investimento produtivo e responder às necessidades particulares de trabalhadores que são discriminados ou colocados em situação de desvantagem...Para que uma estratégia baseada em mercado possa ter sucesso, os governos têm de estabelecer políticas de trabalho para lidar com os direitos básicos 42 do trabalhador, a discriminação e a desigualdade, a segurança de acesso à renda, e o próprio papel do governo como empregador.”52 A Organização Internacional do Trabalho segue uma visão semelhante: “Para aumentar o número de postos de trabalho produtivos no setor moderno é indispensável uma boa adaptação à mundialização, mas isto não basta. Em muitos países em desenvolvimento, a maior parte da população ativa segue trabalhando nos setores rural e urbano não estruturado, de pouca produtividade. O sub-emprego é endêmico, e nestes países os pobres estão concentrados nestes setores. Procede pois, que a política de desenvolvimento não os deixe em segundo plano e que nos programas públicos se dê prioridade às medidas destinadas a atenuar o subemprego e a pobreza”. A OIT recomenda assim intervenções firmes por exemplo no mercado de capitais, no sentido de uma maior igualdade de acesso, para elevar a produtividade nos setores rural e urbano não estruturado.53 Ao mesmo tempo que se busca uma reforço da capacidade de governo, se constata a sua erosão: “A consequência da mundialização é que se enfraqueceu a capacidade de administração da economia de cada país. No plano macroeconômico, a mobilidade do capital financeiro reduziu o controle do Estado sobre os juros e o cambio; a fluidez dos investimentos das empresas multinacionais reduziu a possibilidade do governo influir sobre o nível de investimentos e a sua localização geográfica; e, dada a mobilidade internacional do pessoal técnico e muito qualificado, aos governos tornou- se hoje difícil impor a progressividade fiscal para a renda e a riqueza e manter um elevado nível de gastos públicos”.54 A recuperação da governabilidade está portanto no centro do problema. Frente à dimensão que o problema assumiu, não faltam inovações teóricas e experiências inovadoras. Na linha teórica constitui um aporte importante o trabalho de Guy Aznar, que sugere que se redistribua globalmente o trabalho entre os que se queixam do seu excesso, e os que se queixam de não o conseguirem. A proposta mostra com cálculos que é perfeitamente viável reduzir a jornada de trabalho, manter os salários, e compensar as empresas das suas perdas através da reorientação dos subsídios ao desemprego. Elaborada para a França, a proposta tem o mérito de colocar claramente em discussão a gestão do “estoque” de empregos da sociedade, e as novas políticas que deverão surgir.55 As experiências inovadoras também são ricas. O Estado de Kerala, na India, está dando um exemplo sumamente interessante que mostra a que ponto uma sociedade que assume a sua própria gestão pode equilibrar o processo de desenvolvimento e o equilíbrio na distribuição do emprego mesmo em condições de baixa renda e nível precário de modernização. A cidade de Santos e outros muinicípios brasileiros mostrararm que apesar do nível de emprego depender em grande parte de políticas 52 - The World Bank - World Development Report 1995: Workers in an Integrating World - Oxford University Press 1995, p. 14 53 - OIT - El Empleo...p. 13 54 - OIT - El Empleo...p. 78 55 - Guy Aznar - Trabalhar menos para trabalharem todos - Editora Scritta, São Paulo 1995; o livro vem com um excelente prefácio de André Gorz sobre a nova problemática do emprego. 45 mecanismo de regulação, devido em particular à imensa desigualdade entre os atores econômicos e sociais. No país não falta trabalho, falta emprego. O problema do emprego é essencialmente um problema de organização. Frente à imensidão do que há por fazer no país – da construção de habitações até infraestruturas essenciais e produção de alimentos para dezenas de milhões de desnutridos – ficarmos com dezenas de milhões de pessoas desesperadas por não ter o que fazer é absurdo. A ponte entre a massa de desempregados ou subempregados e as imensas frentes de trabalho do país é a organização social. Esperar que “surjam” empregos do setor privado ou empregos fixos na máquina do Estado, simplesmente não é realista, frente às tendências atuais nos dois setores. As coisas não “surgem”, se organizam. 46 5 - Governabilidade: o deslocamento do poder “Na prática, tanto o Estado como o mercado são frequentemente dominados pelas mesmas estruturas de poder. Isto sugere uma terceira opção pragmática: a de que o povo deveria guiar tanto o Estado como o mercado, que precisam funcionar de maneira articulada, com o povo recuperando suficiente poder para exercer uma influência mais efetiva sobre ambos.” - Relatório sobre o Desenvolvimento Humano 199359 Vimos nos capítulos anteriores que as novas dinâmicas da tecnologia são impressionantes, mas que as instituições correspondentes, indispensáveis para torná- las úteis, ainda estão nas fraldas. Vimos que a globalização abre novos horizontes económicos, mas que no plano político nos encontramos, com os nossos tradicionais governos nacionais, e na falta de instrumentos globais de regulação, simplesmente sem respostas para os novos desafios. Surgem assim os dramas da pobreza e do desemprego, macro-efeitos que desarticulam o nosso desenvolvimento. As pessoas não são intrinsecamente más ou intrinsicamente boas. Há estruturas sociais que favorecem a solidariedade e a cooperação, como há outras que favorecem a competição destrutiva. As questões se colocam portanto menos em termos de maldade das pessoas, do que em termos de dinâmicas institucionais frente às quais as pessoas e os atores sociais encontram-se em boa parte impotentes. De certa forma, a sociedade deixou de ter instrumentos de decisão correspondentes aos problemas que enfrenta, e na falta de respostas busca culpados. Os atores econômicos e políticos buscam sem dúvida gerar formas mais adequadas de organização institucional. As multinacionais, por exemplo, que nos anos 60 ainda exigiam que cada unidade de produção situada nos diversos países pedisse autorização à matriz para qualquer iniciativa, hoje trabalham com ampla autonomia das empresas. A própria IBM, depois de constituir a sua gigantesca pirâmide de poder, descobriu que o tempo não é mais de pirâmides, mas de redes flexíveis, e está tentando reformular completamente a sua arquitetura organizacional. Na área da administração pública, buscando compensar a ausência de governo mundial, reúnem-se quase em permanência chefes de Estado, grupo dos Sete, ministros de finanças, além desta conferência quase permanente que reúne as autoridades do globo para discutir os dramas do meio ambiente (Rio, 1992), da população (Cairo, 1993), da pobreza (Copenhague, 1995), das cidades (Istanbul, 1996). Os sindicatos estão sendo repensados frente à transformação da estrutura produtiva e à globalização. Hoje, dificilmente se encontra um país onde não haja um ministério ou uma secretaria da reforma administrativa. Todos estão repensando as instituições. Simplesmente porque as instituições herdadas já não respondem às nossas necessidades. É importante notar que o que está em jogo é menos o conteúdo das decisões substantivas – que tipo de medidas econômicas, que tipo de necessidades sociais e assim por diante – do que a capacidade de gerar os instrumentos de decisão 59 - “In practice, both state and market are often dominated by the same power structures. This suggests a more pragmatic third option: that people should guide both the state and the market, which need to work in tandem, with people sufficiently empowered to exert a more effective influence over both”- UNDP, Human Development Report 1993, New York, p. 4 47 correspondentes. A perda de governabilidade se traduz numa impotência generalizada frente ao que está acontecendo. E frente à insegurança que a perda de governabilidade gera, multiplicam-se as atitudes corporativas de autodefesa que prejudicam o conjunto, ao reduzir a própria capacidade de adaptação das instituições. Não há solução espontânea para este problema, algum tipo de “mão invisível” institucional capaz de assegurar os equilíbrios. Os atores econômicos e sociais são hoje tão desiguais, que a imagem da “livre concorrência”, capaz de equilibrar os processos de desenvolvimento econômico, é hoje tão utópica e antiquada quanto a visão de “bom selvagem” que ainda sobrevive em certas visões da esquerda. A liberdade sobrevive quando há um mínimo de equilíbrio de poder entre as partes, pois liberdade entre desiguais significa liberdade do mais forte, e resulta na erosão das instituições.60 Quando se desarticulam os instrumentos institucionais de governo, ficam mais frágeis os instrumentos políticos de compensação, perdem-se de vista o longo prazo e os interesses humanos. A dimensão dos desafios que enfrentamos se reflete nas próprias obras que surgem sobre o problema da governabilidade. Alvin Toffler, por exemplo, apresenta uma visão de deslocamento do poder baseada na revolução informática: o poder pertencia a quem tinha os maiores exércitos, depois passou para os que têm maior poder econômico, e agora está se deslocando para quem tem o controle da informação. Pierre lévy apresenta um cenário extremamente sugestivo de uma sociedade que passa a se organizar em rede, de forma muito mais horizontal, com um papel chave desempenhado também pelos sistemas de informação.61 André Gorz, conforme vimos no capítulo sobre desemprego, apresenta propostas globais de revisão do próprio conceito de trabalho e da organização social correspondente. Há pouca dúvida de que estamos assistindo ao parto de uma nova sociedade. É também bastante evidente que nesta transformação a tecnologia, a informação e o conhecimento de forma geral desempenharão um papel central. E tem provavelmente razão Alvin Toffler ao considerar que a informação é muito mais fluida do que as antigas fontes de poder, havendo assim maiores chances de evoluirmos para uma sociedade mais democrática. Mas basta olhar para a guerra que se trava pelo controle mundial da informação, a histeria que hoje cerca as discussões referentes à legislação sobre a propriedade intelectual, a vertiginosa privatização dos sistemas de telecomunicações e a rapidez com a qual as mega-empresas mundiais estão colocando “catracas” ou “pedágios” sobre a produção e circulação do conhecimento, para se dar conta que esta democratização é apenas uma possibilidade. Hoje já não se discute se a informação é ou não um elemento essencial de poder do século XXI. O essencial, é entender que configuração de forças está presidindo às transformações. 60 - Jean Jacques Rousseau resumiu este problema de maneira magistral, no Contrato Social: a condição da democracia é que nenhum homem seja tão rico que possa comprar os outros, nem tão pobre que seja obrigado a se vender. 61 - Alvin Toffler, Powershift: knowledge, wealth and violence at the edge of the 21st century, Bantam Books, New York 1991; Pierre Lévy, L’intelligence collective, Ed. La Découverte, Paris 1994 50 core corporations. Como ordem de grandeza, estas empresas são responsáveis por 20 a 25% da produção mundial de bens e serviços. A cifra em si já é gigantesca. Se considerarmos que estas empresas constituem de certa maneira a linha de frente em termos de renovação tecnológica - entre 80 e 90% das novas tecnologias surgem no quadro das empresas transnacionais - estes 20 a 25% aparecem como um fator decisivo de poder. Raymond Vernon, um dos melhores conhecedores da área, se surpreende com a insuficiência de estudos sobre as empresas transnacionais: “Com mais da metade do comércio mundial de bens e serviços sendo conduzido pelas empresas transnacionais, e com uma proporção considerável deste total realizado entre unidades de uma mesma empresa, torna-se cada vez mais difícil fechar os olhos sobre a sua existência”. Charles-Albert Michalet resume bem o peso que estas empresas assumiram na nossa organização econômica: “As empresas transnacionais são os atores econômicos mais significativos na economia mundial, mesmo que isto ainda não seja reconhecido pelos dados econômicos oficiais, as administrações nacionais e as instituições internacionais”.65 O peso das transnacionais é reforçado pelo fato que se trata cada vez menos de simples empresas que produzem em escala mundial, e cada vez mais de empresas organizadoras da produção, comercialização, financiamento e promoção com impacto de reordenamento do universo econômico que vai muito além das fronteiras da propriedade empresarial. São empresas que se concentram cada vez mais no que Vernon chama de “rent earning intangibles”, produtos intangíveis que geram renda.66 Vimos acima o exemplo da Nike, uma “network firm” segundo David Korten, cujas atividades se concentram em intermediação, gestão, promoção, organização. Hoje grandes produtoras de automóveis são na realidade montadoras que gerem um conjunto de relações inter-empresariais e Vernon realça bem esta evolução, ao comentar que “o comércio internacional das ETN’s está altamente concentrado em produtos e serviços com mercados relativamente imperfeitos onde as economias de escala, curvas de aprendizagem, patentes, tecnologia e a marca têm papel importante”.67 Ohmae, segundo relatado por Korten, considera que os custos de produção constituem hoje tipicamente apenas cerca de 25% do preço que paga o consumidor final; a maior contribuição para o preço do produto final viria do marketing e de funções de suporte: “Funções como distribuição, armazenamento, financiamento, marketing final, integração de sistemas, e serviços constituem todos 65 - UNCTAD - Division on Transnational Corporations and Investment - Transnational Corporations - Vol. 3, Nº 1, February 1994: ver em particular Charles-Albert Michalet, Transnational Corporations and the Changing International Economic System, e o excelente extudo de John H. Dunning, Re- evaluating the Benefits of Foreign Direct Investment, no mesmo número. O artigo de Raymond Vernon, Research on Transnational Corporations: Shedding old Paradigms, constitui uma excelente revisão da literatura disponível nas Nações Unidas sobre o tema. A Unctad publica atualmente o anuário World Investment Report, com forte viés apologético em favor das empresas transnacionais, mas com excelentes dados. Utilizamos aqui o World Investment Report 1995, New York and Geneva, 1995, 440p. 66 Vernon, op. cit. p. 141 67 - R. Vernon, op. cit. p. 150: “The international trade of TNCs is highly concentrated in products and services with relatively imperfect markets in which scale economies, learning curves, patents, technology and trademarks figure strongly.” 51 uma parte legítima do sistema de negócios e pode criar tantos, e frequentemente mais empregos do que simples operações de manufatura”.68 Asim, à medida que a grande empresa evolui do conceito de produtor para o conceito de organizador, passa a tecer um sistema complexo de relacionamentos que envolve mídia, financiadores, distribuidoras, empresas de advocacia, sistemas de pressão política conjunta nos diversos países onde exerce atividades, adotando mecanismos complexos como tomadas de participação cruzada de ações entre empresas, intercâmbio de diretorias, acordos de cooperação tecnológica por segmentos produtivos, divisão de trabalho e assim por diante, gerando um sistema complexo de obrigações mútuas e de dependência compartilhada.69 O grupo de grandes empresas transnacionais que efetivamente domina o processo de transformação econômica exerce assim um poder extremamente vasto. Este poder, articulado com o peso econômico, político, midiático e militar do primeiro mundo, transforma a maior parte dos atores sociais do planeta, e em particular os do terceiro mundo, em meros espectadores que tentam, sempre com atrazo, se adaptar de forma relativamente menos prejudicial às vertiginosas transformações do capitalismo dominante. Mas se impõe igualmente aos próprios paises desenvolvidos: “As 1.000 maiores empresas norte-americanas são responsáveis por mais de 60% dos produto nacional bruto, deixando o resto para 11 milhões de pequenas empresas. O processo de contratação externa cria efetivamente novas oportunidades para empresas menores, mas o poder permanece onde sempre esteve – com os gigantes empresariais. Não dispondo de acesso independente ao mercado, as empresas menores que orbitam em torno das coporações nucleares (core corporations) funcionam mais como apêndices dependentes do que como negócios independentes”.70 A questão da dramática ampliacão do poder das empresas transnacionais nos remete a uma outra questão central: quem manda nas multinacionais? Passamos neste século do poder do dono, do “proprietário”, para o poder dos acionistas, e em seguida para o poder da tecnocracia de gestores, enquanto a propriedade se dilui nos gigantescos sistemas de investimentos de longo prazo de fundos de pensão e de seguradoras. Este universo tecnocrático multinacional, com os seus lobbies junto a cada governo, seus bilhões de dólares utilizados na formação das atitudes do consumidor, sua capacidade de comprar, transformar e revender ou controlar empresas concorrentes ou complementares, é em última instância manejado cada vez mais por especialistas multinacionais, o core personnel das grandes empresas, que formam uma casta política bem identificada em termos sociais, econômicos e culturais. 68 - David Korten, op. cit. p. 128, citando Kenichi Ohmae, The Borderless World: Power and Strategy in the Interlinked Economy, London, HarperCollins, 1990, p xii 69 - O conceito de dependência compartilhada, shared dependency segundo a fórmula norte-americana, é particularmente interessante. Mostra bem que quando Marx, no século XIX, previa que a prazo o capitalismo precisaria complementar o mercado com um mecanismo organizado de gestão, à medida em que a produção se tornasse mais complexa e mais socializada entre diversos atores económicos e sociais, a sua visão tinha na realidade um alcance maior do que se imaginava. O que as empresas estão fazendo, ao organizar sistemas sofisticados de articulação, é na realidade uma adaptação das relações de produção às forças produtivas. 70 - David Korten - When Corporations Rule theWorld - Berrett-Koehler Publishers, San Francisco 1995, p. 217 52 Formou-se assim uma classe de nível mundial, e não mais de âmbito nacional, e com uma concentração de poder sem precedentes. Suas mensagens, os seus valores e opiniões entram diariamente nas casas de qualquer habitante do planeta, suas iniciativas fazem variar o valor das poupanças acumuladas por qualquer familia rica ou humilde, as suas opções tenológicas definem os nossos perfís de consumo e a mudança dos nossos empregos, suas músicas e mensagens publicitárias influem diretamente no universo mental dos nossos filhos. A tendência deste poder é de se reproduzir. e se reforçar. Enquanto muitos ainda buscam luzes na baixa tendencial da taxa de lucro para entender as opções do capitalismo, a verdade é que o ritmo de renovação tecnológica deslocou o problema: quem controla a renovação tecnológica, e pode portanto se permitir de chegar primeiro ao mercado com um produto novo, recolhe a nata da capacidade de compra dos que estão preparados a pagar muito por um produto mais adequado às suas necessidades ou simplesmente novo. Hoje uma calculadora de bolso vale alguns dólares. Os primeiros modelos lançados no mercado de massa, no entanto, vendidos na casa das centenas de dólares, permitiam às empresas produtoras recuperar todos os seus investimentos em pesquisa e realizar lucros fabulosos. Com a chegada de dezenas de outros produtores os preços são gradualmente puxados para baixo, e depois de um tempo as taxas de lucro baixam radicalmente. Na linha de um mecanismo amplamente estudado por Schumpeter, forma-se uma renda de inovação que faz com que os primeiros a chegar recebam remunerações incomparavelmente maiores. E como quem controla a renovação tecnológica são algumas centenas de empresas transnacionais, os lucros disproporcionais lhes permitem tanto reforçar os controle sobre as tecnologias, como controlar financeiramente outras empresas da área. Se de um lado o processo de inovação tecnológica pode se ver assim acelerado, por outro aumenta rapidamente a concentração de poder dos que já dispõem de posição de vantagem, gerando um processo cumulativo de desequilíbrio. Capitalismo de pedágio Entende-se melhor, assim, a formação deste universo gestor tecnocrático extremamente concentrado e poderoso, desta classe de “money workers” de que fala David Korten, dos executivos de grandes empresas, dos especialistas de marketing, dos advogados, dos investidores, banqueiros, contadores, corretores mobiliários e tantos outros. Estes especialistas gerem um universo que drena recursos de bilhões de consumidores, através de um universo complexo de serviços de intermediação, formando um tipo de capitalismo de catraca, ou de pedágio, onde a produção segue sendo importante, mas assumiu papel preponderante a cobrança de um direito de trânsito do produto na esfera económica mundial. 71 A Nike, conforme vimos, é um cobrador de pedágio sobre produtores reais. Ainda que associemos a Nike à produção de tênis, a empresa é apenas uma marca que permite que um produto que custou 6 dólares se venda na faixa de 70 a 130 dólares. Pagamos uma camisa de uma griffe qualquer, sabendo que é produzida numa periferia de São 71 - Uma boa imagem do conceito de capitalismo de pedágio nos é dada por um estudo sobre as propostas da IBM para que toda e qualquer comunicação que atualmente flui livremente pela Internet passe por um sistema de pedágio ( “on April 30 1996 IBM opened InfoMarket, an electronic-content clearinghouse that will also act as a toll-booth for the Information Superhighway”), originando exatamente uma cobrança sobre o que “passa” pelo sistema. Ver Business Week, 13 May 1996, p.58 55 reuniões ad hoc de G-7, os espaços informais e poderosos como os Bildeberg Meetings, o World Economic Forum, o “Group of Thirty” e outros;76 • resurge com toda atualidade a questão da estruturação de um sistema mundial de governo, da institucionalização do poder mundial, problema adiado durante longo tempo pela guerra fria; • tornou-se inviável trabalhar apenas com o setor moderno da economia mundial, esperando que os dois terços de marginalizados do mundo “sigam” o processo de modernização: tornou-se essencial para a sobrevivência de todos empreender políticas globais de reequilbramento social e econômico do planeta; • O resgate da cidadania torna-se essencial, nas suas diversas dimensões, e com isto o resgate da dimensão política do poder, hoje apropriado por organizações econômicas.77 As mudanças virão provavelmente de uma combinação de pressões, crises, revoltas, e da lenta conscientização das populações das necessidades de se preservar o nosso próprio futuro. No entanto, é importante ter presente que o chamado primeiro mundo, que controla os quatro quintos da produção mundial, praticamente todos os eixos de desenvolvimento tecnológico e todos os instrumentos mundiais de comunicação, além de dispor de uma superioridade militar esmagadora, tem uma responsabilidade absolutamente central no processo. Este é apenas um planeta, e não é muito vasto. Os impactos estruturais serão para todos. Não é pois o problema de um ou outro detalhe de formas de governo ou de reforma tributária ou dos serviços sociais que está em causa. Trata-se de repensar sistematicamente, e de forma ampla, a reprodução social. 76 - Ver States of Disarray: the social effects of globalization, United Nations Research Institute for Social Development (Unrisd), London, March 1995, p. 33 77 - “People’s life chances are being fundamentally affected by decisions taken in international forums that are profoundly unrepresentative and unaccountable – and that permit global markets to wreak havoc with the livelyhoods of many of the world’s people” - Unrisd, States of Disarray, op. Cit. p. 20 56 II - A REPRODUÇÃO SOCIAL 57 Vimos na primeira parte deste trabalho, Mudança e Governabilidade, cinco grandes tendências que não constituem sem dúvida a totalidade do processo de mudança, mas provavelmente os eixos mais significativos em termos de impactos estruturais sobre como a humanidade se governa. Estes eixos são a mudança tecnológica, o processo de globalização, o agravamento das polarizações econômicas, a reestruturação demográfica e novas dinâmicas do trabalho, e o deslocamento das estruturas tradicionais do poder. Cada tendência carrega embutidas contradições que nos parecem críticas. Com tantas coisas críticas nos dias de hoje, o termo tende a ser visto como banal. Utilizamos este qualificativo no sentido de que são processos que geram uma crise estrutural do sistema. As transformações tecnológicas avançaram muito mais rapidamente do que a nossa capacidade de adaptação cultural, e sobretudo a nossa capacidade de gerar as instituições correspondentes, ou de nos organizarmos como civilização. Continuar com instrumentos de governo precários, e a muleta otimista de que o mercado de alguma maneira ajeitará as coisas, quando manejamos produtos químicos de impacto planetário, clonagem de seres vivos, capacidades ilimitadas de pesca e desmatamento ou armas bacteriológicas que se podem adquirir de qualquer laboratório privado, transformou o planeta numa gigantesca roleta russa. A mistura de tecnologias poderosas com a filosofia prehistórica de sobrevivência do mais apto é simplesmente destrutiva e insustentável. A globalização, por sua vez, provoca um reordenamento profundo dos espaços da reprodução social, deslocando para o nível planetário as opções cruciais e de longo prazo para a humanidade, enquanto os instrumentos de governo, o conceito de cidadania e toda nossa cultura política ainda estão centrados na nacionalidade. Encontramo-nos assim com imensos vazios na capacidade de governo, tanto no nível global como local, no momento em que mais precisamos de reforço desta capacidade. Na falta de capacidade de governo minimamente adequada, e com um mundo amplamente gerido, ainda, na linha de que o egoismo individual é o melhor caminho para o altruismo social, estamos atingindo polarizações econômicas críticas, que colocam o capitalismo frente a um dilema cristalino: um bom sistema produtivo que não sabe distribuir não é um bom sistema. Um sistema que é “menos ruim” mas leva à destruição da humanidade não resolve. A realidade é que o planeta assiste a uma redução radical das distâncias geográficas, enquanto aumentam as distâncias econômicas. A mistura é insustentável. A reestruturação demográfica transformou radicalmente a distribuição espacial das populações, gerando uma imensa rede de cidades, deslocando bilhões de pessoas da sua base rural sem que tenham surgido bases elementarmente suficientes de infraestruturas, de economia urbana, de emprego. A humanidade vê assim se juntar uma fantástica capacidade tecnológica de produzir mais com menos esforço, com uma profunda incapacidade de organizar a contribuição produtiva das grandes massas da população mundial. Como a cidadania hoje depende vitalmente do emprego, o processo de exclusão social gerado torna-se crítico. 60 Os fatores de produção Em qualquer empresa, a produtividade resulta de uma adequada combinação de fatores, como capacidade de trabalho, equipamento, matéria prima, articulados em função de um objetivo. Tanto a definição do objetivo como a correta combinação de fatores depende de conhecimentos. Houve um tempo em que o fator essencial era a energia física da mão de obra, e a produção era qualificada de intensiva em trabalho. Com a transformação das bases energéticas da produção no final do século passado, e a aplicação generalizada da eletricidade e do petróleo nas décadas seguintes, o fator essencial tornou-se a máquina, e a produção passou a ser intensiva em capital. Hoje, com a revolução tecnológica, a visão geral é de que a produção passa a ser intensiva em conhecimento. Se o raciocínio é claro e de modo geral correto quando nos referimos a determinadas empresas, a generalização desta visão para o nível macroeconômico é muito mais complicada. A metade da humanidade ainda vive no campo, e a sua mão de obra é essencialmente utilizada como simples energia básica, como é o caso também de boa parte da produção e dos serviços urbanos. Por outro lado, as multinacionais ocuparam rapidamente os setores intensivos em conhecimento, e deslocaram para outros níveis empresariais e para outros países as atividades intensivas em mão de obra e, crescentemente, intensivas em capital, concentrando-se nas atividades “organizadoras” e cobrando o correspondente pedágio. O conceito de “especialização desigual” define bem esta situação.79 Assim, a aceleração tecnológica gera o convívio em grande escala de segmentos profundamente desiguais, e a sua articulação, ou rearticulação, torna-se essencial para a nossa sobrevivência e para o que podemos chamar de produtividade social. As empresas transnacionais tendem a aproveitar estas diferenças à sua maneira, frequentemente contruibuindo para a sua cristalização ou o seu aprofundamento. Uma transnacional pode aproveitar cientistas baratos da Rússia, combinando-os com a produtividade dos “sweat-shops” asiáticos onde adultos e crianças trabalham mais de 15 horas por dia, e articulando o conjunto por meio das telecomunicações de base norte-americana e assim por diante, selecionando vantagens comparadas do planeta, e canalizando os lucros gerados para o “grupo”. A avaliação deste tipo de articulação dos diversos segmentos mais ou menos avançados das nossas sociedades através das empresas transnacionais não se resolve em simplifações do tipo “é bom” ou “é ruim”. Há espaço para produtos globais. Hoje a produção de motores de limpadores de para-brisas é assegurada por algumas fábricas para todos os modelos de automóveis existentes no mundo. Há alguma vantagem em cada país ter a sua? Mas quando a Volkswagen do Brasil, aproveitando o baixo custo salarial, cartelização de preços e protecionismo externo lucra em 1995 cerca de 675 milhões de dólares, enquanto a matriz alemã perde dinheiro, já é mais discutível, e o consumidor brasileiro sente o impacto no seu bolso. E quando o financista texano Charles Hurwitz tenta destruir a mais antiga floresta norte- 79 - Conceito desenvolvido por Arghiri Emmanuel, aplicado à especialização dos países pobres em matérias primas, enquanto os países ricos se especializavam na produção industrial. Trata-se aqui de nova forma de especialização desigual, dando também lugar a um novo tipo de troca desigual. Ver A. Emmanuel, L’Échange Inégal, Maspéro, Paris 1972 61 americana para levantar um bilhão de dólares para compensar perdas em especulações financeiras em outras partes do mundo, até os pacíficos habitantes da California passam a ver as transnacionais com ódio.80 Se uma empresa transnacional ainda pode, no quadro da cultura econômica dominante, alegar que não é da sua responsabilidade saber se os seus fornecedores utilizam ou não trabalho infantil, para dar um exemplo, quando passamos para o nível macroeconômico a lógica é profundamente diferente. Neste nível, interessa-nos saber se a combinação de fatores de produção responde ou não aos interesses sociais, às exigências ambientais, aos ideais políticos e culturais de uma sociedade. É importante lembrar que os fatores que combinamos para desenvolver a produção, como a capacidade de trabalho, os equipamentos, as matérias primas, os conhecimentos, devem obedecer a certas exigências técnicas. A Rússia pode ser um forte concorrente no lançamento de satélites comercias. Mas quantas empresas no mundo, e quantos países, podem se permitir ter este tipo de atividade em escala econômica? Em compensação, uma série de produtos só se tornam produtivos em escala local, como por exemplo no caso do pão e de um grande número de necessidades do nosso cotidiano. A combinação de fatores de produção, visando elevar a produtividade social, deve portanto ser vista de forma bastante ampla, envolvendo os diversos universos tecnológicos, as exigências técnicas de diversos setores de atividades, e os diversos impactos sobre a sociedade. Em termos práticos, constata-se que uma região como Kerala, um grande Estado da India, apesar de muito pobre, combina de forma inteligente, para dizê-lo simplesmente, os seus fatores de produção, e obtém em última instância uma qualidade de vida elevada para os seus habitantes, com baixíssima mortalidade infantil, alimentação bem distribuida nos diversos estratos da população e assim por diante. Certos países produtores de petróleo detêm imensas riquezas, mas a distribuem mal entre os seus habitantes, e os poucos que vivem bem do ponto de vista material estão na realidade destruindo o capital dos seus filhos e netos. Um país como o Brasil dispõe de amplas riquezas agrícolas, minerais, turísticas e indústriais, e consegue a proeza de gerar simultaneamente condições de vida humilhantes para a maior parte da população, e de medo permanente para os próprios ricos, além de estar dilapidando rapidamente o seu capital ambiental. É uma questão de inteligência social. Não há lei natural que defina a priori quanto devem ganhar os ricos ou os pobres, nem os limites entre o interesse individual e o interesse social, nem por exemplo quanta terra um indivíduo pode possuir sem nela produzir. Em última instância, o que interessa é que a sociedade funcione bem, de maneira razoavelmente equilibrada e sem destruir o seu futuro. O conceito de bom senso resume bem a questão. Esta visão pode ser ilustrada através do conceito de alocação racional de fatores. Quando 1% dos estabelecimentos agrícolas do país controlam 45% das terras e cultivam menos de 5%, a situação é tão absurda quanto uma empresa construir 80 - “The Brazilian subsidiary, which split from a joint venture with Ford in 1995, earned an estimated $675 million in net income last year”, Business Week, Wolkswagen’s Hard Road Back, February 26, 1996, p. 26. As brigas de Hurwitz na California são relatadas no mesmo número de Business Week, p. 6 62 instalações de 1.000 metros quadrados quando precisa apenas de 50. Quando um país remunera os seus intermediários financeiros com 15% do PIB, é como uma pessoa que ganha 5.000 reais por més pagar 750 reais por més a um contador apenas para gerir as suas aplicações. Vimos acima que no Brasil, entre pessoas que não trabalham por opção frente à baixa remuneração, pessoas subempregadas, pessoas desempregadas e pessoas de produtividade baixa por falta de investimentos sociais, estamos desperdiçando a capacidade de trabalho de algumas dezenas de milhões de pessoas. Trata-se também dos 371 milhões de hectares de solo agrícola, dos quais lavramos apenas cerca de 60 milhões; das impressionantes reservas de água doce, fator natural cada vez mais raro no planeta; do potencial hidroelétrico e de energia solar; das imensas reservas minerais e de petróleo; dos milhares de quilómetros de praias, das florestas tropicais e outros atrativos que constitutem um imenso potencial para o turismo. O conceito chave que vem à mente aqui é o da subutilização de fatores, conceito desenvolvido por Ignacy Sachs e atualmente trabalhado pelo Banco Mundial, que permite pensar uma economia, uma região ou uma atividade produtiva do ponto de vista do potencial parado e mobilizável. A mobilização dos recursos se faz por meio de um capital acumulado. Trata-se das estradas rodoviárias ou ferroviárias, dos portos e outras infraestruturas de transportes, das infraestruturas energéticas, das infraestruturas de irrigação na agricultura, do parque de maquinário existente no país e assim por diante. O Brasil dispõe de um amplo capital acumulado, mas desarticulado e pouco produtivo. O conceito básico aqui é o da geração de economias externas, aperfeiçoando-se as infraestruturas de modo que possam tornar mais produtivas as unidades de produção, e articulando as unidades de produção de modo que possam desenvolver sinergias no processo produtivo. A introdução do conhecimento como fator de produção é incômoda, pois não se mede como as outras categorias econômicas. No entanto, não podemos deixar de considerar o papel central que desempenha só porque não aprendemos a medí-lo de forma adequada. O Nobel de economia Gary Becker considera que os Estados Unidos, por exemplo, além de investirem 15% do seu Pib em equipamento, investem outros 15% no capital humano: “O capital humano faz tanto parte da riqueza das nações como as fábricas, casas, máquinas e outros formas de capital físico.” Segundo Becker, deveriam ser considerados investimento os 7,5% do Pib gastos na educação formal, os 3 a 5% gastos em formação dos trabalhadores nas empresas, e o investimento individual realizado por pessoas que deixam tremporariamente de trabalhar para aperfeiçoar os seus conhecimentos. Becker considera também que pelo menos um quinto dos gastos em saúde deveriam ser classificados como investimento em capital humano, pelo seu impacto produtivo. Estamos longe dos raciocínios dos nossos grupos dominantes que apresentam gastos sociais como um luxo que eleva os “custos Brasil.”81 A importância do conhecimento nos processos de reprodução social nos coloca desafios que não estamos acostumados a enfrentar: trata-se não só de adquirir o conhecimento, mas de assegurar a sua reprodução, circulação, generalização nos 81 - Gary S. Becker - Human Capital: one investment where America is way ahead - Business Week, 11 march 1996 65 custas das gerações futuras. Um investimento como a usina nuclear de Angra dos Reis não só não gera novo produto, mas gera custos permanentes de manutenção, e reduz o Pib em vez de aumentá-lo. Quando a contabilidade dos investimentos é bem realizada, e as contas do Pib são confiáveis, pode-se comparar o gasto em investimento com o aumento do Pib gerado: trata-se do coeficiente de capital, simples medida da produtividade do investimento, que nos diz por exemplo que um país determinado precisa investir 40 bilhões de dólares para obter um aumento da capacidade anual de produção de 10 bilhões de dólares. Pode-se da mesma forma acompanhar o impacto do investimento sobre o emprego. Por exemplo, é normal hoje um investimento de 200 mil dólares, na indústria, para cada posto de trabalho criado. Em termos práticos, se quiséssemos no Brasil gerar um milhão de empregos novos na indústria, para absorver parte dos cerca de 2,5 milhões de pessoas que chegam anualmente ao mercado de trabalho, teríamos que investir 200 bilhões de dólares, mais de um terço do nosso Pib, quando a nossa taxa de investimento anda ao redor dos 15%. O estudo do coeficiente de emprego, ou da capacidade setorial de geração de emprego por unidade de investimento, tornou-se crucial. Investimentos que geram um grande fluxo de produtos e ao mesmo tempo geram desemprego podem simplesmente desorganizar a economia, e reduzir globalmente a sua produtividade. Esta parte da contabilidade nacional ainda não está sistematizada, apesar da sua importância crescente frente à transformação do impacto emprego do desenvolvimento. Outra grave deficiência dos sistemas de contas nacionais, é que não incorporam o desgaste dos recursos naturais. Assim, um país que dispõe de um Pib muito elevado pode estar simplesmente liquidando as suas reservas de petróleo: aparece como um país rico mas está vivendo às custas das gerações futuras. Um grande produtor de soja que está envenenando o solo, reduzindo portanto a sua produtividade a longo prazo, soma a sua produção ao Pib da mesma forma que outro produtor que protege o solo. As empresas de pesca que estão liquidando as reservas marítimas somam cada uma as suas vendas ao Pib, deduzindo os seus custos empresariais mas não deduzindo os custos da destruição que provocam, sobretudo tratando-se de águas internacionais onde ninguém presta contas a ninguém. Esta contabilidade incompleta leva a que uma parte da humanidade hoje viva numa prosperidade artificial às custas das gerações futuras. Os custos sociais tampouco são contabilizados. Assim, as grandes empresas que monopolizam o solo agrícola do país expulsaram as populações para as cidades, onde se espera que o setor público crie as infraestruturas necessárias para a sua sobrevivência. Donas do seu próprio lote agrícola, estas familias estariam respondendo às suas próprias necessidades. Jogadas para periferias urbanas e desempregadas, tornam-se um ônus para a sociedade, enquanto a terra permanece parada. Em termos de Pib não muda nada,. pois o cultivo de subsistência não é contabilizado, e tampouco é contabilizado o desperdício de um fator de produção pelo latifúndio. Em última instância o Pib mudará positivamente, pois os bilhões que custa a segurança empresarial no Brasil serão apresentados como produção, logo como aumento do Pib. Um exemplo dramático destes absurdos pode ser constatado na África do Sul, onde as grandes empresas agrícolas expulsaram as populações africanas das regiões férteis, mas o apartheid não lhes permitiu instalarem-se nas cidades. Formaram-se assim os “townships’, espécies de favelões que não dispõem 66 nem da base produtiva rural nem dos confortos urbanos, distantes em geral de 20 ou 30 quilómetros das cidades brancas: hoje, ao mesmo tempo que aumenta a pressão por infraestruturas para a população africana, constata-se que espalhar infraestrutura pelos townships leva a sobrecustos insustentáveis em termos de transportes e outros. Uma ausência notória nos cálculos da produção nacional é o tempo. Trata-se do único recurso efetivamente não renovável. Quando um banco organiza guichés especializados, por exemplo, melhora a sua produtividade interna: cada funcionário é limitado a algumas operações, exigindo pouco treinamento, poucos conhecimentos, pouco salário. Em compensação, o cliente é obrigado a fazer várias filas. A lógica, é que o tempo perdido do cliente não é um custo para o banco. Trata-se de mais uma forma de externalização de custos, que melhora a produtividade do banco, aumenta o Pib, mas reduz o tempo disponível da população, reduzindo a produtividade social. De maneira geral, na medida em que o tempo é considerado um fator sem valor em termos econômicos (o “time is money” só é válido dentro da empresa, para o tempo que a empresa paga), as sociedades foram-se estruturando para um gigantesco desperdício do que é nem mais nem menos o nosso tempo de vida. O custo do tempo é mal avaliado, a não ser nas cronometragens dos especialistas da ergonometria, e não é incorporado como custo nas contas nacionais. E no entanto, trata-se do capital mais precioso que temos, hoje desperdiçado em filas de ônibus, em congestionamentos, em filas de banco, em idas e vindas nas oficinas de conserto dos eletrodomésticos e assim por diante. O Pib não é o produto efetivamente disponível para uso no país, pois não leva em conta o processo de trocas internacionais. Descontando-se as exportações e importações de bens e serviços, obtem-se o produto disponível. No caso brasileiro, na primeira metade da década de 1990, o país exportava bem mais do que importava, para cobrir os juros da dívida externa, ficando assim o produto final disponível inferior ao Pib. É importante salientar que a análise das economias como unidades independentes, “nacionais”, à qual se acrecenta depois as trocas internacionais, está se tornando cada vez mais confusa, na medida em que boa parte da produção se desenvolve no espaço global. Um terço do comércio mundial realiza-se entre matrizes e filiais ou entre filiais de empresas transnacionais, a preços administrativos, o que torna os valores pouco representativos.83 Muitas comunicações telefônicas internacionais hoje se fazem na base do “call back”, em que a pessoa chama a partir do Brasil, utiliza serviços da Embratel, mas o faturamento será feito no exterior, para outro país. A fluidez total dos mercados financeiros torna cada mais precária a avaliação do balanço de pagamentos. E os sistemas de compras eletrônicas via redes internacionais, em que produtos com as mais diversas origens são pagos segundo vários mecanismos que podem envolver contas em diversos países ou até em paraisos fiscais tornam o próprio conceito de trocas internacionais cada vez mais indefinido. 83 - “FDI (foreign direct investment) allows firms to build intra-firm networks of trade that link production units within TNC systems and provide them with privileged access to the rest of the system. These intra-firm activities are estimated to comprise one-third of world trade, or approximately $1.6 trillion of exports in 1993” - World Investment Report 1995 - United Nations, Geneva 1995, p. xxiii 67 É importante notar que o cálculo do Pib na área de serviços públicos se processa a partir dos custos. Em outros termos, toma-se o gasto do Estado, e se considera que se trata de uma contribuição que tem o mesmo valor. Quando um Estado aumenta de 20% o seu número de funcionários públicos sem aumentar a produtividade, estes custos suplementares se traduzirão de forma positiva nas contas nacionais como aumento do Pib. Finalmente, é preciso considerar que o Pib não contabiliza os aportes do setor informal. O resultado é que quando uma grande empresa introduz tecidos sintéticos produzidos com pouca mão de obra e muita automação, o Pib apresentará crescimento, mas não apresentará as perdas de milhares de postos de trabalho das atividades texteis tradicionais no setor informal. Com o setor informal ocupando frequentemente um terço ou mais da força de trabalho de um país, não incluir este setor torna os cálculos econômicos bem próximos da ficção. Assim, o Pib e o seu cálculo têm de ser vistos como uma forma provisória e muito grosseira de estimar fundamentalmente o setor formal produtivo: identificar o crescimento do Pib na sua metodologia atual com o desenvolvimento econômico, social e cultural indispensável a um processo moderno de reprodução social se tornou absurdo. E a imagem projetada não é neutra: privilegia o desempenho do setor mais avançado, escondendo cômodamente os outros setores e silenciando dados essenciais relativos à qualidade de vida e sustentabilidade ambiental. Na realidade, as pessoas se sentiam satisfeitas com a contabilidade estreita que representa o Pib, enquanto se acreditava que o aumento do Pib acarretaria naturalmente mais riqueza, mais lazer, melhor controle do meio ambiente e assim por diante. Hoje se entende que o Pib pode aumentar no curto e médio prazo enquanto o país e a população regridem no longo prazo. Surgem assim as novas formas de contabilidade social, na linha dos Relatórios sobre o Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, onde se começa a reavaliar o progresso, não mais em função do Pib apenas, mas também do conjunto de indicadores que avaliam a qualidade de vida da população e a sustentabilidade do desenvolvimento do ponto de vista ambiental. São os primeiros passos, sem dúvida, mas deverão rapidamente desembocar numa modificação profunda da própria forma de contabilizar as nossas atividades.84 Os meios de pagamento O produto que resulta da combinação de fatores passa em seguida por trocas. Nas economias modernas a parte esmagadora da produção de bens e serviços destina-se a terceiros, e a produção para o auto-consumo ocupa um espaço bastante reduzido. O acesso dos diversos atores econômicos e sociais à produção que se desenvolve num ano determinado é assegurada através de meios de pagamento. Estes meios de pagamento podem ser dinheiro, cheques, vales, títulos, enfim tudo que dê direito ao portador a acessar uma parcela do produto social. Uma das grandes vantagens das políticas econômicas do Ocidente, talvez insuficientemente realçada, foi o fato de se concentrar o controle do Estado, a chamada política econômica de curto prazo, ou política de conjuntura, sobre os meios 84 - Um dos bons críticos do conceito de PIB no Brasil é Henrique Rattner. 70 No entanto, o Estado ainda dispõe de fortes instrumentos de intervenção, através da política de preços, da política salarial, da política de previdência, da política de crédito, da política de cambio e da política de orçamento. Frequentemente vistos como instrumentos independentes, estes mecanismos determinam de uma forma ou outra quem tem acesso a quantos “vales”, e por conseguinte a que parcela do produto social. É importante salientar a interdependência destes instrumentos. Um grupo de usineiros, por exemplo, pode obter crédito subvencionado, melhorando assim o seu quinhão no Pib, ou pode obter preços garantidos pelo governo, com o mesmo efeito. Pode ainda manter os salários particularmente baixos, ou obter que o governo financie através do orçamento infraestruturas que geram economias externas e assim por diante. Grandes grupos como os banqueiros, usineiros, empreiteiras, donos de mídia e montadoras batalham assim nas diversas instituições do governo condições privilegiadas. Se uma porta fica mais difícil, tenta-se a outra. Este caráter de “vasos comunicantes” dos processos de distribuição das representações simbólicas do produto justifica que tenhamos colocado juntas áreas aparentemente tão diferentes como preços e previdência. Globalmente, chamaremos a regulação destas áreas de política de alocação de recursos. Tornou-se essencial entender que, com o aumento da distância entre os processos produtivos e as diversas formas de representação simbólica da produção, os dois ritmos obedecendo inclusive a ritmos completamente diferentes, gera-se um amplo espaço que não é regulado nem pelo mercado nem pelo Estado. Na realidade, a essência da guerra política que hoje se trava, entre batalhas pela nomeação de um ministro e financiamentos destinados a garantir a eleição de deputados e senadores, e incluindo uma série de práticas de chantagem e corrupção hoje educadamente qualificadas de “lobbies”, é a luta pelos meios de pagamento, pelos “vales”, e em última instância por um quinhão maior do produto social.. A recuperação do controle social sobre os meios de pagamento passa pela modernização, democratização, integração e transparência em seis áreas básicas: preços, salários, previdência, crédito, câmbio e orçamento. a) Política de preços Um primeiro grande instrumento de política de renda é a dinâmica que se imprime ao movimento global dos preços. Como é mais fácil emitir moeda do que aumentar efetivamente o produto, o governo gasta frequentemente em proveito de grupos privados dinheiro para o qual não tem contrapartida em impostos, ou o banqueiro empresta mais do que a poupança que os clientes fazem no seu banco. De qualquer forma, o resultado é um excesso global de demanda, são mais papéis reivindicando direitos sobre o mesmo produto, gerando inflação. A inflação impacta a população de duas maneiras diferentes. Um conjunto de atores sociais tem a sua renda definida por terceiros: são os assalariados, os aposentados, os pequenos produtores que não têm como agir sobre os seus preços de venda. Esta população, que poderemos chamar de população de renda fixa, não tem como se proteger da subida de preços, obtendo reajustes com atrazo de meses. O resultado é que esta parte da população compra com a mesma renda produtos mais caros, e deve em consequência reduzir o seu consumo. A parte do produto social não consumida irá 71 para outro grupo da população, o de renda variável. O comerciante que recebe o seu produto mais caro o revende também mais caro, ficando assim protegido, quando não aumenta o seu quinhão do produto social. O mesmo ocorre com o empresário, que em caso de aumento das suas matérias primas ou outros insumos, eleva os seus preços, ou com o banqueiro que frente a dinheiro mais caro cobra juros mais elevados. O resultado é que a inflação significa uma gigantesca transferência de renda da população de renda fixa para a população de renda variável, acarretando portanto uma concentração de renda, na medida em que os agentes econômicos que têm condições de elevar os seus preços são justamente os mais ricos. Quando se esgotam os métodos tradicionais de arrocho salarial e de compressão das aposentadorias, as duas grandes fontes de renda dos grupos politicamente mais frágeis, os grupos dominantes promovem ativamente a inflação como mecanismo complementar de concentração de renda. Naturalmente todos os grupos sociais se queixam da inflação, na medida em que ninguém iria assumir o ônus político do processo, e a esposa do banqueiro se diz desolada com os preços da feira. A realidade é que a renda do banqueiro aumenta em proporção maior do que os preços, e o resultado prático é que ele terá acesso a uma parcela maior do produto social. Como se trata de uma extração da mais valia de uma grande massa da população, dominantemente composta de assalariados, não através de uma empresa determinada, mas no conjunto da sociedade, é cômodo utilizar aqui o conceito de mais-valia social, que reflete tanto o caráter de apropriação do produto que o mecanismo permite, como o fato do mecanismo funcionar no conjunto da economia e não apenas no nível empresarial. Mas a política de preços constitui também um poderoso instrumento de política setorial. Quando um governo decide manter preços baixos para o transporte coletivo urbano, prática hoje generalizada no mundo, está financiando parte dos gastos da população mais modesta. Quando associa esta prática com impostos elevados sobre o automóvel, está taxando o transporte individual de pessoas da classe média que mais usam o automóvel particular para o seu transporte. Quando o governo assegura a gratuidade de universidades públicas, está na realidade assegurando um complemento salarial, normalmente chamado de salário social, aos que podem se aproveitar deste tipo de serviços, no caso brasileiro as familias mais ricas. As políticas setoriais de preços apresentam em geral dois gumes. A gratuidade da universidade pública faz com que seja muito concorrida, e terminam entrando os que tiveram acesso a melhor ensino de primeiro e segundo graus, ou seja, os filhos dos ricos. A prática, utilizada em diversos países, de manter tabelados em baixo nível bens de primeira necessidade como arroz, pão e outros, leva a que seja mais lucrativo para os produtores produzir soja para exportação, por exemplo, do que alimentos para o mercado interno, e o resultado é a relativa escassez de bens de primeira necessidade. E de pouco adianta elevar através de impostos o preço do automóvel particular, se depois se subvenciona com dinheiro público o álcool que estes automóveis consomem. Trata-se, mais uma vez, de vasos comunicantes, e de nada adiantam complexas políticas de renda onde uma mão retira o que a outra deu. É preciso, como veremos adiante, pensar as políticas de renda de maneira mais abrangente, por grupos de atores econômicos. 72 b) Política salarial Nas economias mais desenvolvidas de forma geral a massa salarial constitui a maior fonte de renda do conjunto da população. Em parte, isso se deve ao fato da esmagadora maioria da população nestes países ser assalariada. Mas tem peso importante também o fato dos salários serem relativamente elevados. O resultado prático é que num país como a França, por exemplo, os salários representam mais de tres quartos da renda, quando no Brasil não chegam à metade.87 No caso brasileiro, os salários dos trabalhadores são extremamente baixos. Com um salário da ordem de 3 dólares/hora na indústria de transformação, comparado com uma média da ordem de 15 dólares/hora nos Estados Unidos, estamos pagando os trabalhadores algo como 5 vezes menos. Se compararmos o Brasil com a Alemanha ou os países escandinavos, a relação é de 1 para 7. O salário social também fica muito baixo. Apesar dos empresários verterem copiosas lágrimas sobre os imensos 100% de encargos sociais, a realidade é que se trata de 100% sobre 2,79 dólares por hora, gerando um custo total de 5,6 dólares por hora trabalhada, quatro vezes menos do que o salário líquido da Alemanha.88 Um drama particular do Brasil é a abertura do leque salarial. Os fiscais do Banco Central recebem em média 3.200 dólares de salário, enquanto cerca de 52% dos assalariados do país recebem menos de dois salários mínimos, ou cerca de 200 dólares mensais como ordem de grandeza. Os salários dos professores de primeiro grau constituem, como se sabe, um escândalo que envergonha o Brasil a nível mundial, e inviabiliza o próprio desenvolvimento econômico. Não são menos escandalosos os salários de certas áreas do poder judiciário, onde especialistas da lei torcem-na a seu favor sem a mínima consideração de ética profissional. Na realidade os países desenvolvidos, na linha da chamada social-democracia, conseguiram um equilíbrio razoável ao reduzir o leque salarial e ao conter as diferenças entre os setores de atividades. De certa maneira, com a democratização da sociedade, conseguiu-se democratizar o acesso ao produto social, num processo conjunto de reforço das organizações profissionais e de desenvolvimento dos instrumentos governamentais de política de renda. É importante mencionar também que com a atual tendência para o desmantelamento de instrumentos de governo, a concentração de renda voltou a agravar-se nos países desenvolvidos, particularmente nos Estados Unidos. Enquanto se torna mais crítica a situação nos segmentos mais pobres, o nível salarial dos executivos, hoje na faixa de um milhão de dólares por mes nas grandes empresas, está gerando uma autêntica onda 87 - Samuel Kilsztajn calcula que os salários representam 75% do Produto Interno Líquido nos Estados Unidos em 1985, 74% na França, contra 44% no Brasil e uma média de 42% na América Latina - ver Produto, capital e taxa de lucro nos países industrializados e na América Latina - Mimeo, Março 1996. O IBGE, dividindo a população ativa em empregados, conta própria, empregadores e não remunerados, apresenta como ordem de grandeza 66% de empregados. Em meados dos anos 1990 isto significaria algo da ordem de 45 milhões de pessoas, frente a uma população ativa da ordem de 60 milhões e uma população em idade de trabalho de 100 milhões. Anuário Estatístico do Brasil, 1990, p. 101 88 - Ver a respeito o interessante artigo de Demian Fiocca, A mão de obra custa pouco no Brasil, Folha de São Paulo, 14 de fevereiro de 1996 75 O nível geral dos juros pode constituir uma alavanca de redução ou aceleramento da economia em geral, na medida em que dinheiro caro atraí poupança para aplicações financeiras, enquanto o dinheiro barato estimula investimentos. Taxas diferenciadas de juros, por sua vez, com encarecimento do crédito ao consumidor e barateamento do crédito para investimento produtivo, podem ajudar a reduzir simultâneamente a pressão inflacionária e estimular as atividades de produção. Voltaremos adiante para o problema das formas de organização da intermediação financeira. O importante aqui é mostrar como a política de crédito constitui um instrumento de alocação de recursos aos diversos agentes econômicos, fechando a torneira para uns, abrindo-a para outros. No caso Brasileiro, elevadíssimos subsídios concedidos a usineiros e latifúndios (via rolamento da dívida e crédito subsidiado), às empreiteiras (via sobrefaturamento de obras frequentemente superior aos 100%), às empresas de mídia (via compras em grande escala de espaço publicitário), ou aos grandes bancos (via federalização de déficits que resultam de operações fraudulentas ou incompetentes), sem que o Estado tenha os correspondentes recursos fiscais, geram uma dívida interna da ordem de 25% do Pib, financiada através de emissão de títulos com elevada taxa de juros. Estes juros elevados geram por sua vez elevadíssimos lucros para os bancos e grandes investidores financeiros, desviando recursos das atividades produtivas para a chamada “ciranda financeira”. Este mecanismo, apoiado no uso do Estado em função de interesses privados, leva assim a um círculo vicioso que desarticula as atividades produtivas, privilegiando agentes econômicos cujas atividades estão centradas na especulação, e cujos vínculos com o Estado são mais poderosos.92 e) Políticas de câmbio Uma empresa exportadora tem interesse em taxas de câmbio mais baixas, enquanto os importadores têm interesse em taxas de câmbio mais elevadas. Em termos práticos, uma empresa que exporta um milhão de reais de produtos, e obtém o equivalente de um milhão de dólares no exterior, terá de reconverter estes dólares em reais para continuar o seu processo produtivo. Se o real perde valor, e a equivalência passa de 1 por 1 para 1 por 1,20, por exemplo, o exportador receberá 1,20 reais por cada dólar, ficando favorecido. O importador, por sua vez, que comprava um lote de mercadoria no exterior por um milhão de dólares, terá de desembolsar, no caso da mesma valorização do real em relação do dólar, 1,2 milhões de reais para assegurar a sua importação, 20% a mais. Assim, em termos práticos uma modificação das taxas de câmbio enriquece uns e empobrece outros, transferindo uma parcela do Pib de um grupo de agentes econômicos para outro, estimulando as atividades de importadores ou de exportadores 92 - Aqui, como em outras áreas, aparece claramente a importância de se resgatar a capacidade de ação do Estado, desvinculando-o dos grandes grupos econômicos que organizam a manipulação política, reduzindo assim a chamada privatização do Estado. Tanto os trabalhadores como os empresários produtivos e em particular a pequena e média empresa têm um interesse comum nesta área. 76 segundo o caso, com o mesmo efeito prático que teria, por exemplo, um aumento ou uma redução de taxas alfandegárias sobre as transações com o exterior. Uma vez mais, os sistemas são articulados, e um grupo de agentes econômicos pode estar fazendo na imprensa um grande escândalo porque paga muitos impostos sobre as transações internacionais, ao mesmo tempo que fica bemo calado sobre taxas de câmbio que o favorecem e que compensam os impostos pagos. Como no caso dos outros mecanismos de alocação de recursos através de meios de pagamentos, não há alterações neutras, e frequentemente alterações de câmbio que são apresentadas como interessantes para “a economia” constituem na realidade subvenções com endereço certo. A flexibilidade no uso da diferenciação setorial do câmbio tem limites que foram bem expostos no caso brasileiro por Celso Furtado. Durante longo tempo, por exemplo, o Brasil adotou taxas muito favoráveis para importação de papel de jornal, formalmente para apoiar a cultura do povo, e na realidade para ter os jornais mais presos às suas políticas. O resultado indireto é que ficava muito mais difícil lançar a nível interno uma produção própria de papel, pois o papel importado chegava muito barato. Da mesma forma, produtos de luxo que pagavam mais caro pelas divisas, pois na época se apoiava prioritariamente a importação de bens de produção e de bens de primeira necessidade, se tornaram um setor favorecido de investimentos na medida em que ficava protegido das importações. Assim cada opção tem na realidade “dois gumes”, e pode envolver impactos inversos no curto e no longo prazo. Com a globalização da economia, o instrumento cambial move-se em limites cada vez mais estreitos, na medida em que variações geram especulação e insegurança, levando por sua vez ao que tem sido chamado de “substituição de divisas”: foi estudado no Egito e alguns outros países o comportamento da poupança privada, e se constatou que uma grande parte da população poupa em dólares, e não mais em moeda local. Por outro lado, um país como os Estados Unidos que vê a sua moeda utilizada no espaço global, enquanto o poder de emissão é de controle nacional, tem uma liberdade de emissão monetária de que não dispõe nenhum outro, na medida em que a sua moeda, guardada como reserva por milhões de familias no mundo todo, pode ser emitida sem provocar a correspondente desvalorização. Mais uma vez, é essencial aqui entender que valorizações e desvalorizações do câmbio favorecem e desfavorecem diferentes agentes econômicos, atribuindo-lhes maior ou menor quinhão de direitos sobre os bens e serviços produzidos pela sociedade, através de mecanismos que são muito mais complexos e “distantes” do que o raciocínio tradicional de um produtor que pensa se vale ou não a pena trocar um determinado número de sacos de milho por determinado equipamento agrícola. f) Política fiscal e de orçamento Como ordem de grandeza, os Estados dos países desenvolvidos gerem entre 40 a 60% do produto social, os países em desenvolvimento bastante menos. Conforme veremos adiante, esta participação cresce mesmo nos países mais conservadores, apesar dos discursos pelo Estado mínimo, por causa das próprias mudanças na estrutura das reprodução social. O essencial para nós aqui é apenas “marcar” esta grande presença 77 do Estado moderno, e a importância central que têm, em consequência, as políticas fiscais e de orçamento. Fundamentalmente, o Estado recolhe recursos através de uma política fiscal, e os gasta através de um orçamento. A política fiscal pode ser sumamente complexa. No caso brasileiro, trata-se de dezenas de impostos, alguns dos quais exigem mais gastos administrativos do que os recursos recolhidos. Outros exigem tanta burocracia por parte de quem tem de pagá- los que o tempo perdido é maior, em valor, do que o imposto pago. Na prática, a lógica do imposto é sumamente simples, e trata-se do mesmo tipo de contribuição que fazemos ao contribuirmos com os gastos indispensáveis do nosso prédio de apartamentos através do pagamento do condomínio. Trata-se de sustentar as atividades que são necessariamente públicas, e que teriam de ser pagas ainda que fossem privadas. Dizer que passamos um determinado número de meses trabalhando para o governo, e depois para nós, constitui portanto uma solene bobagem. De maneira sumamente resumida, as nossas contribuições se dão de forma direta através do pagamento de uma porcentagem sobre a renda que auferimos (salários, lucros, dividendos etc.) e sobre a propriedade rural ou urbana, ou de forma indireta sobre os produtos que consumimos. Existem ainda impostos sobre a atividade econômica ou sobre importações e exportações. Na realidade, o imposto incide sobre o ponto mais fácil de controlar, como o momento de pagamento do salário, o momento de transferência de um produto de uma pessoa para outra, o momento de passagem de um produto pela fronteira, a herança de um imóvel. Os agentes econômicos encontram-se em posições muito diferentes quando se trata de pagar o imposto. O assalariado já recebe o seu salário com o imposto descontado “em folha”, e como o empresário tem todo interesse em declarar todas as suas despesas para ele mesmo pagar menos imposto, a sonegação nesta área existe muito pouco. Os profissionais liberais como advogados, médicos, dentistas e outros já perguntam tradicionalmente se queremos pagar “com ou sem nota”, o que significa que ou sonegam o imposto ou o transferem para o nosso bolso. As lojas frequentemente ignoram simplesmente a nota fiscal e declaram o que querem, gerando profunda desigualdade econômica entre as empresas que pagam o seu imposto e as que sonegam. Funciona igualmente uma lei curiosa, a de que quanto maior a riqueza da pessoa ou da empresa, maior é o imposto devido, mas também é maior o poder político de pressão para evitar o pagamento. No Brasil, a tolerância tradicional com o imposto devido pelos ricos é reforçada pelo fato de não existir imposto sobre a fortuna. Na França, por exemplo, uma pessoa que possua um apartamento relativamente grande pagará, além do imposto sobre a renda e os impostos indiretos, um imposto sobre a sua “fortuna”, pagamento que alimentará um fundo chamado renda mínima de inserção, destinada aos pobres. No caso brasileiro não existe nenhum imposto sobre a fortuna acumulada, gerando uma situação profundamente injusta. Uma característica essencial do imposto, é o seu peso diferenciado segundo os contribuintes. O imposto direto, que permite que os rendimentos muito baixos sejam simplesmente isentos, enquanto os mais ricos pagam – ou deveriam pagar – uma 80 De certa forma, o capitalismo de pedágio desloca a remuneração de agentes do produtor para o intermediário. Ou dos agentes pouco organizados para os gigantes do lobby político como as empreiteiras, os especuladores fundiários e outros. Ou ainda para clãs familiares que tradicionalmente articulam segmentos de atividades produtivas com especulação e apropriação privada de espaços de decisão política. A realidade é que quando o capitalismo remunera os agentes segundo estruturas articuladas de poder, e não segundo a contribuição para as atividades econômicas, é a própria lógica do sistema que se desequilibra. Não se tem nem a racionalidade econômica e nem a racionalidade social.95 Avaliar a participação dos diversos agentes no produto social é essencial. A alocação racional de recursos não se fará espontaneamente. A classe de professores do ensino básico, que não tem como paralizar fábricas ou ameaçar com o caos financeiro do país, fica no Brasil reduzida a uma remuneração que torna a educação inviável, e com isso fica inviável a própria economia que hoje exige cada vez mais conhecimentos. O pequeno e médio agricultor que não tem hoje acesso a mecanismos de financiamento adequados, nem a sistemas de apoio tecnológico hoje centrados no grande produtor, e nem a mecanismos de comercialização que o protejam do atravessador, vê a sua participação no produto social se reduzir a uma parcela minúscula, com impacto devastador sobre o nível de alimentação da população, e consequentemente sobre a produtividade social. Concentração e distribuição Mais uma vez, é importante vermos que o conjunto de políticas de acesso aos “vales”, aos direitos sobre parcelas do produto social, constitui um sistema articulado. Políticas de preços, de salários, de previdência, de crédito, de câmbio e de orçamento constituem um universo de vasos comunicantes onde grandes grupos navegam confortavelmente, enquanto a sociedade civil no seu sentido mais amplo se encontra cada vez mais desorientada. Em termos de sistema de alocação de recursos, trata-se de formas diversificadas de repartir o produto social entre diversos segmentos da população. Como globalmente o controle dos diversos mecanismos, de preços, salários, previdência, câmbio, crédito e orçamento é exercido dominantemente pelos mesmos grupos sociais que controlam a economia, o resultado prático é um desequilíbrio global de acesso aos recursos. Nos países desenvolvidos, o processo tornou-se relativamente claro. A lógica do “welfare state”, do Estado de bem-estar, é de que se deve cobrar impostos fortemente progressivos sobre os ricos, e financiar com estes impostos políticas sociais que atinjam a grande massa da população. Na linha do pensamento herdado da Keynes, o Estado deve corrigir uma característica básica do capitalismo, eficiente organizador de 95 - O estudo já mencionado das Nações Unidas, States of Disarray, apresenta as consequências desta a ausência de políticas articuladas de alocação de recursos de forma bastante crua: “This new global financial system operates outside the control of any single government, and increasingly sets its own agenda – working systematically in the interests of financial operators, as opposed to those of productive manufacturers or government planners, and emphasizing the short term over the long term. National economies have become progressively “desimbedded” from social processes. The new law is the law of the jungle: only the fittest can survive.” Op. Cit. p. 33 81 produção mas gerador de permanentes desequilíbrios de distribuição, através de fortes políticas sociais. Como além disso os recursos desembolsados em proveito de desempregados, aposentados, pessoas de baixa renda em geral ou indiretamente através dos investimentos sociais resultam em maior demanda de produtos das empresas, o conjunto do processo torna-se coerente, e permitiu os “trinta anos de ouro” dos países desenvolvidos, após a II Guerra Mundial. A lógica neo-liberal inverte o raciocínio. Pressionadas por empresas que trabalham em diversas partes do mundo sem assegurar salário social e com salários diretos de alguns dólares por dia, as economias desenvolvidas passaram a buscar soluções numa volta ao passado: um Estado mínimo, poucos impostos, e poucos direitos sociais dos trabalhadores, o que deveria reduzir custos de produção, aumentar os lucros, e consequentemente aumentar a capacidade de investimento dos empresários, revitalizando as economias. Além disso, a própria execução das atividades públicas passa a ser privatizada, abrindo para a área privada um grande espaço de atividades, regredindo de um enfoque social destinado para a massa da população para um enfoque comercial vinculado ao consumo minoritário com forte poder aquisitivo. Globalmente, o mundo capitalista desenvolvido tem oscilado entre estas políticas de renda: no primeiro caso, o forte efeito redistributivo gera uma ampla demanda, abrindo assim uma maior base de mercado para as atividades econômicas, estimulando a atividade empresarial pela ponta, pelo pressão do consumo, além de permitir uma política social que devolve à sociedade um mínimo de equilíbrio político. Mas ao mesmo tempo em que se abrem maiores oportunidades para o aumento da produção e do investimento, através da política redistributiva, esta mesma política exige impostos progressivos, reduzindo o lucro empresarial e a capacidade de realizar os investimentos. No segundo caso, a redução de impostos sobre o empresariado e o recúo das políticas sociais aumenta rapidamente os lucros, e portanto a capacidade de investimentos, mas reduz a capacidade de consumo das população, com efeitos negativos para o mercado. Assim o capitalismo oscila entre a economia estimulada pela demanda, (“demand side”, no jargão americano, na linha dos “liberals”) que apresenta forte estímulo de demanda mas fraca capacidade de investimentos, e a economia estimulada pela oferta (“supply side” normalmente defendida pelos conservadores) em que a capacidade de investimentos é alta mas os mercados são relativamente mais fracos. Esta conjuntura instável faz parte essencial do capitalismo, e se baseia no fato prosáico de que não se pode simultâneamente ter, no curto prazo, os recursos na mão dos empresários para investir e na mão dos consumidores para consumir. A chave da equação está em parte no fator tempo. A longo prazo, não se pode ter uma elevada massa de produtos sem a correspondente capacidade de compra, não se pode ter uma organização política estável sem um mínimo de equilíbrio na distribuição de renda, não se pode fazer funcionar a complexa máquina econômica moderna sem amplas infraestruturas sociais. Findos os trinta anos de ouro do pós-guerra, o processo se desequilibrou: a globalização da economia gerou amplas oportunidades de se criar vantagens comparativas através da redução do investimento social (o chamado dumping social), enquanto o progresso tecnológico passou a impactar fortemente o emprego, tirando grande parte da capacidade dos trabalhadores de negociar o seu 82 quinhão. Hoje discute-se abertamente nos mais diversos países a necessidade de se reduzir os custos do trabalhador para melhorar a competitividade, e esta redução é negociada em troca de se evitar o mal maior, o desemprego. A outra parte da equação está na articulação entre as visões micro e macro- econômica. Em termos micro-econômicos, a empresa individual busca comprimir ao máximo os seus custos, pois melhora a sua capacidade competitiva frente às demais empresas. Mas se todos comprimirem salários, e introduzirem ganhos de produtividade sem que haja uma evolução paralela da capacidade de compra da massa de trabalhadores, o sistema se desequilibra. Por outro lado, se os aumentos salariais são progressivos e gerais, aumenta o mercado interno, e a própria escala de produção permitirá gradualmente recuperar na massa produzida o que se perde por unidade de produto. Gera-se assim um círculo virtuoso de crescimento. Mas se não há regras do jogo válidas para todos, se uns pagam encargos sociais e outros não, uns pagam impostos e outros não, uns desenvolvem a produção e o emprego enquanto outros aproveitam o contrabando legalizado da “montagem” em Manaus, todos se vêm gradualmente obrigados a recorrer a um tipo de canibalismo econômico. Hoje um número expressivo de empresários brasileiros tem claro de que é preciso articular o seu interesse individual de reduzir salários e encargos com o interesse mais amplo de se gerar um contexto de progresso em que todos melhoram. Segundo a expressão tradicional, a maré levanta todos os barcos, enquanto grande parte do empresariado continua a pensar que pode subir sozinha, ou de preferência sobre as costas dos outros. No nosso caso, como no caso de numerosos países em desenvolvimento, o dilema é mais amplo, na medida em que a concentração de renda exclui a priori algo como dois terços da população da “esfera de diversificação de consumo”, para utilizar uma boa formulação de Conceição Tavares. Na realidade, como país que nunca ultrapassou a estrutura básica da “casa grande-senzala”, encontramo-nos num dilema em que a redistribuição de renda ameaçaria parte da base produtiva do país. O mecanismo bastante simples, já visto em parte no capítulo 3, se baseia na necessidade de um mínimo de coerência entre a distribuição de renda, o perfil de consumo e a estrutura da produção. Deixando de parte as considerações relativas à justiça social, em termos de dinâmica econômica a extrema concentração de renda herdada levou a uma elitização do consumo. O capitalismo não funciona segundo as necessidades das pessoas, e sim segundo a capacidade de compra. A capacidade de compra sendo o privilégio de minorias, os investimentos industriais da fase de substituição de importações se concentraram na área do luxo, em particular do automóvel e dos bens de consumo durável em geral. Esta industrialização “por cima”, permitia transportar diretamente para o Brasil linhas de produção européias e norte- americanas que nos países de origem, de renda mais elevada, correspondiam a um consumo generalizado, mas que aqui só podiam corresponder a um consumo de elites. Hoje, com esta estrutura produtiva centrada na produção para os segmentos sociais de alta renda, uma redistribuição de renda significaria uma redução da demanda, pois dinheiro nas mãos dos pobres significaria consumo de bens de primeira necessidade. Assim, a fórmula consistente em se “fazer crescer o bolo para depois distribuir” constitui simplesmente uma imensa bobagem, e o processo gerou uma classe empresarial nacional e multinacional solidamente interessada na manutenção e reprodução da concentração de renda. 85 - 86 7 - As grandes áreas da reprodução social Vimos no capítulo precedente o processo cíclico de reprodução social, como os fatores se combinam para obter um produto, como o produto é distribuido a diversos agentes econômicos e sociais através de meios de pagamento, e os desequilíbrios globais que resultam em termos tanto de uma remuneração ineficiente de fatores, como de um aprofundamento hoje insustentável do fosso entre ricos e pobres. Os capítulos que seguem consistem numa análise mais detalhada, setor por setor, das atividades concretas que compõem a reprodução social. Acostumamo-nos a classificar as atividades econômicas em setores primário, secundário e terciário, o primeiro representando essencialmente a agricultura, o segundo as atividades indústriais e o terceiro os serviços. Em termos históricos, esta terminologia representa efetivamente as sucessivas áreas de concentração das nossas atividades, e facilita a compreensão da evolução da humanidade. Para acompanhar as atividades da sociedade complexa atual, no entanto, esta classificação está se tornando demasiado global. Por um lado, é importante lembrar que o setor de “serviços” tem uma definição residual, ou seja, tudo que não se enquadra em atividades primária ou secundária entra neste capítulo. O resultado prático é que uma pessoa que presta serviços informáticos para uma multinacional, um vendedor de laranjas na esquina ou um cirurgião no seu hospital estão no mesmo setor de “serviços”. Como os serviços ocupam hoje algo da ordem de dois terços a tres quartos das atividades das economias maduras ou relativamente desenvolvidas, torna-se indispensável desdobrar este “setor” em atividades concretas mais diferenciadas. Não podemos continuar a trabalhar com um “outros” deste porte. Esta classificação leva igualmente a uma deformação da análise. Hoje se diz que a agricultura americana ocupa apenas 3% da população ativa, o que é um erro, porque classifica-se como trabalhador agrícola apenas aquele que efetivamente trabalha a terra, quando a agricultura hoje se desdobrou em uma série de atividades como análise de solos, serviços mecânicos, inseminação artificial etc, categorizados alguns na indústria, outros nos serviços, quando se trata de uma dimensão tecnologicamente renovada da própria agricultura. A visão que fica da agricultura, como ilhota residual da economia, é simplesmente errada. Um erro rigorosamente simétrico ocorre hoje com a indústria. Por outro lado, pode ter-se tornado relativamente pouco importante saber se uma atividade lida com terra, com máquinas ou com papéis, e pode ter-se tornado essencial saber a que universo sócio-econômico de produção pertence. A agricultura em grandes estabelecimentos tecnificados, com os seus tratores, caminhões, computadores, engenheiros e contadores apresenta em termos técnicos pouca diferença relativamente a uma empresa industrial, e a própria terra já deixou de ser um bem natural para se tornar um produto transformado por curvas de nível, quimização e outras intervenções. A pesca em grandes navios industriais se assemelha perfeitamente a uma fábrica, com a única característica de ser flutuante. Empresas modernas de mineração têm pouco a ver com extração primária, e são indústrias simplesmente localizadas em cima do local de extração. E hoje as próprias empresas 87 indústriais instalam-se de preferência em áreas rurais, preferindo transportar os trabalhadores a enfrentar outras restrições urbanas. Com a tecnificação dos diversos setores, a produção tornou-se pois bastante semelhante. Em compensação, conforme vimos no capítulo 4, os universos de atividades diferenciam-se claramente pelo seu nível tecnológico e de inserção social. Tomando o exemplo da indústria, podemos trabalhar com um segmento moderno, tipicamente o das empresas transnacionais, com elevado nível tecnológico, salários relativamente elevados, programas de qualidade e assim por diante. Abaixo deste segmento, existem as atividades terceirizadas, e os setores tradicionais, onde se trata ainda do setor formal, mas com nível tecnológico bem diferente, salários mais baixos, e um emprego frequentemente caracterizado como “precário”. Em seguida temos o setor informal, instalações de fundo de quintal dos mais diversos níveis, buscando sobrevivência econômica frequentemente com a mão de obra familiar, registro de trabalhadores bastante raro e em geral com salários muito baixos. Finalmente, existe um conjunto de atividades da chamada economia ilegal, que produz drogas, shampoos falsificados, remédios proibidos e assim por diante. O importante para nos aqui é notar que existe bem mais coerência sistêmica entre a empresa transnacional (área industrial) e o banco que a serve (serviços), bem como a empresa agrícola que lhe fornece insumos com rigorosas exigências técnicas, do que entre a empresa transnacional e as atividades de sobrevivência de fundo de quintal, mesmo que ambas constituam atividades industriais. Em outros termos, para entender os processos sócio-econômicos, é cada vez mais importante entender a hierarquização que está se formando entre os bem-inseridos, os inseridos precariamente, os inseridos por teimosia do setor informal, e os inseridos na marra das atividades ilegais. Não é difícil ver uma estratificação semelhante na agricultura, onde uma fazenda moderna de soja representa a área nobre, a mão-de obra que serve de apoio alguns meses por ano um segmento formal mas precário, os minifúndíos cuja extensão não permite a sobrevivência familiar representam o setor informal, e as plantações de coca ou de maconha a economia ilegal. Ou na área da mineração se olharmos o leque que vai da empresa moderna de mineração até os garimpeiros dos fundos da amazônia e os que destroem os rios com mercúrio. Ou ainda nos serviços comerciais se observarmos desde o vendedor de automóveis nas concessionárias, até os vendedores de peças dos desmanches de carros roubados. Assim a classificação em tres grandes setores encobre imensas diferenças ao agrupar sob o mesmo rótulo atividades econômicas que podem pertencer a uma mesma categoria técnica, mas pertencem a universos sócio-econômicos diferentes. Ao abordaramos cada setor, tentaremos clarificar estes cortes “horizontais”, cuja compreensão é hoje importante para empreender políticas de integração num processo coerente de reprodução social. Trabalharemos aqui com cinco grandes áreas, produção, infraestruturas, intermediação, área social e gestão política, subdividindo cada uma em setores, entendidos aqui não no sentido dos macro-setores como primário, secundário e terciário, mas como setores que se identificam por seu produto, como saúde, educação, telecomunicações etc, segundo divisões relativamente tradicionais do planejamento. 90 8 - Atividades produtivas De forma geral há uma forte tendência para a redução do peso relativo das atividades produtivas dentro do conjunto da reprodução social. A agricultura, a indústria de transformação e a própria construção são o campo preferencial da aplicação das técnicas. A agricultura viu a sua participação cair vertiginosamente neste século, atingindo menos de 5% de emprego nas economias hoje desenvolvidas, enquanto a indústria segue, com algumas décadas de atrazo, o mesmo caminho. Isto não impede que as atividades produtivas ainda sejam essenciais ao nosso desenvolvimento. E a empresa, célula básica de organização das atividades produtivas, constitui uma estrutura extremamente performante. Esta invenção tão óbvia e relativamente recente, de se realizar num lugar determinado um conjunto de tarefas aceleradas e obedecendo a uma divisão extremamente precisa, constitui um capital organizacional de grande valor. É impressionante constatar as imensas dificuldades de organização econômica em sociedades com pouca cultura empresarial. Gradualmente, com a complexidade crescente e o aceleramento dos processos produtivos, vai se colocando de forma mais aguda o problema do ambiente de funcionamento destas unidades empresariais. Na era do just-in-time, as cadeias técnicas da metal-mecânica, do têxtil, da eletrônica, das oleaginosas não esperam para comprar e vender os seus produtos “no mercado”: trabalham com acordos inter- empresariais de médio e longo prazo, com preços e referências técnicas predeterminados, para que o conjunto possa trabalhar de maneira coerente, e não mais apenas a unidade empresarial.97 Neste contexto, torna-se cada vez mais problemática a discontinuidade do tecido econômico produtivo, a geração de universos que estão no século XXI enquanto se reforçam sistemas desarticulados de economia informal e ilegal. Conforme vimos, a abertura do leque tecnológico e a aceleração das transformações econômicas levaram à formação de subsistemas econômicos muito diferentes. Como atletas de uma corida de fundo, que com o aceleramento do ritmo desdobram-se numa linha mais longa, com agrupamentos em diversos níveis, assim a economia responde de diferentes maneiras e segundo ritmos diferentes à revolução tecnológica em curso. Trabalhar o espaço econômico como um espaço coerente e de dinâmicas similares já não é realista. Agricultura e pecuária As características marcantes da agricultura brasileira são a subutilização do solo, a subutilização e desorganização dos recursos humanos, a defasagem da produção alimentar e a geração de desequilíbrios ambientais. 97 - Constitui uma herança curiosa este sistema empresarial que preconisa uma organização extremamente rigorosa dentro da unidade empresarial, e um contexto social que deveria se ajustar livremente sem controle algum. Que os puristas ideológicos do liberalismo gostem ou não, as empresas realmente existentes passaram já há bastante tempo a organizar o contexto, ou ambiente como é chamado, levando a uma realidade nova. Ver a este respeito o trabalho já citado de Michael Gerlach. 91 Voltemos aos números básicos: o Brasil tem 850 milhões de hectares, dos quais 371 milhões classificados como solo ótimo, bom e regular para agricultura. Atualmente se cultiva, entre culturas permanentes e culturas temporárias, cerca de 65 milhões de hectares, menos de um quinto do disponível. A principal causa dessa subutilização está no uso da terra como reserva de valor, aguardando valorização a partir de investimentos do governo em estradas, infraestruturas energéticas e assim por diante. A subutilização fica parcialmente disfarçada pela pecuária extensiva, forma de uso do solo que permite dizer que se trata de “pasto”, portanto área “produtiva” e protegida da reforma agrária. É particularmente interessante o cruzamento dos dados de área dos estabelecimentos com os dados da área de produção. Os resultados apresentados pelo IBGE são os seguintes: Estabelecimentos recenseados com declaração de área das lavouras (1985) Grupos de área Area de lavouras permanentes Area de lavouras temporárias Area total de lavoura Area lavrada (%) TOTAL 9.835.315 42.545.051 52.380.366 13,92% Menos de 10 1.121.309 5.444.022 6.565.331 65,46% 10 a menos de 100 4.150.350 15.401.373 19.551.723 28,06% 100 a menos de 1.000 3.284.057 14.379.184 17.663.241 13,39% 1000 a menos de 10.000 948.388 6.350.589 7.298.577 6,73% 10.000 e mais 331.209 969.880 1.301.089 2,31% Fonte: IBGE, Anuário Estatístico do Brasil 1989, p. 292 As duas primeiras colunas são extraidas da tabela do IBGE sobre a estrutura da produção agropecuária. A terceira, somando as duas, mostra que, sobre os 370 milhões de hectares de terras boas a regulares do país, estávamos lavrando pouco mais de 50 milhões em 1985 (a cifra em 1995 deve ser próxima dos 65 milhões de hectares), o que representa uma dramática subutilização do solo agrícola. Mais impressionante ainda, é a comparação das áreas de lavoura com os dados de área disponível por grupo de área. Assim, constatamos que com 6,6 milhões de hectares de cultura permanente e temporária, os pequenos agricultores, que dispõem de 10 milhões de hectares, lavram cerca de 65% da área dos seus estabelecimentos.98 No outro extremo, os estabelecimentos com 10 mil ou mais hectares, lavram apenas 2,3%. A cifra extrema, que não aparece no quadro acima, é a das propriedades de mais de 100 mil hectares, que controlam 12,5 milhões de hectares e lavram apenas 18 mil, utilizando assim 0,14% dos seus estabelecimentos. No conjunto, os 50.000 grandes estabelecimentos que constituem 1% do total da área rural e ocupam 44% do solo agrícola exploram efetivamente algo da ordem de 4 a 5% da área que controlam.99 98 - A área total dos estabelecimentos por classe de área foi apresentada no capítulo 4 99- IBGE, Anuário Estatístico de 1989, p. 292. Foi questionada a precisão dos levantamentos do IBGE, o que é natural dados os interesses em jogo. Na realidade, a gigantesca subutilização do solo agrícola no país não admite contestação, por mais que se discutam o detalhe das cifras. Os levantamentos realizados para identificar especificamente imóveis rurais improdutivos apontaram para 87.781 estabelecimentos, ocupando 115 milhões de hectares, segundo artigo de José Gomes da Silva, Folha de São Paulo, 5 de dezembro de 1995. 92 Encontramos diariamente na midia informações sobre a produtividade elevada dos establecimentos “modernos”. Não há dúvida que a produtividade por hectare plantado dos grandes estabelecimentos modernos é mais elevada do que a dos pequenos produtores. No entanto, compara-se a produtividade por hectare plantado, o que induz a um erro se queremos comparar a produtividade dos estabelecimentos. Na realidade seria necessário, e seria importante que os censos agrícolas fizessem este cruzamento, que se comparasse a produção com a área de terras agrícolas ocupadas. Por exemplo, um pequeno agricultor que produz 2 toneladas de grãos por hectare mas planta 5 dos seus 10 hectares, é incomparavelmente mais produtivo do que uma empresa que obtém 5 toneladas por hectare, mas cultiva apenas 1.000 dos 50 mil hectares que controla. No primeiro caso, a produtividade por hectare ocupado é de 1 tonelada, enquanto no segundo é de 100 quilos, dez vezes menos. Se uma empresa industrial tem dez tornos, e 9 estão parados, enquanto o décimo tem uma elevada produtividade, nenhum cálculo econômico seria considerado sério se apresentasse apenas a produtividade do décimo torno, sem levar em conta o capital parado que representam os 9 outros tornos. Em termos estritamente capitalistas, não dependendo de visões de esquerda ou de direita mas de elementar cálculo econômico, a estrutura atual do uso do solo no Brasil constitui simplesmente uma idiotice. Surgem sem dúvida vários fatores que de certa forma amenizam a questão do dramático desperdício do solo agricultável do país, e que são frequentemente mencionados: o pousio, a manutenção de reservas florestais, e sobretudo a pecuária extensiva. A realidade é que o pousio no Brasil é pouco utilizado, preferindo-se a “fronteira móvel” pela qual a empresa agrícola abandona as terras exauridas e busca novas terras, deixando as anteriores para a pecuária extensiva. As reservas florestais, com exeção de umas poucas empresas que efetivamente se preocupam com a questão, constituem em geral os chamados “show cases” utilizados em situações pontuais para criar imagem de respeito ao meio ambiente por empresas que já o destruiram e frequentemente continuam a destruí-lo. Quanto à pecuária extensiva, trata-se da alternativa menos produtiva de uso do solo: com algumas dezenas de hectares por cabeça, como é o caso do centro-oeste do país, trata-se na realidade de um uso cosmético destinado a apresentar as terras improdutivas como sendo “pastagens”. O solo pode ter diversas intensidades de uso. Cinco hectares de horticultura representam um grande empreendimento; o cultivo temporário representa ainda uma agricultura intensiva; o uso do solo para culturas permanentes como citros, por exemplo, ao não se utilizar culturas associadas, representa um uso do solo relativamente menos intensivo; a pecuária intensiva que semeia pasto e utiliza rações equilibradas de complemento constitui ainda um uso racional do solo; já a pecuária extensiva constitui um evidentemente esbanjamento do solo, além de constituir um fator de expulsão de mão de obra e de desorganização do tecido social rural. No conjunto, a realidade é que a maior parte das terras agrícolas do país são utilizadas como reserva de valor, por proprietários que preferem imobilizar grandes áreas e esperar que se valorizem por efeito de investimentos públicos e privados de terceiros, do que correr os riscos e enfrentar os esforços de atividades produtivas. Estamos nos referindo aqui a mais de 100 milhões de hectares de solo agrícola parado, e uma subutilização de outros tantos. Cem milhões de hectares representam um milhão de 95 A lentidão da reconstituição dos eco-sistemas contribui para os desequilíbrios. A árvore já exige dezenas de anos para se reconstituir, e quando se fala em espécies que se reconstituem como mata secundária os prazos são bem mais longos. Para uma reconstituição de bio-diversidade, quando possível, estamos falando em um período secular. Contribui também o fato que cada cidadão que corta uma árvore ou um lote numa floresta, tem a impressão de estar influindo de maneira irrisória sobre o processo global de desmatamento. No entanto, com bilhões de habitantes comportando-se na mesma linha, os efeitos são evidentemente desastrosos. Finalmente, conforme já visto, é difícil equilibrar o interesse difuso de cada um de nós em salvaguardar as matas, e o interesse pontual de uma madeireira que pode ganhar fortunas às custas de uma herança natural, e que não hesitará em vencer as eventuais resistências, como se viu no caso do assassinato de Chico Mendes. O resultado prático é, além da destruição das florestas, a crescente erosão dos solos, o assoreamento dos rios e as mudanças climáticas, processos de mudança que podem parecer lentos, mas que se tornam inexoráveis nos seus impactos planetários. Hoje a engenharia florestal e os conhecimentos que temos permitem o bom aproveitamento dos recursos madeireiros sem romper a capacidade de reconstituição das florestas. Trata-se de mais uma área que, deixada aos simples mecanismos de mercado, leva à destruição das condições de vida no planeta. O estudo mundial das Nações Unidas constata que “os empresários madeireiros de vários países arrendaram praticamente toda a área florestal produtiva em poucos anos e exploraram abusivamente os recursos, sem se preocuparem muito com a produtividade futura”. O relatório considera que “de 7,6 milhões a 10 milhões de hectares são completamente destruidos a cada ano e pelo menos outros 10 milhões sofrem sérios danos anualmente” 102 A África sub-sahariana, por exemplo, com frágil capacidade governamental de se opor à progressão das grandes empresas, hoje corta as suas últimas árvores, vítima da própria preciosidade do ébano e de outras espécies. Os seus solos frágeis, expostos ao vento e às chuvas torrenciais, estão sendo rapidamente destruidos, levando a um desastre ambiental gigantesco, que data praticamente deste século.Uma africana, Rahab Nwatha, faz hoje esta triste constatação: “Estamos despertando para o fato de que a África está morrendo porque seu meio ambiente foi pilhado, superexplorado e negligenciado”. Em outro nível, uma ampla economia ilegal se desenvolveu em torno da venda de peles e de animais vivos, envolvendo no caso brasileiro milhões de unidades por ano. Queimam-se áreas gigantescas por encomenda de grandes pecuaristas, ou espaços isolados nas florestas para plantar coca ou maconha. De certa forma, a concentração da renda, ao reduzir os espaços de sobrevivência dos mais pobres, leva-os a invadir áreas protegidas onde as terras são mais baratas ou simplesmente vazias, servindo de escudo para as empresas de especulação fundiária que, uma vez que os danos ambientais se tornaram irreversíveis e que as ocupações passam a ser legalizadas, expandem as suas atividades. Assim, da mesma forma como a grande indústria da droga utiliza crianças de favelas para realizar o seu comércio, empresas modernas 102 - Nações Unidas, Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, O nosso futuro comum, ed. Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro 1988, pp 166 e 170; o documento é também conhecido como Relatório Brundtland. 96 empurram familias pobres para a dimensão ilegal das suas atividades. Como foi bem apontado no Relatório Brundtland citado acima, o problema não são os pobres, é a pobreza. Nesta área, claramente, é indispensável o governo, e não um governo “mínimo”. Por outro lado, constata-se que não bastam leis e fiscais. É preciso criar uma consciência diferente do ser humano, um conjunto de valores de respeito à vida e à natureza, deixando os mecanismos repressivos para comportamentos aberrantes. Considerando a urgência e a importância desta mudança cultural, de como as pessoas vêm o mundo e os seus recursos, os resultados dificilmente serão alcançados sem um papel novo dos meios de comunicação de massa, e particularmente da televisão, no sentido de se tornarem responsáveis em termos sociais e ambientais. Veremos este problema com maior profundidade mais adiante, já que é comum a várias áreas da reprodução social. Finalmente, ainda que a visão deva ser global, é essencial mobilizar as comunidades, os municípios. Para dar um exemplo, pouca gente se mobiliza em torno a problemas ambientais em geral. No entanto, se uma empresa polúi um rio determinado numa região, e os chacreiros ribeirinos se vêm diretamente prejudicados na sua saúde e na queda do valor das suas terras, esta gente constitui indiscutivelmente uma alavanca poderosa para equilibrar os interesses pontuais do poluidor. De certa forma, a nível local, os interesses ambientais deixam de ser difusos, tornam-se também pontuais, e podem levar à mobilização necessária para assegurar o contrapeso político aos poluidores, viabilizando a própria aplicação das leis e a fiscalização. Aqui, como em outras área onde a reprodução dos recursos é limitada, o mercado é simplemente inoperante. O empresário carrega apenas o ônus da extração, não o da produção do bem. Com os avanços tecnológicos, extrair madeira tornou-se muito barato. Ao mesmo tempo, a progressiva destruição da madeira no planeta tornou as madeiras nobres cada vez mais caras. Se se tratasse de um produto de reprodução ilimitada, o aumento dos preços levaria a um aumento da oferta, com consequente queda de preços. No caso de extração de um bem natural de reprodução limitada, os preços mais elevados provocam apenas uma corrida mais rápida para se apropriar do que resta. Como os custos caem (tecnologia de extração), e os preços sobem (escassez do produto), as reservas são simplesmente destruidas. Nesta área, os tradicionais gráficos de oferta e procura simplesmente não refletem a realidade. Hoje a consciência deste problema já está se tornando elevada. Muitas empresas que apenas destruiam as matas passaram a plantar grandes extensões de eucaliptos, compensando com esta pobre monocultura a riqueza ambiental e estética de outros tempos. É uma frágil compensação, sem dúvida. Mas o próprio fato de um número crescente de empresas se sentir suficientemente vulnerável perante a sociedade para tomar estas iniciativas é um sinal que os valores sociais estão mudando, e que os valores sociais podem ser uma alavanca poderosa de transformação. Pesca A exploração pesqueira apresenta evidentemente situações bastante semelhantes à da exploração florestal, com um agravante fundamental: a grande reserva mundial de biomassa que representam os mares constitui um espaço comum de governabilidade particularmente limitada. 97 Os problemas começam em terra onde o desmatamento leva ao assoreamento dos rios, sufocando os frágeis sistemas fluviais, atingindo por sua vez manguezais e bancos de corais, importantes encubadoras de vida marítima. Esta poluição é reforçada pelos dejeitos urbanos de esgotos, os resíduos químicos das fábricas e da agricultura, e pelos processos de urbanização que liquidam manguezais e outros pontos vitais das cadeias alimentares marítimas. No mar, a combinação de navios industriais de pesca, de radares, do sistema de posicionamento global por satélite (GPS), dos modernos sonares que permitem a localização dos cardumes, das linhas flutuantes de vários quilómetros de extensão e das redes de arrastre de grande capacidade, mudaram radicalmente o equilíbrio entre o ritmo de reprodução da vida e a capacidade de pesca. O resultado foi a brusca elevação do volume de pesca, de cerca de 20 milhões de toneladas por ano em 1950 para cerca de 80 milhões em 1990, quando o volume de pesca começou a se reduzir, apesar do permanente aumento do número e capacidade de navios de pesca, por simples regressão do volume de peixe disponível. O processo é agravado pelo fato de que entre 75 e 80% da pesca constitui o chamado “by catch”, peixe capturado ou morto pelo sistema de pesca mas sem interesse comercial, que acaba sendo jogado fora. Teoricamente, e em boa lógica, as empresas de pesca deveriam ter o bom senso de se autolimitarem, para não destruirem o seu futuro econômico. A resposta que se obtém das grandes empresas, frente a propostas deste tipo, é que se não forem elas serão outras. Assim, a concorrência neste setor leva simplesmente a uma corrida por tecnologias mais sofisticadas, pesca mais eficiente, e mares mais vazios, pois é quem chega primeiro que leva o produto. Como no caso florestal, o mercado neste sentido só regula a exploração, não a reprodução da riqueza natural, levando globalmente ao desastre.103 O extenso balanço do National Geographic constata inclusive que as grandes empresas de pesca estão acelerando o lançamento de novos navios e a “limpeza” dos oceanos, para melhorar individualmente a situação, enquanto é tempo. Outro balanço chega à conclusão de que “o próximo século presenciará uma situação que até hoje se considerava impensável, do esgotamento da capacidade natural dos oceanos de satisfazer a demanda humana de alimentos provenientes do mar”.104 Estima-se que 200 milhões de pessoas vivam da pesca no mundo. O desespero de milhões que, sobretudo nos países em desenvolvimento, dependem desta atividade para sobreviver, e vêm as suas redes cada vez mais vazias, leva por sua vez à intensificação de pesca ilegal com explosivos e venenos químicos por parte de 103 - “Neither traditional nor industrial fishermen can turn to voluntary conservation, because there’s no profit in it. It just gives the fish to someone else less scrupulous. Instead, everyone fishes harder” - Michael Parfit - Diminishing Returns: Exploiting the Ocean’s Bounty - National Geographic, November 1995. O artigo relata a constatação de um negociador das Nações Unidas, sobre as tentativas de se organizar um sistema de regulação: está se gerando “uma anarquia nos oceanos...o sistema voluntário de regulação dos espaços globais de pesca falhou.” 104 - Carl Safina - The World’s Imperiled Fish - Scientific American, November 1995