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EDUCAÇÃO
MATEMÁTICA
Aproposta desta obra é “a adoção de uma nova postura
educacional, a busca de um novo paradigma de educa-
ção que substitua o já desgastado ensino-aprendizagem
baseado numa relação obsoleta de causa-efeito”.
Nos primeiros capítulos, o autor faz considerações de
caráter geral, abordando aspectos da cognição, da
natureza da matemática e questões teóricas da educa-
ção. Em seguida, discute temas mais diretamente
ligados à sala de aula e às inovações na prática
docente, propondo reflexões sobre a matemática.
PAPIRUS EDITORA.
ISBN 85-308-0410-4
ÉDUCAÇÃO MATEMÁTICA: DA TEORIA À PRÁTICA
ao É iam
Ubiratan D'Ambrosio
Ubiratan D'Ambrosio
EDUCAÇÃO
MATEMÁTICA
DA TEORIA À PRÁTICA
17º Edição
| (4 (A
hi educação matemática
Capa: Femando Comacohia
Foto de capa: Rennato Testa
Copidesque: Lúcia Helena Lahoz Morelli
Revisão: Cristiane Rufeisen Scanavini
Dados Internacionais.
(Câmara Bi
D'Ambrosio, Ubiratan, 15:
Educação matemática : Da teoria à prática / Ubiratan
D'Ambrosio. - Campinas, SP : Papirus, 1996. — (Coleção
Perspectivas em Educação Matemática)
Catalogação na Publicação (CIP)
ira do Livro, SP, Brasil)
Bibliografia.
1SBN85-308-0410-4
1: Educação 2. Matemática 3. Matemática - Estudo e ensino
4. Matemática - Filosofia 1. Título. Il. Série.
96:2058. CDD-510.7
ea O O COD
Índices para catálogo sistemático:
1. Educação matemática 510.7
2. Matemática : Estudo o ensino 510.7
17! Edição
2009
Proibida a reprodução Total ou parcial
da obra de acordo com a lei 9.610/98.
Editora afiliada à Associação Brasileira
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E-mail: editora O papirus.com.br — www. papirus.com.br
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
O CONHECIMENTO: SUA GERAÇÃO,
SUA ORGANIZAÇÃO INTELECTUAL
E SOCIAL E SUA DIFUSÃO
Origem e aquisição de conhecimento
Realidade e ação
Comunicação
Geração, organização e difusão do conhecimento
Relações intra e interculturais e multiculturalismo
UMA BREVE INTRODUÇÃO À MATEMÁTICA
E À SUA HISTÓRIA
Por que a história da matemática no ensino?
Sobre a natureza da matemática e seu ensino
Um escorço da história da matemática ocidental
até o início da Idade Média
A Idade Média e o Islão
A matemática ocidental a partir dos descobrimentos
e do Renascimento
Do cálculo à industrialização e o século XX
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guir por meio dela um desenvolvimento pleno, e desenvolvimen-
to pleno não significa melhores índices de alfabetização, ou me-
lhores índices econômicos e controle da inflação, ou qualidade
total na produção, ou quaisquer dos vários índices propostos por
filósofos, políticos, economistas e governantes. Tudo se resume
em atingirmos melhor qualidade de vida e maior dignidade da
humanidade como um todo e isso se manifesta no encontro de
cada indivíduo com outros.
Não é difícil conhecermos um indivíduo ou termos um co-
nhecido classificado como rico, classe “A”, bem vestido, com uma
excelente posição e pensarmos: “Coitado, ele teria tudo para ser
feliz, mas é tão infeliz. Coitado!” E também sempre lembramos de
um indivíduo que nos leva a pensar: “Incrível, esse cara tem tantos
problemas, luta com tantas dificuldades, mas parece estar sempre
de bem com a vida.” Assim iniciamos nossas reflexões sobre o que
é qualidade de vida e o que é viver com dignidade, e propomos um
estilo de vida que leva o indivíduo a se sentir em paz consigo
mesmo, a ser capaz de encostar a cabeça no travesseiro, seu melhor
e único confidente, e dormir uma noite trangúila. Se um indivíduo
não conseguir isso, mesmo sabendo muita matemática ou tendo
um grande salário e um emprego solidamente estável, podemos
concluir que algo está errado com ele. Atingir o estado de paz
interior é uma prioridade. Muitos ainda estarão perguntando: “Mas
isso tem alguma relação com educação matemática?” E eu insisto
em dizer; “Tem total relação.”
Mas o bom relacionamento com o nosso travesseiro torna-
se difícil com todos os problemas que enfrentamos no dia-a-dia.
E o relacionamento com o outro? Será que o outro estará tendo
dificuldades em atingir o estado de paz interior? Muitas vezes
vemos que ele está tendo problemas que resultam de dificuldades
materiais, como falta de segurança, falta de emprego, falta de
salário, muitas vezes mesmo falta de casa e de comida. A solida-
riedade com o próximo é a primeira manifestação de nos sentir-
10
mos parte de uma sociedade. A paz social será um estado em que
essas situações não ocorrem. E com certeza vem novamente a
pergunta: “Mas a matemática tem relação com isso?” Não me
cabe outra resposta àqueles matemáticos que não percebem como
tudo isso se relaciona: “Pense e entenda um pouco da história da
humanidade e você verá o quanto as coisas estão interligadas.”
E lembro aquele relato do médico que perguntou para um
indígena que estava definhando, morrendo de tristeza, o que
havia com ele, por que se sentia tão triste a ponto de estar mor-
rendo e ele então apontou para uma árvore que estava cortada
por uma serra. Sentimos aí o significado da paz ambiental. Tam-
bém poucos entendem qual a relação disso com a Matemática,
que é sempre pensada como aplicada ao desenvolvimento e ao
progresso. E mais uma vez eu respondo: “A ciência moderna, que
repousa em grande parte na matemática, nos dá instrumentais
notáveis para um bom relacionamento com a natureza, mas tam-
bém poderosos instrumentos de destruição, e portanto a morte do
indígena está diretamente relacionada à matemática.”
Essas dimensões múltiplas da paz: paz interior, paz social,
paz ambiental, que têm como consequência a paz militar, são os
objetivos primeiros de qualquer sistema educacional, são as úni-
cas justificativas de qualquer esforço para o avanço científico e
tecnológico, e deveriam ser o substrato de todo discurso político.
Esse deve ser o sonho do ser humano. Essa é a essência de
ser humano, É o ser [substantivo] humano procurando ser [ver-
bo] humano. Repito o que disseram dois eminentes matemáticos,
Albert Einstein e Bertrand Russell, no Manifesto Pugwash de
1955: “Esqueçam-se de tudo e lembrem-se da humanidade.” Pro-
curo, nas minhas propostas de educação matemática, seguir os
ensinamentos desses dois grandes mestres, dos quais aprendi
muito de matemática, mas sobretudo de humanidade.
Minha proposta é fazer uma educação para a paz e em
particular uma educação matemática para a paz.
nu
Muitos continuaram intrigados: “Mas como relacionar tri-
nômio de 2º grau com paz?” Talvez esses mesmos indivíduos
costumem ensinar trinômio de 2º grau dando como exemplo a
trajetória de um projétil de canhão. Mas estou quase certo de que
não dizem, sequer sugerem, que aquele belíssimo instrumental
matemático, que é o trinômio de 2º grau, é o que dá a certos
indivíduos — profissionais artilheiros que provavelmente foram
os melhores da sua turma em matemática — a capacidade de
disparar uma bomba mortífera de um canhão para atingir uma
população de gente, de seres humanos, carne e osso, emoções e
desejos como você, e matá-los, destruir suas casas e templos,
destruir árvores e animais que estejam por perto, poluir qualquer
lagoa ou rio que esteja nos arredores. A mensagem implícita acaba
sendo: aprenda bem o trinômio do 2º grau e você será capaz de
fazer isso. Não é sem razão que quando fiz o serviço militar e
preenchi a ficha de inscrição no CPOR fui mandado para a arti-
lharia. Claro, fazia o curso de matemática e portanto tinha sufi-
ciente base teórica para apontar canhões sobre populações. Se eu
não fosse aluno do curso de matemática teria sido encaminhado
para a infantaria: aprenderia a matar um só de cada vez!
Claro, meus opositores dirão, como já disseram: “Mas isso
é um discurso demagógico. Essa destruição horrível só se fará
quando necessário. E é importante que nossos jovens estejam
preparados para o necessário.” E meus colegas conteudistas di-
zem, em última instância, o seguinte: “ É necessário conhecer bem
os instrumentais do inimigo para poder derrotá-lo.” Milhões
foram nessa conversa durante toda a história da humanidade e
em particular durante a Guerra Fria, com perdas materiais e
morais para ambas as partes em conflito. Seria fundamental lem-
brar que os interessados nesse estado de coisas justificam dizendo
ser isso necessário porque o alvo da nossa bomba destruidora é
um indivíduo que não professa o nosso credo religioso, que não
é do nosso partido político, que não segue nosso modelo econô-
mico de propriedade e produção, que não tem nossa cor de pele
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ou nossa língua, enfim o alvo de nossa bomba destruidora é o
indivíduo que é diferente. Tem sido e continua sendo esse o
conceito de necessário nas relações sociais e políticas.
O trinômio de 2º grau serviu de gancho. A importância tão
feia que destacamos de uma coisa tão linda como o trinômio do
2º grau é interessante ser comentada. Não se propõe eliminar o
trinômio de 2º grau dos programas, mas sim que se use um tempo
em mostrar, criticamente, as coisas feias que se faz com ele e
destacar as coisas lindas que se pode fazer com ele. Um exemplo
de alguém que foi capaz de fazer da matemática um veículo de
ensinamentos superiores de moral, de amor e de respeito pelo
diferente foi Malba Tahan.
Há efetivamente uma moralidade associada ao conheci-
mento e em particular ao conhecimento matemático. Por que
educação e educação matemática e o próprio fazer matemático se
não percebemos como nossa prática pode ajudar a construir uma
humanidade ancorada em respeito, solidariedade e cooperação?
A paz total depende essencialmente de cada indivíduo co-
nhecer-se e integrar-se na sua sociedade, na humanidade, na
natureza e no cosmos. Ao longo da existência de cada um de nós
pode-se aprender matemática, mas não se pode perder o conhe-
cimento de si próprio e criar barreiras entre indivíduos e os
outros, entre indivíduos e a sociedade, e gerar hábitos de descon-
fiança do outro, de descrença na sociedade, de desrespeito e de
ignorância pela humanidade que é uma só, pela natureza que é
comum a todos e pelo universo como um todo.
Vejo-me sim como um educador que tem matemática como
sua área de competência e seu instrumento de ação, mas não como
um matemático que utiliza a educação para a divulgação de suas
habilidades e de suas competências.
Fazendo um paralelo, não de todo descabido, com o ensino
religioso, vejo-me mais próximo àqueles que professam e prati-
13
cam o amor à humanidade e à natureza que àqueles que profes-
sam e praticam uma catequese. Minha ciência e meu conhecimen-
to estão subordinados ao meu humanismo. Como educador ma-
temático procuro utilizar aquilo que aprendi como matemático
para realizar minha missão de educador. Divulgar essa mensa-
gem é o meu propósito como formador de formadores.
Em termos muito claros e diretos: o aluno émais importante
que programas e conteúdos. Vejo educação como a estratégia
mais importante para levar o indivíduo a estar em paz consigo
mesmo e com o seu entorno social, cultural e natural e a se
localizar numa realidade cósmica.
O livro está organizado em seis capítulos. Nos três primeiros
farei considerações de caráter geral, abordando aspectos da cogni-
ção [Capítulo 1: O conhecimento: Sua geração, sua organização intelec-
tual e social e sua difusão], da natureza da matemática [Capítulo 2:
Uma breve introdução à matemática e à sua história) e aspectos teóricos
de educação [Capítulo 3: Educação, currículo e avaliação]. Nos três
outros abordarei aspectos mais diretamente ligados à sala de aula.
Em primeiro lugar as inovações na prática docente [Capítulo 4: A
pesquisa em educação matemática e um novo papel para o professor].
Depois propondo reflexões sobre o que constitui o objeto de nossos
ensinamentos, a matemática [Capítulo 5: A prática na sala de aula e
Capítulo 6: Globalização, multiculturalismo e etnomatemática).
Muito do que penso sobre educação tem influência do que
li em livros que normalmente não se encontram nas bibliotecas de
educação. Destaco em especial J.D. Salinger e o seu Apanhador no
campo de centeio e Zen e a arte de manutenção de motocicletas, de
Robert Pirsig. E naturalmente os clássicos O jovem Tórless, de
Robert Musil, e O jogo das contas de vidro, de Herman Hesse. E mais
recentemente o importantíssimo Um antropólogo em Marte, de
Oliver Sacks.
Uma reflexão sobre esses livros, juntamente com Alice no
país das maravilhas, de Lewis Carroll, O mágico de Oz, de Joseph
14
e ao longo deste meu texto o leitor vá percebendo por que digo
E que esses livros têm relação direta com educação e em especial
“com educação matemática.
Além desses livros menos comuns em educação matemática,
* há inúmeras referências da área. Não me preocupei em fornecer
a grande lista bibliográfica, mas seria interessante que esses
— textos fossem conhecidos e utilizados como leitura complementar
este livro. Muitas das referências poderiam ser propostas aos
junos para um ensaio-resenha, uma modalidade muito interes-
“sante de trabalhos monográficos. Também não evitei referências
* em outras línguas. Uma sugestão com relação aos textos em língua
* estrangeira é que alguns sejam considerados para tradução.
15
ciclo vital:
««—> REALIDADE informa INDIVÍDUO que
processa e executa uma AÇÃO que modifica a
REALIDADE que informa INDIVÍDUO —> ...
E isso permite a qualquer ser vivo interagir com seu meio
ambiente. 3
O Realidade e ação
Essa ação se dá mediante o processamento de informações
captadas da realidade, considerada na sua totalidade como um
complexo de fatos naturais e artificiais, por um processador que
constitui um verdadeiro complexo cibernético, com uma multi-
plicidade de sensores não-dicotômicos, identificados com instin-
to, memória, reflexos, emoções, fantasia, intuição e outros ele-
mentos que ainda mal podemos imaginar. Como observa Oliver
Sacks referindo-se em especial à percepção visual, mas que se
aplica a todos os sentidos:
Atingimos a constância perceptiva — a correlação de todas
as diferentes aparências, as modificações dos objetos —
muito cedo, nos primeiros meses de vida. Trata-se de uma
enorme tarefa de aprendizado, mas que é alcançada tão
suavemente, tão inconscientemente que sua imensa com-
plexidade mal é percebida (embora seja uma conquista a
que nem mesmo os maiores supercomputadores conse-
guem começar a fazer face)?
3. Oliver Sacks, Lim antropólogo em Marte. São Paulo, C. nhii
FR 8% aulo, Companhia das Letras,
20
O processamento dessa informação (input) tem como resul-
do (output) estratégias para ação. Há evidência que essas ações
são produtos da inteligência, resultado de estratégias. Em outros
os, o homem executa seu ciclo vital não apenas pela motiva-
o animal de sobrevivência, mas subordina esse ciclo à transcen-
ência, por meio da consciência do fazer / saber, isto é, faz porque
sabendo e sabe por estar fazendo. E isso tem seu efeito na
idade, criando novas interpretações e utilizações da realidade
al e artificial, modificando-a pela introdução de novos fatos,
efatos e mentefatos. Há uma incoerência nas denominações con-
eto e abstrato, pois repousam no modo de captar esses fatos,
anto ao falarmos em artefato e mentefato estamos pondo
na geração dos fatos.
A consciência é o impulsionador da ação do homem em
eção à sua sobrevivência e transcendência, ao seu saber fazen-
doe fazer sabendo. O conhecimento é o gerador do saber, que vai,
or sua vez, ser decisivo para a ação, e por conseguinte é no
portamento, na prática, no fazer que se avalia, redefine e
onstrói o conhecimento. O processo de aquisição do conheci-
ento é, portanto, essa relação dialética saber /fazer, impulsiona-
“camos, como as mais reconhecidas e interpretadas nas teorias do
“conhecimento, a sensorial, a intuitiva, a emocional e a racional. Numa
“mento religioso é favorecido pelas dimensões intuitiva e emocio-
” mal, enquanto o conhecimento científico é favorecido pelo racional,
e o emocional prevalece nas artes. Naturalmente essas dimensões
não são dicotomizadas nem hierarquizadas, mas são complemen-
— tares, Desse modo, não há interrupção, não há dicotomia, entre o
4. Para uma discussão mais ampla sobre todo este capítulo ver meu livro Da
realidade à ação. Reflexões sobre educação (e) matemática. São Paulo, Summus,
1988.
21
saber e o fazer, não há priorização entre um e outro, nem há
prevalência nas várias dimensões do processo. Tudo se comple-
menta num todo que é o comportamento e que tem como resultado
9 conhecimento. Consequentemente, as dicotomias corpo/mente,
matéria /espírito, manual /intelectual e outras tantas que se im
pregnaram no mundo moderno são meras artificialidades.
O presente, como interface entre passado e futuro, manifes-
ta-se pela ação. O presente está assim identificado com o compor-
tamento, tem a mesma dinâmica do comportamento, isto é, alimen-
ta-se do passado, é resultado da história do indivíduo e da coletivi-
dade, de conhecimentos anteriores, individuais e coletivos,
condicionados pela projeção do indivíduo no futuro. Tudo baseado
em informação proporcionada pela realidade, portanto pelo pre-
sente. Na realidade se armazenam todos os fatos passados, feitos e
completados, que informam o[s) indivíduo|s). Essas informações
são processadas pelos] indivíduo[s] e resultam em estratégias de
ação que dão origem a novos fatos (artefatos e/ou mentefatos) que
são incorporados à realidade, obviamente a modificando, e arma-
zenam-se na coleção de fatos e eventos que constituem a realidade
em incessante modificação. O passado assim se projeta, pela inter-
mediação de indivíduos, no futuro. Mais uma vez a dicotomia
passado e futuro se vê como artificialidade, pois o instante que vem
do passado e se projeta no futuro adquire assim o que seria uma
transdimensionalidade que poderíamos pensar como uma dobra
(um pl no sentido das catástrofes de René Thom). Esse repensar a
dimensionalidade do instante dá à vida, incluindo os “instantes”
do nascimento e da morte, um caráter de continuidade, de fusão do
passado e do futuro no instante. Daí reconhecermos que não pode
haver um presente congelado, como não há uma ação estática,
como não há comportamento sem uma retroalimentação instantá-
nea (avaliação) que resulta de seu efeito. Assim podemos ver o
comportamento como o elo entre a realidade, que informa, e a ação,
que modifica a realidade.
A ação gera conhecimento, gera a capacidade de explicar,
lidar, de manejar, de entender a realidade, gera o matema. Essa
cidade transmite-se e acumula-se horizontalmente, no conví-
'com outros, contemporâneos, por meio de comunicações, e
ticalmente, de cada indivíduo para si mesmo (memória) e de
geração para as próximas gerações (memória histórica). Note
através do que chamamos memória, que é da mesma nature-
a que os mecanismos de informação associados aos sentidos, à
mação genética e aos mecanismos emocionais, as experiên-
vividas por um indivíduo no passado incorporam-se à reali-
de e informam esse indivíduo da mesma maneira que os de-
fatos da realidade.
O indivíduo não é só. Há bilhões de outros indivíduos da
ma espécie com o mesmo ciclo vital: ... —> REALIDADE
nforma INDIVÍDUO que processa e executa uma AÇÃO que
jodifica a REALIDADE que informa INDIVÍDUO —> .... e
ões de indivíduos de outras espécies com comportamento
ente contribuindo uma parcela para modificar a realidade. O
divíduo está inserido numa realidade cósmica como um elo
e toda uma história desde o início dos tempos e das coisas,
um bigue-bangue ou equivalente, até o momento, o agora e aqui.
fodas as experiências do passado, reconhecidas e identificadas
ou não, constituem a realidade na sua totalidade e determinam
um aspecto do comportamento de cada indivíduo. Sua ação
* resulta do processamento de informações recuperadas. Essas
“incluem as experiências de cada indivíduo e as experiências na
“sua totalidade, incluindo aquelas da totalidade de indivíduos
“que viveram, a grande maioria delas irrecuperáveis. A recupera-
* ção dessas experiências (memória individual, memória cultural,
— memória genética) constitui um dos desafios da psicanálise, da
istória e de inúmeras outras ciências. Constitui inclusive o
* fundamento de certos modos de explicação (artes e religiões).
* Numa dualidade temporal, esses mesmos aspectos de compor-
23
tamento manifestam-se nas estratégias de ação que resultarão
em novos fatos — artefatos e mentefatos — que se darão no
futuro e que, uma vez executados, se incorporarão à realidade.
As estratégias de ação são motivadas pela projeção do indivíduo
no futuro (suas vontades, suas ambições, suas motivações e
tantos outros fatores), tanto no futuro imediato quanto no futuro
longínquo, até o que poderia ser um momento final. Esse é o
sentido da transcendência a que me referi acima.
Ú Comunicação
O processo de gerar conhecimento como ação é enriquecido
pelo intercâmbio com outros, imersos no mesmo processo, por
meio do que chamamos comunicação. A descoberta do outro e de
outros, presencial ou historicamente, é essencial para o fenômeno
vida. Embora os mecanismos de captar informação e de processar
essa informação, definindo estratégias de ação, sejam absoluta-
mente individuais e mantenham-se como tal, eles são enriqueci-
dos pelo intercâmbio e pela comunicação, que efetivamente são
um pacto (contrato) entre indivíduos. O estabelecimento desse
pacto é um fenômeno essencial para a vida. Em particular, na
espécie humana isso é o que permite definir estratégias para ação
comum. Isso não pressupõe a eliminação da capacidade de ação
própria de cada indivíduo, inerente à sua vontade (livre-arbítrio),
mas pode inibir certas ações, isto é, a ação comum que resulta da
comunicação pode ser interpretada como uma in-ação resultante do
pacto. Assim, por meio da comunicação podem se originar ações
desejáveis a ambos e se inibir ações, isto é, geram-se in-ações, não
desejáveis para uma ou para ambas as partes. Desse modo torna-se
possível aquilo que identificamos com o conviver. Insisto no fato
de esses mecanismos inibidores não serem transformadores dos
mecanismos próprios a cada indivíduo de captar e de proces-
sar informações. Cada indivíduo tem esses mecanismos e é isso
24
* que mantém a individualidade, a identidade de cada ser. Ne-
nhum é igual a outro na sua capacidade de captar e processar
* informações de uma mesma realidade.
Facilmente se generalizam essas noções para o grupo, para
"a comunidade e para um povo, por intermédio da comunicação
social e de um pacto social que, insisto, leva em conta a capacidade
de cada indivíduo e não elimina a vontade própria de cada
indivíduo, isto é, seu livre-arbítrio. O conhecimento gerado pela
interação comum, resultante da comunicação social, será um
complexo de códigos e de símbolos que são organizados intelectual
e socialmente, constituindo aquilo que se chama cultura. Cultura
é o substrato dos conhecimentos, dos saberes /fazeres e do com-
portamento resultante, compartilhado por um grupo, comunida-
| de ou povo. Cultura é o que vai permitir a vida em sociedade.
Quando sociedades (e portanto sistemas culturais) encon-
tram-se e expõem-se mutuamente, elas estão sujeitas a uma dinâ-
mica de interação que produz um comportamento intercultural
que se manifesta em grupos de indivíduos, em comunidades, em
tribos e nas sociedades como um todo. A interculturalidade vem
se intensificando ao longo da história da humanidade.
Particularmente importante pelas consegiências que dela
resultaram foi a decorrente do período chamado “grandes nave-
Bações”, a partir da segunda metade do século XV e que resultou
numa globalização da visão de mundo e da ação política. Novos
códigos e símbolos foram conhecidos, novas culturas foram iden-
tificadas e alguns códigos e símbolos universalizaram-se, afetan-
do profundamente as maneiras de explicar, de conhecer, de con-
Viver com e de manejar a realidade natural, social e cultural. Essas
maneiras são próprias a cada uma das sociedades que se encon-
5. O importante livro de Luca Cavali-Sforza et al. History and geography of
human behavior (Princeton, Princeton University Press, 1994) é uma
tentativa de mapear a evolução cultural da espécie. É uma obra seminal.
25
desenvolvidas e utilizadas num contexto específico de sua época.
Essa visão crítica da matemática através de sua história não im-
plica necessariamente o domínio das teorias e práticas que esta-
mos analisando historicamente. Historiadores da matemática po-
derão conhecer essas teorias e técnicas e inclusive levá-las adiante
e aprofundá-las. Um filatelista pode conhecer os detalhes da
emissão de selos de uma certa época e um musicólogo pode
dominar as técnicas da “viola da gamba”. Mas, assim como a
correspondência não se moverá com os selos de antanho, nem um
baile se animará ao som de uma “viola da gamba”, a sociedade
moderna não será operacional com um instrumental intelectual
obsoleto. Necessitamos da matemática de hoje.
Conhecer, historicamente, pontos altos da matemática de
ontem poderá, na melhor das hipóteses, e de fato faz isso, orientar
no aprendizado e no desenvolvimento da matemática de hoje.
Mas o conhecer teorias e práticas que ontem foram criadas e que
serviram para resolver os problemas de ontem pouco ajuda nos
problemas de hoje. Por que ensiná-las?
Faz-me lembrar um poema de Dschuang Dsi, completado e
divulgado por René Thom:
Havia um homem
que aprendeu a matar dragões e deu tudo que possuía
para se aperfeiçoar na arte.
Depois de três anos
ele se achava perfeitamente preparado mas,
que frustração, não encontrou
oportunidades de praticar sua habilidade.
(Dschuang Dsi)
Como resultado ele resolveu
ensinar como matar dragões.
(René Thom)
30
D Sobre a natureza da matemática e seu ensino
É muito difícil motivar com fatos e situações do mundo
al uma ciência que foi criada e desenvolvida em outros tempos
virtude dos problemas de então, de uma realidade, de percep-
es, necessidades e urgências que nos são estranhas. Do ponto
vista de motivação contextualizada, a matemática que se ensi-
hoje nas escolas é morta. Poderia ser tratada como um fato
stórico.
Muitos dirão: mas a matemática está viva, está-se produzin-
mais matemática nestes últimos 20 anos do que em toda a
tória da humanidade. Sem dúvida. Mas essa produção é pro-
to de uma dinâmica interna da ciência e da tecnologia e da
ópria matemática. Naturalmente muito intensa, mas não como
e primária de motivação. Interessa à criança, ao jovem e ao
endiz em geral aquilo que tem apelo às suas percepções mate-
e intelectuais mais imediatas. Por isso é que proponho um
oque ligado a situações mais imediatas.
; A última sentença deve ter causado estranheza a muitos.
Atenção! Quando digo “mais imediatas” não estou me referindo
enas ao utilitário. Mas, igualmente, e acho isso muito impor-
te, ao desafio intelectual. Mas, desafio intelectual para o inte-
o de hoje — que para alguns pode até significar uma visão do
passado.
, Para um aprendiz com vistas numa tarefa, um enfoque
* imediatista é essencial. Mas obviamente à educação matemática
“não se esgota aí. É quando se apela para o histórico, cultural, que
provavelmente não interessará ao aprendiz com objetivos mais
* imediatos. Assim como a matemática utilitária não interessará ao
aprendiz com um desafio intelectual. Está claro que é fundamen-
“tal um equilíbrio entre esses dois aspectos. Esse equilíbrio não
“Significa metade de um e metade do outro para todos os alunos.
31
|
Será, sim, a resposta ao tipo de aluno — o indivíduo com quem
estamos lidando. É possível individualizar a instrução e essa é
uma das melhores estratégias para recuperar a importância e o
interesse na educação matemática.
Tenta-se justificar a matemática do passado como servindo
de base para a matemática de hoje. De fato, conhecimento é
cumulativo e alguma coisa de um contexto serve para outros
contextos. Portanto, algo da matemática do passado serve hoje.
Mas muito pouco, e mesmo assim quando em linguagem e codi-
ficação modernas. Argumentos com base em teorias de aprendi-
zagem ultrapassadas, que apóiam a natureza linearmente cumu-
lativa do conhecimento, amparados numa história distorcida e
numa epistemologia construída para apoiar essa história, não
bastam para justificar programas estruturados com base única e
exclusiva na tradição, como são normalmente organizados.
Está claro que ao pensar a álgebra, al-Kwarizmi estava
motivado pela necessidade da sociedade islâmica de pôr em
prática os preceitos do Corão que se referem à distribuição de
heranças. Dificilmente se motivará um jovem de hoje da mesma
maneira que al-Kwarizmi foi motivado para criar sua álgebra.
Um bom exercício para o docente é preparar uma justificativa
para cada um dos tópicos do programa — mas não vale dar
justificativas internalistas, isto é, do tipo “progressões são
importantes para entender logaritmos”. Pede-se justificativas
contextualizadas no mundo de hoje e do futuro.
Para falar de história, não se pode deixar de ter uma visão
de presente e de futuro. Além de TV — noticiários e telenovelas
— é fundamental a leitura de diários e semanários, além de coisas
como o Almanaque Abril e similares, e best sellers, como Estrada do
futuro de Bill Gates.
O grande desafio é desenvolver um programa dinâmico,
apresentando a ciência de hoje relacionada a problemas de hoje e
32
“ao interesse dos alunos. Não é difícil dar uma fundamentação
teórica para a necessidade de um tal enfoque. Mas como levar isso
“à prática? Que tipo de professor será capaz de conduzir um
currículo dinâmico? Isso será discutido mais adiante. Vamos ago-
| a fazer uma breve revisão da história.
o Um escorço da história da matemática ocidental
| até o início da Idade Média
Embora a história deva ser pensada como um todo, para
facilitar a exposição é conveniente uma periodização. No caso espe-
cífico da história da matemática ocidental, a periodização que pro-
ponho é:1. A pré-história; 2. Antiguidade Mediterrânea; 3. Grécia e
: 4. A Idade Média e o Islão; 5. Os descobrimentos e o Renasci-
to; 6. Colônias, impérios e a industrialização; 7. O século XX.
E A história da espécie homo sapiens sapiens é traçada a homi-
| nídeos que se sabe terem existido no coração da África, perto do
“Lago Victoria, há cerca de 4.500.000 anos." Esses hominídeos,
australopitecus e homo erectus, iniciaram então uma longa excursão
por todo o planeta e hoje identificamos a espécie homo sapiens
sapiens como tendo ocupado todo o planeta desde cerca de 100.000
| anos, já dominando o fogo e a linguagem. Em todo esse período
* aespécie vem acumulando conhecimento, naturalmente em dife-
* rentes direções, com objetivos distintos e com estilos muito dife-
renciados. Foram se definindo assim modalidades culturais dis-
tintas. Grupos de indivíduos compartilhando uma mesma moda-
| lidade foram se estruturando em sociedades e dando origem a
| grandes civilizações, que surgiram em diversas regiões do plane-
| tadesde cerca de 10.000 anos.
1. Uma boa síntese dessa história se encontra em Pierre Weil, Ubiratan
D' Ambrosio e Roberto Crema: Rumo à nova transdisciplinaridade. Sistemas
abertos de conhecimento. São Paulo, Summus, 1993.
33
Dentre as várias civilizações que identificamos no passado,
tem particular interesse para nós aquelas que floresceram nos
altiplanos do México e nos Andes (em especial astecas, maias e
incas), nas planícies da América do Norte e na Amazônia, na
África subequatorial, nos vales do Indus, do Ganges e do Yang-
Tsé, e na bacia do Mediterrâneo. Embora se deva reconhecer
importantes desenvolvimentos matemáticos nessas civilizações,
não vamos estudá-las neste livro.”
Interessam-nos por razões óbvias as civilizações da bacia
do Mediterrâneo, que compreendem as civilizações do Egito, da
Babilônia, da Judéia, da Grécia e de Roma, todas intimamente
inter-relacionadas, que deram origem à civilização moderna, que
hoje é efetivamente uma civilização planetária.
A civilização egípcia floresceu cerca de 5.000 AP (antes do
presente), com base de sustentação na agricultura nas margens do
Nilo, que se fertilizavam periodicamente. A sociedade egípcia,
organizada em torno desse recurso, estava subordinada a uma
ordem hierárquica encabeçada por um faraó legitimado por di-
vindades identificadas com os astros, obviamente associadas à
regularidade do Nilo. A distribuição de recursos e a repartição
das terras férteis deram origem a formas muito especiais de
matemática.
Vemos assim numa vertente uma aritmética de divisão de
recursos, desenvolvendo principalmente frações, e em outra uma
geometria no estilo do que hoje chamamos agrimensura, tendo
como motivação a alocação de terras aráveis. E, naturalmente,
uma matemática associada às técnicas de construção, na verdade
uma mecânica de construções. A matemática, assim como todo o
conhecimento egípcio, chegou a nós por meio dos escritos em
papirus, mediante hieróglifos. Desses documentos com interesse
2. Veja o excelente livro de George Gheverghese Joseph. The crest of the
peacock: Non-european roots of mathematics. Londres, Penguin, 1992.
34
+
“matemático os mais conhecidos são de ca (abreviação de circa,
“usada quando não temos datas precisas) 2.000 a.C. o Papiro
* Rhind, no Museu Britânico, e o Papiro de Moscou. Também são
portantes os relatos de viajantes, dentre os quais se destaca o
* grego Heródoto (ca 480-425 a.C), considerado o “pai da história”.
Seguidores de um deus único e abstrato, que rejeitaram a
lolatria que predominava no Egito, emigraram sob a liderança
e Moisés, há cerca de 4.000 AP e localizaram-se no território
de é hoje o estado de Israel. Ali, em conflito com diversos reinos
ilônicos, fundaram o Reino da Judéia. A história da fundação
se reino e do povo judeu está no livro de maior influência na
“história da humanidade, a Bíblia. Muitas das práticas matemáticas
'dos judeus são semelhantes às dos egípcios.
i A Babilônia, que resultou de antigas civilizações, das quais
são mais conhecidas as dos caldeus, dos assírios, dos fenícios,
oresceu na região denominada Mesopotâmia, entre os rios Ti-
gres e Eufrates, e era baseada no pastoreio. Necessidades óbvias
“das atividades de pastoreio levaram a um grande desenvolvi-
mento de aritmética de contagem e de cálculos astronômicos. O
* conhecimento matemático dos babilônios está registrado em ta-
* bletes de argila nos quais são impressas marcas na forma de
cunha, daí serem chamados caracteres cuneiformes.
Na margem superior do Mediterrâneo, povos emigrados
* do Norte desenvolveram a importante civilização dos gregos,
* organizados em inúmeros reinos. Eles praticaram uma matemáti-
ca utilitária, semelhante àquela dos egípcios, mas ao mesmo tem-
* po desenvolveram um pensamento abstrato, com objetivos reli-
giosos e rituais. Começa assim um modelo de explicações que vai
dar origem às ciências, à filosofia e à matemática abstrata. Émuito
importante notar que duas formas de matemática, uma que pode-
ríamos chamar matemática utilitária e outra, matemática abstrata
(ou teórica ou de explicações), conviviam e são perfeitamente
distinguíveis no mundo grego. Essa convivência de duas modali-
É
35
nhecido como guia espiritual dessa nova religião. A Igreja passou
então a exercer um poder paralelo no Império Romano, por meio
do assessoramento direto ao imperador para questões temporais.
A Igreja Católica organizou-se com uma estrutura muito seme-
lhante à do Império, sendo o papa escolhido por um conselho de
cardeais, muito no estilo do imperador. O poder temporal e o
poder religioso passaram a se complementar e em pouco tempo
se deu uma subordinação do poder temporal ao religioso.
O Aldade Média e o Islão
À cristianização se fez sem uma fundamentação filosófica
adequada. Era muito fraco o nível intelectual dos cristãos quando
comparado ao dos filósofos pagãos. O primeiro grande filósofo
do cristianismo foi Santo Agostinho (354-430), que escreveu entre
413 e 426 uma grande obra filosófica, A cidade de Deus. Inicia-se
assim a chamada Idade Média, marcada intelectualmente pelo
objetivo maior de se construir as bases filosóficas para o cristia-
nismo. As academias gregas pouco podiam ajudar nessa tarefa.
Particularmente a matemática abstrata, filosófica, em nada podia
contribuir para a construção teórica da doutrina cristã. Até pelo
contrário, pois Proclus alertou para a fraqueza teórica do cristia-
nismo, dando como exemplo do que deveria ser uma verdadeira
filosofia Os elementos de Euclides. Alexandria Teon (330-405),
importante comentarista de Ptolomeu, pode ser considerado o
último grande matemático da Antiguidade. Sua filha Hipatia (ca
370-415), também matemática, escreveu comentários sobre Apo-
lonio. Evidenciando o antagonismo dos cristãos com a filosofia e
a matemática gregas, Hipatia foi morta pelos cristãos e a bibliote-
ca de Alexandria, queimada. O interesse na filosofia grega dimi-
nuiu rapidamente e mesmo a língua grega caiu em desuso.
Os intelectuais cristãos criaram seu próprio espaço, como
alternativa às academias gregas, para o importante exercício inte-
40
Jectual de construir uma filosofia. Foram os mosteiros, que se
estruturaram segundo os preceitos dados por São Bento (480-
547). Nos mosteiros desenvolveu-se o pensamento da Idade Mé-
“dia direcionado à construção de uma teologia cristã. Não havia
“espaço para a matemática filosófica de origem grega.
Ê A matemática utilitária progrediu muito nessa época entre
A o povo eos profissionais. Os algarismos romanos serviam apenas
; representação. Mas foram desenvolvidos interessantes siste-
“mas de contagem, utilizando pedras (calculi), ábacos e mãos. O
“Venerável Beda (673-735) escreveu um tratado sobre operações
“com as mãos. Também traduziu parte de Os elementos, trabalho
“que não teve qualquer repercussão. Modelos geométricos para
“construções de igrejas, que deram origem ao gótico, e para a
pintura religiosa, que deram origem à perspectiva, foram muito
“desenvolvidos. Esses foram essencialmente precursores do que
“viria a ser chamado as geometrias não-euclidianas.
Enquanto a Europa cristianizada procurava uma funda-
“mentação filosófica para o cristianismo, nas costas ao sul do
Mediterrâneo, norte da África e Oriente Médio, o descontenta-
mento com a dominação romana era crescente. Não só com rela-
ção ao domínio político e econômico, mas com O cristianismo
desapareceu a tolerância religiosa, que havia permitido a prolife-
ração do judaísmo na região após a dispersão do Reino da Judéia.
Embora Alá (que na língua hebraica é Jeová) fosse o mesmo Deus
dos cristãos, a religião de Cristo era uma imposição romana
inaceitável e arrogante. Maomé (ca 570-632), durante uma viagem
de Medina a Meca, retirou-se para prece nas montanhas — uma
prática muito comum na região — e aí recebeu diretamente de Alá
— ou Jeová ou Deus — a revelação de que havia chegado o
; momento da redenção de seu povo. Essa revelação se deu na
* forma de um livro, O Corão, que é um relato religioso da tradição
bíblica, inclusive fazendo referência a Jesus, mas atribuindo a
* Maomé a qualidade de profeta e a responsabilidade de verdadei-
ro redentor do povo de Alá.
41
O Corão, ao mesmo tempo que dá preceitos para restabele-
cer a sociedade que estava sob dominação romana havia cerca de
800 anos, estabelece regras de propriedade e de herança, assim
como novos preceitos de comportamento político e moral e práti-
cas de saúde, que foram rigidamente codificadas. Religiosamen-.
te, o essencial da tradição judaica era mantido. Filosoficamente, a
possibilidade oferecida pelos gregos era enorme. Estes vinham
trocando influências com o judaísmo há vários séculos. Assim, a
cultura grega teve especial destaque na nova ordem social e
filosófica que se implantou.
A expansão do Islão, que significa “submissão à vontade de
Alá”, foi fulminante. Os muçulmanos, o que significa “verdadeiros
crentes”, conquistaram todo o norte da África, entraram na Penín-
sula Ibérica e se dirigiram para Roma. Mas foram barrados em 732
nos Pirineus pelo rei dos francos, Carlos Martelo (ca 688-741). Em
800, seu neto foi coroado imperador dos romanos como Carlos
Magno (ca 742-814). Como grande salvador do cristianismo, ele foi
coroado pessoalmente pelo papa, iniciando-se assim uma tradição
de poder do Vaticano que vem até os tempos modernos.
Na sua expansão para o Oeste, os muçulmanos ocuparam
toda a região que vai desde o Bósforo e o Mar Negro até a Índia e
a China. Logo o Império Islâmico ou Muçulmano se organizou
em duas grandes divisões administrativas, os califatos, com capi-
tais em Córdoba e em Bagdá. Ambas as cidades foram grandes
centros culturais. A influência grega em ambos os califatos foi
enorme. Em Córdoba e na região chamada al-Andaluz desenvol-
veu-se uma importante escola filosófica.”
Em Bagdá desenvolveu-se a principal escola matemática da
Idade Média. O califa Harun al-Rashid (ca 766-809), muito conhe-
3. Uma síntese das contribuições desse período pode ser encontrada no livro
de Andrés Martínez Lorca (coord.) Ensayos sobre la filosofia. en al-Andaluz.
Barcelona, Anthropos, 1990.
42
cido pelas Mil e uma noites, fundou em Bagdá uma grande biblio-
* teca, com inúmeros textos matemáticos gregos. Al-Mamun, que
“foi califa de 813 a 833, fundou uma verdadeira universidade, a
“Casa da Sabedoria”, e convidou um matemático chamado Mu-
“ hammad ibn Musa al-Kwarizmi al-Magusi (ca 780-847), de cultu-
ra persa, vindo da região do Mar de Aral, a maior figura da ciência
islâmica. Embora tenham sido extremamente importantes os seus
cálculos astronômicos, principalmente a Geografia, sua obra que
mais repercussão viria a ter no futuro é Pequena obra sobre o cálculo
da redução e da confrontação (Al-Kitab al-muhtasar fi hisab al-jabr
wál-mugabala), na qual introduz a redução de termos semelhantes
(al-mugabala) e a transposição de termos de uma equação mudan-
do o sinal (al-jabr), marcando assim o nascimento da álgebra. O
livro introduz um método de resolução de equações de 1º e 2º
graus apreendido dos indianos. Também escreveu um livro muito
importante em que descreve o sistema de numeração dos india-
nos, posicional de base 10. Na verdade, além de seus méritos
como grande calculador astronômico, al-Kwarizmi é responsável
por trazer para o Leste a importante matemática da Índia.
Desde que os muçulmanos invadiram a Península Ibérica,
o ideal da reconquista de seus domínios pelos reis cristãos ibéri-
cos foi muito intenso. Na região do Atlântico, esses reis logo
tiveram sucesso e o que é hoje Portugal completou a reconquista
e a unificação no século XII.
Mas já no ano 1.000 os europeus haviam notado uma certa
vulnerabilidade do Império Islâmico. O interesse da Igreja de ter
acesso aos lugares sagrados onde viveu Cristo se associou ao dos
mercadores de restabelecer as rotas para o Oriente, que haviam
sido barradas pelos muçulmanos. Ambos encontraram nos nobres,
em busca de novas aventuras, indivíduos dispostos a organizar
expedições militares, que foram denominadas cruzadas, e cujo
4. Ver meu artigo “AL-Kwarizmi e sua importância na matemática”, Temas e
Debates nº 4. Ano VII, 1994, pp. 40-50.
43
objetivo explícito era tomar posse de Jerusalém. Foram organiza-
das diversas cruzadas, com sucesso variável. Como consequência
foram estabelecidos importantes contatos com os povos e a cultura
da região, principalmente com os povos árabes, que então domina-
vam o Império Islâmico. Sem dúvida as cruzadas representaram o
fator mais importante na modernização da Europa.
Ao saber o que se fazia no Islão do ponto de vista filosófico,
científico e matemático, os europeus puderam reorganizar o conhe-
cimento que estava sendo gerado nos mosteiros, sempre com o
grande objetivo de se construir uma filosofia teológica para o
cristianismo. Como os mosteiros eram instituições fechadas aos
não-monges e ao conhecimento herege, surgiram então instituições
paralelas, as universidades, onde o contato entre monges e hereges
era possível. Foram fundadas as universidades de Bolonha (1088),
de Paris (1170), de Cambridge (1209), de Coimbra (1218), de Sala-
manca (1220), de Oxford (1249), de Montepelier (1220).
Comerciantes curiosos também deram a conhecer não só os
desenvolvimentos dos grandes impérios asiáticos, e aí se destaca
a importante obra de Marco Polo (ca 1254-1324), mas também as
práticas comerciais dos povos árabes. O mais importante foi
Leonardo (ca 1170-1240), chamado Fibonacci, isto é, filho do Bo-
nacci, um comerciante de Pisa. Leonardo aprendeu com os árabes
o sistema posicional de numeração e de operações e publicou, em
1202, a obra Liber abbaci, na qual explicava todo o sistema posicio-
nal e as regras de operações aritméticas. Esse foi o livro mais
importante no desenvolvimento da matemática européia. Foi
acessível primeiramente aos comerciantes e banqueiros, que esta-
beleceram assim as bases para a economia moderna na Europa. O
Liber abbaci teve inúmeras versões, com variações muito peque-
nas, em toda a Europa. Fibonacci também escreveu Practica geo-
metriae (1220) e a sua obra mais importante foi Libri quadratorum
(1225), na qual estuda equações diofantinas.
: Naturalmente, a tolerância islâmica permitiu a evolução da
* tradição judaica, com uma matemática mais prática que aquela
“dos gregos. Foram importantes o Tratado das medições e cálculos, de
| Abraham bar Hiyya (+1136), o cálculo combinatório de Abraham
“ibn Ezra (1090-1167) e a introdução do método de indução por
* Levi ben Gerson (1288-1344)?
: A filosofia do Islão foi igualmente fundamental. Ao conhe-
* cerem a obra médica de Avicena/ibn Sina (980-1037) e os comen-
“tários sobre Platão e Aristóteles de Averróes/ibn Rushd (1126-
* 1198) e de Maimonides (1135-1204), os cristãos tiveram reavivado
seu interesse na filosofia grega. Também foi reconhecido o siste-
“ma lógico implícito em Os elementos de Euclides, Assim foi possí-
“vel completar a construção de uma teologia cristã. Coube a São
Tomês (ca 1225-1274), de Aquino, publicar a maior obra filosófica
“da Idade Média, a Summa theologica. Não é inapropriado dizer que
* esta é uma obra de matemática, conceituada no sentido da Anti-
dade, voltada a explicações de Deus e do cristianismo. O
“interesse leigo na obra de Euclides surge apenas modestamente
* no século XV“
Nos séculos XIV e XV temos grande desenvolvimento da
matemática nos mosteiros e nas universidades. De fato, não se
“ deveria falar em matemática. Os interesses eram na filosofia e na
; lógica; na ótica, antecipando a invenção dos telescópios; na nave-
* gação, em que se destaca o trabalho dos portugueses, principal-
* mente de Pedro Nunes (1502-1578), que publicou os importantes
"| tratados Álgebra na aritmética e na geometria e o Tratado da esfera; nas
construções e nas artes, em que lembramos Leon Batista Alberti
5. O excelente livro de Victor ]. Katz A history of mathematics. An introduction
(Nova York, Harper Collins, 1993) é um dos poucos que dão atenção à
matemática judaica, bem como importantes referências à matemática de
outros sistemas culturais.
6. Vermeu artigo “Etnomatemática e seu lugar na história e na pedagogia da
matemática”. Ciência e Técnica (Antologia de textos históricos), org. Ruy
Gama. São Paulo, T.A. Queiroz Ed. 1993, pp. 105-116.
45
estabelecer. Uma consegiência óbvia da conjugação das propos-
tas científicas e econômicas é a industrialização. O desenvolvi-
mento tecnológico e agora a alta tecnologia foram os passos
seguintes dessa associação.
Um grande filósofo alemão, contemporâneo de Newton,
Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), compartilha com ele a
glória de ter inventado o cálculo diferencial. De fato, a notação
dy/dx é devida a Leibniz. As duas invenções, praticamente ao
mesmo tempo, foram independentes e com objetivos distintos.
Mas essa coincidência deu origem a uma verdadeira guerra entre
os intelectuais da Inglaterra e os da Europa continental. Eles
acusavam-se mutuamente de plágio. Como consegiência a Ingla-
terra ficou um tanto isolada do desenvolvimento da matemática
européia, inclusive com a recusa dos cientistas ingleses de adota-
rem a notação de Leibniz.
Na Europa continental as idéias de Newton eram muito
convenientes para o pensamento político que se construía como
base filosófica para a Revolução Francesa. Imediatamente os inte-
lectuais revolucionários adotaram a nova matemática proposta por
Newton e deram ao cálculo diferencial um impulso notável. Em
Basiléia, na Suíça, foram desenvolvidos o cálculo das variações e a
teoria das séries infinitas por Johann Bernoulli (1667-1748) e sobre-
tudo por Leonhard Euler (1707-1783). As equações diferenciais
tiveram grande impulso com o próprio Euler e na França pré-revo-
lucionária com Joseph-Louis Lagrange (1736-1813) e Pierre-Simon
Laplace (1749-1827), que também deu enorme impulso à teoria das
probabilidades. A mecânica celeste e a física matemática passaram
então a ser firmemente estabelecidas.
O século seguinte caracterizou-se por um retorno à mate-
mática discreta, principalmente na Inglaterra. Destaca-se George
Boole (1815-1864). Logo no início do século, Charles Babbage
(1792-1871) fez seu doutoramento na Universidade de Cambrid-
ge sobre questões relativas a máquinas de calcular, que nos
50
séculos XVILe XVII haviam sido a grande preocupação de Blaise
“Pascal (1623-1662) e de G.W. Leibniz. A tese de Babbage pode ser
considerada o passo inicial para a ciência da computação, que
ebeu o segundo grande impulso no final do século XIX com a
se de H. Hollerith (1860-1929), na Columbia University, Esta-
“dos Unidos. Curiosamente, esses trabalhos são praticamente ig-
ados nos tratamentos mais conhecidos da história da mate-
ca, bem como a grande inovação que é o desenvolvimento
espaços vetoriais, de quatemiões e das matrizes por William
Rowan Hamilton (1805-1865), Hermann Grassmann (1809-1877),
ur Cailey (1821-1895), James Joseph Sylvester (1814-1897).
etivamente esse é o início da álgebra multilinear. Pode-se dizer
e estava se preparando, no século XIX, uma nova matemática
licada, que depois viria possibilitar os grandes avanços da
a, especificamente a Teoria da Relatividade e a mecânica
intica, no início do século XX, e a informática na segunda
etade do século XX.
A história da matemática destaca mais os aprimoramentos
sos e introduz uma definição de limite que viria caracterizar o
tratamento rigoroso da análise, mediante o formalismo de epsilon
delta. Cauchy define uma estrutura de curso de cálculo diferen-
e integral que perdura até os dias de hoje. A geometria
“momento de glória, sobretudo graças ao trabalho fundamental de
“Carl F Gauss (1777-1855). A álgebra também recebe grande im-
E “pulso com a demonstração, por Niels Abel (1802-1829), da impos-
sibilidade de resolver equações de grau superior a quatro por
“Tadicais. Juntamente com Évariste Galois (1811-1832), também
Ê “estudando a resolubilidade de equações, ele pode ser considera-
* do fundador da álgebra moderna. A geometria sintética, isto é,
E “sem utilizar coordenadas, como fazia Euclides, passa por uma
É revitalização com a formalização da geometria projetiva, sobretu-
51
do por Jean-Victor Poncelet (1788-1867), e das chamadas geome-
trias não-euclidianas, com os trabalhos fundamentais de Nikolai
Lobachevski (1792-1856) e de János Bolyai (1802-1860).
Algo muito importante foi o surgimento de novas possibi-
lidades de análise do mundo físico com o instrumental matemá-
tico. É o momento mais importante da física matemática, no qual
se destacam os trabalhos de Jean Baptiste Fourier (1768-1830) e de
Georg Bernhard Riemann (1826-1866). Os números complexos,
que haviam sido introduzidos no século XVII com relação à
resolução de equações, vêm ter no final do século XIX uma gran-
de importância nas generalizações do conceito de espaço, surgin-
do então a análise complexa.
Em geral, a análise aplicada mostra um grande avanço dos
problemas de estabilidade de equações diferenciais, sobretudo
pelos trabalhos de Henri Poincaré (1854-1912) e de A.M. Lyapu-
nov (1857-1918). O cálculo das variações também teve importante
desenvolvimento com a introdução dos métodos diretos por Karl
Weierstrass (1815-1897) e David Hilbert (1862-1943). Também a
teoria dos números tem um grande avanço, sobretudo com os
estudos das propriedades e a distribuição de números primos,
bem como a resolução de congruências, essencialmente equações
num universo numérico modular.” São notáveis nessa área as
contribuições de Carl E. Gauss, que já foi chamado o “príncipe dos
matemáticos”, e de Gustav P. Lejeune-Dirichlet (1805-1859).
Importante também foi o avanço na direção dos fundamen-
tos da matemática. Georg Cantor (1845-1918) formalizou uma
9. De um certo modo, isto estava incorporado nos programas dos cursos
primários, na forma do que se chamava “números complexos” (ângulos,
tempo, moeda inglesa), na verdade sistemas numéricos modulares. Por
exemplo, que dia e horas serão 60 horas após 19 horas do dia 30 de março?
Depois dos anos 70 essa parte do programa foi desativada —
lamentavelmente! Aqueles que gostam de criticar as calculadoras têm aí
um bom exemplo de algo que não se faz só com elas.
52
eoria dos conjuntos e os números reais foram rigorosamente
idos por Richard Dedekind (1831-1916) e a lógica matemáti-
1 é firmemente estabelecida com o trabalho fundamental de
and Russell (1872-1970) e Alfred N. Whitehead (1861-1947),
Principia mathematica (1910-1913).
De muito interesse para a educação matemática é a contri-
ão do consagrado matemático Felix Klein (1849-1925). Já fir-
ente estabelecido como um dos mais importantes matemáti-
do final do século XIX, Felix Klein percebe que as possibilida-
industriais da Alemanha, que há pouco havia sido organizada
mo uma nação, dependiam de uma renovação da educação
dária, sobretudo modernizando o ensino da matemática.
sa modernização incluía os avanços recentes sobretudo incluin-
vetores e determinantes e um tratamento menos formal da
ometria euclidiana. Sua orientação levava a uma matemática
m vistas a aplicações. Seu livro Matemática elementar de um ponto
ista avançado marcou época e poder-se-ia dizer que representa
início da moderna educação matemática.
| Natransição do século XIX para o século XX há a realização
Primeiro Congresso matemático Internacional em Chicago,
93, e em 1900 o Segundo Congresso matemático Internacional
Paris. Nesse congresso a conferência principal foi dada por
vid Hilbert, que apresentou uma lista de 23 problemas que,
do ele, seriam a principal preocupação dos matemáticos no
o XX. De fato, muito do que se fez em matemática neste
o teve como foco os problemas formulados por Hilbert.
* Quase todos foram resolvidos.” Muito provavelmente haverá
“uma lista semelhante no ano 2000.”
Uma tradução da conferência de David Hilbert está reproduzida no livro
Classics of mathematics, ed. Ronald Calinger. Englewood Cliffs, Prentice-Hall,
1995, pp. 698-718.
O livro Mathematics into the twenty-first century, ed. Felix E. Browder,
Providence, American Mathematical Society, 1992, mostra as principais
53
No século XX vemos o aparecimento de estruturas muito
gerais de espaço, formalizando uma geometria associada à análi-
se, no que se denominou topologia, introduzindo uma análise
para espaços de dimensão infinita, que é a análise funcional,
dando um formalismo algébrico à geometria, por meio da geome-
tria algébrica, e sobretudo estabelecendo estruturas básicas para
a geometria, a análise e a álgebra. É de se destacar uma obra que
foi concebida para ser o equivalente no século XX do trabalho de
Euclides, sintetizando toda a matemática conhecida. Trata-se dos
Elementos de matemática, de Nicolas Bourbaki. Bourbaki é um
personagem fictício, adotado por um grupo de jovens matemáti-
cos franceses em 1928, que se reuniam num seminário para discu-
tire propor avanços da matemática em todas as áreas. A obra de
Bourbaki, já com cerca de 100 volumes e ainda incompleta, foi sem
dúvida a obra matemática mais importante dos meados do século
XX. Houve grande influência de Bourbaki no desenvolvimento da
matemática no Brasil, sobretudo nas décadas de 1940 e 1950.
A obra monumental de Bourbaki teve grande repercussão
na educação matemática de todo o mundo por intermédio do que
ficou conhecido como matemática moderna, que teve considerá-
vel importância no Brasil. Lamentavelmente, tudo o que se fala
da matemática moderna é negativo. Mas sem dúvida foi um
movimento da maior importância na demolição de certos mitos
então prevalecentes na educação matemática. Como toda inova-
ção radical, sofreu as consegiiências do exagero, da precipitação
e da improvisação. Os desacertos, muito naturais e esperados,
foram explorados e sensacionalizados pelos “mesmistas” e a ma-
temática moderna foi desprestigiada e combatida.
direções de pesquisa matemática neste final de século e, num certo sentido,
antecipa os principais problemas que serão a preocupação dos
matemáticos do século XXL.
12. A tese de doutoramento de Beatriz Silva D' Ambrosio, “The dynamics and
consequences of the modern mathematics reform movement for brazilian
mathematics education”, Indiana University, School of Education, 1987,
aborda esse movimento no Brasil.
54 fa
O.
| Amatemática e seu ensino no Brasil
j
Não vou me estender na discussão das várias etapas do
envolvimento da matemática e do seu ensino no Brasil, pois
e não é um livro de história da matemática. Uma referência
portante para isso é o livro de Clóvis Pereira da Silva.” Tam-
n é interessante que se conheça um pouco da história das
cias no Brasil. Um resumo bem acessível é de Moacyr Costa
reira.* Mas não posso deixar de sintetizar, em alguns parágra-
essa história.
No período colonial e no Império há pouco a registrar. O
ensino era tradicional, modelado no sistema português, e a pes-
, incipiente. Não havia universidade nem imprensa. Com o
slado da família real para o Brasil, em 1808, criou-se uma
prensa, além de vários estabelecimentos culturais, como uma
jiblioteca e um jardim botânico. Afinal, o Rio de Janeiro tornou-
a capital do Reino Unido de Portugal Algarves e Brasil. Criou-
e, então, em 1810, a primeira escola superior, Academia Real
itar da Corte no Rio de Janeiro, transformando-se na Escola
Jentral em 1858 e na Escola Politécnica em 1974. Logo a seguir
criadas faculdades de Direito em Olinda e em São Paulo,
ola de Medicina na Bahia e várias outras escolas isoladas. No
mpério destacam-se Joaquim Gomes de Sousa (1829-1863), o
ousinha”, e Benjamin Constant.
Com o advento da República houve uma forte influência
cesa, particularmente do positivismo. Pouco se fez em pesquisa
é o início do século, quando surgem Otto de Alencar, Teodoro
mos, Amoroso Costa e Lélio Gama, todos no Rio de Janeiro.
Clóvis Pereira da Silva, A matemática no Brasil. Uma história do seu
desenvolvimento. Curitiba, Editora da Universidade Federal do Paraná,
1992.
Moacyr Costa Ferreira, A ciência brasileira. Breve contribuição para a sua
história. São Paulo, Edicon, 1992.
55
|
meração indo-arábica na Europa, no século XIII. É importante
notar que a partir da publicação do Liber abbaci, a numeração
indo-arábica levou cerca de 200 anos para efetivamente se impor
na Europa e ser o determinante do novo pensar a partir do
Renascimento. Não é de se estranhar que ainda haja algumas
pessoas que se declaram contra o uso das calculadoras.
Hoje estamos vivendo o surgimento dos computadores, das
comunicações e da informática em geral. Isso não altera a evolu-
ção do uso de calculadoras. São dois conceitos diferentes. A telein-
formática (combinação de rádio, telefone, televisão, computado-
res) impõe-se como uma marca do mundo neste final de século,
afetando todos os setores da sociedade. Algo equivalente à inven-
ção da imprensa por Guttenberg. Pense na possibilidade da vida
moderna sem qualquer impresso. Da mesma maneira que im-
pressos entraram em todos os setores da sociedade, o mesmo vem
se passando com a teleinformática. Como consegiência, na edu-
cação. Não há como escapar. Ou os educadores adotam a telein-
formática com absoluta normalidade, assim como o material im-
presso e a linguagem, ou serão atropelados no processo e inúteis
na sua profissão. Procure imaginar um professor que rejeita os
meios mais tradicionais: falar, ver, ouvir, ler e escrever. Lamenta-
velmente ainda há alguns que só praticam o falar!
Não há muito a se preocupar com a adoção desses novos
meios, particularmente a calculadora e o computador. É uma ilusão
investir em cursos de capacitação propedêutica. Basta aprender
qual é o botão on e a partir daí tudo se desenrola. Eventualmente
vão se criando necessidades específicas que serão satisfeitas com
uma capacitação “a partir da demanda individual”, muito no estilo
do currículo do futuro, feito sob medida (taylored) para cada aluno.
Mais uma vez fui levado a falar de futuro. Mas não somos
nós, educadores, responsáveis pela preparação para o futuro?
60
3
EDUCAÇÃO, CURRÍCULO E AVALIAÇÃO
Os maiores entraves a uma melhoria da educação têm sido
) alto índice de reprovação e a enorme evasão. Ambos estão
relacionados. Medidas dirigidas ao professor, tais como fornecer-
novas metodologias e melhorar, qualitativa e quantitativa-
tente, seu domínio de conteúdo específico, são sem dúvida im-
portantes, mas têm praticamente nenhum resultado apreciável.
Igualmente, focalizar esses esforços no aluno por meio de uma
maior frequência a aulas e exames ou criando novos testes e
mecanismos de avaliação tampouco tem dado resultados.
É necessário dispormos de um sistema de informações que
permita aquilatar os efeitos do sistema escolar com os objetivos
de aprimorar a gestão da qualidade e o rumo a ser dado à política
“educacional e ao seu financiamento.
Identifico nesses problemas da educação o que poderia
Chamar filosofia aplicada. Obviamente algo está errado Som à
“filosofia que orienta a organização e o funcionamento do sistema
educacional. Esse sistema é extremamente dinâmico e deve se
6
transformar pari passu com as transformações dos vários setores
da sociedade. Mecanismos de avaliação desse sistema são absolu-
tamente necessários. Naturalmente deve-se procurar instrumen-
tos de avaliação de outra natureza daqueles que vêm sendo
erroneamente utilizados para testar alunos, tais como provas,
exames, questionários e similares. O efeito de um sistema só pode
ser avaliado por meio da análise do comportamento, individual e
social, que resultou da passagem pelo sistema. Uma análise de
impacto social, assim como de comportamento dos indivíduos e
da sociedade como um todo, é que deveria ser aplicada. Os
resultados da aplicação de instrumentos tradicionais poderão
dar, na melhor das hipóteses e mediante elaborados modelos de
interpretação, apenas informações parciais, focalizadas e geral-
mente pouco relevantes sobre a qualidade do sistema como um
todo. Por exemplo, qual o interesse, do ponto de vista do indiví-
duo e da sociedade, em chegar-se à conclusão de que os jovens
brasileiros chegam aos 12 anos sabendo conjugar corretamente o
verbo “sentar”? Talvez eles jamais tenham percebido o que signi-
fica, socialmente, estar sentado. E que importará saber se nessa
idade eles são capazes de extrair a raiz quadrada de 12.764? Ou
de somar 5/39 + 7/65? Qual a relação disso com a satisfação e a
ampliação de seu potencial como indivíduos e de seu exercício
pleno de cidadania?
O O problema com modelos classificatórios e avaliação em geral
A permanente modernização da gestão é fundamental e
isso exige um permanente repensar os parâmetros de avaliação
para que ela possa aquilatar a efetividade do sistema no desen-
volvimento da criatividade individual e social — o que inclui o
exercício pleno da cidadania e o aprimoramento, material e mo-
ral, dos setores produtivos. Naturalmente, o aprimoramento da
gestão inclui, necessariamente, a ação de diretores de escola e o
62
Eid de pais e outros setores da sociedade e, obviamente, dos
. Portanto, a transparência dos esquemas de avaliação e a
ição de resultados são essenciais. Mas é importante que se
modelos classificatórios.'
Seria desnecessário dizer o quanto os modelos classificató-
de avaliação podem abrir espaço para corrupção. Corrupção
jo sentido usual, pois o que está envolvido em um bom resultado
credenciamento que muitas vezes se transforma em bens
jateriais. E corrupção num sentido mais amplo e ainda mais
Ive, pois esses modelos levam os avaliados a se adaptar ao que
esejado pelos avaliadores. Julgo desnecessário dar exemplos
e ambas as modalidades de corrupção.
Claramente, as avaliações como vêm sendo conduzidas,
ando exames e testes, tanto de indivíduos como de sistemas,
uca resposta têm dado à deplorável situação dos nossos sistê
escolares. Além disso, têm aberto espaço para deformações
ezes irrecuperáveis, tanto em nível de alunos e professores,
into de escolas e do próprio sistema. A situação, se medida por
tados de exames, revela um crescente índice de reprovação,
de repetência e de evasão. E as propostas sempre vão na direção
se reforçar os mecanismos de avaliação existentes. Esse é o
norama internacional. Veja-se as interpretações do “SIMS” re-
ido na nota 1.
Um das avaliações mais elaboradas foi conduzida pelo leea, e ficou conhecida
“como bend Ir isrnationl Study of Mathematics Achievement/ SIMS a
Durou de 1973 a 1985, envolvendo cerca de 40 países, e os resultados ainda
estão sendo analisados. Embora não pretendendo ser classificatório, algumas
interpretações levaram a uma classificação por países. As consegiiências dessa
classificação foram deturpadas e prejudiciais aos sistemas educacionais como
um todo e às crianças. Da América Latina somente participou, parcialmente,
a República Dominicana. O resultado importante dessa participação foi a
criação, na Universidad “Madre y Maestra”, em Santiago de los Caballeros,
de um dos mais equipados centros de avaliação de grande porte que temos na
América Latina.
6
A situação no Brasil é particularmente grave. Muitos siste-
mas adotaram o modelo de aprovação por ciclos, isto é, o aluno
é submetido a exame somente após dois ou três anos de escola-
ridade. Embora haja indicadores do corretismo desse modelo, a
incompreensão de professores, pais e mesmo de alunos está
gerando um movimento para o retorno aos exames tradicionais
e se fala mesmo em exames nacionais. A matéria é altamente
controvertida, mas não pode haver dúvidas quanto ao prejuízo
que acarretarão os testes nacionais, bem como um currículo
obrigatório para todo o país.
Tem-se falado muito no Brasil em testes nacionais. É uma
ilusão napoleônica achar que um currículo obrigatório, que atenda
a todo o país, terá qualquer efeito no melhoramento da educação.
O que há de mais moderno em educação trata o currículo como
definido com base na classe, isto é, combinado — alguns dizem
mesmo contratado — entre os alunos mais os professores e mais a
comunidade. O currículo vai refletir aquilo que se deseja, aquilo
que é necessário, de acordo com o que é possível, respondendo a
características locais. Ainda mais absurdo e obsoleto é pensar em
testes padronizados e nacionais. Isso vai frontalmente contra as
novas conceituações de educação, tanto do ponto de vista social
quanto do ponto de vista cognitivo. Tudo o que há de mais moder-
no em cognição e aprendizagem mostra que testes padronizados
muitas vezes têm um efeito negativo no aprendizado.
Há uma linha que defende o retorno à educação castradora,
com a mensagem de ser a mediocridade a situação ideal, repre-
sentada pela chamada “curva de Bell” > Eu rejeito qualquer insi-
nuação de que as autoridades educacionais no Brasil tenham uma
2. Veja Richard J. Herrnstein e Charles Muttay The Bell Curve: Intelligence and
class structure in american life. Nova York, Free Press, 1994. Veja também a
interessante resenha de Leon]. Kamin “Behind the curve”. Scientific American,
fev. 1995, pp. 82-86 e a polêmica “Wringing the Bell Curve” que se seguiu
na mesma revista, maio 1995, p. 5.
64
tendência a essa linha de pensamento discriminatória e racista.
Suas razões serão antes um equívoco, o que da mesma maneira
ausa muita apreensão.
Igualmente causa apreensão saber que muitos jovens não
sarão no teste nacional. E pode-se prever que entre estes
starão principalmente jovens brasileiros comuns, filhos de famí-
sem sucesso, carentes e mesmo desfeitas. Provavelmente es-
constituirão a maioria dos fracassados. A impressão que se
é de que as autoridades têm uma visão desses jovens como
cartáveis no conceito corrente de desenvolvimento. Onde
á, com essa medida darwinista, o passo em direção à redenção
Jesses jovens? Esse exame é equivalente a propor melhorar a
de do povo brasileiro mediante uma compra maciça de termô-
etros e dando um deles a cada família! Ora, sabemos que o
problema está na febre, não na sua medição. Nada de positivo
Será alcançado ao se publicar o nome do aluno que se saiu melhor
s testes, dando destaque à sua cidade, à sua escola. E isso não
á evitado. Sem dúvida esses jovens serão objetos de exploração
olítica. Será como um circo para desviar a atenção do essencial.
erá que os proponentes da idéia se esqueceram da mensagem do
ilme O homem que virou suco, de João Batista de Andrade, de 1980?
Nenhuma pesquisa é convincente para dizer o quanto as
avaliações, da maneira como são atualmente conduzidas, são indica-
lores de rendimento escolar. Importantes pesquisas têm mostra-
do que os resultados obtidos numa série têm pouca relação com
O desempenho em séries posteriores, contrariando expectativas.”
Principalmente em matemática, a incapacidade de transferir co-
Nhecimento para uma situação nova é constatada.
3. Veja a tese de doutoramento de Dácio R. Hartwig “Uma estrutura para as
operações fatoriais e a tendência na utilização de fórmulas matemáticas —
Um estudo exploratório”, defendida na Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo, em 1988.
65
Mas alguém dirá: Avaliação é necessária em tudo o que se
faz, por que não em educação? Com razão, avaliação é necessária
e pode ser feita de uma forma muito conveniente. Mas não essa
avaliação que se pratica nos sistemas educativos.
Q Proposta de um modelo de avaliação
O processo educacional é global e na verdade sempre produz
resultados positivos, mas muitas vezes não aqueles que pretendía-
mos. Na verdade, a cada instante da vida há aprendizado, normal-
mente sem interferência da escola ou do professor Numa sala de
aula, o que se está apreendendo nessa concepção holística do que é
aprendizagem? Muito sobre muitas coisas, provavelmente tendo
pouca relação com o que o professor pretendia que o aluno apren-
desse. A avaliação serve para que o professor verifique o que de sua
mensagem foi passado, se seu objetivo de transmitir idéias foi
atingido — transmissão de idéias e não a aceitação e a incorporação
dessas idéias e muito menos treinamento.
No caso de estudos teóricos, isso pode ser atingido median-
te uma análise de como a aula foi recebida pelo aluno, qual o
conteúdo que ficou após aquela hora em que o professor tentou
transmitir algo. Isso pode ser visto por meio de um relatório-ava-
liação da aula, entregue para o professor na aula seguinte. Trata-se
de um relatório escrito, reconhecendo que o mundo moderno
exige a escrita em praticamente todas as ações. Além disso, é
amplamente reconhecido que, por intermédio da escrita, o indi-
víduo pode, mais facilmente, reconhecer seu próprio processo
cognitivo e assim encaminhar adequadamente esse processo. Me-
tacognição da qual essa é uma estratégia, é uma das mais promis-
soras direções que vêm tomando as ciências cognitivas. Mesmo
em matemática, a adoção de escrita vem sendo defendida *
8. VejaBobM.DrakeeLindaB. Amspaugh “Whatwritingrevealsin mathematics”,
Focus on Learning Problems in Mathematics nº 3. 1994, vol. 16, pp. 43-50.
70
O relatório-avaliação como venho praticando há muitos
s depende de algumas regras: 1. identificação do aluno, do
sor, da disciplina, do tema da aula, data e número da aula;
síntese do conteúdo da aula em espaço limitado, isto é, um
rio não excedendo, digamos, uma lauda; 3. bibliografia e
cias pertinentes não repetindo aquelas fornecidas ou sugeridas
professor; 4. comentários e sugestões sobre a aula, o tema e a
sciplina, não excedendo, digamos, dez linhas.
Isso pode ser feito mediante um formulário do tipo:
RELATÓRIO-AVALIAÇÃO
E
'NOME DO ALUNO:
* NOME DA DISCIPLINA:
“NOME DO PROFESSOR:
* TEMADA AULA:
- SÍNTESE DA AULA:
E 30 linhas
ou
300 palavras
ou
3.000 toques
ou 25 em
ou
| BIBLIOGRAFIA PERTINENTE:
não aquela fornecida pelo professor
COMENTÁRIOS DO ALUNO:
a
Por que essa proposta:
1. Acada aula o aluno deve localizar o tema tratado, inseri-lo
na disciplina, que constitui um trabalho continuado. Isso
ajuda o aluno a, em cada aula, manter uma unidade de
temas. Por que o nome do aluno e do professor? Curioso
notar que muitos professores chegam ao final do ano sem
saber o nome de seus alunos. E, igualmente, alunos termi-
nam o ano sem saber o nome do professor. Saber isso
interessa a ambas as partes. E repetição ajuda a reter na
memória coisas que interessam.
2. Limitar o espaço é uma estratégia para desenvolver a
capacidade de síntese. Naturalmente, uma aula bem gra-
vada ou bem anotada permite um relatório longo. Porém,
para se colocar o conteúdo num espaço limitado é neces-
sário um grau de compreensão do tema. E, além disso, a
vida diária requer, em todas as áreas de atividade, a capa-
cidade de sintetizar idéias em espaço predeterminado.
3. A oportunidade de o aluno se manifestar sobre temas
que ele julga relacionados com o tema da aula é muito
importante. Ele se sente valorizado. E isso pode ajudar
a enriquecer os conhecimentos do professor.
4. Como o aluno está sentindo que suas expectativas com
relação ao curso vêm sendo satisfeitas? O que poderia
ser feito pelo professor para melhorar sua aula e sua
apresentação? E muitas vezes saber que seu trabalho
está satisfazendo é estimulante para o professor.
Essa proposta parte da aceitação do fato que o docente está
num processo permanente de aprimorar sua prática e nada me-
lhor para isso do que ele próprio conhecer seu desempenho por
meio de relatórios dos que estão participando dessa prática. Não
se trata de dar uma nota ao professor, aprová-lo ou reprová-lo,
72
nas sim de dar a ele os elementos para analisar sua prática. Da
a maneira, o professor está interessado em saber o quanto
mensagem que ele pretendia dar aos alunos foi passado e
omo ela foi compreendida. Se a sua mensagem não foi captada,
eressante voltar ao tema, explicando-o de outro modo. Se sua
sagem foi captada em geral, mas um ou outro aluno demons-
no relatório, não ter captado a essência da mensagem, cabe
professor verificar o que se passa com esses alunos. Se for
ário, ajudá-los a superar dificuldades ou motivá-los. Na
de, é uma forma de avaliar a ação do professor como um
lo, em que não cabe reprovar um aluno.
Uma outra tarefa que é parte da avaliação é um resumo
nalítico. Isso se assemelha muito às fichas de leitura, pouco comuns
m matemática, mas que devem ser estimuladas. Essencialmente,
es resumos analíticos ajudam a desenvolver uma disciplina de
itura e de relato de experiências importantes no ErOCESRO edu-
ivo. Quando falo em leitura incluo assistir a filmes e vídeos,
tro, ouvir uma música, assistir a um jogo, enfim qualquer
eriência que deve ser analisada e interpretada.
Um modelo de resumo analítico está a seguir.
RESUMO ANALÍTICO
TÍTULO (em português):
TÍTULO (no original):
AUTOR(ES):
AFILIAÇÃO INSTITUCIONAL DO(S) AUTOR(ES):
ENTIDADE PATROCINADORA DA PUBLICAÇÃO:
financiadora, por exemplo Capes,
CNPq, Fapesp etc.
DADOS DA PUBLICAÇÃO:
: se, livro, editora, cidade, ano de publicação, número de
páginas;
se artigo, revista, volume, número, data, páginas em que o
artigo aparece;
se documento, entidade responsável, cidade, número de
identificação, número de páginas;
se filme, produtor, distribuidor, data, número de minutos.
PALAVRAS-CHAVE:
de um thesaurus ou subject classification index etc.
DESCRIÇÃO DO TRABALHO:
10 linhas
ou
OBJETIVOS DO TRABALHO:
5 linhas, preferivelmente começando com um verbo
FONTES UTILIZADAS PELO AUTOR:
METODOLOGIA DE TRABALHO DO AUTOR:
CONCLUSÕES DO AUTOR:
10 linhas
COMENTÁRIOS DO RELATOR:
essencialmente, uma opinião crítica sobre o trabalho
DADOS DO RELATOR:
nome, instituição, endereço
74
Note-se que essa prática dos relatórios deve ser aplicada em
s os níveis, desde a pré-escola até a pós-graduação, tanto na
scola formal quanto na não-formal. Particularmente em mate-
jática, que depende fortemente de um sistema de códigos e
símbolos, a escrita é um elemento importante para o processo de
decodificação, o que permite a contextualização.
* Aleitura de artigos e de livros recomendados numa aula é
quito importante e deve ser parte integrante da prática educati-
à. As razões para se adotar esses resumos analíticos são muito
elhantes às que foram dadas para o relatório-avaliação.
| Culminando o processo de avaliação, é importante um tra-
ilho de fim de curso, de natureza monográfica, mais amplo que
m resumo analítico, mais no espírito de um ensaio-resenha.
Muitos professores perguntam como aplicar isso numa
e com muitos alunos. Claro, se a classe tem poucos alunos e
professor tem tempo, é muito importante acompanhar o pro-
resso dos alunos e o seu próprio desempenho por meio dos
latórios e resumos.
No caso de uma classe com muitos alunos, um processo
tório “abrandado” é muito apropriado. A fórmula mais inte-
ante é a seguinte: Numa classe com M alunos e N aulas
istas, pode-se em cada aula selecionar M/N relatórios de
o aleatório, mas recusando quem já tenha sido selecionado.
im, todo aluno terá a oportunidade de ter pelo menos um
ório escolhido durante o período da disciplina. Claro, se o
ssor tiver possibilidade, pode selecionar o dobro, o triplo,
N vezes esse número. Mas todos devem entregar em todas as
as os relatórios ou resumos da aula anterior.
Em cada aula, o professor inicia com um comentário sobre
s relatórios ou resumos que selecionou para aquela aula. Natu-
Talmente, sem identificar o aluno, mas apontando as coisas posi-
fivas e negativas que notou na sua leitura dos relatórios ou resu-
75
conhecimento está fadado a ser dispensado pelos alunos,
pela escola e pela sociedade em geral. O novo papel do
professor será o de gerenciar, de facilitar o processo de
aprendizagem e, naturalmente, de interagir com o aluno
na produção e crítica de novos conhecimentos, e isso é
essencialmente o que justifica a pesquisa.
OQ Asociedade do conhecimento e a pesquisa
Estamos entrando na era do que se costuma chamar a “so-
ciedade do conhecimento”. A escola não se justifica pela apresen-
tação de conhecimento obsoleto e ultrapassado e muitas vezes
morto. Sobretudo ao se falar em ciências e tecnologia. Será essen-
cial para a escola estimular a aquisição, a organização, a geração
ea difusão do conhecimento vivo, integrado nos valores e expec-
tativas da sociedade. Isso será impossível de se atingir sem a
ampla utilização de tecnologia na educação. Informática e comu-
nicações dominarão a tecnologia educativa do futuro.
O grande desafio para a educação é pôr em prática hoje o
que vai servir para o amanhã. Pôr em prática significa levar
Pressupostos teóricos, isto é, um saber /fazer acumulado ao longo
de tempos passados, ao presente. Os efeitos da prática de hoje vão
se manifestar no futuro. Se essa prática foi correta ou equivocada
só será notado após o processo e servirá como subsídio para uma
reflexão sobre os pressupostos teóricos que ajudarão a rever,
reformular, aprimorar o saber /fazer que orienta nossa prática.
O elo entre passado e futuro é o que conceituamos como
presente. Se as teorias vêm do conhecimento acumulado ao longo
do passado e os efeitos da prática vão se manifestar no futuro, o
elo entre teoria e prática deve se dar no presente, na ação, na
própria prática. E isso nos permite conceituar pesquisa como o elo
entre teoria e prática.
so
Sendo a pesquisa o elo entre teoria e prática, parte-se para
rática, e portanto se fará pesquisa, fundamentando-se em uma
oria que, naturalmente, inclui princípios metodológicos que
“contemplam uma prática. Mas um princípio básico das teorias de
nhecimento nos diz que as teorias são resultado das práticas.
anto, a prática resultante da pesquisa modificará ou aprimo-
a teoria de partida. E assim modificada ou aprimorada essa
teoria criará necessidade e dará condições de mais pesquisa, com
“maiores detalhes e profundidade, o que influenciará a teoria e a
* prática. Nenhuma teoria é final, assim como nenhuma prática é
finitiva, e não há teoria e prática desvinculadas. A aceitação
* desses pressupostos conduz à dinâmica que caracteriza a geração
* ea organização do conhecimento:
...teoria —> prática —> teoria —> prática —> teoria...
, Não é difícil de se convencer de que qualquer proposta de
pesquisa válida, com significado e efeito social, enquadra-se nes-
sa conceituação.
Infelizmente, o conceito de pesquisa válida passa por ou-
tras considerações. Normalmente o conceito de pesquisa em edu-
cação ampara-se na “moda” prevalecente na época. Os pesquisa-
dores procuram se identificar com uma linha de pesquisa, dizen-
do-se piagetiano, ou vygotskiano, ou ausubeliano, ou
construtivista, radical ou social, ou outras linhas.
Há um certo pedantismo nos professores ao se rotularem
isto ou aquilo e utilizarem um jargão sofisticado e mistificador.
Isso revela ao mesmo tempo uma enorme falta de autoconfiança.
Ao se dizerem seguidores de um teórico consagrado julgam estar
se prestigiando. E poucos têm coragem de ancorar suas teoriza-
ções nas suas próprias reflexões e práticas.
O que se vê nas dissertações e teses reforça esse quadro.
Tipicamente, os primeiros capítulos são revisões bibliográficas e
,
81
descrição de pressupostos teóricos, onde se fala o que outros
falaram. No meio da dissertação ou tese o candidato descreve sua
pesquisa, normalmente aplicando em outra situação o que auto-
res prestigiados já fizeram. E finalmente, muito timidamente e
geralmente em poucas páginas, o autor “força” algumas conclu-
Sões para não contrariar muito o que outros disseram. Geralmen-
te, as defesas são um lamentável desfilar de esnobação sobre se o
consagrado autor disse mesmo aquilo ou queria dizer outra coisa.
Além disso, muito tempo e energia dos examinadores são usados
em trabalho cartorial, procurando erros de ortografia, de concor-
dância e de citações imprecisas. Claro, tudo isso reflete distorções
sobre o que é pesquisa nas ciências sociais.
Na ânsia de se dar mais rigor às pesquisas, desenvolveu-
se com muita intensidade neste século e sobretudo nos Estados
Unidos da América o que se chamou “pesquisa quantitativa”,
isto é, trabalhar com amostragem e inferências estatísticas. Não
há dúvida de que para inúmeras áreas do conhecimento, quan-
do se lida com grandes populações, isso é importante e pode
nos dar alguma indicação de um modelo de comportamento
mais provável. Ervilhas, produção industrial, distribuição de-
mográfica e inúmeros outros aspectos da sociedade e da natu-
Teza se beneficiam enormemente sobre o conhecimento do que
é mais provável.
Hoje, a chamada pesquisa quantitativa, a etnográfica, a
pesquisa participante e o estudo de caso vêm ganhando crescente
aceitação. São variantes da mesma idéia, em grande parte próxi-
ma à pesquisa antropológica, de se focalizar a investigação na
complexidade do indivíduo inserido num contexto cultural, na-
tural e social.
Embora a pesquisa tenha nos ensinado muito sobre o que
se dá no processo de aprendizagem, as teorias mais recentes de
cognição parecem ter dificuldades para penetrar o ambiente edu-
cacional. O reconhecimento de que a aprendizagem é intrínseca à
82
espécie e que se dá num contínuo, desde o nascimento — possi-
velmente mesmo anterior ao nascimento — até a morte, parece ter
dificuldade de ser incorporado à prática educativa.
Particularmente em matemática, parece que há uma fixação
na idéia de haver necessidade de um conhecimento hierarquiza-
do, em que cada degrau é galgado numa certa fase da Naa se
atenção exclusiva durante horas de aula, como um canal e a e-
visão que se sintoniza para as disciplinas e se desliga acabada a
aula. Como se fossem duas realidades disjuntas, a da aula e a de
fora da aula.
A educação enfrenta em geral grandes problemas. O que
considero mais grave, e que afeta particularmente a educação
matemática de hoje, é a maneira deficiente como se forma o
professor.
Há inúmeros pontos críticos na atuação do professor, que se
prendem a deficiências na sua formação. Esses pontos são essen-
cialmente concentrados em dois setores: falta de capacitação para
conhecer o aluno e obsolescência dos conteúdos adquiridos nas
licenciaturas.
O O que faz um bom professor
Tem havido muita discussão e muito tem sido escrito sobre
isso. Com razão se pensa no resultado futuro da ação do profes-
sor. Mas há uma dicotomia enorme entre o comportamento na
sala de aula e o resultado como desempenho do aluno no futuro.
É comum ouvir-se: “Fulano é adorado pelos alunos, mas, cinco
anos depois os alunos estarão ressentidos, pois; perceberão e
aprenderam nada” ou a afirmação dual: “Eu sofri demais quando
fui aluno do professor Tal, chorava nas suas provas e vívia angus-
tiado. Mas valeu, pois aprendi muito com ele.”
83
Na verdade, essas são falsas interpretações do que é educa-
são. De qualquer maneira, em ambos os casos estão envolvidos
valores afetivos e conteudistas, e a impressão de haver uma
contradição entre ambos. O ideal é o aprender com prazer ou o
prazer de aprender e isso relaciona-se com a postura filosófica do
professor, sua maneira de ver o conhecimento, e do aluno —
aluno também tem uma filosofia de vida. Essa é a essência da
filosofia da educação.
Para se dizer se um professor é bom, há testes, critérios,
regras e tanto mais. Tem havido muita pesquisa sobre isso.' Eu
sintetizo as qualidades de um professor em três categorias: 1.
emocional /afetiva; 2. política; 3. conhecimentos.
Ninguém poderá ser um bom professor sem dedicação,
Preocupação com o próximo, sem amor num sentido amplo. O
professor passa ao próximo aquilo que ninguém pode tirar de
alguém, que é conhecimento. Conhecimento só pode ser passado
adiante por meio de uma doação. O verdadeiro professor passa o
que sabe não em troca de um salário (pois se assim fosse melhor
seria ficar calado 49 minutos!), mas somente porque quer ensinar,
quer mostrar Os truques e os macetes que conhece.
Sabe-se que há professores que ministram muito bem suas
aulas, têm uma classe ótima e com bom rendimento, mas que não
contam aquele truquezinho que se usa num certo tipo de equação.
Deixam para pedir na prova justamente esse tipo de equação. E,
satisfeitos, pensam: “Agora consegui pegar esses alunos que se
julgam tão sabidos. Agora eles estão nas minhas mãos.” Conse-
guem pegar os alunos, e as classes estão em suas mãos! Sua fama
de “duro” corre; outros admiram “o quanto ele sabe” e alguns
poucos, que têm um talento natural para matemática e que con-
seguem desvendar o truque, sentem-se realizados. Mas esses
1. Talvez a melhor referência ainda seja The new handbook of faculty evaluation,
eds. Jay Millman e Linda Darling-Hammond (Sage, 1996).
professores não estão na classe do que eu considero um educador.
“Têm mais vocação para caçador! Isso está ligado à visão de huma-
nidade e à percepção de ser humano que esses professores têm.
a Igualmente, o professor não é o sol que ilumina tudo. Sobre
muitas coisas ele sabe bem menos que seus alunos. E importante
“abrir espaço para que o conhecimento dos alunos se manifeste.
* Como uma vez disse Guimarães Rosa: “Mestre é aquele que às
“vezes pára para apreender.” Daí a grande importância de se
“ conhecer o aluno, exigindo do professor uma característica de
— pesquisador.
Claro, tudo isso tem relação com o comportamento mental
e emocional do professor. Não há como negar as tensões inerentes
“ao processo educativo. Mas educar é um ato de amor. Um amor
* que se manifesta em não querer brilhar sozinho e tampouco sentir
tensão com o brilho de um aluno que mostra saber mais pus, O
professor. Mesmo que esse saber seja, muitas vezes, da própria
“especialidade do professor. Essas considerações reforçam o que já
de há muito vem sendo reconhecido, que é a relação estreita entre
psicanálise e educação?
Educação é um ato político. Se algum professor julga que
sua ação é politicamente neutra, não entendeu nada de sua pro-
fissão. Tudo o que fazemos, o nosso comportamento, as nossas
opiniões e atitudes são registrados e gravados pelos glunos: e
entrarão naquele caldeirão que fará a sopa de sua conselência.
Maior ou menor tempero político é nossa responsabilidade. Daí
se falar tanto em educação para a cidadania. Com a crescente abertu-
ra política — parece que finalmente as ditaduras estão saindo de
moda no mundo — torna-se essencial uma participação efetiva da
população na vida política. No caso especial do Brasil, os jovens
i i jak i d the
2. Recomendo fortemente a leitura do artigo E). Pajak Teaching am:
philosophy of the self”, American Journal of Education nº 1. 1981, vol. 90, pp.
113.
85
que dá a cada um oportunidade de atingir seu pleno potencial
criativo. Claro, cada um se realiza plenamente nesta ação comum.
Aredução de tensões competitivas e sua substituição pela coope-
ração são um fator positivo no estímulo à criatividade."
A função do professor é a de um associado aos alunos na
consecução da tarefa, e consequentemente na busca de novos
conhecimentos. Alunos e professores devem crescer, social e inte-
lectualmente, no processo.
12. Veja asimportantes pesquisas de Teresa Amabile, sintetizadas no seu livro
The social psychology of creativity. Boston, Springer-Verlag, 1983.
90
5
A PRÁTICA NA SALA DE AULA
Cada indivíduo tem a sua prática. Todo professor, ao ini-
ciar sua carreira, vai fazer na sala de aula, basicamente, o
que ele viu alguém, que o impressionou, fazendo. E vai
deixar de fazer algo que viu e não aprovou. Essa memória
de experiências é impregnada de emocional, mas aí entra
também o intuitivo — aqueles indivíduos que são conside-
rados “o professor nato”. Mas sem dúvida o racional, isto
é, aquilo que se aprendeu nos cursos, incorpora-se à prática
docente. E à medida que a vamos exercendo, a crítica sobre
ela, mesclada com observações e reflexões teóricas, vai nos
dando elementos para aprimorá-la. Essa nossa prática, por
sua vez, vai novamente solicitar e alimentar teorizações
que vão, por sua vez, refletir em sua modificação. O elo
entre teoria e prática é o que chamamos pesquisa.
91
O Oque é pesquisa?
: Voltamos a um tema que já foi discutido no Capítulo 4, mas
que é da maior importância para o trabalho na sala de aula.
PRÁTICA
»ro-cDumu
Repito aquilo que já foi discutido no Capítulo 4: pesquisa é o
elo entre teoria e prática. Claro, em situações extremas alguns se
dedicam a um lado desse elo e fazem pesquisa chegando a teorias
baseando-se na prática de outros. Outros estão do outro lado e
exercem uma prática, que é também uma forma de pesquisa, basea-
da em teorias propostas por outros. Em geral fica-se numa situação
intermediária entre esses extremos, praticando e refletindo sobre o
que praticamos, e consequentemente melhorando nossa prática.
Há toda uma mistificação em torno de pesquisa. Há profes-
sores universitários que se mantêm em empregos graças ao fato
de fazerem pesquisas que são aplaudidas e reconhecidas pelos
seus pares. Lembro-me de um colega que não dava aulas — pois
se dizia que ele sabia tanto que não conseguia “descer” ao nível
dos alunos!!! — e conseguia se manter como estrela no departa-
mento, pois fazia pesquisa e publicava; mas em todos os seus
seminários e conferências começava dizendo: “O que eu faço é tão
especializado e avançado que só umas duas ou três pessoas no
mundo conseguem entender.” E os ouvintes passavam uma hora
ouvindo o que, conforme o próprio conferencista havia previsto,
92
* não conseguiam entender. E esse indivíduo se aposentou com o
* maior prestígio — claro, prestígio só entre o círculo de colegas
assombrados. Em outros círculos jamais sua presença foi notada
nem ele contribuiu coisa alguma para a humanidade. Esse é um
* exemplo de mistificação em torno de pesquisa. E não é um fenô-
meno apenas brasileiro.
É interessante tecer alguns comentários a esse respeito. Há
uma tendência no Brasil, e de fato em inúmeros países, sobretudo
naqueles desenvolvidos, de se buscar modelos no exterior. Acre-
dita-se que a pesquisa lá é mais bem conduzida e que andaríamos
melhor copiando e imitando soluções de outros. Engano. Sem
dúvida, temos muito a aprender de outros e a saída de brasileiros
para pós-graduação e estágios no exterior e para participação em
conferências, congressos, seminários e outros eventos é da mais
alta importância. Mas se faz muita coisa boa e o intercâmbio
dentro do país é também muito importante. Particularmente em
educação matemática, o Brasil tem propostas muito interessantes.
Há muita pesquisa e de bom nível em andamento no país.!
Criam-se critérios para dizer se uma pesquisa é boa ou não,
se é metodologicamente aceitável ou não, se é rigorosa ou não, e
daí vários outros elementos de mistificação.
Um exemplo muito interessante refere-se ao movimento
chamado matemática moderna ou new mathematics nos Estados
Unidos. Uma observação sobre o que ele chama “o desastre da
nova matemática” foi muito bem feita recentemente por John
Eisenberg, do Ontario Institute for Studies in Education:
A fraqueza fundamental deste e de outros programas é que
eles são pensados para produzir resultados cognitivos,
1. O Mapeamento de pesquisas/estudos/trabalhos técnico-científicos da área da
educação matemática no Brasil — 1994 (Brasília, Inep/MEC, 1994) é um
importante documento com um elenco da grande parte da pesquisa que
se faz no país em educação matemática.
93
sociais, e morais e afetivos específicos, sem prestar atenção
aos contextos nos quais eles são dados, e sem reconhecer
gue nenhum programa pode garantir com certeza a criação
de resultados de aprendizagem, habilidades ou sociais.
Tais programas não só ignoram quão únicos são os estu-
dantes, professores, administradores, e instituições envol-
vidas, mas, o que é ainda mais sério, ignoram a indetermi-
nação inerente à situação, que é o aspecto-chave da existên-
cia humana.
Essencialmente, Eisenberg diz que mesmo se baseando em
teorias e princípios válidos, as reformas educacionais baseadas em
pesquisa são inócuas. Como consegiência, podemos dizer que a
pesquisa é algo intrínseco à prática e que não há muita relevância
em uma pesquisa desvinculada da prática. O professor na sala de
aula efetivamente contribui, mesmo que sua pesquisa seja olhada
com desdém e às vezes até não seja reconhecida pelos acadêmicos.
Etimologicamente, pesquisa está ligada a investigação, a
busca (= quest), a research (search = procura), e a idéia, sempre a
mesma, é a de mergulhar na busca de explicações, dos porquês e
dos comos, com foco em uma prática. Claro, o professor está
permanentemente num processo de busca de aquisição de novos
conhecimentos e de entender e conhecer os alunos. Portanto, as
figuras do professor e do pesquisador são indissolúveis.
O fato é que pesquisa é inerente à própria vida. Todos
exercem uma prática — isto é, fazem — e isso com suporte em
alguma teorização — isto é, sabem. O Novo Dicionário Aurélio dá
três acepções para a palavra pesquisa, que essencialmente signi-
fica buscar com diligência, investigar, informar-se a respeito, in-
dagar, devassar.
2. John Eisenberg, “The limits of educational research: Why most research
and grand plans in education are futile and wasteful”, im: Curriculm Inquiry
nº 4. 1995, vol. 25, pp. 367-380.
94
D Matemática experimental, modelos e projetos
Para muitos isso soa estranho. Matemática experimental?
O caráter experimental da matemática foi removido do ensino e
isso pode ser reconhecido como um dos fatores que mais contri-
buíram para o mau rendimento escolar. Os professores das ciên-
cias naturais, sobretudo biologia, parecem ter sido mais arroja-
dos em propor uma abertura do currículo levando o aluno a
fazer, quando adotaram o método de projetos. Mais recentemen-
te, o estudo das ciências ambientais serviu para encorajar ainda
mais a inovação nessa área. Em menor escala o ensino da física e
da química também tem mostrado inovações. O mais resistente
tem sido a matemática.
Uma importante modalidade de projetos são os modelos
matemáticos.” Essencialmente, a utilização de modelos matemá-
ticos depende de uma rotina de ações que está sintetizada no
esquema seguinte:
ão de projetos nas várias áreas de ensino de ciências e matemática
a asas de ciências e matemática na América Latina. Coord.
Ubiratan D' Ambrosio, Campinas, Unicamp/Papirus, 1984. E
4. Veja Ubiratan D' Ambrosio “Modelos matemáticos do mundo real ", em
Ciência Interamericana nº 1-2. 1980, vol. 20, pp. 4-7. A Sociedade Brasileira
de Educação Matemática/SBEM fez publicar o número temático da
Revista de Educação Matemática da SBEM nº 4, 1994, sobre o tema Modelos
matemáticos”. Aí se vêem inúmeros exemplos de modelagem possíveis
de ser usados nos cursos de 1º, 2ºe 3º graus.
95
Muitos estão se perguntando: “Mas e a matemática de ver-
dade, isto é, as fórmulas e os teoremas?” Claro, isso também tem
lugar e deve ser tratado, mas com muito bom senso.
Por exemplo, o caso clássico de demonstrar por indução que
1422432... 4n2="k (n41) (2n+1)
dá oportunidade de inúmeras abordagens.
Ou o famosíssimo teorema dizendo que nos poliedros con-
vexos o número de vértices menos o número de arestas mais o
número de faces é sempre igual a 2, isto é,
V-A+F=2.
Claro, um ou outro aluno vai encontrar nesses exemplos
seu interesse e, quem sabe, mesmo sua vocação de matemático.
Mas para a enorme maioria, isso não faz qualquer sentido, é
desinteressante e obviamente inútil. Temos tido experiência de
muitos jovens, principalmente os de menor idade, das primei-
ras séries do 1º grau, que gostam de brincar com essas fórmu-
las. No primeiro caso, usando uma calculadora. No segundo,
contando os números de vértices, de arestas e de faces em
sólidos e verificando a fórmula. Matemática é isso. Também
com uma calculadora, trabalhar com “fatorial” — simplesmen-
te achar 6!, dividir 6! por 5! e outros exemplos do tipo — tem se
mostrado muito atrativo.
É possível que exemplos desse tipo consigam despertar al-
gum interesse entre os jovens se dissermos que desde mais de dois
mil anos muita gente tem ficado famosa por se interessar por essas
questões. Mas como justificar a aprovação ou reprovação de alunos
por não se interessarem por nenhuma dessas motivações e por
serem ou não serem capazes de papaguear essas demonstrações
100
num exame? Da mesma maneira que é impossível justificar apro-
var ou reprovar alguém pela sua capacidade ou não de efetuar
2 4,+º As ou 125767 x 678953. Nada disso é essencial em geral.
Deixo aqui para os leitores, professores de matemática,
alguns exercícios: trabalhar esses conteúdos. São três exer-
cícios interessantes: 1. demonstrar a fórmula da soma dos
quadrados dos inteiros; 2. demonstrar a fórmula de Euler;
3. efetuar, com todas as explicações e todos os “porquês”,
as duas contas do fim do parágrafo acima.
Para os cursos de licenciatura, as aulas de conteúdo seriam
muito mais interessantes se em vez de dar uma lista de pontos
tradicional, que geralmente é fria e desconectada, fossem estuda-
dos, em muito dos seus aspectos — teóricos, históricos, experi-
mentais, aplicações —, fórmulas e resultados importantes e ge-
rais. Daria para fazer um currículo para licenciatura, muito me-
lhor que os currículos atuais, com “três pontos”: 1, 2 e 3, da
listinha de exercícios acima. Lamentavelmente, os alunos acabam
um curso de licenciatura e tornam-se professores sem conhecer o
conteúdo do Liber abbaci” E alguns desses ainda têm coragem de
se declarar contra o uso de calculadoras!
Eu vou mais longe: os próprios bacharelados e pós-gradua-
ções, que pretendem formar pesquisadores matemáticos, deve-
riam introduzir disciplinas monográficas com ementas reduzidas
às questões 1, 2 e 3. E para dizer que não falei de 3º e 4º graus,
proponho que se ofereça uma disciplina cuja ementa, sintetizan-
do 20 séculos de matemática, é simplesmente
e7+1=0
7. Um livro muito importante e interessante, que poderia ser adotado com
muito proveito nas licenciaturas, é de José Francisco Marques Introdução à
teoria dos números. Piracicaba, Editora da Unimep, 1993.
101
Se quiserem um programa para um outro semestre de pós-
graduação, que na verdade pode ser estendido por quantos anos
quiserem, aí vai:
estudos em torno de x” + y" ="
A construção de papagaios, de avióezinhos de papel, os
resultados de jogo de futebol e, naturalmente, o noticiário econômi-
co — todos dão grandes oportunidades de se discutir matemática.
Muitos perguntam: Por que não se fazia isso em outros
tempos? Muito se fazia nas aulas de trabalhos manuais, que eram
parte do currículo até 40 anos atrás. Mas era quase impossível
fazer quantificações e por isso trabalhos manuais não eram con-
siderados matemática. Era impossível fazer quantificações pois é
sempre necessário trabalhar com números grandes e não inteiros.
A dificuldade de manipular essas contas com o método tradicio-
nal de al-Kwarizmi/Fibonacci era enorme. Hoje isso se tornou
trivial com as calculadoras e daí a possibilidade de se recuperar a
experimentação em matemática.
O Apesquisa qualitativa
Sempre que se pensa em pesquisa em educação, vem a idéia
de se fazer uma tomada de dados, aplicar um questionário e uma
estatística. Isso é típico do que se chama pesquisa quantitativa e
que foi dominante na educação. Qualquer trabalho sem um trata-
mento estatístico não poderia ser chamado pesquisa. Felizmente
isso caiu e mesmo a revista mais importante da área, o Journal of
Research in Mathematics Education, passou a aceitar artigos de
pesquisa qualitativa.
A pesquisa qualitativa é muitas vezes chamada etnográfica,
ou participante, ou inquisitiva, ou naturalística. Em todas essas
102
nomenclaturas, o essencial é o mesmo: a pesquisa é focalizada no
indivíduo, com toda a sua complexidade, e na sua inserção e
interação com o ambiente sociocultural e natural. O referencial
teórico, que resulta de uma filosofia do pesquisador, é intrínseco
ao processo. Naturalmente a interação pesquisador-pesquisado é
fundamental e por isso essa modalidade é muitas vezes chamada
pesquisa-ação. Não é surpreendente o fato de essa modalidade de
pesquisa ser típica dos antropólogos. Há uma boa literatura dis-
ponível sobre isso.”
O principal é um desenho qualitativo para se abordar uma
questão. Desde que a questão envolva seres humanos, são essen-
ciais a descrição e a reconstrução de cenários culturais, o que é
normalmente chamado uma etnografia.”
A pesquisa qualitativa organiza-se em algumas etapas:
1. Formulação das questões a serem investigadas com
base no referencial teórico do pesquisador;
2. Seleção de locais, sujeitos e objetos que constituirão o
foco da investigação;
3. Identificação das relações entre esses elementos;
4. Definição de estratégias de coleção e análise de dados;
5. Coleção de dados sobre os elementos selecionados no
item 2 e sobre as relações identificadas no item 3;
6. Análise desses dados e refinamento das questões for-
muladas no item 1 e da seleção proposta no item 2;
8. Ver a interessante coletânea organizada por Maria A.V. Bicudo e Vitoria
HC. Esposito Pesquisa qualitativa em educação (Piracicaba, Editora da
Unimep, 1994), que é apoiada na fenomenologia. Ver também o livro de
Carlos Rodrigues Brandão (org) Pesquisa participante. São Paulo,
Brasilense, 1990.
9. Um livro excelente é Judith Preissle Goetz e Margaret Diane LeCompte
Ethnography and qualitative design in educational research. Orlando,
Academic Press, 1984.
103
7. Redefinição de estratégias definidas no item 4;
8. Coleta e análise dos dados.
A validação da pesquisa qualitativa é menos direta que no
caso da pesquisa quantitativa, em que critérios matemáticos são
sempre utilizados. Por isso a pesquisa quantitativa é muitas vezes
chamada positivista.
Na pesquisa qualitativa a validação é muito influenciada
por critérios subjetivos, mas tem um bom grau de rigor com base
na metodologia da pesquisa. Essencialmente, o registro dos da-
dos deve ser o mais referenciado possível: se escrito, data, local e
hora das anotações, com elementos identificadores dos locais e
objetos descritos e dos indivíduos entrevistados; se gravado ou
fotografado, as fitas devem ter esses mesmos dados. A análise dos
dados depende de uma fundamentação teórica que, obviamente,
depende do pesquisador e de suas interpretações. Assim, a pes-
quisa qualitativa é muitas vezes chamada hermenêutica. Mas não
é apropriado elaborar sobre isso neste livro."
Fica também muito claro que essa modalidade de pesquisa
depende muito de o pesquisador estar em atividade na sala de
aula como professor.”
O Asala de aula
Ao começar a aula, o professor tem uma grande liberdade
de ação. Dizer que não dá para fazer isso ou aquilo é desculpa.
Muitas vezes é difícil fazer o que se pretende, mas cair numa
rotina é desgastante para o professor. A propósito, hoje é comum
10. Isto é muito bem discutido no livro citado na nota anterior.
11. O livro de José Valdir Floriani Professor e pesquisador (Blumenau, Editora
da Furb, 1994) aborda muito bem essa questão.
104
nas propostas para melhoria de eficiência profissional a recomen-
“dação de evitar a rotina. Recomenda-se que nenhum profissional
deve fazer a mesma coisa por mais de quatro ou cinco anos. A
aparente aquisição de uma rotina de execução conduz à falta de
criatividade e consequentemente à ineficiência. Mas, o que é mais
grave, ao estresse. Sobretudo no magistério, o estresse tem sido
apresentado como uma das causas mais frequentes de inabilita-
ção profissional. Inúmeros estudos conduzidos pela Organização
Internacional do Trabalho indicam ser o magistério uma das
profissões mais estressantes. Estudos recentes no Brasil, ainda
muito raros, indicam ser a situação em nosso país das mais gra-
ves. Além das dificuldades intrínsecas à profissão, temos um
dos mais baixos índices salariais do mundo.
Sabe-se que é comum um professor dar aulas, repetidos
anos, na mesma série. Sobretudo nas universidades, é muito
comum o professor que repetidamente, às vezes até por 20 anos,
leciona cálculo II. Dificilmente se poderia pensar em maior absur-
do. Deve ser tolerado um máximo de três anos para se ensinar
numa mesma série ou uma mesma disciplina, principalmente em
se tratando de professores de matemática. Para as demais disci-
plinas há uma reciclagem do conhecimento que resulta da pró-
pria dinâmica do conhecimento disciplinar. Por exemplo, um
professor de geografia política não consegue dar aulas com o
mesmo conteúdo nem mesmo no curso de um ano. No caso da
matemática, a atitude falsa e até certo ponto romântica de que a
matemática é sempre a mesma e a crendice de que o que era há
dois mil anos ainda é hoje produzem verdadeiros fósseis vivos
entre nossos colegas.
É interessante tirar um pouco a impressão de que o professor
inova simplesmente mudando o arranjo das carteiras na sala! Há
pouco li num noticiário que haveria um grande progresso num
12. Uma pesquisa muito importante sobre isso vem sendo conduzida por
Marcos Juliano Coutinho Dias e uma equipe em Belo Horizonte.
105
educação indígena, que no Brasil recebeu atenção especial nos
últimos anos graças ao trabalho de educadores como Marineuza
Gazetta, Eduardo S. Ferreira, Mariana K. Leal Ferreira, Ednéia
Poli Mignoni, Samuel Lopez Bello e inúmeros outros, oferece-nos
excelentes oportunidades de reflexão sobre o tema do multicultu-
ralismo em educação, em especial em educação matemática.
Igualmente importantes têm sido os trabalhos de Martha Villavi-
cencio, no Peru e na Bolívia; de Claudia Zaslavsky e de Paulus
Gerdes, na África; de Bill Barton, na Nova Zelândia; de John
Malone, na Austrália; de Marcia e Robert Ascher, em várias cultu-
ras, e de inúmeros outros educadores matemáticos trabalhando
com coriunidades nativas.
O Aeducação multicultural e o programa etnomatemíática
Dentre os vários questionamentos que levam à preservação de
identidades nacionais, muitos se referem ao conceito de conhecimento
eàs práticas associadas a ele. Talvez o mais importante a destacar seja
a percepção de uma dicotomia entre saber e fazer, que prevalece no
mundo chamado “civilizado” e que é própria dos paradigmas da
ciência moderna, como criada por Descartes, Newton e outros.
Surgindo praticamente ao mesmo tempo que as grandes
navegações, a conquista e a colonização, a ciência moderna se
impôs como uma forma de conhecimento racional, originado das
culturas mediterrâneas e substrato da eficiente e fascinante tecno-
logia moderna. Definiram-se, com base no ponto de vista das
nações centrais, conceituações estruturadas e dicotômicas de sa-
ber [conhecimento] e de fazer [habilidades].
É importante lembrar que está em plena vigência no Brasil o
Plano Decenal de Educação para Todos 1993-2003 do Ministério de
Educação e do Desporto/MEC. O Plano Decenal é inspirado e
repousa sobre a Declaração de Nova Delhi (16 de dezembro de
1993), da qual o Brasil é signatário e que é explícita ao reconhecer que
no
a educação é o instrumento preeminente da promoção dos
valores humanos universais, da qualidade dos recursos
humanos e do respeito pela diversidade cultural (2.2) (e
que) os conteúdos e métodos de educação precisam ser
desenvolvidos para servir às necessidades básicas de
aprendizagem dos indivíduos e das sociedades, proporcio-
nando-lhes o poder de enfrentar seus problemas mais ur-
gentes — combate à pobreza, aumento da produtividade,
melhora das condições de vida e proteção ao meio ambien-
te — e permitindo que assumam seu papel por direito na
construção de sociedades democráticas e no enriquecimen-
to de sua herança cultural. (2.4)
Nada poderia ser mais claro nessa declaração que o reco-
nhecimento da subordinação dos conteúdos programáticos à di-
versidade cultural que impera num país como o Brasil. deualmess
te o reconhecimento de uma variedade de estilos de aprendiza-
gem, implícito no apelo ao desenvolvimento de novas
metodologias. Essencialmente, essas considerações determinam
uma enorme flexibilidade tanto na seleção de conteúdos quanto
na metodologia.
Q O processo de globalização
Abordagem a distintas formas de conhecer éa essência do
programa etnomatemática. Na verdade, diferentemente ta que
sugere o nome, etnomatemática não é apenas O estudo de “mate-
máticas das diversas etnias”. Para compor a palavra cino matema
tica utilizei as raízes tica, matema e etno para significar que há
várias maneiras, técnicas, habilidades (tica) de explicar, de enten-
der, de lidar e de conviver (matema) com distintos contextos natu-
rais e socioeconômicos da realidade (etno).
1. Oúltimo número da revista For the Learning of. Mathematics (nê2, junho 1994,
vol. 14) é inteiramente dedicado à etnomatemática, cujo grande objetivo éo
estudo de outras formas de conhecimento. Igualmente, a Sociedade rasileira
de Educação Matemática — SBEM — resolveu dedicar o primeiro número
mm
A disciplina denominada matemática é na verdade uma
etnomatemática que se originou e desenvolveu na Europa, tendo
recebido algumas contribuições das civilizações indiana e islâmi-
ca e que chegou à forma atual nos séculos XVI e XVII, e então
levada e imposta a todo o mundo a partir do período colonial.
Hoje adquire um caráter de universalidade, sobretudo em virtude
do predomínio da ciência e da tecnologia modernas, desenvolvi-
das a partir do século XVII na Europa.
Essa universalização é um exemplo do processo de globaliza-
ção que estamos testemunhando em todas as atividades e áreas de
conhecimento. Falava-se muito das multinacionais. Hoje as multi-
nacionais são na verdade empresas globais, para as quais não é
possível identificar uma nação ou grupo nacional dominante.
A proposta de globalização já começa a se definir no início do
cristianismo e do islamismo. Diferentemente do judaísmo, do qual
essas religiões se originaram, bem como de inúmeras outras crenças
nas quais há um povo eleito, o cristianismo e o islamismo são essen-
cialmente religiões de conversão de toda humanidade à mesma fé, de
todo o planeta subordinado à mesma igreja. Isso fica evidente no
processo de expansão do Império Romano cristianizado e do Islão.
O processo de globalização da fé cristã aproxima-se do seu
ideal com as grandes navegações. O catecismo, elemento funda-
mental da conversão, é levado a todo o mundo. Assim como o
cristianismo é um produto do Império Romano levado a um
caráter de universalidade com o colonialismo, também o são a
matemática, a ciência e a tecnologia.
No processo de expansão, o cristianismo foi se modifican-
do, absorvendo elementos da cultura subordinada e produzindo
variantes notáveis do cristianismo original do colonizador. Espe-
Tar-se-ia que igualmente as formas de explicar, conhecer, lidar,
conviver com a realidade sociocultural e natural, obviamente
distintas de região para região, e que são as razões de ser da
(ano I, nº 1, 2º semestre de 1994) de sua nova revista temática, A Educação
Matemática em Revista, ao tema “etnomatemática”.
matemática, das ciências e da tecnologia, passassem por esse
processo de “aclimatação”, resultado de uma dinâmica cultural. No
entanto, isso não se deu e não se dá e esses ramos do conhecimento
adquiriram um caráter de absoluto universal. Não admitem varia-
ções ou qualquer tipo de relativismo. Isso se incorporou até no dito
popular “tão certo quanto dois mais dois são quatro”. Não se discute
o fato, mas sua contextualização na forma de uma construção sim-
bólica que é ancorada em todo um passado cultural.
OQ Amatemática e a etnomatemática
A matemática tem sido conceituada como a ciência dos
números e das formas, das relações e das medidas, das inferên-
cias, e as suas características apontam para precisão, rigor, exati-
dão. Os grandes heróis da matemática, isto é, aqueles indivíduos
historicamente apontados como responsáveis pelo avanço e pela
consolidação dessa ciência, são identificados na Antiguidade gre-
ga e, posteriormente, na Idade Moderna, nos países centrais da
Europa, sobretudo Inglaterra, França, Itália, Alemanha. Os nomes
mais lembrados são Tales, Pitágoras, Euclides, Descartes, Galileu,
Newton, Leibniz, Hilbert, Einstein, Hawkings. São idéias e ho-
mens originários da Europa, ao norte do Mediterrâneo.
Portanto, falar dessa matemática em ambientes culturais
| diversificados, sobretudo em se tratando de nativos ou afro-ame-
ricanos ou outros não europeus, de trabalhadores oprimidos e
de classes marginalizadas, além de trazer a lembrança do con-
quistador, do escravista, enfim do dominador, também se refere
a uma forma de conhecimento que foi construída por ele, domi-
nador, e da qual ele se serviu e se serve para exercer seu
domínio. Mas isso também se passa com calças jeans, que agora
começam a substituir todas as vestes tradicionais, ou com a
Coca-Cola, que está por deslocar o guaraná, com o rap, que está
se popularizando tanto quanto o samba. Mas a conotação que
tem a matemática de infalibilidade, de rigor, de precisão e de
ser um instrumento essencial e poderoso no mundo moderno
torna sua presença exclusiva de outras formas de pensamento.
n3
Na verdade, ser racional é identificado com dominar a matemáti-
ca. A matemática apresenta-se como um deus mais sábio, mais
milagroso e mais poderoso que as divindades tradicionais e ou-
tras tradições culturais.
Se isso pudesse ser identificado apenas como parte de um
processo perverso de aculturação, por meio do qual se elimina a
criatividade essencial ao ser [verbo] humano, eu diria que essa
escolarização é uma farsa. Mas é pior, pois na farsa, uma vez
terminado o espetáculo, tudo volta ao que era, ao passo que na
educação o real é substituído por uma situação que é idealizada
para satisfazer os objetivos do dominador. Nada volta ao real ao
terminar a experiência educacional. O aluno tem suas raízes cul-
turais, parte de sua identidade, e, no processo, essas são elimina-
das. Isso é evidenciado, de maneira trágica, na educação indígena.
O índio passa pelo processo educacional e não é mais índio... mas
tampouco branco. Sem dúvida a elevada ocorrência de suicídios
entre as populações indígenas está associada a isso.
Uma pergunta natural depois dessas observações: Seria
então melhor não ensinar matemática aos nativos e aos margina-
lizados? Essa pergunta aplica-se a todas as categorias de sa-
ber/fazer próprios da cultura do dominador, com relação a todos
Os povos que mostram uma identidade cultural. Poder-se-ia re-
formular a questão: Seria melhor desestimular ou mesmo impe-
dir que as classes populares vistam jeans ou tomem Coca-Cola ou
pratiquem o rap? Naturalmente são questões falsas, e falso e
demagógico seria responder com um simples sim ou com um não.
Essas questões só podem ser formuladas e respondidas dentro de
um contexto histórico, procurando entender a e(in?)volução irre-
versível dos sistemas culturais na história da humanidade. A
contextualização é essencial para qualquer programa de educa-
ção de populações nativas e marginais, mas não menos necessária
para as populações dos setores dominantes se quisermos atingir
uma sociedade com eqiidade e justiça social.
Contextualizar a matemática é essencial para todos. Afinal,
como deixar de relacionar os Elementos de Euclides com o panora-
nas eia
ma cultural da Grécia antiga? Ou a aquisição da numeração indo-
arábica com o florescimento do mercantilismo europeu nos séculos
XIV e XV? E não se pode entender Newton descontextualizado.
Sem dúvida será possível papagaiar alguns teoremas, decorar ta-
buadas e mecanizar a efetuação de operações, e mesmo efetuar algu-
mas derivadas e integrais, que nada têm a ver com nada nas cidades,
nos campos ou nas florestas. Alguns dirão que vale como a manifes-
tação mais nobre do pensamento e da inteligência humana...
Lamentavelmente continuamos a insistir que inteligência e
racionalidade estão identificadas com matemática. Que essa cons-
trução do pensamento mediterrâneo, levado à sua forma mais
pura pelos povos acima do paralelo 42º, é a essência do ser
racional. E assim se justifica que esses povos acima do paralelo 42º
tenham tratado e continuem tratando a natureza como celeiro
inesgotável e a humanidade como seus servos.
Q O problema político
Naturalmente há um importante componente político nes-
sas reflexões. Apesar de muitos dizerem que isso é jargão ultra-
passado de esquerda, é claro que ainda há classes dominantes e
subordinadas, países centrais e periféricos.
Cabe, portanto, referirmo-nos a uma “matemática domi-
nante”, que é um instrumento desenvolvido nos países centrais e,
muitas vezes, utilizado como instrumento de dominação. Essa
matemática e os que a dominam apresentam-se com postura de
superioridade, com o poder de deslocar e mesmo eliminar a
“matemática do dia-a-dia”. O mesmo se dá com outras formas
culturais. Particularmente interessante são os estudos de Basil
Bernstein sobre a linguagem. E são muito conhecidas as situações
ligadas ao comportamento, à medicina, à arte e à religião. Todas
essas manifestações são referidas como cultura popular. Natural-
mente, embora seja viva e praticada, a cultura popular é muitas
vezes ignorada, menosprezada, rejeitada, reprimida e certamente
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