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A Educação Escolar Quilombola em Mato Grosso: Desafios e Perspectivas, Manuais, Projetos, Pesquisas de História

Análise de pesquisas em comunidades quilombolas de Mato Grosso, com foco na questão ambiental, territorial e educacional. Destaca a importância da escola dialogar com as necessidades específicas dessas comunidades, contribuindo para a afirmação da identidade quilombola. Aborda os desafios, como a reprodução de uma educação colonialista e a necessidade de políticas afirmativas e formação de professores qualificados. Discute o currículo, recursos didáticos e projeto político pedagógico da Escola Maria de Arruda Müller, evidenciando a importância da multiculturalidade e da busca pela identidade negra.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2024

Compartilhado em 20/05/2024


Pré-visualização parcial do texto

Baixe A Educação Escolar Quilombola em Mato Grosso: Desafios e Perspectivas e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para História, somente na Docsity! UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO AUGUSTA EULÁLIA FERREIRA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA: UMA PERSPECTIVA IDENTITÁRIA A PARTIR DA ESCOLA ESTADUAL MARIA DE ARRUDA MULLER. CUIABÁ-MT 2015 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO AUGUSTA EULÁLIA FERREIRA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA: UMA PERSPECTIVA IDENTITÁRIA A PARTIR DA ESCOLA ESTADUAL MARIA DE ARRUDA MULLER. CUIABÁ-MT 2015 é MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE PÓS-GRADUACÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO | Avenida Femando Corrêa da Costa, 2367 - Boa Esperança - Cep: 78060900 - CUIABÁ/MT Tel: 3615-8431/3615-8429 - Email : secppgeDufmt.br FOLHA DE APROVAÇÃO TÍTULO: "Educação Escola Quilombola: uma perspectiva identitária a partir da Escola Estadual Maria de Arruda Muller" AUTORA: Mestranda Augusta Eulalia Ferreira Dissertação defendida e aprovada em 27 de março de 2015. Composição da Banca Examinadora: Presidente Banca / Orientadora Doutora Suely Dulce de Castilho Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO Examinadora Intema Doutora Rose Cléia Ramos da Silva Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO Examinador Extemo Doutor Acildo Leite da Silva Instituição: UNIVERSIDADE DO FEDERAL DO MARANHÃO/UFMA Examinadora Suplente Doutora Maria da Anunciação Pinheiro Barros Neta Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO CUIABÁ, 27/03/2015. AGRADECIMENTOS Em especial, a Deus, pela sua presença constante em minha vida, pelo pulsar do seu amor principalmente nas horas difíceis. Com muito carinho, agradeço aos meus pais, Luiz e Therezinha, pelas orações e pela força, embora distantes. Às minhas queridas irmãs, meu irmão e parentes que acreditam em minha busca contínua. À Professora Doutora Suely Dulce de Castilho orientadora desta dissertação, por todo empenho, sabedoria e compreensão durante todo o processo de construção deste trabalho. Agradeço à Universidade Federal de Mato Grosso, pela possibilidade e oportunidade de realização do curso de mestrado. Em especial aos funcionários da PPGE, pessoas especiais que nos carregam pela mão se necessário, sempre sorrindo, nos acompanhando e celebrando conosco a cada conquista, especialmente à Luiza que, com muita paciência, me acalentou nos momentos de agonia. À Capes, pela bolsa de estudos concedida, que foi fundamental para a realização deste estudo. Aos amigos e amigas de turma, por compartilharem diversos momentos e experiências que ficarão registrados na memória e permanecidos no coração. Imensamente agradecida aos moradores e moradoras da comunidade Abolição, principalmente pela acolhida carinhosa que me deram durante todo o momento da pesquisa para a coleta de dados. Meu desejo é que este trabalho sirva de instrumento para o Bem Viver de cada um e cada uma de vocês. À Arqa, Associação Rural Quilombo Abolição, principalmente ao seu Luiz Torquato, por não medirem esforços na luta pelo reconhecimento do território e por acreditarem nesse trabalho, disponibilizando, inclusive acervos pessoais. Meus sinceros agradecimentos à Dona Lúcia, seu Mário, Bieiê, Enedina e toda a família Chagas, principalmente a Dona Georgina pelos dias doados à pesquisa, entre chuvas e estradas estavam sempre dispostos e pacientes, ainda que fosse para responder as mesmas perguntas pela terceira vez. Às mulheres que me acompanharam, foram sagrados os momentos que passei com vocês. Serei eternamente agradecida pelos risos e pelas lágrimas compartilhadas. A todos os professores, alunos e funcionários da Escola Maria de Arruda Muller que aceitaram participar desta investigação. Agradeço pela atenção e paciência, pois sem a vossa colaboração a coleta dos dados seria impossibilitada. Aos professores, Ivo e Esmeraldino, meus agradecimentos por estarem disponíveis todas as vezes que os procurei e pelas histórias e ideias partilhadas que enriqueceram esse trabalho. Às professoras Armezina e Nathália pelos anos dedicados à escola e principalmente por terem socializado comigo todas as vossas experiências fantásticas como educadoras. A vocês toda minha admiração. Aos Amigos e amigas do Conselho Indigenista Missionário - Cimi, principalmente à querida tia Edina, pela colaboração dada durante todo o curso, por terem me estimulado a prosseguir, mesmo diante dos obstáculos. Às queridas amigas Marluce e Dalva, por terem me socorrido nos momentos de apuro. Agradeço ao meu grande companheiro, Gilberto Vieira que esteve sempre presente nos momentos de angústia e de descobertas, acompanhando cada passo da pesquisa. Agradeço principalmente por me encorajar. A você, mais essa conquista. Finalmente, ao meu amado filho Pedro Wyrã, que soube compreender minhas ausências. SUMÁRIO INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 11 CAPÍTULO I - EDUCAÇÃO E QUILOMBO NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS.......................................................................................................................... 20 1.1 - PARA NEGRO, SOBRE NEGRO, COM O NEGRO................................................. 21 1.2 - DIREITOS CONQUISTADOS.................................................................................... 23 1.3 - POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA................................................................................................................... 25 1.4 - A EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA NO CONTEXTO MATO- GROSSENSE....................................................................................................................... 32 1.5 - A IMPLEMENTAÇÃO................................................................................................ 34 CAPÍTULO II - DEMARCAÇÕES METODOLÓGICAS............................................. 40 2.1 - INDO A CAMPO......................................................................................................... 40 2.2 - ORIENTAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS.................................................... 44 2.2.1 Método: etnografia......................................................................................... 47 2.2.2 - Istrumento de coleta de dados..................................................................... 49 CAPÍTULO III - A COMUNIDADE ABOLIÇÃO......................................................... 55 3.1 - PARA COMPREENDER A COMUNIDADE ABOLIÇÃO: A OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO MATO-ROSSENSE.................................................................................... 55 3.2 - PARA COMPREENDER A COMUNIDADE ABOLIÇÃO: AS SESMARIAS........ 57 3.3 - SANTO ANTÔNIO DE LEVERGER: UM REFERENCIAL HISTÓRICO.............. 59 3.4 - A COMUNIDADE ABOLIÇÃO................................................................................. 64 3.5 - PERCORRENDO O TERRITÓRIO ABOLIÇÃO...................................................... 70 3.6 - A MEMÓRIA HISTÓRICA DA COMUNIDADE ABOLIÇÃO................................ 79 3.7 - TERRITORIALIDADE, DESTERRITORIALIDADE E RETERRITORIALIDADE 81 3.8 - DESTERRITORIALIZAÇÃO E RETERRITORIALIZAÇÃO DAS FAMÍLIAS NEGRAS DE ABOLIÇÃO.................................................................................................. 84 CAPÍTULO IV - IDENTIDADE E CULTURA NA COMUNIDADE ABOLIÇÃO... 87 4.1 - A IDENTIDADE NEGRA........................................................................................... 87 4.2 - AS IDENTIDADES NA COMUNIDADE ABOLIÇÃO............................................. 89 4.3 - AS CULTURAS DA COMUNIDADE ABOLIÇÃO................................................... 95 CAPÍTULO V – A ESCOLA MARIA DE ARRUDA MULLER................................... 102 5.1 - EDUCAÇÃO QUILOMBOLA OU EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA? .... 102 5.2 - A ESCOLA MARIA DE ARRUDA MULLER E SUA HISTÓRIA........................... 103 5.3 - A ESCOLA MARIA DE ARRUDA MULLER HOJE................................................. 106 5.4 - OS PROFESSORES..................................................................................................... 114 5.5 - OS ESTUDANTES....................................................................................................... 123 5.6 - O CURRÍCULO DA ESCOLA.................................................................................... 127 5.7 - OS RECURSOS DIDÁTICOS DA ESCOLA.............................................................. 130 5.8 - O PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO E A PRÁTICA........................................... 132 5.9 – CURRÍCULO EM AÇÃO – PRÁTICAS PEDAGÓGICAS....................................... 139 Considerações finais................................................................................................... 142 Referências bibliográficas.......................................................................................... 146 Anexos.......................................................................................................................... 153 11 INTRODUÇÃO A principal intenção deste estudo é descrever o sentido da Educação Escolar inserida em territórios quilombolas e suas relações com os saberes locais e tradicionais, tendo como linha norteadora a perspectiva identitária a partir da Escola Estadual Maria de Arruda Muller, situada na Comunidade Abolição, município de Santo Antônio de Leverger, no estado de Mato Grosso. Comunidade esta que se encontra em processo de reconhecimento do seu território quilombola, assim como seus moradores estão em processo de reconhecimento de sua identidade quilombola. Seu objetivo se definiu a partir das lacunas desveladas através da Revisão Sistemática Integrativa (BOTELHO; CUNHA; MACEDO, 2011), que contribuiu para uma análise prévia sobre o conhecimento já construído sobre o referido tema. Essa revisão, além das lacunas, permitiu identificar as possíveis contribuições deste estudo para o aprofundamento dos debates acerca da Educação Escolar Quilombola. A Revisão Sistemática partiu da definição de um problema e a formulação de uma pergunta: Como os estudos sobre a Educação Escolar Quilombola vêm se configurando no Brasil? A partir dela foram definidas as palavras-chave e construída a estratégia de busca. As palavras-chave utilizadas, todas em língua portuguesa, foram: educação quilombola, educação e comunidades negras rurais, movimento quilombola e educação. Foram pesquisadas as bases eletrônicas de estudos acadêmicos da Capes, Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações, Biblioteca Digital da Unicamp, da Universidade de São Paulo - USP e também na base de dados da Scielo. Nelas, localizei cinco teses de doutorado, 46 dissertações de mestrado e nove artigos, desenvolvidos entre os anos de 1999 a 2012. Essas fontes sugerem várias análises e possibilidades de pesquisa sobre a temática. Ao estabelecer como critérios de inclusão e exclusão os aspectos relacionados às produções por região, tendo como expressões de busca: conceitos de Educação Escolar Quilombola, apontamentos para uma educação escolar específica e diferenciada, contribuições do Movimento Social Quilombola, foram localizadas 2 teses, 16 dissertações e 6 artigos para uma leitura criteriosa dos títulos, resumos e palavras-chave destas publicações, observando os seguintes aspectos: localização da pesquisa (Estado, Cidade), objeto da pesquisa, instrumento utilizado e resultados. Cardoso e Arruti (2011) analisaram as publicações sobre Educação Quilombola, por região geográfica, no período de 1990 a 2009. Observaram que o Nordeste e Sudeste se destacam. Estas regiões produziram três vezes mais trabalhos acadêmicos que a região Sul e o 14 Política de Educação Escolar Quilombola e experiências exitosas de um currículo apropriado, contribuindo desse modo para o seu avanço. Parecem carentes os estudos que aprofundem as discussões referentes à Política da Educação Quilombola, quais os elementos históricos contribuíram para os seus avanços e como ela vem se configurando após as Leis 10.639/20031 e 11.645/082 principalmente no Estado de Mato Grosso. Os resultados das pesquisas revelaram a importância da escola estar em consonância com as necessidades das comunidades quilombolas em suas especificidades. É necessário estabelecer um diálogo mais profundo sobre essa questão, visando os vínculos afetivo, familiar, territorial, cultural e religioso, aspectos importantes para contribuir na afirmação da identidade quilombola e no sentimento de pertença dos moradores destes territórios. Mostraram também que estes são portadores de uma sabedoria única, que deve ser considerada nos currículos formais ou nas atividades cotidianas. Nesse sentido, esta pesquisa vem contribuir para ampliar o debate em torno da Educação Escolar Quilombola a partir das lacunas deixadas pelas ausências de mais estudos referentes à importância dessa escola para o processo de reconhecimento identitário e territorial de comunidades quilombolas no estado de Mato Grosso. Este trabalho se torna de grande relevância a partir do momento em que verifica o diálogo possível entre a escola da comunidade, a história dos seus antigos moradores negros e a luta pelo reconhecimento territorial como lugar historicamente habitado por negros explorados por grandes proprietários, situação que perdura até hoje. A partir de autores como: Alfredo Wagner de Almeida (2002), Eliane Cantarino O’dwyer (2002) e Rogério Haesbaert Costa (1988,1997), busco compreender o processo histórico das políticas públicas para a Educação Etnicorracial no Mato Grosso, observando as principais fontes de conflitos em favor de uma Educação Escolar voltada para a garantia e manutenção dos territórios quilombolas no Estado. Nesse sentido, descrevo aspectos identitários da comunidade Abolição e como estes aspectos se revelam no interior da escola. 1 A Lei nº 10.639/2003 acrescentou à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) dois artigos: 26-A e 79-B. O primeiro estabelece o ensino sobre cultura e história afro-brasileiras e especifica que o ensino deve privilegiar o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional. O mesmo artigo ainda determina que tais conteúdos devem ser ministrados dentro do currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística, literatura e história brasileiras. Já o artigo 79-B inclui no calendário escolar o Dia Nacional da Consciência Negra, comemorado em 20 de novembro. 2 Essa lei alterou a 10.639/2003, incluindo a temática indígena. 15 Desvelo ainda se estes aspectos são considerados pela escola como fatores preponderantes para o fortalecimento e participação dos sujeitos nos processos políticos, na afirmação de uma identidade, de pertença ao território quilombola e nas lutas por direitos enquanto grupo social. Stuart Hall (2011, 2013) se apresenta como eixo norteador para discutir aspectos identitários da comunidade Abolição. Com o intuito específico de identificar elementos que caracterizam a Educação Escolar como uma modalidade de ensino a partir de seu currículo próprio em favor de uma educação emancipatória e decolonizadora, busco apoio em Nilma Lino Gomes (2012, 2003), Glória Moura (2007, 2005), Castilho (2011) e Kabengele Munanga (2007, 2005). A partir dessas referências, considero que a Educação é um processo que faz parte da humanidade e está presente em toda e qualquer sociedade. Ouso dizer que a Educação Quilombola é aquela própria de um povo, diversa e vinculada a uma especificidade cultural. Embora com algumas semelhanças entre comunidades, em suas maneiras de estabelecer processos educativos, cada uma tem sua dinâmica influenciada pelas formas tradicionais de organização social. Na maioria dessas comunidades, a socialização dos conhecimentos, das tradições, do “ser quilombola”, se dá a partir da convivência e observação dos mais velhos, tendo a tradição oral como o mais importante meio de transmissão do conhecimento. É um processo amplo de relações que inclui família, membros da comunidade, relações de trabalho, relações com o sagrado e as vivências inclusive nas escolas, nos movimentos sociais ou em outras organizações. (CASTILHO, 2008; SILVA, 2005 e OLIVEIRA, 2009). Podemos afirmar, portanto, que a Educação Quilombola é aquela ‘original’, marcada pela liberdade de ser de um povo. E aqui o conceito de “Educação” adquirirá um sentido mais amplo e complexo, uma vez que ela abriga sentidos subjetivos e marcantes para os indivíduos envolvidos na relação, (SANTANA, 2005, p.121) permeando assim o exercício de cidadania de um povo. Por outro lado, a Educação Escolar como instituição, como sistema de ensino no seu sentido histórico, no primeiro momento se posta como negadora do ser quilombola, pois tende a se vincular a um processo negador da diferencialidade. Enquanto a Educação Quilombola procura a possibilidade de agregar um aprendizado associado ao desenvolvimento de valores como solidariedade, comunalidade e afetividade, a Escola formal, historicamente, traz como possibilidade um saber alheio ao sujeito e muitas vezes distante do seu cotidiano (IDEM, p 114). 16 Como parâmetro para analisar os contornos pedagógicos da Escola Maria de Arruda Muller, elementos centrais desta pesquisa, seguirei à luz das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, que segue as orientações das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica. De acordo com tais Diretrizes: Art. 41. A Educação Escolar Quilombola é desenvolvida em unidades educacionais inscritas em suas terras e cultura, requerendo pedagogia própria em respeito à especificidade étnicocultural de cada comunidade e formação específica de seu quadro docente, observados os princípios constitucionais, a base nacional comum e os princípios que orientam a Educação Básica brasileira. Parágrafo único. Na estruturação e no funcionamento das escolas quilombolas, bem como nas demais, deve ser reconhecida e valorizada a diversidade cultural. Para compreendermos esse diálogo entre escola e espaço quilombola, sem considerar neste momento as possibilidades desta se tornar um instrumento potencializador para esta sociedade, é importante ter como base a trajetória da luta pela inclusão educacional do negro. Iniciemos pelos movimentos isolados do próprio negro buscando a sua escolarização no sentido de apropriação da leitura e da escrita. Inclusive, segundo Cunha (1999), vários destes negros letrados tiveram um papel importante no movimento abolicionista e pós-abolicionista. Enquanto o Estado permaneceu omisso ao assunto, passaram-se muitos anos para que passos mais concretos fossem dados no âmbito da legislação. Desses passos, um dos que considero mais largos, foi o da ONU (Organização das Nações Unidas) que em 1966 realizou em Nova York a Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, estabelecendo formas de intervenção para a superação do racismo e suas consequências, destacando o papel da educação para a garantia do respeito aos direitos, incluindo a análise das causas e das consequências do racismo (Sodré, 1999, p. 21). Esta formulação foi importante, pois levou vários países, inclusive o Brasil, a repensar suas condições e formularem políticas de superação. Mais recentemente no Brasil, em 2003, como resultado de luta do Movimento Negro no geral e quilombola em particular, foi sancionada a Lei Federal 10.639/03 que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação 9.394/96, tornando obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana no currículo escolar da educação básica. Em consequência, cria as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Etnicorraciais que estabelecem a inclusão de conteúdos sobre a História e a Cultura Africana e Afro-Brasileira no currículo e orienta novas práticas e atitudes pedagógicas no processo de formação nacional (SODRÉ, 1999, p. 22). 19 Para finalizar, no quinto capítulo a descrição da escola a partir dos aspectos políticos, culturais e identitários dos professores, estudantes e moradores, como também do currículo materializado na sala de aula. Desse modo, apresento observações feitas a partir dos materiais pedagógicos utilizados como também do projeto político pedagógico da escola, a dinâmica dos alunos no cotidiano dentro e fora da sala de aula, desvelando o currículo em ação em função de um ensino antirracista, em processo de descoberta de si mesmo. 20 CAPÍTULO I – EDUCAÇÃO E QUILOMBO NO CONTEXTO DAS POLITICAS PÚBLICAS. [...] Uma aluna negra chega à escola com os cabelos soltos. Os alunos começam a rir. Um mostrava para o outro e continuava rindo e a aluna foi para o final da fila. Uma professora comentou com outra que também ri/sorri. Nos outros dias, percebi que a aluna não soltou mais os cabelos. (SANTANA, 2013, p.54). Neste capítulo, tenho o propósito de apresentar, inicialmente, aportes histórico e documentais legais circunscritos às políticas públicas de ação afirmativa, especificamente àquelas referentes aos conteúdos voltados às escolas quilombolas no Brasil. O que requer reflexões acerca do significado e acepções conceituais atinentes à educação quilombola, expressos em tais documentos, e proporcionar provocações de como ela deveria ser. Posteriormente, procuramos tecer discussões sobre como esta educação vem se configurando no estado de Mato Grosso, socorrendo-nos, inclusive, de depoimentos coletados mediante entrevistas realizadas junto a alguns dos sujeitos pesquisados. A narrativa em epígrafe apresentada por Santana (2013) nos dá uma dimensão de como a educação e o espaço escolar podem contribuir para reforçar o preconceito, tolhendo a expressão da diferencialidade, tão própria na sociedade brasileira. Isso sinaliza que passados 126 anos da abolição legal da escravatura, que oprimiu mentes e corpos de negros africanos e de muitos de seus descendentes, as práticas racistas persistem, inclusive em ambiente escolar. É evidente que não estando desvinculada da realidade, ou à parte da sociedade, a escola também, apesar dos avanços legais e de práticas contrárias ao preconceito, traz consigo as marcas do racismo e da intolerância étnica que marcam a história do Brasil. Nem sempre, por isso, o lugar que deve ser de instrumentalização dos alunos e do convívio que leva à solidariedade se concretiza. Nesse aspecto, o aparente pequeno exemplo de discriminação, praticada por alunos e profissionais da educação, revela, na realidade, o quanto a educação escolarizada ainda tem um “pé na casa grande”. Os estudos realizados nas comunidades quilombolas revelam que também nelas a reprodução da educação colonialista e eurocêntrica se materializa, seja na implantação de uma escola alheia à especificidade da comunidade quilombola, seja pela reprodução de modelos “exóticos” que, mesmo garantindo a escola enquanto estrutura física nos territórios, por vezes, não garante uma educação que respeite a história e as práticas culturais da comunidade. Nessa esteira de pensamento, o tópico seguinte foi edificado com a intenção de trazer à tona questões referentes ao enfrentamento à exclusão social e educacional de populações negras 21 e sua luta por políticas de reparações e reconhecimento de sua história, cultura e identidade etnicorracial. 1.1 PARA NEGRO, SOBRE NEGRO, COM O NEGRO Considerando os entraves ainda presentes para a efetivação integral da Lei nº 11.645/08 (BRASIL, 2008) que inclui no currículo oficial a obrigatoriedade da temática História e cultura afro-brasileira e indígena nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, faz-se necessário recorrermos à história do Brasil, resgatando a inserção do negro e dos escravizados africanos no processo de colonização do país. Não se trata de analisar o processo específico da diáspora que se deu com importação e a imposição do trabalho aos povos africanos, mas de como este processo, mesmo após a abolição da escravatura, ainda penalizou por séculos os chamados ‘libertos’ e seus descendentes. Uma das referências aos chamados escravizados no contexto da regulamentação da educação escolar pode ser encontrada no Decreto nº 1.331, de 17 de fevereiro de 1854. No contexto do Império, este decreto trazia em seu Artigo 69 a expressa proibição: “Não serão admitidos à matrícula, nem poderão frequentar as escolas: § 1. Os meninos que padecem de moléstias contagiosas; § 2. Os que não tiverem sido vacinados; § 3. Os escravos. (BRASIL, 1854, p. 59, grifo nosso). Essa determinação, posteriormente e ainda antes da abolição legal da escravatura, seria “amenizada” pela abertura à possibilidade de que os “livres ou libertos” estudassem no período noturno. A regulamentação desta possibilidade se deu pelo Decreto nº 7.031, de 6 de setembro de 1878, ou seja, dez anos antes da abolição (BRASIL, 1878, p. 711). Ainda que a história registre casos de negros que tenham ingressado na educação escolar, como os atendidos pelos Capuchinhos na Colônia Orfanológica Isabel (ARANTES, 2009), esta não foi a regra geral. Este acesso se deu oficialmente após a abolição, não por preocupação em ofertar ao negro uma educação que o inserisse na sociedade, mas para atender à necessidade de mão de obra mais qualificada para a agricultura e manufaturas nas quais se inseriam os escravizados libertos. O período das Leis, a de 1850 que proibia o tráfico de negros escravizados; a de 1871 (Lei do Ventre Livre) que libertava as crianças nascidas após sua promulgação; a Lei do Sexagenário (1885) até a Lei Áurea, de 1888, configurou um interstício temporal de transição 24 Este mesmo Decreto transfere a competência de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, titulação das áreas remanescentes de quilombos, ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra. Os dados da Fundação Cultural Palmares – órgão responsável pela certificação dos quilombos – demonstram que houve um considerável aumento das certificações no período de 2004 a 2013, que passaram de 1.826 comunidades para 3.524 comunidades negras rurais e urbanas identificadas em todo o país. Essas comunidades vêm se reafirmando e buscando, cada vez mais, o reconhecimento de seus direitos, a valorização de sua cultura, a afirmação de sua identidade e maior participação na sociedade envolvente. Legitimam-se através de políticas públicas, uma vez que elas são alvo de diferentes formas de discriminação e privação dos direitos humanos fundamentais. Nesse quadro de lutas e conquistas, destaca-se o direito à Educação. Em 9 de janeiro de 2003 foi promulgada a Lei n° 10.639, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de História da África e da Cultura Afro-brasileira nas escolas, lei essa que foi posteriormente revogada pela lei 11.645/08, passando a incluir também o ensino das Culturas Indígenas como obrigatórias. São reconhecidos como dois marcos legais importantes para a política pública de inclusão da população negra e, principalmente, a sua permanência no sistema educacional brasileiro: o Artigo 26 da Lei de Diretrizes Bases da Educação Nacional (LDBEN/1996), que estabelece a obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira na Educação Básica; e a Resolução CNE nº 01/2004, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Foi somente a partir destes marcos que a escola, através de seus gestores, passa a se configurar como espaço de reflexões críticas acerca dos processos de ensino-aprendizagem de inclusão desta temática nas matrizes curriculares, possibilitando a reelaboração dos conteúdos educacionais, a análise reflexiva do contexto sócio-racial e a reelaboração de um saber direcionado para a cidadania. Mesmo porque, cidadania supõe educar na e para a diversidade, [...] conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de crença, de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais. (BRASIL, 1998, p. 7). 25 A LDB/1996, em seu artigo 210, determina que os projetos, programas e currículos assegurem o respeito às diferenças culturais, sociais e individuais de todos aqueles que frequentam a escola, bem como estabelece a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira na Educação Básica. Nessa perspectiva, na subsequência, passamos às ponderações entrelaçando questões relacionadas às políticas públicas direcionadas à educação escolarizada quilombola. 1.3 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA A forma própria de educação dos quilombos – a educação quilombola – tem sido considerada como ponto de partida para a reflexão sobre os processos de escolarização nesses territórios, sendo inspiração e fundamento para implementação da educação escolar pública, democrática e de qualidade que queremos desenvolver nessas comunidades. (PARANÁ, 2010, p. 5). As políticas públicas voltadas para as comunidades quilombolas são fundamentais para reverter a situação de vulnerabilidade dessas comunidades, historicamente invisibilizadas e excluídas do acesso a seus direitos. No período de 1980, as mobilizações das comunidades quilombolas são recolocadas no cenário nacional, buscando garantir as especificidades das demandas da população negra no campo. Nessa luta, constata-se o reconhecimento de direito à propriedade territorial definitiva aos remanescentes quilombolas, assegurada pelo Artigo 68 da Constituição Federal. Isso possibilitou colocar a problemática da população negra rural como questão nacional. Dentre as questões que se apresentam, são destacados o direito à educação e o acesso à escolarização pautada nas especificidades da cultura quilombola (ORIENTAÇÕES CURRICULARES DAS DIVERSIDADES EDUCACIONAIS, MATO GROSSO, 2010). Garantir a educação nestes territórios, respeitando sua história e suas práticas culturais é pressuposto fundamental para uma educação antirracista. Assim, a implementação das políticas educacionais nas comunidades quilombolas deve considerar prioritariamente estes pressupostos para que as ações possam ter qualidade e especificidade na sua execução. A Lei 10.639/03 compreende que os quilombos são espaços importantes para a reescrita da história do povo negro e devem ser elementos essenciais na abordagem do ensino da História. No pensar de Arruti (2009), os programas governamentais e as políticas públicas destinadas à população quilombola eram implementadas de forma dispersa em diferentes ministérios e secretarias. Somente a partir de 2004, com o lançamento do Programa Brasil Quilombola, esta realidade inicia uma nova trajetória, com propostas de reunir e articular as 26 ações para o quadriênio 2008-2011. Esse autor destaca um aspecto deste processo que é a perspectiva de que o Estado passa a tratar da questão quilombola como parte de um conjunto de políticas públicas, para além de um “[...] tema exclusivamente cultural” (p. 79). Também em 2004 a identificação das escolas quilombolas passa a compor o Censo Escolar, possibilitando uma maior visibilidade desta especificidade. Neste Censo, foram computados 49.722 estudantes matriculados em 374 escolas localizadas em áreas de quilombos, sendo que 62% das matrículas estavam concentradas na região Nordeste. Em 2007 houve um aumento considerável dessa porcentagem, ascendendo para 75%, e o Brasil passou a possuir aproximadamente 151 mil alunos matriculados e distribuídos entre 1.253 escolas localizadas em áreas de quilombos. Esses mesmos dados aparecem estampados na Tabela 1, a seguir: Censo Escolar 2004 2007 Escolas quilombolas 374 1.253 Estudantes matriculados 49.722 151.782 Região Nordeste 62% 75% Tabela 1 - Fonte: Censo Escolar da Educação Básica 2004 e 2007 – ascendência quantitativa por escolas quilombolas e estudantes matriculados. Tabela elaborada pela autora. Estudos realizados demonstram que as unidades educacionais quilombolas, de modo geral, estão longe das residências dos alunos e as condições de estrutura são precárias, geralmente construídas de palha ou de pau-a-pique. Há escassez de água potável e as instalações sanitárias são inadequadas. Situações como estas estão sendo levantadas pela Relatoria do Direito Humano à Educação da Plataforma Dhesca3, que investiga as situações da Educação Quilombola. As investigações apontam, ainda, deficiência na merenda escolar. Revelam também que a maioria dos professores não é capacitada adequadamente e a quantidade deles em atividade é insuficiente para atender a demanda. Em muitos casos, uma professora ministra aulas para turmas multisseriadas. Poucas comunidades têm unidade educacional com o ensino fundamental completo (BRASIL, 2013). Na sequência, apresentamos o número de escolas situadas em territórios quilombolas no Brasil, por estado. É o que podemos apreciar na Tabela 2: Unidade da Federação Quantidade de: Matrículas Docentes Escolas Rondônia 39 2 2 Pará 16.138 652 181 3 Plataforma Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais. Disponível em: http://www.dhescbrasil.org.br Acesso em: 02 abr. 2014. 29 reconhecimento identitário que os povos, moradores nestes territórios, têm buscado. Contudo, é preciso levar em conta que, no levantamento das informações, houve deficiências metodológicas por parte dos pesquisadores os quais não previram um maior envolvimento das comunidades educativas, limitando-se às informações dos administradores das escolas. Não obstante, este levantamento já possibilitou a informação sobre a existência de 630 escolas quilombolas entre 2004 e 2006 (PARANÁ, 2010). No Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (2004), se encontram as principais ações para as escolas em territórios quilombolas, embasadas nas solicitações dos Movimentos em favor desta educação: a) Apoiar a capacitação de gestores locais para o adequado atendimento da educação nas áreas remanescentes de quilombo; b) Mapear as condições estruturais e práticas pedagógicas das escolas localizadas em áreas de remanescentes de quilombos e sobre o grau de inserção das crianças, jovens e adultos no sistema escolar. c) Garantir direito à educação básica para crianças e adolescentes das comunidades remanescentes de quilombos, assim como as modalidades de EJA e AJA4; d) Ampliar e melhorar a rede física escolar por meio de construção, ampliação, reforma e equipamento de unidades escolares; e) Promover formação continuada de professores da educação básica que atuam em escolas localizadas em comunidades remanescentes de quilombos, atendendo ao que dispõe o Parecer 03/2004 do CNE e considerando o processo histórico das comunidades e seu patrimônio cultural. f) Editar e distribuir materiais didáticos conforme o que dispõe o Parecer CNE/CP nº 03/2004 e considerando o processo histórico das comunidades e seu patrimônio cultural. g) Produzir materiais didáticos específicos para EJA em comunidades quilombolas; h) Incentivar a relação escola/comunidade no intuito de proporcionar maior interação da população com a educação, fazendo com que o espaço escolar passe a ser fator de integração comunitária; h) Aumentar a oferta de Ensino Médio das comunidades quilombolas para que possamos possibilitar a formação de gestores e profissionais da educação das próprias comunidades. (BRASIL, 2004, p. 60). Em 2006 são publicadas as Orientações e Ações para Educação das Relações Etnicorraciais pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade –SECAD - do Ministério da Educação (BRASIL, 2006). Estas orientações, tratando de aspectos que vão da Educação Infantil à Licenciatura e da Educação Quilombola, contribuem com a reafirmação da diferencialidade e da importância de tratar-se da especificidade que é esta Educação focando 4 EJA – Educação de Jovens e Adultos. AJA – Alfabetização de Jovens e Adultos. 30 nas possibilidades de uma formação antirracista e voltada para o respeito à diversidade etnicorracial. É nesse sentido que o Ministério da Educação – MEC, em 2008 define, através da Resolução no 2, que etapas da Educação devem atender às populações rurais “[...] em suas mais variadas formas de produção da vida”, e nestas aponta, entre outras, para os quilombolas (BRASIL, 2008, p. 01). As responsabilidades dos entes federados no que se refere à educação quilombola nesta resolução, serão reafirmadas e seus deveres definidos em 2010, na Conferência Nacional de Educação – Conae, sendo legitimadas no documento final que dita os deveres da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios frente a esta educação. Estes deverão: a) Garantir a elaboração de uma legislação específica para a educação quilombola, com a participação do movimento negro quilombola, assegurando o direito à preservação de suas manifestações culturais e à sustentabilidade de seu território tradicional. b) Assegurar que a alimentação e a infraestrutura escolar quilombola respeitem a cultura alimentar do grupo, observando o cuidado com o meio ambiente e a geografia local. c) Promover a formação específica e diferenciada (inicial e continuada) aos/às profissionais das escolas quilombolas, propiciando a elaboração de materiais didático-pedagógicos contextualizados com a identidade étnico-racial do grupo. d) Garantir a participação de representantes quilombolas na composição dos conselhos referentes à educação, nos três entes federados. e) Instituir um programa específico de licenciatura para quilombolas, para garantir a valorização e a preservação cultural dessas comunidades étnicas. f) Garantir aos professores/as quilombolas a sua formação em serviço e, quando for o caso, concomitantemente com a sua própria escolarização. g) Instituir o Plano Nacional de Educação Quilombola, visando à valorização plena das culturas das comunidades quilombolas, à afirmação e manutenção de sua diversidade étnica. h) Assegurar que a atividade docente nas escolas quilombolas seja exercida preferencialmente por professores/as oriundos/as das comunidades quilombolas. (CONAE, 2010, p. 131-132). Essas garantias, reconhecidas e definidas na Conae, representam um considerável avanço na luta pela educação quilombola e garantia de sua diferencialidade. Avanços estes que serão posteriormente referendados e ampliados com a publicação da Resolução no 8, de novembro de 2012, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica. Através desta a Educação Escolar Quilombola passa a constar como uma modalidade de ensino. A concretização destas perspectivas, enquanto uma modalidade do ensino ganhou corpo no ano de 2013, quando da publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica. Estas Diretrizes reforçam a compreensão que: A Educação Escolar Quilombola pode ser entendida como uma modalidade alargada, pois, dada sua especificidade, abarca dentro de si todas as etapas e modalidades da Educação Básica e, ao mesmo tempo, necessita de legislação específica que contemple as suas características. Guardadas as particularidades da vivência e 31 realidade quilombolas, a educação a ser ofertada e garantida a essas comunidades deverá estabelecer as etapas correspondentes aos diferentes momentos constitutivos do desenvolvimento educacional da Educação Básica [...] (BRASIL, 2013, p. 428). Ainda com base nas proposições da Conferência Nacional de Educação de 2010, foi elaborado e aprovado o novo Plano Nacional de Educação a partir da Lei nº 13.005 de 25 de Junho de 2014, que traz como uma das diretrizes a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação (art. 2º). O inciso X deste artigo assegura a promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos e à diversidade. Especificamente sobre as comunidades quilombolas, o 8º artigo apresenta as responsabilidades dos Estados, Distrito Federal e Municípios referente às necessidades específicas das populações quilombolas, assegurando a equidade educacional e a diversidade cultural. Anexadas á referida lei estão as 20 metas do Plano Nacional de Educação 2014 a serem cumpridas no prazo de dez anos, sendo que todas contemplam em suas estratégias as especificidades das escolas do campo, indígenas e quilombolas. Ganha destaque a oitava meta, pois trata da igualdade de escolaridade média entre negros e não negros: Meta 8: elevar a escolaridade média da população de 18 (dezoito) a 29 (vinte e nove) anos, de modo a alcançar, no mínimo, 12 (doze) anos de estudo no último ano de vigência deste Plano, para as populações do campo, da região de menor escolaridade do País e dos 25% (vinte e cinco por cento) mais pobres, e igualar a escolaridade média entre negros e não negros declarados à Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (BRASIL, 2014). É evidente, contudo, que o fato de a educação escolar quilombola conseguir se inscrever em orientações, leis e diretrizes não significa que estas se efetivem na prática, pois isto depende de fatores relacionados a interesses, preconceitos, comprometimento, identidade e grau de pertença por parte dos gestores das escolas e, principalmente, da consonância com projetos afirmativos de interesse dos governos. Nesse sentido, vale ressaltar a importância da organização das comunidades quilombolas em favor da efetivação de seus direitos, denunciando o ainda persistente eurocentrismo que discrimina a cultura negra, e a omissão dos governos estaduais e federal quanto à efetivação destes direitos. No bojo destas denúncias, no encontro do movimento quilombola que aconteceu em abril de 2014 foi elaborado um documento que demonstra esta afirmação. Este documento, que se encontra em anexo, evidencia que os direitos quilombolas continuam a se efetivar no tensionamento da luta social. 34 Prática em Tecnologia Social), visa potencializar a aprendizagem a partir dos conhecimentos específicos das comunidades (MATO GROSSO, 2010, p. 159). Esta proposta vem ao encontro dos clamores das comunidades e legitima o espaço escolar como “[...] lugar de criação e partilha de saberes” (CASTILHO, 2011, p. 49). Nesse sentido, ao citar Casali (2001), Castilho apresenta a escola como um ponto de intersecção entre os saberes científicos e os saberes tradicionais da comunidade e dos indivíduos, caracterizando uma proposta de ação com base em uma educação democrática a serviço do desenvolvimento e do bem estar da comunidade. Não obstante, apesar do empenho de grupos dedicados a esta questão no Estado, a luta em favor do reconhecimento dessa Modalidade Específica e Diferenciada de ensino se confronta com outros interesses governamentais paralelos, voltados para uma educação universalista, mercantilizada e eurocêntrica. Este confronto fica visível na Resolução Normativa do Conselho Estadual de Educação de Mato Grosso - CEE/MT, publicada em fevereiro de 2013, que institui os procedimentos para a aplicação das leis federais 10.639/03 e 11.645/08 no Estado, porém sem se referir à Educação Escolar inserida em território quilombola, como se ela não existisse. A propósito, o termo território aparece apenas no inciso I do Artigo 6º, quando trata do acervo documental, apenas como fonte iconográfica desconsiderando totalmente a existência de territórios quilombolas no Estado como fonte produtora de saber secular. Ainda na mesma resolução, o termo “comunidade quilombola” aparece uma vez (no inciso XI do primeiro parágrafo do Artigo 4º), apenas como possibilidade de intercâmbio para escolas urbanas, demonstrando notáveis equívocos ou desconsideração com as comunidades existentes no Estado. A segunda perspectiva sintoniza-se com a atuação do Estado no sentido de, favorecendo interesses de uma minoria vinculada ao acúmulo de terras, agir no intuito de dificultar o reconhecimento, demarcações ou titulações de territórios indígenas e quilombolas, conforme reza a Portaria 303/2.012 da Advocacia Geral da União e a Proposta de Emenda Constitucional 215/2.000 que praticamente impossibilitariam a efetivação destes direitos aos territórios. 1.5 A IMPLEMENTAÇÃO 35 De acordo com os dados oficiais do Censo Escolar 2013, as escolas quilombolas vêm se configurando de modo específico no estado de Mato Grosso a partir de 35 escolas, sendo 30 municipais e cinco estaduais, conforme podemos observar na tabela a seguir: 36 Nome do município Dependência administrativa Nome da escola Localização diferenciada Total matrículas 1. Barra do Bugres Municipal EM Queimado Área remanescente de quilombos 9 2. Barra do Bugres Estadual EE José Mariano Bento Área remanescente de quilombos 255 3. Nossa Senhora do Livramento Estadual EE Tereza Conceicão de Arruda Área remanescente de quilombos 190 4. Poconé Municipal EM de Morrinho Área remanescente de quilombos 8 5. Poconé Municipal EM Nossa Srª Aparecida Área remanescente de quilombos 213 6. Poconé Municipal Creche Municipal Vovó Teófila Área remanescente de quilombos 101 7. Poconé Municipal EMPG Catarino José da Silva Área remanescente de quilombos 32 8. Poconé Municipal EMR Vicente Emilio Vuolo Área remanescente de quilombos 11 9. Poconé Municipal EMPG Antonio Maria de Almeida Área remanescente de quilombos 73 10. Poconé Municipal EMPG Benedito Leite de Franca Área remanescente de quilombos 2 11. Poconé Municipal EMPG Benedito Mendes Goncalves Área remanescente de quilombos 9 12. Poconé Municipal EMPG Francisco Martins da Silva Área remanescente de quilombos 10 13. Porto Estrela Municipal EMPG Leopoldino José da Silva Área remanescente de quilombos 10 14. Porto Estrela Municipal EM Joaquim Mariano de Miranda Área remanescente de quilombos 36 15. Santo Antonio do Leverger Estadual EE Maria de Arruda Muller Área remanescente de quilombos 611 16. Vila Bela Santissima Trindade Municipal Esc Mul de Igr Duque de Caxias Área remanescente de quilombos 477 17. Vila Bela Santissima Trindade Municipal EMPG Dom Antonio Rolim de Moura Área remanescente de quilombos 484 18. Vila Bela Santissima Trindade Municipal Centro de Educacão Infantil Aviãozinho Área remanescente de quilombos 168 19. Vila Bela Santissima Trindade Municipal Centro de Educacão Infantil Tia Nastácia Área remanescente de quilombos 212 20. Vila Bela Santissima Trindade Municipal EMPG Santa Cruz do Possue Área remanescente de quilombos 33 21. Vila Bela Santissima Trindade Municipal EMPG Arrozal Ext Guaporé Área remanescente de quilombos 271 22. Vila Bela Santissima Trindade Municipal EMPG Presidente Dutra Área remanescente de quilombos 117 23. Vila Bela Santíssima Trindade Municipal EMPG Vale Do Guaporé Área remanescente de quilombos 227 24. Vila Bela Santíssima Trindade Municipal EMPG Ponta do Aterro Área remanescente de quilombos 308 25. Vila Bela Santíssima Trindade Municipal EMPG Monteiro Lobato Área remanescente de quilombos 41 26. Vila Bela Santíssima Trindade Municipal EMPG Marechal Rondon Área remanescente de quilombos 178 27. Vila Bela Santíssima Trindade Municipal EMPG Ricardo Franco Área remanescente de quilombos 814 28. Vila Bela Santissima Trindade Municipal EMPG São Sebastião Área remanescente de quilombos 67 29. Vila Bela Santissima Trindade Municipal EMPG Nova Fortuna Área remanescente de quilombos 210 30. Vila Bela Santissima Trindade Municipal EMPG Santa Luzia Área remanescente de quilombos 73 31. Vila Bela Santíssima Trindade Municipal EMPG Itijucal Área remanescente de quilombos 257 32. Vila Bela Santíssima Trindade Municipal Centro De Educacão Infantil Chapeuzinho Vermelho Área remanescente de quilombos 120 39 No ano de 2013 aconteceram três momentos formativos para os professores das escolas quilombolas. Em novembro houve uma formação aberta para todos os professores. Durante o Seminário de Educação em 2013 – SEMIEDU/2013 – que ocorre anualmente na UFMT, realizou-se uma formação com foco para professores quilombolas: a Jornada de Desigualdade Racial, realizada em parceria com a Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso. Este conjunto de atividades demonstra que, pelo menos, algumas ações estão acontecendo no estado com base na Lei 11.645/08. Ao perguntar sobre a gestão das escolas, o referido gestor informa que todas as escolas quilombolas assumiram com responsabilidade os conteúdos de História e Cultura Negra no Brasil, conforme preconiza a lei há pouco citada. Segundo ele, a Escola Estadual Verena Leite, por exemplo, recebeu um prêmio nacional pela implementação dessa lei, demonstrando uma consonância com a proposta nacional. No entanto, em seus dizeres, alguns educadores a negligenciam por acreditar que ela seja desnecessária. 40 CAPÍTULO II - DEMARCAÇÕES METODOLÓGICAS Este capítulo tem por objetivo descrever os procedimentos metodológicos por mim adotados para a efetivação desta pesquisa. 2.1 INDO A CAMPO Os primeiros contatos para a realização da pesquisa na Escola Estadual Maria de Arruda Muller se deram através da solicitação de autorização para a direção da escola escolhida, entregue pessoalmente, onde me apresentei como aluna do mestrado em educação da Universidade Federal do Mato Grosso- UFMT e, na oportunidade, apresentei também o meu propósito da pesquisa. Assim feito, os gestores da escola prontamente me acolheram como pesquisadora e autorizaram a realização deste trabalho. Em seguida, fui apresentada pelo diretor da escola aos professores e funcionários de modo geral. Ao ser apresentada como “pesquisadora sobre quilombola”, me pareceu que todos queriam explicar ou expressar seu sentimento de dúvidas e de expectativas diante de uma nova mudança que tinha acabado de acontecer naquele lugar. Alguns apresentavam suas opiniões em relação à definição daquela escola como sendo específica quilombola. Após conversas mais aprofundadas com o diretor, fui compreender que a escola havia acabado de ser transferida do Departamento de Escolas do Campo para o Departamento de Escolas Quilombolas. Na conversa primeira, que aos poucos foi se tornando uma roda de conversa informal entre os professores, diretor e eu, percebi que todos ali, inclusive eu, estávamos no processo de descoberta, diante do novo proposto para aquela escola que tem como riqueza histórica a presença de descendentes de negros que trabalharam em regime de escravidão naquele território. Assim sendo, posteriormente foram feitas visitas frequentes à comunidade e à escola durante todo o segundo semestre de 2013 a fim de estabelecer vínculos e coletar os dados necessários. Quando eu não estava nela, me encontrava coletando dados junto a pessoas moradoras na cidade de Cuiabá que se identificam como quilombolas da Abolição e estão ansiosas pelo retorno à terra que está em processo de demarcação. Foram visitas quase que semanais durante o ano de 2013. Ao buscar me inserir nesse território especificamente marcado pela dinâmica sociocultural de famílias negras, deparei-me na condição de Visitante Ocasional, como define 41 Norbert Elias, segundo a qual nem sempre se consegue ficar a altura do conhecimento que os habitantes de um lugar possuem deles mesmos (ELIAS, 2000), eu e eles preferimos nos preservar, visto que o foco de minha pesquisa, e eu mesma, éramos elementos novos para todos. Assim como bem observou Berreman (1980) em seu trabalho etnográfico realizado no Himalaia, O etnógrafo surge diante de seus sujeitos como um intruso desconhecido, geralmente inesperado e frequentemente indesejado. As impressões que estes têm dele determinarão o tipo e a validez dos dados aos quais será capaz de ter acesso e, portanto, o grau de sucesso de seu trabalho. Entre si, o etnógrafo e seus sujeitos são, simultaneamente, atores e público. Têm que julgar os motivos e demais atributos de uns e do outro com base em contato breve, mais intenso, e, em seguida, decidir que definição de si mesmos e da situação circundante desejam projetar; o que revelarão e o que ocultarão, e como será melhor servir aos seus interesses, tal como você os vê (BERREMAN, 1980, p.141). Estava assim diante de uma realidade sociocultural diversa da minha, da qual aos poucos fui me aproximando. Muitas vezes comi na casa de Dona Deuzeri e não faltou convite para dormir em sua casa. Dona Deuza (57), como é chamada pelos moradores da comunidade, veio de Goiás para Cuiabá e acompanhou seu marido rumo aos trabalhos em uma das fazendas próximas, mora do lado da escola há 35 anos, sendo que todos os seus filhos estudaram nesta escola.8 O diretor também dispôs o alojamento dos professores, que fica atrás da escola, para eu me hospedar. Esses momentos foram como momentos sagrados de aproximação das pessoas e aos dados para pesquisa, e pude entender na prática a relação do pesquisador com o objeto e os sujeitos. Todas as distâncias que poderiam existir durante os primeiros contatos com os envolvidos foram desfeitas com a possibilidade de vivenciar o cotidiano junto a essas pessoas. As visitas aconteceram muitas vezes graças a caronas de amigos que iam para outras cidades e me deixavam no trevo de Barão de Melgaço, onde eu acabava de chegar a pé até a comunidade. A escola era sempre o meu ponto de chegada, pois se localiza a menos de quinhentos metros do trevo, a aproximadamente 50 quilômetros do município de Cuiabá, seguindo rumo a cidade Rondonópolis. Mais precisamente, no quilômetro 353 da BR 364. Na ausência de carona ou transporte particular, fui de ônibus até a parada do trevo de Barão, retornando de carona com os professores. 8 Dona Deuzeri e seu esposo receberam como doação do Senhor Frederico Muller um pedaço de terra para trabalhar. Este espaço ocupado por Dona Deuzeri e toda sua família está dentro da comunidade Abolição. 44 universo era a minha intenção, considerando que não se trata de um universo muito diferente, pois a luta pela garantia e sobrevivência na terra é o centro desses dois segmentos sociais, onde a cultura está enraizada totalmente no seu território tradicional, fonte de identidade. “Trata-se de uma identidade construída, coletivamente, ao longo de um processo histórico, em geral uma identidade alicerçada na resistência e assentada sob um território” (MACENA, 2010, p.09). Uma de minhas angústias foi perceber a esperança por parte tanto dos trabalhadores da escola como dos membros quilombolas da comunidade. Da escola pelo fato dos gestores, principalmente por parte do diretor confiar que eu como pesquisadora contribuiria com o processo de construção de uma identidade da escola enquanto estrutura que concentra uma diversidade de culturas e que está localizada em um território quilombola. Diretamente essa contribuição não foi possível, por ser um processo lento, onde todos os envolvidos - gestores, funcionários, comunidade - vão se encontrando, se descobrindo, identificando o porquê daquela escola. Por esse motivo só compete aos envolvidos, esse não era o meu propósito, considerando que a proposta de minha pesquisa é etnográfica e não uma pesquisa ação, que talvez me daria essa possibilidade. No entanto, talvez minhas provocações em função da pesquisa possam ter contribuído de maneira indireta nesse processo, nessa busca constante e longa pela identidade da escola, inclusive para a construção do novo Projeto Político Pedagógico, elaborado no segundo semestre de 2014 coletivamente, com a participação da comunidade. A esperança que percebo dos membros da comunidade é a confiança de que meu trabalho de pesquisa irá contribuir para o avanço no processo de demarcação do território por dar visibilidade e voz aos quilombolas daquele lugar. Estes são quase que invisíveis, até pelo número reduzido de pessoas que se encontram por ali, já que a maioria dos que se reconhece no direito a se estabelecer nesse território se encontra nas periferias de Cuiabá. No entanto também não é a função direta desta pesquisa, mas penso que poderá dar visibilidade à dinâmica histórica da comunidade Abolição como um lugar aprendente e ensinante da cultura afrodescendente à qual pertence. Nas diversas idas e vindas para a comunidade, nas caminhadas sob sol ou chuva, as conversas foram ficando cada vez mais à vontade, os vínculos cada vez mais estreitos. Fomos todos nos frustrando diante das expectativas e nos tornando mais abertos e reveladores, o que contribuiu muito para o desenvolvimento do trabalho etnográfico. 2.2 ORIENTAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS 45 Para o desenvolvimento inicial desta pesquisa, busquei respaldo no princípio de Chizzotti (1994, p.93), pois ele convoca os pesquisadores a buscarem o significado que as pessoas dão ao seu mundo e as suas práticas: O objeto da ciência social é ir: buscar o significado que as pessoas dão ao seu mundo e as suas práticas, ou seja, a toda a soma total de objetos e dos acontecimentos do mundo cultural e social criados pelo pensamento de senso comum dos homens, vivendo numerosas interações sociais. Cabe aos pesquisadores identificar e descrever as práticas e os significados sociais (...), de compreender como elas se dão no contexto dos sujeitos que as praticam (CHIZZOTTI, 1994, p.93). Tal perspectiva, a qual Geertz (2012) também faz referência, permitiu que a pesquisa fosse desenvolvida a partir de um processo investigativo de abordagem qualitativa. A abordagem qualitativa é a que melhor responde às questões referentes ao objeto deste estudo eleito. Ela me ofereceu suporte teórico e prático para que eu pudesse me aproximar o máximo deste fenômeno social, compreendendo o sentido de sua existência, respondendo assim a algumas questões e provocando outras mais pertinentes, que serão base para futuras pesquisas que se configurarão necessárias a partir desta. Com suas raízes no final do século XIX, a abordagem qualitativa de pesquisa nasce a partir da área das ciências sociais ao questionar a adequação do modelo vigente de ciência aos propósitos de estudar o ser humano, sua cultura, sua vida social. Segundo André (1995, p. 17), Max Weber contribuiu de forma importante para a configuração da perspectiva qualitativa de pesquisa ao destacar a compreensão como o objetivo que diferencia a ciência social das ciências físicas e naturais. Apesar da sua relevância aos aspectos qualitativos, não deixei neste estudo de complementar elementos quantitativos (gráficos e tabelas) a fim de enriquecer as interpretações e contextualizações, superando a “falsa dicotomia” entre as investigações qualitativa e quantitativa, conforme discute Filho e Gamboa (2009). Na pesquisa de cunho social, como esta, as duas dimensões não se opõem, mas se inter-relacionam num movimento cumulativo e transformador ao ponto de não conceber uma sem a outra. Elas se complementam e, portanto, podem ser usadas pelo pesquisador sem cair na contradição epistemológica, buscando a articulação a fim de superar as limitações de cada uma delas. (FILHO; GAMBOA, 2009). No caso deste estudo, se caracteriza como uma pesquisa qualitativa que busca aportes de elementos quantitativos, a fim de ordenar melhor o real, articular os diversos aspectos de um processo global e de explicar uma visão de conjunto (FILHO; GAMBOA, 2009, p.88). Seguindo este principio, enfatizei a descrição densa para melhor compreender a configuração e 46 o sentido de uma escola situada num território quilombola, considerando os aspectos identitários que a permeia, objetivo central desta investigação. Segundo Bogdan e Bikle (apud LUDKE, 1986), devemos considerar numa pesquisa qualitativa que: a) a fonte de dados é estudada no ambiente em que os fenômenos ocorrem naturalmente, sem interferências intencionais do pesquisador; b) Os dados da realidade são todos considerados importantes; c) há maior preocupação com o processo do que com o produto; d) o pesquisador focaliza, de modo especial, o significado que as pessoas dão às coisas e à sua vida. Sendo assim, ao considerar esses fatores faz-se necessário uma “descrição densa” das experiências variadas de vida dos sujeitos, assim como propõe Geertz (2012). Neste caso, minha tarefa foi empenhar-me na compreensão da interpretação que os sujeitos dão às próprias experiências, manifestas em suas linguagens, gestos, arte, religiões e política. Para Denzin e Lincoln (2006), o pesquisador é comparado a um “bricoleur (indivíduo que confecciona colchas)” ao tratar da diversidade de práticas metodológicas que lhes são fornecidas e possíveis de serem utilizadas na pesquisa qualitativa (2006). Da mesma forma que o “confeccionador de colchas” reúne um conjunto de peças que se encaixam umas nas outras, utilizando várias ferramentas e materiais do seu ofício, chegando assim ao resultado final com sucesso, o pesquisador qualitativo utiliza “ferramentas estéticas e materiais do seu ofício, empregando efetivamente quaisquer estratégias, métodos ou materiais empíricos que estejam ao seu alcance” (2006, p.18). Ou seja, ele se torna um bricoleur metodológico, interpretativo, político e narrativo, tendo como o resultado uma “Bricolage complexa”. Essa analogia expressa um processo gerador de uma unidade psicológica e emocional que torna impossível o investigador e o processo de pesquisa não influenciarem o que é investigado. Por essa razão, compreender os significados de outro indivíduo exige colocar a ação dentro de um contexto de significados com a clareza da intenção da conduta do pesquisador, pois o pesquisador necessita compreender o significado que os outros dão às suas próprias situações. É esse o papel do pesquisador. Ao analisar o papel do pesquisador, Menga Ludke e Marli André (1986) afirmam que: é pelo trabalho do pesquisador que o conhecimento específico do assunto vai crescer, mas esse trabalho vem carregado de valores e com suas definições políticas. Os valores e interesses do pesquisador moldam a sua visão da realidade. Daí a necessidade do método para controlar a subjetividade. 49 portanto, proporcionará a compreensão da visão de mundo dos entrevistados e suas percepções sobre a escola. Nesse sentido, ao buscar desvelar as interpretações de cada entrevistado sobre o sentido da educação escolar naquela comunidade, esta pesquisa embasada na etnografia tem a possibilidade de captar mais de perto a visão de cada sujeito da pesquisa. A partir do pensamento de Geertz sobre a interpretação das culturas, o que caracteriza a descrição etnográfica é o fato dela ser interpretativa e o que ela interpreta é o fluxo do discurso social e a interpretação envolvida consiste em tentar salvar o "dito" num tal discurso da sua possibilidade de extinguir-se e fixá-lo em formas pesquisáveis (GEERTZ, 2012, p. 15). Considero importante lembrar aqui que inicialmente pensei em fazer uma etnografia da Escola Maria de Arruda Muller, com base nas propostas de Marli André (2004), no entanto, no decorrer da pesquisa percebi que seria impossível este trabalho pelo fato da escola estar em processo de discussão sobre sua própria identidade e compreendi que, mais que uma etnografia da prática escolar, poderia analisar a escola dentro de um cenário, em que os próprios atores se encontram num processo de compreensão do que sejam eles mesmos: sujeitos de direitos. Sendo assim, tomei como aporte central os conceitos de Geertz sobre etnografia, cujas interpretações e análises serão a partir dos discursos apreendidos, das observações e entrevistas, expressos pelos gestores, professores e alunos, num esforço de torná-los importantes elementos teóricos para os estudos em favor de uma Educação para as Relações Etnicorraciais em Territórios Quilombolas. 2.2.2 Instrumento de coleta de dados Para uma pesquisa etnográfica, a observação é o principal instrumento de coleta de informação, pois parte da compreensão do que as pessoas fazem, os elementos que utilizam e como se relacionam entre si, ou seja, do conhecimento não falado e sim vivido. Para essa pesquisa foram utilizadas como instrumento a observação, as questões fechadas e entrevistas semiestruturadas, pois estas também são importantes para uma maior compreensão da realidade. De acordo com Minayo (2007), numa sociedade ou grupo marcado por muitos conflitos, cada entrevista expressa a luz e a sombra da realidade de forma diferenciada. As entrevistas, por ter como objetivo o aprofundamento dos aspectos que foram observados, foram utilizadas também de maneira não estruturadas, na tentativa de evitar impor aos sujeitos uma percepção do pesquisador relativamente aos processos de construção de uma identidade. Como apontam Bogdan & Biklen (1994), a entrevista não estruturada “permite aos 50 sujeitos responderem de acordo com a sua perspectiva pessoal, em vez de terem de se moldar a questões previamente elaboradas” (p. 17). Os sujeitos que foram entrevistados são membros da Gerência de Diversidades da Secretaria Estadual de Educação, membros da comunidade e ex-moradores, coordenação e direção da escola, professores e estudantes, cujas entrevistas tiveram finalidades específicas para cada sujeito entrevistado. No caso da gerência de diversidade, as entrevistas deram o aporte analítico para a reflexão sobre as Políticas Públicas e a configuração da Educação Escolar Quilombola no Estado. As entrevistas com moradores e ex-moradores de Abolição tiveram como finalidade tecer a sua memória histórica-social e a contextualização da comunidade de modo geral, inclusive aos aspectos identitários. Quanto aos professores e gestores da escola, buscou-se conhecer o perfil dos mesmos bem como os valores e os sentidos que dão á ela. No caso dos alunos, objetivou-se levantar dados que possibilitem uma análise das identidades culturais dos estudantes, bem como o que vem sendo discutido na escola sobre esta questão. Pretendeu-se também apreender os sentidos que os alunos dão à escola. Abaixo, apresento as perguntas que foram utilizadas na coleta de dados, iniciando com as questões fechadas, aplicadas a todos os entrevistados, ou seja, a 25 pessoas. As informações colhidas neste questionário tiveram como objetivo a elaboração de um fichário com os dados gerais dos protagonistas desta pesquisa, cujo material me possibilitou uma maior visibilidade das pessoas que compõem a comunidade no que se refere a gênero, grau de escolaridade, atividades profissionais, renda familiar, religiões praticadas, entre outros. Questões fechadas: Nome, idade, data de nascimento, local de nascimento, gênero, cor, sexo, local onde mora, posição na família, religião, escolaridade, escolaridade do pai, escolaridade da mãe, atividade profissional, renda familiar, número de filhos, estado civil, domínio de leitura e escrita. Roteiro de entrevistas O roteiro de entrevistas seguiu o seguinte quadro, que será especificado logo em seguida: Categoria dos sujeitos entrevistados Objetivo da entrevista Nº de sujeitos entrevistados Moradores da comunidade Informações gerais sobre a comunidade 3 51 Ex-moradores da comunidade Levantamento histórico da comunidade. 3 Gestores, professores e funcionários Mapeamento do perfil dos mesmos. 8 Alunos Levantamento de dados que possibilite uma análise da identidade cultural dos estudantes e dos sentidos que dão à escola. 8 TOTAL DE ENTREVISTADOS 22 Quadro 2 - Roteiro de entrevistas. 1- Moradores da comunidade (3 pessoas) 1.1 Estas perguntas tiveram como objetivo retratar, através dos moradores, a comunidade Abolição e a conjuntura atual do seu território. Há quanto tempo mora aqui? De onde veio? Por que veio? Você vive bem aqui neste lugar? Por quê? Você conhece a história desta comunidade? Conte-me. Se sente fazendo parte desta história? Por quê? Você sabe por que este lugar é reconhecido como território quilombola? 1.2 – As perguntas neste item visam levantar elementos que indiquem o grau de sentimento de pertencimento dos moradores em relação ao território. Você sabe o que é ser quilombola? Você se considera quilombola? Por quê? 1.3 – Buscam levantar elementos em relação à escola através dos moradores. Você frequentou a escola? Onde? Por quanto tempo? Gostava? O que se lembra da escola? Como membro da comunidade o que você acredita que deve ser ensinado hoje na escola inserida na comunidade Abolição? E sobre a história deste lugar, o que você acredita que deve ser ensinado? 2 - Ex-moradores da comunidade Abolição (3 entrevistados) 2.1 - Este item pretende levantar dados referentes à história da comunidade enquanto território quilombola, através dos ex-moradores do local. Há quanto tempo saiu da comunidade? Por quê? Conhece a história da comunidade Abolição? Você se sente ainda fazendo parte desta história? Por quê? 2.2 – As perguntas deste item pretendem colher informações referentes à identidade cultural das famílias pesquisadas, bem como o grau de pertença ao território de Abolição, por pessoas que nasceram, moraram e posteriormente precisaram sair da comunidade. Você sabe o que é ser quilombola? Você se considera quilombola? Por quê? O que Você mais se lembra do local? Você vive bem aqui neste lugar? Por quê? Tem vontade de voltar a morar lá? Por quê? 54 planejamento pedagógico da escola, considerando os elementos de caráter racista, como também quais os materiais utilizados pautados na proposta das Orientações Curriculares para a Educação Etnicorracial. 55 CAPÍTULO III - A COMUNIDADE ABOLIÇÃO Neste capítulo apresento a comunidade de Abolição, sua história e parte do conflito que a permeia enquanto território quilombola, conflito este que se configura como importante fator para a compreensão da dinâmica vivida na Escola Maria de Arruda Muller. O objetivo é descrever detalhadamente o local da pesquisa, conforme a proposta etnográfica de Geertz (2012), a partir de observações realizadas e das informações dos moradores, além de documentos históricos e atuais da região, principalmente os documentos elaborados pelo departamento de antropologia da UFMT. 3.1 PARA COMPREENDER A COMUNIDADE ABOLIÇÃO: A OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO MATO-GROSSENSE Semelhante ao que ocorreu em outras regiões do Brasil, como em Minas Gerais, a descoberta do ouro pelos bandeirantes liderados por Pascoal Moreira Cabral, deu inicio à história do avanço colonialista sobre as terras de Mato Grosso. Com a descoberta do ouro, no ano de 1719, nas margens do rio Coxipó-Mirim, a região passa a ter importância para o abastecimento do metal tão precioso para Portugal. É na efetivação do acordo estabelecido pelo Tratado de Tordesilhas (1494) que é criada, em 1748, a Capitania de Mato Grosso que tem por capital Vila Bela da Santíssima Trindade (GARBIN, 2006, p17). Para a Capitania de Mato Grosso são deslocados contingentes de pessoas para servir de mão de obra na exploração mineira. Assim, chegaram a Mato Grosso no século XVIII os primeiros escravizados de origem africana, provenientes, a princípio, de São Paulo e posteriormente do Pará e Maranhão, por conta da liberação da navegação dos rios da bacia Amazônica. (GARBIN, 2006,p17). Dados de 1752 indicam que nesse período já se encontram em número de 1.175 escravizados na capitania de Mato Grosso. Em 1780, o governador Luiz d’Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres registrou que três quartos dos habitantes da capitania eram negros, mulatos e outros mestiços (BANDEIRA, 1988, p 51). Em sua maioria, a população de escravizados de Mato Grosso era masculina, não jovem e de origem africana diversa, pois era comprada no Rio de Janeiro, na Bahia, Pernambuco, Minas Gerais e no Pará, vinda pelo rio Madeira através da Companhia do Grão Pará e Maranhão, de onde chegavam “escravos da Guiné e Angola” (BANDEIRA, 1988, p.72). 56 As condições para a realização do trabalho de garimpagem não se diferenciavam, na época, das formas precárias observadas em outros setores onde o trabalho escravo foi empregado. Estas condições, somadas ao desejo de liberdade, provocaram fugas frequentes dos escravizados, formando os quilombos, espaços de liberdade e de vida comunitária (GARBIN, 2006, p 18). Muitos quilombos foram organizados em terras mato-grossenses durante os séculos XVIII e XIX. Um exemplo são os quilombos "Mutuca" e "Pindaituba", situados na Chapada dos Guimarães, os "Sepoutuba" e "Rio Manso", próximos a Vila Maria (atual Cáceres). A região do vale do rio Guaporé foi onde houve maior concentração de escravizados fugitivos. Desta região cito o quilombo do Piolho ou Quariterê, no final do século XVIII, localizado próximo ao rio Piolho, que reuniu negros nascidos na África e no Brasil, índios e mestiços de negros e índios – cafuzos (GARBIN, 2006). Bem se faz registrar que em algumas destas localidades havia populações autóctones, ou seja, a incidência de mão de obra migrante se dará em territórios previamente ocupados por povos indígenas. Assim, o processo de colonização foi também traumático para a população tradicional. Índios e ribeirinhos foram constantemente expulsos de suas áreas à medida que a fronteira agrícola avançava, incluindo também garimpos e outras formas de exploração (GARBIN, 2006, p 19). Posteriormente, com a ampliação das áreas de mineração, os quilombos se formaram e passam a despertar os interesses dos governantes, como registra a antropóloga Machado (2006), em seu relato etno-histórico. Neste, a pesquisadora informa o empenho do então governador João d’Albuquerque em destruir vários quilombos no ano de 1795 na busca de lugares que houvesse ouro. O ‘Diário da Diligência que por ordem do Illustrissimo e Excellentissimo João d’Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, Governador e Capitão General da Capitania de Mato Grosso, se fez no anno de 1795, a fim de se destruírem vários Quilombos, e buscar alguns logares em que houvesse ouro” (ROQUETTE PINTO, 1935 apud MACHADO, 2006, p. 2). E assim foram muitas outras práticas de extermínio dos quilombos em favor da expansão em busca do ouro. No entanto, na contramão destas investidas, seguiram os quilombos em diversos modos de resistência até os dias atuais, em constante busca pelo seu reconhecimento territorial. 59 Os programas de desenvolvimento, tais como o PIN - Programa de Integração Nacional11 - na década de 1970 e o Polonoroeste12, na década de 1980, aumentaram com violência as pressões sobre a terra valorizada, dificultando ainda mais o acesso a essa por parte dos negros libertos (SILVA e SILVA, 1995, P. 41). Contudo, persiste ainda o regime de sesmarias ao redor de Cuiabá, no município de Santo Antônio de Leverger (Morro Grande e na região de Aricá), em Livramento, em Jangada e Acorizal. Ou seja, terras do governo ainda são distribuídas a grandes produtores com o intuito de investir na grande produção, na crença do desenvolvimento capitalista a partir do campo. A partir da década de 1980, algumas delas se dividiram e foram vendidas a particulares, mas a crescente dificuldade em sobreviver às novas forças do capital contribuiu fortemente para o empobrecimento progressivo das famílias que aí viviam (SILVA, 1995, P. 41). É exatamente este o contexto no qual se encontra a comunidade Abolição 3.3 SANTO ANTÔNIO DE LEVERGER: UM REFERENCIAL HISTÓRICO A comunidade Abolição fica aproximadamente a 50 km do município de Cuiabá e 80 km do município de Santo Antônio de Leverger. Apesar da distancia menor em relação a Cuiabá, a comunidade pertence ao município de Santo Antônio de Leverger, município este que compreende a região conhecida como “Baixada Cuiabana”. 11 Em 1970, durante o mandato do presidente Médici, o governo brasileiro fez uma promessa de construir 15 mil quilômetros de rodovias na região amazônica, dos quais 3.300 km pertenceriam a BR-230, ou rodovia Transamazônica. Tal projeto fazia parte do Plano de Integração Nacional (PNI), que tinha, entre outros objetivos, deslocar a fronteira econômica, e, notadamente, a fronteira agrícola, para as margens do rio Amazonas (Loureiro, 2010. P. 2) . 12 Financiado pelo Banco Mundial, este Programa objetivava a colonização de Rondônia e noroeste de Mato Grosso por pequenos agricultores. 60 Figura 5 - Localização do município onde se deu o estudo, Santo Antonio de Leverger, no estado de Mato Grosso. (CARDERALLI; COSTA; AZEVEDO; RIBEIRO; BATISTA;MELO, 2013, P. 609). Santo Antônio de Leverger, com o território de 12.261Km², faz limite com os municípios de Campo Verde, Jaciara, Juscimeira, Rondonópolis, Itiquira, Barão de Melgaço, Nossa Senhora do Livramento e Várzea Grande. Tem como distritos: Sede, Mimoso, Engenho Velho, Caeté, Varginha e São Vicente da Serra. Toda essa região possui o clima tropical quente e sub-úmido e a temperatura média é em torno de 23°C a 20°C. O período de chuva compreende os meses de outubro a abril, sendo dezembro, janeiro e fevereiro os mais chuvosos. A estação seca corresponde, em geral aos meses de maio a setembro, onde as chuvas reduzem-se e tornam-se mesmo ausentes. A umidade relativa do ar, nos meses mais chuvosos não ultrapassa 80% , enquanto que nos meses mais secos atinge valores abaixo de 50%13. O município de Santo Antônio de Leverger é um dos mais ricos em fauna, pois a sua localização na região pantaneira, mesclado com cerrados permite a existência de grande quantidade de animais, como onça, quati, ouriço, lebre, coelho, capivara, tatu, tamanduá bandeira, veado, queixada, etc. (IBGE, 2010). Destaco, na sua paisagem geográfica, os rios Peixe de Couro, Aricá, Aricá Mirim, Bamba, Mutum e Aricá-açu. 13 Disponível no site: http://www.mteseusmunicipios.com.br Acesso em 03/01/2014. 61 A sua população teve a origem baseada na mistura de indígenas, que tradicionalmente ocupavam todo o seu território, portugueses que se estabeleceram na região após a descoberta das minas de ouro em Cuiabá e africanos que foram trazidos para trabalhar no primeiro ciclo do açúcar de Santo Antônio por volta de 1750 (CULTRERA, 2008). Segundo o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – em 2010, Santo Antônio de Leverger possuía 18.463 habitantes. Destes, 7.160 morando na área urbana, enquanto que 11.303 pertenciam à zona rural. Ou seja, apenas um terço da população vive na zona urbana. O comércio da cidade gira em torno de mercados, lojas, lanchonetes e restaurantes. No meio rural, produz-se milho, arroz, batata, cana-de-açúcar, derivados do leite como queijos e doces, sendo também um dos maiores produtores de mandioca da região. A maioria dos moradores é de religião católica (13.000) e atualmente houve um crescente número de pessoas (3.203) que praticam religiões evangélicas de origem Pentecostal (Assembleia de Deus, Congregação Cristã do Brasil e Universal do Reino de Deus). A população de Santo Antônio de Leverger mantém alguns costumes na alimentação, na música e na dança, atraindo turistas para a cidade, principalmente na época do carnaval. Os pratos típicos envolvem muita carne, principalmente bovina. Peixe frito ou ensopado, mojica e pirão de peixe marcam a culinária da região. Durante as festas religiosas realizadas nas casas de devotos de santos geralmente são servidos feijão, carne seca com arroz e farofa de banana, que é um prato bem típico de toda a baixada cuiabana (CULTRERA, 2008, p.20) Na maioria das festas tradicionais há o siriri, que são danças feitas por vários casais que cantam e dançam ao som da viola de cocho, o mocho (tipo de tambor em forma de um banco com pele de boi esticada) e ganzá. E também o cururu que é uma dança só de homens. Segundo a história registrada pela Assessoria Pedagógica de Santo Antônio de Leverger, da Secretaria Estadual de Educação, a origem do nome deve-se a imagem do santo que fora deixada por uma das expedições paulistas que percorriam os rios até as minas de Cuiabá, na primeira metade do século XVIII. Este registro conta que, após serem atacados por indígenas Guató, embarcações que seguiam para Cuiabá pararam para pernoitar às margens do rio Cuiabá. Na manhã do dia seguinte uma das embarcações se prendeu, como em um banco de areia, não se movendo por mais que tirassem sua carga. Somente quando retiraram uma imagem de Santo Antônio a embarcação teria flutuado normalmente. No local foi construída uma pequena capela e em seu entorno foi aos poucos se constituindo um pequeno povoado, que viria, posteriormente, a se tornar Santo Antônio do Rio de Baixo. 64 Detalharemos melhor sobre esses protagonistas que fizeram parte da história de Santo Antônio de Leverger vinculada à história de Cuiabá, no próximo item. 3.4 – A COMUNIDADE ABOLIÇÃO Segundo estudos realizados pelo Incra, a comunidade Abolição tem sua principal referência na fazenda Abolição que marca a história desta região, onde o negro escravizado se faz presente desde 1871. Em 1932 a família Muller adquiriu de Alice de Lara Pinto a Fazenda Abolição, onde residiam e trabalhavam os ancestrais dos negros que ali permaneceram como principal mão de obra para as atividades desenvolvidas pela fazenda, que se tornou o principal antagonista desta comunidade, que hoje se reconhece como remanescente da Abolição. Com efeito, em movimentos subsequentes, o dono foi incorporando grandes extensões de terras através da aquisição de Sesmarias (vide tabela 6). Assim expandiu seus negócios, submetendo os moradores tradicionais destas terras que passaram a trabalhar para a fazenda e pagar foro. Neste tempo, nas décadas de 1930 e 1940, a Fazenda Abolição tornou-se um polo dinâmico de produção, de compra tanto da produção como da mão de obra das populações no seu entorno, convergindo ali às atividades econômicas, assim como a vida social, religiosa e cultural dos afrodescendentes. Quando estas terras foram depois alienadas a novos donos, os antigos moradores foram obrigados a buscar outro rumo, muitos migrando para a cidade. As Sesmarias localizadas na região do Quilombo Abolição foram: Proprietário Localidade Ano Francisco Correa da Costa Cabeceira Do Rio Aricá-Mirim 1780 Francisco Correa da Costa Paragem do Rio Aricá-Mirim-Mirim/Ribeirão Areia 1785 José Rodrigues Correa Leal. Aricá-Mirim 1790 Antônio Peixoto de Azevedo Aricá-Mirim /Tabera Do Morrinho 1791 Antônio Pinto de Souza Entre Os Morros Do Rio Aricá-Mirim-Mirim 1791 Francisco Correa da Costa Rio Aricá-Mirim-Mirim 1804 Paulo da Silva Coelho. Rio Aricá-Mirim 1803 Caetano de Moura Meireles Rio Aricá-Mirim-Mirim. 1804 Antônio Pedro de Figueiredo Aricá 1805/1807 Fernando Dias Paes Aricá 1805 Alberto José Joaquim de Souza Do Capitão Francisco Correa Da Costa 1813 Joaquim José Pinto de Moraes Rio Aricá-Mirim-Mirim 1813 Joaquim José Gomes da Silva Aricá 1813 Bento da Silva Rondom Rio Aricá-Mirim-Mirim Ribeirão Areias Acima 1814 Antônio Joaquim Moreira Serra Córrego Areia/Rio Aricá-Mirim-Mirim. 1816 Gabriel de Souza Leme Córrego Areias 1817 José de Souza Neves Córrego Areias 1817 José de Oliveira Aricá. 1821 65 Domingos Pequeno Chaves Antônio José de Oliveira Rio Aricá-Mirim 1767 Jerônimo Francisco Rio Aricá-Mirim-Assu/Aricá-Mirim. 1769 Tabela 5 - Levantamento feito pelo senhor Luiz Carlos Torquato em 2013. Fonte: Fundo Coleção Sesmarias. Arquivo Público de Mato Grosso. Segundo relato do Senhor Luiz Torquato, esposo de Dona Georgina, o sesmeiro Francisco Correa da Costa, nos idos de 1700, trouxe negros escravizados de São Paulo para trabalhar na fazenda Abolição e muitos de seus descendentes nasceram, foram batizados e se casaram nessa fazenda, permanecendo nela instalados após a escravidão14. Mesmo a partir de 1932, quando a fazenda passa a ser propriedade da família Muller, ainda se encontram famílias negras morando e trabalhando para o proprietário. Lista de propriedades adquiridas pela família Muller: Data Nome Transmitente Adquirente Reg. 01/01/1933 Sesmaria Abolição Alice M. de Lara Pinto, Esterio de Lara Pinto e outros Julio S. Muller Reg. 3936/68 -3o. Tab. Pedro Maciel 04/06/1932 Fazenda (Sesmaria) Aricá Mirim Laurindo de Lara Pinto e Maria de Lara Julio S. Muller Reg. 2.572/59 Tab. João Pereira Leite Sesmaria Uacorizal da Pedra Preta (sem dados ) 18/08/1947 Sesmaria Agua Branca Rafael Gonçalves de Queiroz Julio S. Muller Reg. 1347/48 Tab. João P. Leite Sesmaria Agua Branca Geraldo Gonçalves de Queiroz e Francisca Dias de Queiroz Julio S. Muller Reg. 1348/48 2o. Tab. João P. Leite 15/12/1942 Sesmaria Ribeirao da Estiva Caetano Alberto Santana e Erondina Andrelina Carvalho, em 1942 Julio S Muller Reg. 1346/48 2o. Tab. João Pereira Leite Tabela 6 - Fonte: Cartório do 4º Ofício livro 31 fls 157 a 162, da matricula 3938 em 24/06/68. O Senhor Antônio Martins das Chagas, conhecido por “Seu Bieiê”, residente na comunidade Abolição, é neto do Senhor Francisco das Chagas, pertencente a sua parentela de família negra de sobrenome Chagas, que possivelmente veio trazido de São Paulo pelo proprietário da Fazenda Francisco Correa da Costa, segundo informações anteriores. Seu Antônio conta que o seu avô comprou um pedaço de terra que pertencia à Abolição, mas acabou vendendo também para Júlio Muller por se encontrar em idade avançada, sem poder mais trabalhar. 14 Em anexo os documentos históricos referentes a esses dados, inclusive certidões de casamentos, batizados e óbitos, localizados na Cúria de Cuiabá. 66 Figura 6 - Certidão de compra e venda de um pedaço de terra. Fonte: Coleção Sesmarias. Em depoimento da família Chagas, as pessoas que eram dessa família ou de outras famílias de negros, que continuaram nas terras mesmo depois que ela foi vendida à família Muller, passaram a ter que prestar serviços como forma de pagamento, como forma de compensação por estarem morando nas terras que pertenciam de alguma forma à família Muller. Dona Silvia, atualmente moradora no Bairro Pico do Amor, na cidade de Cuiabá, em entrevista relata: Na sede da Abolição a gente fazia melado, farinha, rapadura, todo mundo trabalhava nessa sede, fazia isso e depois nós mesmo comprava. Num recebia dinheiro desse serviço, nós recebia “etapa”. Num ganhava nada porque a gente morava lá já dentro do lugar (Dona Silvia, em entrevista realizada no dia 7 de dezembro de 2013). Um fato relatado pelos membros da família Chagas é a sequência de incêndios que ocorreu nas casas pertencentes a essa família de negros. Dona Maria da Piedade Chagas, conhecida como Dona Lica, que faleceu recentemente aos 105 anos de idade, teve sua casa incendiada em consequência de uma explosão de um tambor de combustível que os funcionários da empresa, chamada Matoveg, deixavam em sua casa. Muitas pessoas ficaram feridas, duas morreram, queimou todos os alimentos que seriam consumidos no ano seguinte. “Não deu para continuar vivendo ali dentro e fomos aconselhados a morar em Cuiabá, pois teria mais recurso.” Mário, filho de Dona Lica conta com pesar, mostrando que as marcas além de estar no corpo se encontram também na alma. Percebi em Dona Lúcia e na sua irmã Enedina, marcas de queimaduras no corpo que elas não sabem explicar a causa, mas jamais se esquecerão 69 Segundo o cadastro do Incra, há 113 famílias que possuem o direito à posse da terra por serem descendentes de negros trabalhadores naquelas fazendas. No entanto o cadastro da associação tem registrado mais de 180 famílias. É válido ressaltar que a maioria dessas famílias cadastradas se encontra espalhada pelo município de Cuiabá devido a falta de condições para se manter na terra. Segundo o levantamento feito pelo Instituto de Energia - IE, há apenas 20 famílias morando na terra. A associação vem realizando um cadastro com base na filiação genealógica, buscando registrar todas as famílias nucleares descendentes daqueles reconhecidos como residentes em algum momento na fazenda Abolição; do quanto sabemos, o cadastro registra as informações sobre tais descendentes, independente de sua vontade ou presença e participação efetiva na comunidade. O cadastro do Incra é feito por e a domicílio, podendo eventualmente incluir mais de uma família nuclear, raramente alcançando descendentes que residem em outros estados ou cidades distantes, a não ser que continuem frequentando e participem das atividades da comunidade. No caso se trata principalmente da geração que não nasceu na Abolição e que hoje são em grande número, quando o critério estabelecido junto à Associação foi cadastrar aqueles que de uma forma ou outra manifestavam interesse, participando da associação ou de outros eventos significativos da comunidade, a exemplo de festas, de funerais etc. considerando ainda a manifestação do desejo e adesão à mobilização pelo retorno. Assim, o cadastro do Incra ainda não concluído apresenta esta diferença, mas busca se pautar pela indicação dos membros reconhecidos pela comunidade. Em reunião realizada na casa de dona Georgina, em Cuiabá, no dia 22 de novembro de 2013, entre Incra e membros da associação da comunidade Abolição, o antropólogo do Incra fez um breve relato confirmando a importância da demarcação das terras. Essa reunião era justamente para definir a delimitação, conclusão do processo de construção do perímetro quilombola. Assim disse Ivo Schroeder, o representante do Incra: Quando em 1988 a Constituição do Brasil mandou demarcar as terras ocupadas pelos remanescentes de quilombos, muitas comunidades já haviam sido expropriadas e não ocupavam mais suas terras. O entendimento que se constituiu desde então foi de que terra ocupada é aquela necessária para a continuidade destes grupos, para sobreviver como comunidade quilombola. Aqui temos um grupo que perdeu a terra, portanto a tentativa será delimitar um território que seja suficiente para esta comunidade (fala do senhor Schroeder durante a reunião da comunidade, em novembro de 2013). 70 Nesse sentido, é importante destacar que, como observa Castilho (2011), ao tratar sobre o espírito de luta presente na organização dos quilombos contemporâneos, na esperança da conquista e permanência na terra que lhe é de direito, assim afirma. Os quilombos, Contemporâneos, a exemplo de Mata-Cavalo, mesmo tendo origens diferentes das do século XVIII e estando economicamente empobrecidos, conservam o mesmo espírito de luta. Organizados em associação e pautados na lei, implementam ações sociais na esperança de conquistar um dia a liberdade imparcial, o respeito, o reconhecimento, enfim, a dignidade humana (CASTILHO, 2011). A realidade expressa acima por Castilho também se verifica entre os quilombolas em luta para reaver o território da comunidade Abolição. Espalhados pelas periferias de Cuiabá e sem condições financeiras relevantes, eles manifestam a confiança e a determinação na reconquista de suas terras. Fugindo da relativa apatia encontrada em outros setores sociais que veem negados seus direitos mais fundamentais, os membros da Abolição se nutrem da certeza de que sendo esse território um dia deles, ainda há de para eles retornar. Por isso, e apesar das dificuldades já apresentadas no processo, mantêm-se confiantes numa luta que está apenas iniciando. 3.5 - PERCORRENDO O TERRITÓRIO DE ABOLIÇÃO Figura 7 - Mapa apresentado pela associação ao Incra, agosto de 2013. O território da comunidade Abolição abrange hoje quatro pequenas comunidades que são: Laje, Água Azul, Aricá e Pomar. Tem como divisa a fazenda Bom Jardim e com outros 71 territórios quilombolas que são: Estiva, Bigorna e Sangradouro. Possui aproximadamente 13.000 hectares e que hoje é ocupado por 20 famílias quilombolas (distribuídas pelas quatro comunidades), oito grandes fazendas ocupando 10.000 hectares, duas mineradoras: Equipave e Britadeira do Vale, uma Igreja Católica e uma evangélica, um restaurante, dois pequenos bares e também a Escola Maria de Arruda Muller, que atende 13 comunidades da região. Quem sai de Cuiabá rumo a Rondonópolis pelo prolongamento da Av. Fernando Correa, ao percorrer os primeiros 60 quilômetros, encontrará a Serra de São Vicente, localizada entre os municípios de Cuiabá e Santo Antônio de Leverger - MT, às margens das rodovias 163 e 364. No local conhecido como “trevo de Barão de Melgaço” se depara com algumas casas bem à beira da rodovia, uma escolinha amarela de muro branco e vermelho com uma mangueira imensa do lado, que tem em sua frente uma empresa de mineradora, chamada Do Vale. Aí, bem aí, é o centro da comunidade Abolição. Todos estes elementos que constituem a “comissão de frente” da comunidade, que apresenta uma paisagem modificada, com fazendas, chácaras com árvores frutíferas e toda a dinâmica da exploração do minério, se misturam com uma vegetação fechada, com grandes buritizeiros que revelam um local úmido. As grandes referências naturais deste lugar são o rio Aricá-Mirim-Mirim e, claro, a Serra de São Vicente. Merece destaque o intenso movimento de caminhões que transitam por essa rodovia, com placas de todo o lugar do país. Normalmente em alta velocidade. Este fluxo intenso caracteriza este espaço como lugar de acidentes frequentes, principalmente com os moradores locais. Iniciada no governo de Juscelino Kubitscheck, a rodovia BR 364, também conhecida como Cuiabá-Porto Velho, é a principal via para o escoamento de safras e fluxo de transporte para a região norte do país, o que explica o intenso trânsito (FRANCO, 2011). A Rodovia 364 corta a comunidade Abolição, de um lado fazendas, mineradora e a Igreja Católica. Do outro, fazendas e a escola. Ao fazer este trajeto acompanhada por duas mulheres, que demonstram uma relação muito profunda com este território, talvez pelo fato de serem nascidas e criadas ali, logo indicam o começo da comunidade assim ao verem, à distancia, uma Grande Rocha e um Morro antes de chegar ao Trevo. Esse lugar é denominado “Pedreira”. Tem este nome, porque além da grande Rocha, havia aí a Empresa ENCO, que a explorou por dez anos (de 1985 a 1995), como também explorou a mão de obra dessa comunidade. Por esse motivo, segundo informações dos moradores, foi impedida de continuar. Essa Grande Rocha é o marco que delimita as terras da comunidade Abolição. 74 Ao sermos alegremente acolhidas no barraco de “Pitita”, sua prima, Dona Georgina e Dona Lúcia sentadas num banco, com olhar distante em direção ao morro São Vicente, choravam a mãe que havia falecido recentemente (em maio de 2014) e lembram quando quebravam coco com ela nesse lugar. Figura 10 - Casa de Pitita na localidade chamada Laje ou Cachorro sentado, foto Eulália, 2014. Ainda nesse local, em frente ao Restaurante do Elói, começa a fazenda da família Zanetti, onde está localizada a grande mineradora denominada Equipave. É onde a maioria dos jovens da região veem suas perspectivas de trabalho. Boa parte das casas que visitei possui pelo menos uma pessoa que trabalha nessa mineradora. E estão felizes porque ela está gerando emprego na região. Saindo desse local, contornando o “Trevo de Barão de Melgaço” para retornar a Cuiabá pela BR 364, chega-se na casa de Dona Lúcia e também na Britadeira Do Vale. Um pouco mais adiante, enfim, a Escola Estadual Maria de Arruda Muller, que está na Beira da Rodovia e dentro da fazenda Abolição que pertence à família Muller. Segundo dona Armezina, essa família doou uma parte da fazenda no inicio da década de 1980 para construir a escola. 75 Figura 11 - Fachada da escola. Foto: Eulália 2014. Ao observar a fazenda Abolição, Ariadne, uma jovem de família negra, conta que antes existiam muitos objetos na fazenda que lembram o período escravocrata como chicote, o tronco, corrente e algumas vasilhas. Segunda ela, a escola há alguns anos chegou a visitar a sede dessa fazenda, mas hoje essas coisas estão no museu e não tem mais nada lá, apenas um gerente da fazenda com sua família e poucas cabeças de gado. Para consultar, fui até o Museu Histórico de Cuiabá e não encontrei nada que fizesse alusão à fazenda Abolição. É perceptível o vazio nessa fazenda, a sequidão desse lugar. A carência de manutenção do espaço aparenta um lugar abandonado. 76 Figura 12 - Entrada da Fazenda Abolição. Foto Eulália 2014. Adentrando ainda mais à comunidade Abolição, depara-se com várias chácaras particulares nas quais (ao visitá-las e consultá-las) a maioria das famílias veio de Goiás para trabalhar nas fazendas e nas mineradoras, recebendo um salário mínimo. Percebe-se que a dinâmica do lugar gira em torno das duas mineradoras, das fazendas e da escola. São esses os espaços que geram emprego e perspectiva de futuro para as famílias que ali se encontram. Abaixo, pretendo mostrar a dinâmica e dimensão de como as mineradoras se apropriaram do espaço territorial da comunidade. Figura 13 - Foto da mineradora Do Vale, em frente à escola – Foto: Eulália, 2013. 79 moradores da cidade acreditam que não existem mais quilombolas naquela região. É importante lembrar que dos moradores da comunidade Abolição apenas uma família que mora no Cachorro Sentado se reconhece como quilombola, no sentido de saber de fato o que este termo significa, enquanto que o restante, apesar de aguardarem pela terra, não compreende o que é ser quilombola. O que não lhes subtrai a condição histórica de comunidades rurais negras e seus direitos territoriais. Poutignat e Streiff (1998) ilustram essa questão sobre o sentimento de pertença a partir do debate sobre a etnicidade. Eles afirmam que “a etnicidade não se manifesta nas condições de isolamento, é, ao contrario, a intensificação das interações características do mundo moderno e do universo urbano que torna saliente as identidade étnicas” (POUTIGNAT, 1998, p 124). Penso que esta afirmação retrata o momento inicial de descoberta do ser quilombola na comunidade a partir da discussão coletiva que vem sendo proporcionada pela associação da comunidade. É o processo inicial do reconhecimento de si mesmo dentro de um grupo social que parte de uma provocação externa. No entanto há também situações conflituosas por conta dos gerentes das fazendas que temem perder a qualquer momento suas terras. A relação dos moradores do “Cachorro Sentado” com o restante da comunidade não é nada harmoniosa. Se estes moradores passam da cerca que delimita o espaço entre “os negros” e a fazenda, correm o risco de serem baleados. Na visita aos restaurantes na comunidade junto com moradores deste lugar fomos muito mal atendidos, demonstrando inclusive certa tensão, pois sabem que o local em que se encontram não lhes pertence. Isto ficou claro quando um dos atendentes pediu para ficar na terra quando sair a regularização. Um ato de preconceito, na definição de Munanga, ou seja, um produto das culturas humanas que, em algumas sociedades, transformou em arma ideológica para legitimar e justificar a dominação de uns sobre os outros. (MUNANGA, 2005, p.18). 3.6 - A MEMÓRIA HISTÓRICA DA COMUNIDADE ABOLIÇÃO (...) os trabalhadores das usinas eram arregimentados entre gente humilde presa pela polícia e trocada pelo delegado de Polícia com os donos das usinas por sacas de açúcar... Deus permita que triunfe logo a legalidade para podermos extinguir essa nova escravidão no Rio Abaixo (MENDONÇA, 1973, apud SILVA E SILVA 1995). [...] O dono da terra era seu Júlio Mille, o documento da terra do meu pai ficou com ele. Tudo o que a gente plantava pra nóis tinha que dividi com ele. Teve um fogo que a gente não sabe como começo e que queimo muita gente e toda as nossa casa e as prantação. Daí não tinha trabalho e o seu Júlio Mille forçou a gente a i para cidade. Aos pouco as pessoa foi saindo de lá porque não tinha mais como vivê lá, sem casa, 80 sem roça, sem nada. [...] (Depoimento de Dona Georgina Maria da Chaga, em entrevista realizada em junho de 2013). A voz determinada, ciente de que esse território lhe pertence soa a partir da consciência que Dona Georgina tem do “ser quilombola” como descendente de pessoas negras que foram escravizadas naquele lugar e que também, junto com tantos outros, passou a compor esse cenário de exploração na fazenda. Em reunião da associação na casa de Dona Silvia, no bairro Pico do Amor em Cuiabá, os participantes revelaram seu sentimento de pertença já no momento de apresentação em que se apresentam não só pelo seu próprio nome, mas sim pela parentela a qual pertencem. [...] eu sou Edevaldo, neto de João das Chagas...eu sou Silvia, filha de Francisco Alcântara e Arminda Maria Silva dos Santos, neta de Joana Pedrosa da Silva...todos nós nasceu na Abolição [...] O que me chamou a atenção nessa reunião foi que todas as mulheres mais velhas, entre 60 a 80 anos, afirmavam que haviam trabalhado na sede da fazenda Abolição e os mais novos nasceram e cresceram lá ajudando seus pais. É perceptível a presença das mulheres na luta pelo retorno à comunidade. Suas falas são de persistência e perseverança. O que tá no sangue deles (os antigos que já morreram) tá no meu...eu espero não só eu, mas todos que saíram voltem pra lá. Porque estamos em Cuiabá não porque queremos, mas porque não tinha mais como viver lá, nem trabalho...eu quero voltá, eu quero morrê lá. (Dona Silvia, em entrevista realizada em dezembro de 2013) Essa fala revela a importância do território para os antigos moradores. Não moram porque não querem e sim porque não podem. Foram expulsos, relatos já feitos acima, das várias casas que iam sendo queimadas sem nenhuma razão. Sem que ninguém soubesse a causa. Outro fator que me chamou a atenção foi a presença massiva e ativa da juventude nessas reuniões. Dr. Willian Reis Olegário, filho do Senhor Edevaldo, um jovem com menos de 30 anos, advogado, se destaca ao assumir a reunião retratando o andamento do processo judicial da terra. “o estudo é a base fundamental pra você saber dos seus direitos e ir atrás”. Em sua fala ele dá importância na presença e persistência de todos, enfatizando a lentidão do processo e que todos têm que se manter fortes e persistentes. Alguns expressam cansaço na luta pelo retorno à terra devido a demora. Essa luta e o processo de reconhecimento da identidade dos antigos moradores negros iniciaram a partir de um trabalho realizado por uma professora na escola com os alunos sobre a memória do lugar no ano de 2001. Ariadne, aluna da escola chegou em sua casa contando para sua mãe, dona Lúcia das Chagas, o que a turma estava estudando junto à professora e que 81 estavam descobrindo percebendo que eles eram descendentes de negros escravizados dali e que essas pessoas eram chamadas de quilombolas. A partir de então se iniciou o processo de autorreconhecimento. Outro momento importante nesse processo de gestação foi o Diagnóstico Rápido Participativo feito pela Empresa energética por conta do linhão que iria passar pela comunidade e através do laudo foi reconhecido o lugar como território quilombola. Dona Deuzari Souza Caldeira (57), conhecida como Dona Deuza, veio de Goiás e mora na comunidade Abolição há 35 anos. Ela recebeu um pedaço de terra da família Muller, para quem seu esposo trabalhava, para criar seus filhos. Seus nove filhos terminaram o ensino fundamental na escola da comunidade. A maioria de seus filhos hoje trabalha na mineradora Equipave. 3.7 – TERRITORIALIDADE, DESTERRITORIALIDADE E RETERRITORIALIDADE Não se pode falar de Educação Escolar Quilombola sem antes tratar da base fundamental onde esta se dá: o território quilombola. Embora muitas vezes designada como “terra quilombola”, se não explicitarmos o conceito que está por detrás podem pairar dúvidas ou distorções na compreensão. Partimos, pois, do conceito de “terra” enquanto território. Recorrendo a Raffestin (1993), veremos que o conceito de território foi inicialmente empregado na perspectiva das ciências naturais, relacionado com o “domínio de espécies animais ou vegetais com uma determinada área física”. Podemos clarear esta primeira compreensão, por exemplo, no domínio que determinada espécie estabelece sobre uma porção do espaço, resguardando de outros, da mesma ou de outras espécies, seus ‘domínios’. Posteriormente o conceito de território foi incorporado pela Geografia, que o configurou a partir da relação entre espaço, recursos naturais, sociedade e poder. Em seguida, diversas outras disciplinas passaram a incorporar o debate, entre elas a sociologia, a antropologia, a economia e a ciência política. Segundo o mesmo Raffestin (1993) o conceito de território se incorporaria a apropriação do espaço pela ação social de diferentes atores. Nesse sentido, o território surge como resultado desta ação que, de forma objetiva e subjetiva, se apropria de um espaço. Tizon (1995) destaca o sentido antropológico, onde território é o “ambiente de vida, de ação, e de pensamento de uma comunidade, associado a processos de construção de identidade”. Abramovay apresenta a ideia de que “um território representa uma trama de relações com raízes 84 De acordo com as definições dadas pelos antropólogos, por meio da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), reunidos no Grupo de Trabalho da ABA sobre Terra de Quilombo, em 1994, o termo quilombo [...] não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio. (...) No que diz respeito à territorialidade desses grupos, a ocupação da terra não é feita em termos de lotes individuais, predominando seu uso comum. A utilização dessas áreas obedece à sazonalização das atividades, sejam agrícolas, extrativistas ou outras, caracterizando diferentes formas de uso e ocupação dos elementos essenciais ao ecossistema, que tomam por base laços de parentesco e vizinhança, assentados em relações de solidariedade e reciprocidade” (O’DWYER, 2002, p.18). É com base nesses conceitos que retrato, a seguir, a dinâmica do território quilombola de Abolição, compreendendo este como desterritorializado, pelo fato de muitos que ali viveram desde sua origem não se encontram morando nele, pois foram expulsos por força do processo desenvolvimentista do capital que ali foi se estabelecendo. Abolição também está em processo de reterritorialização, porque estes que dali foram expulsos vêm se reafirmando identitariamente e buscando o retorno para o seu território tradicional. 3.8 DESTERRITORIALIZAÇÃO E RETERRITORIALIZAÇÃO DAS FAMÍLIAS NEGRAS DE ABOLIÇÃO. A comunidade de Abolição está erigida sobre um território calcado de histórias negras que se fizeram através do trabalho nas fazendas, nas usinas e nos minérios. No entanto, pouco se sabe sobre sua história e poucos documentos existem que tratam desse lugar. A terra não é de uso comum e cada um possui seu pedaço, conforme recebeu por doação de algum dono de fazenda. O título do território para os moradores ainda é muito esperado pelos quilombolas, pois não foi emitido ainda pela Fundação Cultural Palmares, aguardando o laudo antropológico do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra, que é o órgão responsável pela emissão de título do território quilombola. O uso dos recursos da terra é bastante limitado, considerando o fato que grande parte desse território permanece nas mãos de grandes fazendas e mineradoras. Os negros que nele permanecem se encontram às margens das estradas. Não possuem direito de circulação pelas áreas de caça e pesca ou coleta de produtos vegetais, já que elas se encontram ocupadas por 85 propriedades privadas. As pequenas plantações se encontram ao redor das casas e com o tamanho bastante reduzido, quando é possível plantar: “saí de lá porque não tinha mais condição de viver lá”. Estes fatores cruciais determinaram o processo de expulsão dos antigos moradores negros para as cidades mais próximas. Como consequência desta expulsão, tiveram que estabelecer novas formas para manter o vínculo com seu território. Lembrando que muitos ainda possuem parentes na comunidade garantindo, portanto, a manutenção de suas raízes históricas e culturais. Apoiado em Hall (2011, p.72), esse lugar é específico, concreto, conhecido, familiar, delimitado sendo, portanto, o ponto de práticas sociais específicas que os moldam e os formam e com as quais as identidades estão estreitamente ligadas. É importante observar que a busca pelo reconhecimento do território partiu dos negros que se encontram fora dele, que estão se organizando, buscando seus direitos de retorno à terra e, por se encontrarem periodicamente para discutir a questão estão bastante informados sobre a questão quilombola. Quanto aos que vivem dentro da comunidade Abolição, percebese certo grau de desconhecimento sobre o assunto. Grande parte dos moradores da comunidade Abolição revela, através das entrevistas e das conversas informais, dificuldades para compreender e aceitar o termo e a identidade quilombola. Reconhecem que aquele espaço possui uma história vinculada à escravidão negra, no entanto, a maioria afirma que tal história já não pertence mais àquele território: Essa história já passou e hoje quase nem existe mais negro aqui. Estes compreendem o espaço da comunidade como transitório aos trabalhadores das fazendas e mineradoras. Nesse sentido a questão da identidade e o sentimento de pertença dos antigos moradores, sendo estes moradores na cidade, já não são os mesmos dos atuais moradores da comunidade. Para Hall (2011, p.71) a moldagem e a remoldagem de relações espaço-tempo no interior de diferentes sistemas de representação têm efeitos profundos sobre a forma como as identidades são localizadas e representadas. A preocupação com o território parte dos antigos moradores que residem fora da comunidade. No entanto os poucos moradores que se reconhecem quilombolas, mesmo pouco sabendo o que este termo significa, depositam grande confiança nos moradores de fora que coordenam a Associação e que têm acompanhado todo o processo de reconhecimento da terra, na esperança de possuir um dia um espaço maior do que o que possui atualmente. Tal situação tem gerado conflito com alguns moradores da comunidade que acreditam que esse espaço deve continuar como está e que não há razão para demarcar o território; que, como consequência 86 disso, as maiores fontes de emprego deverão ser retiradas para dar lugar aos negros reterritorializados e enfim, o uso comum da terra. Percebe-se que os moradores mais antigos, estando dentro ou fora da comunidade, esperam ansiosamente pela demarcação, pois eles participam com afinco das reuniões promovidas pela associação ou pelo Incra, e contam com emoção nos olhos e nas falas suas histórias sofridas nas casas dos grandes proprietários. Os mais novos trazem ainda lembranças de infância nas fazendas, correndo por aquele espaço, nos rios ou colhendo frutos. Os jovens que já nasceram nas cidades se empenham no acompanhamento do processo em diálogo com o Incra e com o Ministério Público. De uma forma ou de outra, todos afirmam esperar ansiosamente o retorno à terra para poder plantar, cuidar das crianças e serem enterrados junto com seus outros parentes. Retrato esse processo de retorno ao território com a citação de Hall ao postular que “três coisas constituem o princípio espiritual da unidade de uma nação: a posse em comum de um rico legado de memórias, o desejo de viver em conjunto e a vontade de perpetuar, de uma forma indivisiva, a herança que se recebeu" (RENAN, 1990, p. 19, apud Hall, 2011, p. 58). Na observação e nas conversas com jovens quilombolas e seus pais, percebe-se que a perspectiva ressaltada por Hall é justamente a que move também essa comunidade. A possibilidade de retomar à vida, a dinâmica produtiva e as relações na terra trazem o reacender da memória histórica, adormecida em alguma medida, mas viva. 89 Luiz Inácio Lula da Silva e o parágrafo 2º deste artigo, reforçam como critério de identidade a autoatribuição e autodefinição da própria comunidade. Compreendemos, assim, a identidade negra como resultado dessa autoafirmação do ser diferente frente ao outro, neste caso, ao não negro. Esta diferença é marcada pelo corpo, mas vai além, pois também se refere à autoestima e à valorização como parte de uma coletividade e de sua história. No caso da comunidade Abolição, esta autoestima vincula-se diretamente à afirmação enquanto quilombola, a reafirmação identitária coletiva, que se vincula a um território específico, à história lá construída e que se busca no devir do retorno. O ser quilombola nessa comunidade, contudo, marcado pela fase de transição em que esta se encontra na luta pelo retorno ao território está, também, em processo de gestação ou de reconstrução. 4.2 – AS IDENTIDADES NA COMUNIDADE ABOLIÇÃO A afirmação da identidade nas comunidades negras rurais passa pelo valor da terra e pela especificidade de suas expressões culturais. (MOURA, 2007, p.03) As experiências vinculadas ao sentimento de pertença a este território são visíveis tanto entre os atuais moradores como entre os antigos que ainda se situam nas cidades. Prova disso é o fluxo intenso destes últimos na comunidade. Alguns ainda possuem casas lá, como é o caso de Dona Lúcia, que deixou a sua moradia porque não tinha mais condições financeiras para permanecer na área. Contudo, ela vai periodicamente cuidar de sua casa na beira da rodovia, que tem recebido periodicamente visitas indesejáveis de andarilhos. Apesar desse fluxo, as conversas de terreiro e o trânsito pela comunidade, em companhia dos moradores da cidade, revelam que estes outsiders16 não são totalmente aceitos pela maioria dos moradores da comunidade Abolição, os estabelecidos. No caso da comunidade Abolição houve uma inversão, ou seja, os estabelecidos se tornaram outsiders e vice-versa. Talvez esta distinção se dê pelo fato de grande parte dos moradores que foram se estabelecendo na comunidade não conhecer a história deste lugar ou, conhecendo, desconsideram a história dos negros nesse território. 16 Segundo Norbert Elias (2000) são os “não membros da boa sociedade” ou “os que estão fora dela”, em oposição aos estabelecidos. 90 Dentre os estabelecidos, faz bem afirmar, há aqueles que se mantiveram na terra que compreende o quilombo, com os quais os residentes na cidade mantêm os vínculos de amizade e, em alguns casos, familiares. A experiência de um mundo onde tudo parece evidente supõe o acordo entre as disposições dos agentes e as expectativas ou as exigências imanentes ao mundo no qual estão inseridos. Ora, essa coincidência perfeita dos esquemas práticos e das estruturas objetivas somente se torna possível no caso particular em que os esquemas aplicados ao mundo são o produto do mundo ao qual eles se aplicam, isto é, na experiência ordinária do mundo familiar (BOURDIEU, 1997, p. 179). O trecho de Bourdieu nos remete à suposta harmonia entre os moradores da comunidade Abolição em função do vínculo familiar que perdura historicamente no local, manifestada nas festas da comunidade ou mesmo nas conversas no bar do seu Bieiê. Os residentes negros mais antigos da comunidade, que são em torno de 20 famílias, mantêm o elo entre a história antiga e a atual da comunidade Abolição, que permeia entre os serviços nas fazendas, usinas e exploração de minérios. Não percebo conexão entre suas falas e a África, mas retratam com clareza a dinâmica de um passado não muito longínquo de exploração de mão de obra negra e escravizada na fazenda Abolição e seus arredores. Durante a pesquisa embora os entrevistados não se reportarem à África, demonstram o sentido da africanidade, ou seja, um sentido de pertença a uma herança de negros que moraram ali. Um exemplo disso são os membros da família Chagas que sempre se referem à geração de Dona Lica como a matriarca negra do lugar, que trabalhou e teve todos seus filhos na fazenda Abolição. Figura 15 - Dona Lica (Maria da Piedade das Chagas) e Seu Bento (Benedito das Chagas), dois irmãos mais velhos da Abolição, descendentes da família negra Francisco das Chagas e Elidia Inês da Silva. Foto cedida pelo senhor Luiz Torquato, 2013. 91 Seu Bento (96 anos), irmão de Dona Lica (falecida em 2014 aos 105 anos), é o mais velho que morou na fazenda Abolição e, há pouco mais de dez anos, se encontra morando em Cuiabá por não haver pessoas que cuidassem dele na comunidade. Pouco fala sobre seu passado. Ao esforçar sua memória, lembra alguns fatos quase que desconexos. Quando se insiste com ele, logo justifica que não está compreendendo e vai para seu quartinho no fundo de uma casa onde moram alguns filhos de Dona Lica. Percebe-se que não há uma afinidade étnica entre Seu Bento e os atuais moradores da Abolição e sim com os outsiders. Nesta relação percebe-se uma afinidade calcada no pertencimento familiar e histórico. A casa onde fica seu Bento, no bairro Coxipó em Cuiabá, é sempre movimentada por filhos, netos, bisnetos e outros que fazem parte do mesmo tronco de parentesco, que é a família Chagas. Dona Lica, agora in memoriam, e Seu Bento são as duas grandes referências familiares e, mesmo longe da terra onde nasceram e viveram a maior parte da vida, permanecem como a ‘amálgama’ que une a relação de parte deste grupo não residente na Abolição com a história e a perspectiva do retorno à terra. Dona Maria Sebastiana de Souza (53 anos), uma senhora negra, é uma das moradoras na Lajinha - lugar que é popularmente conhecido como “Cachorro Sentado” – situada à margem da rodovia. Ela nasceu, cresceu e estudou na comunidade de Abolição. Conta que sua mãe trabalhou para a família Muller e que ela fazia comida na fazenda Abolição para levar aos presos no presídio que havia ali perto. Segundo ela sua mãe “nasceu em Capão Grande, Várzea Grande. Meu pai que nasceu e criou aqui. Meu avô também era daqui, a mãe do meu pai também (para recordar o nome)...Alice....Alice Paulina da Silva... Aqui só dá nego mesmo, nego, nego, nego... não tem outra escapatória (Dona Maria Sebastiana de Souza, em entrevista realizada em novembro de 2013). Percebe-se na fala de Dona Maria a perspectiva da ancestralidade e das raízes de sua família na Abolição. Embora sua memória não alcance os tempos mais remotos, ela tem a clareza da ocupação do local por seus ancestrais e o seu vínculo como mão de obra nas antigas fazendas. Ao perguntar se ela era quilombola, a resposta foi afirmativa. E ao fazer a segunda pergunta: o que é ser quilombola, esta me respondeu: [...] ah, era os escravos, né...os índios...que eu já num peguei mais aquela maldade que tinha antigamente né, mas todo mundo falava...que era a terra do ouro, a terra do num sei o que....um monte de coisinha... até aí ainda me lembro muito bem (Dona Maria Sebastiana de Souza, em entrevista realizada em novembro de 2013). 94 Diante dos relatos percebe-se ainda o processo inicial na construção de uma identidade quilombola a partir do pertencimento histórico do lugar, ou seja, o sistema de representação vem sendo construído historicamente, conforme cita Gomes (2003, p.76), a partir do relacionamento dos indivíduos e dos grupos sociais. É válido ressaltar que a maioria se identifica com este espaço, mas não com esta história, não com esta identidade. O sentimento de pertença existe, ainda que muitos tenham nascido em outro estado, de onde vieram para trabalhar nas fazendas ou mineradoras. No entanto grande parte reconhece que há uma história de negros naquele lugar e que ao falar sobre quilombola eles fazem referência aos descendentes dos escravizados do local. Conhecem pouco da história apesar de viverem ali: o pessoal fala muito que aqui viviam uns escravo nessa fazenda, dizem. Essa diferença de percepção e de sentimento entre os que vieram de fora e ali se instalaram por conta da geração de emprego e os que são dali e foram expulsos para a cidade, tem gerado conflitos. A partir do momento em que este grupo se organiza e se fortalece em torno dos aspectos identitários e de pertença àquele território, que historicamente lhes pertence, e iniciam o processo de retorno a ele, estabelece-se a tensão com os que possivelmente haverão de sair. O que ameniza esta tensão é a relação de parentesco que ainda é fortemente mantida entre alguns de dentro com alguns de fora que permitiu conceituá-los [...] como grupos étnicos que existem ou persistem ao longo da história como um ‘tipo organizacional’, segundo processos de exclusão e inclusão que possibilitam definir os limites entre os considerados de dentro ou de fora. Isso sem qualquer referência necessária à preservação de diferenças culturais herdadas que sejam facilmente identificáveis por qualquer observador externo, supostamente produzidas pela manutenção de um pretenso isolamento geográfico e/ou social ao longo do tempo (O’DWYER, 2002, p. 14). Durante a pesquisa chamou-me a atenção o fato de que os que se identificam como quilombola de Abolição, sejam moradores na comunidade ou não, sempre ao se apresentarem falam primeiro a qual família pertencem, vínculo relevante, legitimador do critério de identidade. Fazem questão de se identificarem como pertencimento a uma determinada família que tem história negra naquele espaço. Referem-se aos troncos de parentesco como o maior patrimônio, o que na verdade não deixa de ser, culturalmente dizendo. Alguns elementos marcantes da “identidade primeira”, ou seja, aquela construída nas relações estabelecidas na comunidade quilombola antes de saírem para a cidade, se perderam quando, por exemplo, foram impedidos de manter suas práticas religiosas – após a expulsão do 95 Seu Cesário17. Também a permanência de muitos deles fora da comunidade e as novas relações estabelecidas em meio urbano, mesmo com as constantes visitas aos que permanecem no quilombo, contribuíram para o processo de reformulação da identidade (Araújo, 2008). Esta reformulação, contudo, não significa, necessariamente, um recomeço do ‘zero’, pois muitos dos elementos identitários que marcaram a história e as pessoas desta comunidade ainda estão presentes e vêm sendo constantemente acessados no processo de luta pela demarcação da terra. É justamente neste processo que se evidencia, como conteúdo marcante da identidade dos negros da Abolição, o sentimento de pertença ao território vinculado à ancestralidade. Assinalada pela transitoriedade da história vivida pelos quilombolas e seus descendentes, esta identidade coletiva é marcada pelo processo em que se encontram, com a permanência de alguns e retorno de outros ao território. Assim como a reconquista do território, também está em curso a reconstrução de uma identidade quilombola nesta comunidade. Entre as pessoas negras entrevistadas que se reconhecem como quilombolas, mesmo não tendo ainda toda a clareza do sentido mais profundo do termo, percebeu-se um marcado orgulho e valorização do ser negro/negra e pertencente à história de Abolição. Esta identificação é eminentemente coletiva, ou seja, o autorreconhecimento identitário dos quilombolas da Abolição se dá enquanto pertencentes e herdeiros de uma história e de suas famílias. Esta identidade é decorrência de múltiplos fatores que se somam na dinâmica que a engendra a história desta comunidade. Esse conjunto atribui à Abolição e aos seus herdeiros sua singularidade. 4.3 AS CULTURAS DA COMUNIDADE ABOLIÇÃO A cultura, conforme afirma Geertz, consiste em “Estruturas de significado socialmente estabelecidas” (2012, p. 09). O que Gomes (2003, p.75) conceitualiza como vivências concretas dos sujeitos, a partir das várias formas de conceber o mundo, construídas pelos seres humanos ao longo do processo histórico e social. Refletir sobre a cultura negra, portanto, significa considerar as lógicas simbólicas construídas ao longo da história por um grupo sociocultural específico, no nosso caso, os descendentes de africanos escravizados no Brasil. 17 Líder religioso. Vide depoimento de Dona Georgina, página 64. 96 Desse modo, a cultura negra possibilita aos negros a construção de uma identidade coletiva a partir da consciência cultural, da estética, da corporeidade, musicalidade, religiosidade. Esses elementos revelam aspectos relevantes da sua ancestralidade. Um dos elementos proeminentes na comunidade Abolição é o laço de parentesco que ali se estabelece. Esses laços são reforçados pela visível necessidade que os outsiders apresentam de transitar frequentemente por aquele território. É o sentimento de pertença àquele lugar. O mundo da vida cotidiana, sem dúvida em si mesmo um produto cultural, uma vez que é enquadrado em termos das concepções simbólicas do "fato obstinado" passado de geração a geração, é a cena estabelecida e o objeto dado de nossas ações (GEERTZ, 2012, p.81). É importante observar que a cultura da comunidade Abolição é calcada na relação histórica entre indígenas e paulistas que transitavam frequentemente por esse território no século anterior, conforme citado no capítulo precedente. Esse fator caracteriza os elementos culturais do lugar como multicultural, onde os elementos africanos ou afrobrasileiros possuem pouca visibilidade. Considerando ainda que toda cultura é dinâmica, portanto mutável. A fala de dona Natália (54 anos), professora e moradora na comunidade desde que nasceu, deixa claro essa multiculturalidade na comunidade Abolição. [...] Porque a linha (de energia) ia passar numa região denominado quilombola, então eles foram pesquisar. Constataram que nós não estamos morando num regime quilombola totalmente, mas que tem os traços. Então nós estamos colocado nisso. Só que, tipo assim, você sabe que hoje nós, desde o começo da colonização foi uma mistura, né. Então você sabe né, eu por exemplo sou do negro e meu marido é do índio, né. Então quer dizer, essa mistura que aconteceu há quinhentos anos atrás continua até agora. Então quer dizer, meu irmão casou com uma moça que é Bororo da beira do rio, a mãe dela era Bororo e o pai português. Então tem (filho) negro de cabelo ruim e outro de cabelo liso. Isso continua... é a pessoa que chega, quem vai, quem vem, e aí essa coisa vai indo e você perde. Por exemplo, meus filhos vão ter uma tendência forte do índio, bem forte que tem. E tem também do negro que é meu jeito. Meu marido é índio e branco. E aí meus filhos são essa mistura, né. Aí até confunde a cabeça deles. Ele tem aquilo que é dele está impregnado nele. E isso fica difícil pras criança. Você jamais vai chegar numa comunidade e vai achar um quilombola vivendo como antigamente. Então daí você vai dizer que num acharam ninguém quilombola? Porque desse jeito num tem, você num vai encontrar [...]. (relato de Natália Bom-Despacho Silva Albuquerque, novembro de 2013). As afirmações de Dona Natália revelam traços da dinâmica cultural e comunitária estabelecidas, seja nos últimos anos, seja no passado. Demonstra o reconhecimento, por parte dela, de que desde a constituição genética, resultante dos casamentos interétnicos, a dinâmica das relações, modos de vida etc., muitos elementos deram uma característica peculiar a esta

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