Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Fundamentos do Processo Penal - Capitulo 1: O fundamento da existência do processo penal: Instrumentalidade constitucional, Manuais, Projetos, Pesquisas de Processo Penal

Capitulo 1 do livro Fundamentos do Processo Penal, de Aury Lopes Jr.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2019

Compartilhado em 02/08/2019

vanessa.silva3
vanessa.silva3 🇧🇷

5

(1)

1 documento


Pré-visualização parcial do texto

Baixe Fundamentos do Processo Penal - Capitulo 1: O fundamento da existência do processo penal: Instrumentalidade constitucional e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Processo Penal, somente na Docsity! Capítulo 1 O fundamento da existência do processo penal: instrumentalidade constitucional 1.1. Constituindo o processo penal desde a Constituição. A crise da teoria das fontes. A Constituição como abertura do processo penal A primeira questão a ser enfrentada por quem se dispõe a pensar o processo penal contemporâneo é exatamente (re)discutir qual é o fundamento da sua existência, por que existe e por que precisamos dele. A pergunta poderia ser sintetizada no seguinte questionamento; um Processo penal, para quê(quem)? Buscar a resposta a essa pergunta nos conduz à definição da lógica do sistema, que vai orientar a interpretação e a aplicação das normas processuais penais. Noutra dimensão, significa definir qual € o nosso paradigma de leitura do processo penal, buscar o ponto fundante do discurso. Nossa opção é pela leitura constitucional e, dessa perspectiva, visualizamos o processo penal como instrumento de efetivação das garantias constitucionais. 3. Goldschmidt", a seu tempo”, questionou: Por que supõe a imposição da pena a existência de um processo? Se o ites puniendi corresponde ao Estado, que tem o poder soberano sobre 1. Problemas jurídicos y políticos del proceso penal, p. 7. 2. Logo, considerando que todo saber é dmado, interessa-nos mais a pergua- ta do que a resposta dada peão autor naquele momento, 31 seus súditos, que acusa & também julga por meio de distintos órgãos, pergunta-se: por que necessita que prove seu direito em um processo? A resposta passa, necessariamente, por uma leitura constitucio- nei do processo penal. Se, antigamente, o grande conflito era entre O direito positivo e o direito natural, atualmente, com à recepção dos direitos naturais pelas modernas constituições democráticas, o desa- fio é outro: dar eficácia a esses direitos fundamentais. Como aponta 1. Goldschmidt, os princípios de política proces- sual de uma nação não são outra coisa senão o segmento da sua po- Ytica estatal em geral; e o processo penal de uma nação não é um iermômerro dos elementos autoritários ou democráticos da sua ão. A uma Constituição autoritária vai corresponder um processo perial autoritário, utilitarista, Contudo, a uma Constituição democrática, como A Rossa, necessariamente deve corresponder una processo penal democrático, visto como instrumento à serviço da máxima eficácia do sistema de garantias constitucionais do indivíduo. Somente a partir da consciência ge que a Constituição deve efetivamente constituir (logo, consciência de que ela constitui a ação), é que se pode compreender que 9 fundamento legitimante da exis- tência do processo penal democrático se dá por meio da sua instruá- mentalidade constitucional. Significa dizer que O processo penal contemporâneo somente se legitima à medida que se democratizar e for devidamente constituído a partir da Constituição. exsurgente do Estado Demo- dirigente e vim- Constitui Cremos que 0 constitucionalismo, erático de Direito, pelo seu perfil compromissário, culativo, constitui a ação do Estado'! Com a precisão conceitual que lhe caractetiza, Juarez Tavares ensina que nessa questão entre Hiberdade individual e poder de inter- venção do Estado não se pode esquecer de que à “garantia € o exer- eício da liberdade individual não necessitam de qualquer legitimação, em face de sua evidência”. 7. Problemas jurídicos y políticos del proceso porial, p. 67. 4. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica, p. 19. 5 TAVARES, are. Teoria do injusto penal, p. 162 32 mesmo um pressuposto para o.Estado Democrático de Direi Todo aspas uma afirmação simples, despida de maior dimensão. : . À perigosa viragem discursiva que ) (imposta atualmente i a oo pelos movimentos repressivi i i Gm) posi atcalimem Os Tepressivistas e as ideologias A que, cada vez mais, a “liberdade” seja * it ria” (até o CPP consa, i vi posando gra a liberdade provisóri: i fe O da j a...) € a prisão cautelar ma regra. Ou, ainda, aprofundam-se a di 1 , , -se a dis- unsto e se auestionamentos sobre a legitimidade da própria hivenda , principalmente no âmbito processual . : a : enal, ” do a lógica do sistema jurídico-constitucional. º Subventen Essa perigosa inversão de sinais exi É tigosa in sinais exige um chogue à luz da lepi- dimação a priori da hberdade individual, e a Giscusção deve ada que necessita do To creio muito bem circunscrito por Tavares. “o. legitimação é o poder de punir do Esl e necessita ( tado, € legitimação não pode resultar de que ao Estado se lhe res: E reito de imervenção”. ad Destaque-se: o que necessi dt :0 q ssita ser legitimado e justificado é tu E ET a o poe de punir, €.a intervenção estatal é não a liberdade à divida 7 Mais, ee legitimação não poderia resultar de uma antoatribuição « do” ê autolegitimação, que conduza a uma situação i tica, portanto). Mas essa já seni; i doem tomo « do prio à, pol já seria outra discussão em torno da Tó) legitimidade da pena, que extravasa os limites deste trabalho. Pe 1 na Sberdade individual, x decorrer necessariamente do direito Ai 8 dá própria dignidade da pessoa humana, está amplamente agrada no texto constitucional e tratados internacionais, sendo to em que vivemos. ate Essa é uma premissa básica que norteia toda a obra: questionar HÉ a egitim dade do. poder de intervenção, por conceber a liberdade omo valor primevo do processo penal, reatadõa mesmo é conceito de bem jurídico pode continuar sendo sse intune aos valores do Estado Dk i e emoerático. Como adverte Tavares”, “a questão da criminalização de condutas não 6. Idem, 7. TAVARES, Juarez. Troria do injusto penal, p, 200, 33 valor-guia não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda a ordem jurídica (constitucional e infraconstitucional), tazão pela qual para mui- tos se justífica plenamente sua caracterização como princípio constitu- cional de maior hierarquia axiológica-valorativa. Inclusive, na hipótese de conflito entre princípios e direitos cons- titucionalmente assegurados, destaca Sarlet!s, “o princípio da dignida- de da pessoa humana acaba por justificar (e até mesmo exigir) a impo- sição de restrições a outros bens constitucionalmente protegidos”. Isso porque, como explica o autor, existe uma inegável primazia da digni- dade da pessoa humana no âmbito da arquiterura constitucional, Algumas lições, por sua relevância, merecem ser repetidas nes- ta obra. É melhor pecar pela repetição do que correr O risco de per dê-la por uma leitura pontual que nossos leitores eventualmente façam. Assim, nunca é excesso repetir uma lição magistral de Juarez Tava- res!6, que nos ensina que nessa questão entre liberdade individual e poder de intervenção do Estado não se pode esquecer que a “garantia € 9 exercício da liberdade individual não necessitam de qualquer legitimação, em face de sua evidência”. : Destaque-se: o que necessita ser legitimado e justificado é o poder de punir, é a intervenção estatal e não a liberdade individual. A liberdade individual, por decorrer necessariamente do direito à vida e da própria dignidade da pessoa humana, está amplamente consagrada no texto constitucional e tratados internacionais, sendo mesmo um pressuposto para o Estado Democrático de Direito em que vivemos. Não há que se pactuar mais com a manipulação discursiva feita por alguns autores (e julgadores), que acabam por transformar a “liberdade” em “provisória” (até o CPP consagra a Hberdade provi- sória...), como se ela fosse precária, e, entretanto, a prisão cautelar (ou mesmo definitiva), uma regra. Essa perigosa inversão de sinais exige um choque à luz da legi- timação a priori da liberdade individual e à discussão deve voltar a 15, Ibidem, p. 115. 16. TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal, 3. ed., p. 162. 38 PO Puimnçõã 4 e, : . . centrar-se no ponto correto, muito bem circunscrito por Tavares": “o que necessita de legitimação é o poder de punirdo Estado”, k Essa é uma premissa básica que norteia toda a obra: questionar a legitimidade do poder de intervenção, por conceber a liberdade como valor primevo do processo penal. : s Entendemos que sociedade -- base do discurso de prevalência do vw? gW “público” — deve ser compreendida dentro da fenomenologia da coe- xistência, e não mais como um ente superior de que dependem os homens gue o integram. Inadmissível uma concepção antropomórfica, , na qual a sociedade é concebida como um ente gigantesco, onde os homens são meras células, que lhe devem cega obediência. Nossa atual Constituição e, antes dela, a Declaração Universal dos Direitos Hu- manos consagram. certas limitações necessárias para à coexistência e sé; não tolerais tal Sibmissão 6 Homem ao ente superior, essa visão "q SESPORHÓriCA que Gormesponde tm ciiema perl antostário” 1 Na mesma linha, Bobbio” explica que, atualmente, impõe-se o «uma postura mais liberal na relação Estado-indivíduo, de modo que si mesmo. O Estado só se justifica enquanto meio que tem como fim a tutela do homem e dos seus direitos fundamentais, porque buscã o Bem comum, que nada mais é do que o benefício de todos e de cada. Por isso, Ferrajoli fala da ley del más débil”. No momento do crime, a vítima é o hipossuficiente e, por isso, recebe a tutela penal, Contudo, no processo penal, opera-se uma importante-modificação: o mais fraco passa a sey o acusado, que frente ao poder de acusar do Estado sofre a violência institucionalizada do processo e, posterior Í mente, da pena. O sujeito passivo do processo, aponta Guamieri?, 17. ldem. : 18. ZAFFARONL, Eugenio Raúl: PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, p. 96. 19, No prólogo da obra de FERRAJOLI, Derecho y razón — teoria del garan- tismo penal, p. 18. 20. FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias = La ley del más débil. 21. Las partes en el proceso penal, p, 27%, 39 e primeiro vem o indivíduo e, depois, o Estado, que não é um fim em . passa a ser O protagonista, porque ele é o eixo em torno do qual giram todos os atos do processo. Amilton B, de Carvalho?, questionando para quê(m) serve a lei, aponta que a “a lei é o limite ao poder desmesurado +- leia-se, limite à dominação. Enio ao = cicamento considerada é proteção ao débil. Sempre e sempre, é a lei do mais fraco: aquele que sofre a dominação”. Nessa democratização do processo penal, o sujeito passivo deixa de ser visto como um mero objeto, passando a ocupar uma posição de destaque enquanto parte? com verdadeiros direitos e deveres?! É uma relevante mudança decorrente da constitacionaliza- ção e democratização do processo penal, Muito preocupante, por fim, é quando esse discurso da “preva- lência do interesse público” vem atrelado ao Princípio da Proporcio- nalidade, fazendo uma viragem discursiva para aplicá-lo onde não tem legítimo cabimento. Nesse tema, é lúcida à análise do Ministro Eros Grau, cuja citação, ainda que longa, deve ser objeto de reflexão. Diz o ilustre Ministro do Supremo Tribunal Federal no voto proferi- do no HC 95.009-4/8P (p. 44 e ss,): Tenho criticado aqui - e o fiz ainda recentemente (ADPF 144) a “banalização dos “princípios” (entre aspas) da proporcionalidade e da razoabilidade, em especial do primeiro, concebido cemo ua “princf- pio superior, aplicável a todo e qualquer caso concreto, o que confe- riria ao Poder Judiciário a faculdade de 'corrigir' o legislador, inva- dindo a competência deste. O fato, no entanto, é que proporcionalida- de e razoabilidade nem ao menos são princípios — porque não repro- duzem as suas características — porém postulados normativos, regras 22. “Lei, para que(m)?” Escritos de direito e processo penal em homenagem ao Professor Paulo Cldudio Tovo, p. 56 ss. o 23, É complexa a problemática doutrinária acerca da existência de partes no processo penal. Não sendo o momento oportuno para enfrentá-ia, limitamo-nos a esclarecer que quando falamos em partes estamos aludindo 2 um processo penal de partes, que trata o sujeito passivo não mais como um mero objeto. 24, Ou cargas, expectativas e perspectivas, se adotarmos a teoria do processo como situação jurídica, de James Goldschmidt. 40 de interpretação aplicação do direito”. No caso de que ora cogitamos esse falso princípio estaria sendo vertido na máxima segurado a qual “não há direitos absolutos.” E, tal como tem sido em nosso tempo pronunciada, dessa máxima se faz gazua apta a arrombar soda e qualquer garantia constitucional. Deveras, a cada direito que se ale- ga0 juiz responderá que esse direito existe, sim, mas não é absoluio, porquanto não se aplica ao caso, E assim se dá o esvaziamento do quanto construbnos ao longo dos séculos para fazer, de súditos, cida- dãos. Diante do inquisidor não temos qualquer direito. Ou melhor temos sim, vários, mas como nenhum deles é absoluso, nenhum é re- conhecível na oportunidade em que deveria acudir-nos. Primeiro essa gazua, em seguida despencando sobre todos, a pretexto da “necessária atividade persecutória do Estado”, a “supremacia do interesse público sobre o individual”. Essa premissa que se pretende prevaleça no Direito Administrativo — não obstante mesmo lá sujeita à debate, aqui impertinente — não tem lugar em material penal e pro- cessual penal, Esta Corte ensina (HC 80.263, relator Ministro Ilmar Gaivão) que a interpretação sistemática da Constituição “leva à com elusão de que a Lei Maior impõe a prevalência do direito à liberdade em detrimento do direito de acusar”, Essa éa proporcionalidade qa Je impõe em secie processual penal: Em caso de conflito de preceitos, DESSAS E RERO O MDORIo ME is A sua su- BIESSÃO À Nos afastando seo FECIRRTEROS 4 pavmma aossos). Em suma: nesse contexto político-processual, estão superadas as considerações do estilo “a supremacia do interesse público sobre O privado”. As regras do devido processo penal são verdadeiras ga- rantias democráticas (e, obviamente, constitucionais), muito além dessa dimensão reducionista de público/privado. Trata-se de direitos fundamentais - obviamente de natureza pública, se quisermos utilizar essa categoria Flimitadores da intervenção estatal 4 1.3. A influência dos movimentos repressivistas, Tolerância zero para quê(quem)? Desvelando a hipocrisia do discurso O. sistema penal (material e processual) não pode sex objeto de, uma análise estritamente jurídica, sob pena de ser minimalista, ingé- 4 nua até. O processo penal não está em um compartimento estanque, imune aos movimentos sociais, políticos e econômicos. À violência é um fato complexo”, que decorre de fatores biopsicossociais, Logo, E prooeõão, cao mr none eHise aa oca interdisci- plinar, a partir do caleidoscópio, isto é, devemos vigualizí-lo desde Daí a importância de enfrentar o terna, abordando, entre outros, a ideologia repressivista da “lei e ordem”, na medida em que é ma- nifestação do neoliberalismo para, após, desconstruir o utilitarismo processual por meio do paradigma constitucional. A visão de ordem nos conduz, explica Bauman”, a de pureza, a de estarem as coisas nos lugares “justos” e “convenientes”, É uma situação em que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhuma outro. O oposto da pureza (o imundo, O sujo) e da ordem são as coi- sas fora do seu devido lugar. Em geral, não são as características intrínsecas das coisas que as transformam em “sujas”, senão o estar fora do lugar, da ordem. Exemplifica o autor com um par de sapatos, magnificamente lustrados € brilhantes, que se tomam sujos quando colocados na mesa de refeições. Ou, ainda, uma omelete, uma obra de arte culinária que dá água na boca quando no prato do jantar; torna-se uma mancha nojenta quando derramada sobre o travesseiro”, Q exemplo é interessante e bastante ilustrativo, principalmente em ur país como o nosso, em que vira notícia no Jorhal Naci e 25. Explica Ruth Chittó Gauer (“Alguns aspectos da fenomenologia da vio- lência”. A Fenomenologia da violência, p. 136 88.) que a violência é um elemento estrutural, intrínseco ao fato social e não o resto axacrônico de uma ordem bárba- ra em vias de extinção. Esse fenômeno aparece em todas as sociedades; faz parte, portanto, de qualquer civilização ou grupo humano: basta atentar para a questão da violência no mundo atual, tanta nas grandes cidades como também nos recantos mais isolados. . 26. S6 o jurista consctênte da insuficiência do monólogo jurídico está apto à compreender a complexidade característica da sociedade contemporânea, Para tan- to, deve ter humildade científica suficiente para socoxer-se de leituras de sociologia, antropologia, história, psiquiatria etc., sem falar no lastro filosófico. Não há espaço para 6 profissional alienado, porque ele ali é nada. 27. BAUMAN, Zygmimt. O mal-estar da pós-modernidade, p. 44. 28. Idem. az Fes, um grupo de moradores da comunidade ter “descido o morro” e “invar dido” um skopph er no Bi à j to esti. verem no seu devido lugar, as coisas estão em ordem. Mas, 20 degce- rem o morro e invadirem o espaço.da burguesia, está posta a (nojenta) omelete no travesseiro. Está feita a desordem, a quebra da organic, ção do ambiente. Í i Explica Bauman que “ordem” " significa um meio regular e estável para os nossos atos; um mundo em que as probabilidades dos acontecimentos não estejam distribuídas ao acaso, mas arrumadas numa hierarquia estrita - de modo que certos acontecimentos sejam altamente prováveis, outros menos prováveis, alguns virtualmente impossíveis”. Ora, tal cimpério da ordem” só pode ser fruto do autismo jurf- dico e de uma boa dose de má-fé, A falácia do discurso salta aos olhos, pois tal ordem, numa sociedade de risco como à nossa e com um altíssimo nível de complexidade, só pode decorrer do completo afas- tamento do direito da realidade e/ou da imensa má-fé por parte de quem o prega. Não sem razão foi o argumento largamente utilizado por programas políticos totalitários, como o nazismo (pureza de raça) ou mesmo o comunismo (pureza de classe). Mas “cada esquema de pureza gera sua própria sujeixa e cada ordem gera seus próprios estranhos”, Isso se reflete muito bem na tolerância zero para o outro e tolerância dez para nós e Os nossos. E ocritério da pureza é a aptidão de participar do jogo consumista. Os deixados de fora são os consumidores falhos e, como tais, incapazes de ser “indivíduos livres”, pois o senso de liberdade é definido a pastir do poder de escolha do consumidor. Eis os impuros, os objetos fora do lugar*!. O discurso da lei e da ordem conduz a que aqueles que não possuem capacidade para estar no jogo sejam detidos e neutralizados, preferencialmente com o menor custo possível. Na lógica da eficiência, vence o Estado Penitência, 29, Ibidem, p. 15. 30. Ibidem, p. 23, 31. Ibidem, p. 24, 43 cínio, extorsão mediante sequestro (agora na sua versão “relâmpage”) e o tráfico de entorpecentes cresce de forma alarmante, apenas para dar alguns pouços exemplos. Como aponta Vera Batista”, nos Estados Unidos, q marketing de que a redução da criminalidade urbana em Nova York foi conse- quência da política de tolerância zero é severamente criticada. É pura propaganda enganosa. Não é prendendo e mandando para a prisão mendigos, pichadores e quebradores de vidraças que a macrocrimi nalidade vai ser contida. As taxas de criminalidade realmente caíram em Nova York, mas também decresceram em todo país, porque não | é fruto da mágica política nova-iorquina, mas sim de um complexo avanço social e econômico daquele país. É fato notório que os Esta- dos Unidos têm vivido nas últimas décadas una eufórica evolução econômica, com aumento da qualidade de vida e substancial decrés- so estar mudando complexo, que decorre de um feixe de elementos (fatores biopsicossociais), em que o sistema penal desempenha um papel bastante secundário na sua prevenção. À demais, na expressão de Bitencourt”, a “falência da pe) são” É PiSvEnçi eeduca é tampouco ressocializa., Como resposia ao crime, a prisão é um instrumento ineficiente e que Serve apenas para estigmatizar e rotular O condenado, que, ao sair da Dessarte, o direito penal deve ser mínimo e a pena de prisão reserva- da para os crimes realmente graves, O que deve ser máximo é o Estado Social (algo que nunca tivemos). 42. BATISTA, Vera Malaguti de Souza. “Intolerância dez, ou a propaganda é a alma do negócio”, Discursos sediciosos. 43. Veja-se a obra de BITTENCOURT, Cesar Roberto. Falência da pena de prisão. , AA, Por ora, parece-nos. que o abolicionismo é utópico, principalmente nos pobres países da Amética Latina. 8 gável, Não serve — Como Zaffaroni”, entendemos que todo diseursus re está em ] sis. À pena de prisão não ressocializa, não reeduca, não reinsere socialmente, Do discurso “Te” somente se efetivam a, Ieincidênciae arejeigat social Eum discurso ao mesmo tempo real e falso. À falso | E o conteúdo, mas o discurso é real, ele existe e produz efeitos (legiti- q mantes do poder de punir), Só por acidente a pena ressocializa, porque, como define Gar- cía-Pablos de Molina, ia pena estigmatiza, no rehabilita. No limpia, mancha, ; Cómo puede apelarse a su función resocializadora cuando consta empiricamente todo lo contrario? Cómo se explica el impacto rehabilitador del castigo y la reinserción social del penado si, en la estimación social, j suele ser más el mero hecho de haber cumplido a pena que la propia mm comisión del delito, lo que implica wm grave demérito a dos ojos de los | conciudadanos. In O law and order é pura propaganda enganosa, que nos fará : a mergulhar numa situação ainda mais caótica. É maio fácil seguir no j Ê Ii caminho do direito penal si Jeis absurdas, penas des- proporcionadas e presídios superlotados, ds ente combater a criminalidade. Legislar é fácil e a diarrei islativa brasileira é Il Prova inequivoga disso. a O movimento de lei e ordem signífica uma triste opção pela gestão penal da pobreza. Ny Na síntese de Zaffaroni”, o aumento de penas abssratas ofere- cidas pela hipocrisia dos políticos, que não sabem o que propor, não têm espaço para propor, não sabem ou não querem modificar a * ] realidade, Como não têm espaço para modificar a realidade, fazem É ! o que é mais barato: leis penais! ; Difícil é reconhecer o frag; jez econômica, a ausên- i cia de programas sociais efetivos e o descaso com à Educação, ÃO. H 45. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. “Desafios do direito penal na era da globa- Ê lização”. Revista Consulex, p. 27 38, : 46. Criminologia, p. 288. ú 47. ZAFEARONI, Bugenio Rail. “Desafios do direito penai na era da globa- | Jização”, p. 27e ss. ] 49 ] ve tudo indica, O futuro será pior, pois os meninos de rua que Holi- Teram em qualquer cidade brasileira ingressam em mas: Taçulda- des do crime, chamadas FASE (antigas Febem). A pós-graduação é quase automática, basta completar 18 anos £ esc: lher algum. dos su- periotados presídios brasileiros, verdadeiros mestrados profissional zantes do crime. À Situação atualmente se vê agravada pela manipulação discur- siva em torno da sociologia do risco, revitalizando a (falsa) crença de que o direito penal pode restabelecer à (ilusão de) segurança. Na corteta definição de Cazvalho*, a pretensão e a soberba gerada pela crença romântica de que o direito penal pode salvaguardar a humanidade de sua destruição impedem o angustiante e doloroso, porém altamente saudável, processo de reco- nhecimento dos lirhites. Dessarte, quanto maior for o narcisismo penal, maior deve ser nossa preocupação com o instrumento-processo. Se o direito penal falha em virtude da panpenalização, cumpre &o processo penal o papel de filtro, evitando o (ab)uso do poder de perseguir e penar. O processo passa a ser 0 freio ao desmedido uso do poder, É a última instância de garantia frente à violação dos Princípios da Intervenção Mínima é da Fragmentariedade* do direito penal. 48. CARVALHO, Salo de. “A Ferida Narcísica do Direito Penal (primeiras observações sobre as (dis)funções do controle penal na sociedade contemporânea) P. A qualidade do tempo: para atém das aparências históricas, p. 207. 49. Como explica Cezar Bitencourt (Manual de direito perai, w. 1, p LI-12), o “princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que à ctiminalização de uma conduta só se legitima se constitui meio necessário para à proteção de determuinado bem jurídico”, cujos outros meios de comrole social revelaram-se insuficientes. A fiagmentariedade é decorrência da intervenção mínima e da reserva legal, signifi- cando que o direito peral “não deve sancionar condutas lesivas dos bens jurídicos, mas tão somente aquelas condutas mais graves e mais perigosas praticadas contra bene mais relevantes”. Sem embargo, na atualidade, o discurso fácil do repressivis- mo sancador fez com que o direito penal simbólico — de máxinia intervenção — se- pultasse tais princípios, reforçando a necessidade de termos um processo pemal ainda mais preocupado em resgatar à eficácia do sistema de garantias da indivíduo. 50 t.4, Direito e dromologia: quando o processo penal se põe a correr, atropelando as garantias Vivemos numa sociedade acelerada. À dinâmica contemporânea é impressionante é - como o risco”? - também está regendo toda nossa vida. Não só nosso emprego é temporário, pois se acabaram os empregos vitalícios, como também cada vez é mais comum os em» pregos em jornada parcial. Da mesma forma nossas “aceleradas” relações afetivas, com a consagração do ficar e do no future. Que dizer então da velocidade da informação? Agora passada em tempo real, via internet, sepultando o espaço temporal entre o fato ea notícia. O fato, ocorrido no outro lado do mundo, pode ser pre- senciado virtualmente em tempo real. A aceleração do tempo nos leva próximo ao instantâneo, com profundas consequências na questão tempo/velocidade. Também encurta ou mesmo elimina distâncias. Por isso, Virilio”! -- teórico da Dromologia (do grego dromos = velo- cidade) - afirma que “a velocidade é a alavanca do mundo modemo”, O mundo, aponta Virilio?, tornou-se o da presença virtual, da telepresença. Não só telecomunicação, mas também teleação (traba- Ho e compra a distância) e até em telessensação (sentir e tocar a distância). Essa hipermobilidade virtual nos leva à inércia, além de contrair espaços e intervalos temporais. Até mesmo a guerra nas sociedades contemporâneas são confrontos breves, instantâneos e virtuais, como se fossem wargames de computador, em que toda carga de expectativa está lançada no presente. Sob o enfogue econômico, o “cassino planetário” é formado pelas bolsas de valores que funcionam 24 horas por dia, em tempo real, com uma imensa velocidade de circulação de capital especulati- vo, gerando uma economia virtual, transnacional e imprevisível — li- berta do presente e do concreto. Isso fulmina com o elo social, pois 50. Estamos nos referindo ao risco exógeno (sociologia do risco) e endógeno Cinerente ao processo, enquanto situação jurídica dinâmica e imprevisível). Ambos serão tratados na contingação, 51. Sobre o tema: VÍRILIO, Paul. À inércia polar. 52.4 velocidade da libertação, p. 10. si aqueles que investem na economia real não têm coimo antecipar a ação, A imagem passa a ter visibilidade instantânea com o novo réfe- 4 . a à br i E desencorajando investimentos, destruindo empresas e empregos”. ca tua. O fascínio da Pragem conduz a qe “o que não évisível | | 1 Nessa lógica de mercado, para conseguir lucros, é preciso ace- ea Imagem não é televisável, portanto, não existe midiatica- ! j , i r i cada operação. t | R | pura oneeenêndis, stação do não do té Davega a choque emocional provocado pelas ima gens da T'V — sobre ; es inal de diminuição das encomendas, dispen- tudo as de aflição, de sofrimento e morte — não tem comparação cont nesse ttmo: ão da, É o Jeração levando O tÍsco 0 extremo. 9 sentimento que qualquer outto meio possa provocar. Suplanta assim sa-se à mão de obra. E a nene eraç temperários apontando para . a fotografia é os relatos, a ponto de que, quando não há imagens, Os! fala nos contratos de emprego tem); cria-se. A “veconstituição” das imagens não captadas passa a ser uma | ; fundamental para vender a emoção não apreendida no seu devido dl heterogeneização do tempo social, manifestada er ritmos sempre mais | tempo. Exemplos típicos são os programas policiais sensacionalistas | diversificados. Tempo conjugal e tempo parental dissociam-se”, ao | que proliferam nas televisões brasileiras, fazendo, inclusive, tecons- E passo que a organização fordista do trabalho dá lugar a uma flexibili- | tituições Ainda mais dramáticas dos crimes ocorridos para “captura E dade das prestações, mas também a uma nova precariedade dos em- psíquica” dos telespectadores. pregos. A duração prometeica dos Códigos e a promessa das institui- | Mas a velocidade da notícia e a própria dinâmica de uma socie- ções dão então Iugar a um tempo em migalhas que tem de ser recon- dade espantosamente acolerada são completamente diferentes da quistado a cada instante. Direito de visita negociado, estágio conse- velocidade do processo, ou seja, existe um tempo do direito que está | guido com dificuldade, emprego interino, tudo se passa como se rea- completamente desvinculado do tempo da sociedade. E o direito i pi ni di parecesse o antiquíssimo imperativo imposto aos pobres: viver o dia jamais será capaz de dar soluções à velocidade da luz. adia. Estabelece-se um grande paradoxo: à sociedade acostumada , | Sob outro enfoque, a aceleração obtida a partir do referencial | coma velocidade da virtualidade não uer esperar pelo processo, daí li | . luz é impressionante e afeta diretamente nossa percepção de tempo. a Pagão pelas prisões cautelares e a visibilidade de Ema imediata , ki Como aponta Virilio*, a tecnologia do final dos anos 1980 permitiu À punição. Assim querem o mercado ue Tião Ode esperar, pois fem- que os satélites transmitissem a imagem à velocidade da luz e isso Po É dinheiro) e a sociedade (que não quer esperar, p representou um avanço da mídia televisiva com relevante mudança . mada ao instam X de paradigma. Isso, ao mesmo tempo em que desliga do passado, mata o devir, N expandindo o presente, Desse presentefsmo/imediatismo brota o j Estado de Urgência, uma consequência natural da incerteza episte- o Í mológica, da indeterminação democrática, do desmoronamento do 53. OST, François. O tempo do direito, p. 353. Estado social e da correlativa subida da sociedade de risco, da ace- : 54, Ibidem, p. Em amento, Ost (ob. cit. p 390) aponta para um tem- leração e do tempo efêmero da moda. A urgência surge como forma | poco a No e o gatanento, que sobrevive no tempo do casamento. O casal pa- de correr atrás do tempo perdido. rental sobrevive ao casal conjugal na medida em que = apesar de o elo conjugal ter deixado de existir - a filiação simbólica em selação à criança permanece. A respon- Como explica Ost, isso significa que passamos dos relógios às | ilidade educativa dos dois cônjuges sobrevive ao tempo do casamento, sendo E nuvens”, no sentido de que não estamos mais vivendo um modelo Condicional e rena ente, É possível divorciar-se do cônjuge, mas não dos filhos. mecânico (relógio), linear e previsível de uma legistação piramidal, l incondicional : e a 1 ai ão, p.26 E senão o modelo das “nuvens”, interativo, recursivo e incerto de uma À 56. 4 velocidade da libertação, p. 26. E 53 : | 52 do o tempo de reflexão que lhe é inerente), que jamais poderá ser revertido, não só porque o tempo não volta, mas tamnbén porque não voltam a dignidade e a intimidade violentadas no cárcere. Inequivocamente, a urgência é um grave atentado contra a liber- dade individual, levando a uma erosão da ordem constitucional e ao rompimento de uma regra básica: o processo nasceu para retardar, para demorar (dentro do razoável, é claro), para que todos possam expressar seus pontos de vista é demonstrar suas versões e, princi- palmente, para que o calor do acontecimento e das paixões arrefeça, permitindo uma racional cognição. Em última análise, para que possamos racionalizar O acontecimento € aproximar o julgamento a um eritério mínimo de justiça. OQ ataque da urgência é duplo, pois, ao mesmo tempo em que impede a plena juridicidade (e jurisdicionalidade), ela impede a rea- lização de qualquer reforma séria, de modo que, “não contente em destruir a ordem jurídica, a urgência impede a sua reconstrução”. Surge um novos risco: o risco endógeno ao sistema jurídico em decorrência da aceleração e da (banatização) da urgência, Essa é uma nova insegurança jurídica que deve ser combatida, pois perfeitamen- te contormável. Não há como abolir completamente a Tegistação de urgência, mas tampouco se pode admitir a generalização desmedida da técnica. Entendemos que a esse novo risco deve-se opor uma (renovada) segurança jurídica, enquanto instrumento de proteção do indivíduo. Trata-se de recorrer a uma clara definição das regras do jogo para evitar uso desmedido do poder, enguanto redutor do arbítrio, impon- do ao Estado o dever de obediência. No processo penal, é o que convencionamos chamar de instrumentalidade constitucional, ou seja, o processo enquanto instrumento à serviço da máxima eficácia dos direitos e das garantias do débil a ele submetido. Afinal, o Estado é uma reserva ética e de legalidade, jamais podendo descumprir as regras do jogo democrático de espaços de poder. 65. OST, François. O tempo dlo direito, p. 366. 66. Ao lado do risco exógeno, inerente à nossa saciedade de risco. 58 Interessante é o exemplo trazido por Ostf”, de que o Tribunal de Justiça Europeu decidiu pela “obrigação de não impor aos indivíduos uma mudança normativa demasiado brutal: por essa razão, a regra nova deve ao menos comportar medidas transitórias em benefício de destinatários que possam alegar uma expectativa legitima”, Seria uma espécie de “direito a medidas transitórias”. Importante limite a mu- danças radicais de atitude é a necessidade de justificação objetiva e razoável (motivação). . Por meio de proteções e contrapesos, a jurisprudência deve tentar assegurar ao direito um papel garantidor e emancipador. Assim, deve ser repensado o conceito de segurança jurídica, enquanto freio à ditadura (estatal) da urgência, A noção de “segurança” no processo (e no direito) deve ser re- pensada, partindo-se da premissa de que ela está na forma do instru- mento jurídico e que, no processo penal, adquire contornos de timita- ção ao poder punitivo estatal e emancipador do débil submetido ao processo. O processo, enquanto ritual de reconstrução do fato histó- tico, é única maneira de obter uma versão aproximada do que ocorreu. Nunca será o fato, mas apenas uma aproximação ritualizada deste. É fundamental definir as regras desse jogo, mas sem esquecer que mais importante do que a definição está em (des)velar o conteú- do axiológico das regras. À serviço do que ou de quem elas estão? Voltamos sempre à pergunta: Um processo penal para quê (quem)? Nessa linha, evidencia-se 9 cenário de risco e aceleração que conduz a tisania da urgência no processo penal. Essa nova carga ideológica do processo exige especial atenção diante da banalização da excepcionalidade. O contraste entre a dinâmica social e a proces- sual exige uma gradativa mudança a partir de uma séria reflexão, obviamente incompatível com o epidérmico e simbólico tratamento de urgência. . O processo nasceu para retardar a decisão, na medida em que exige tempo para que o /oge ou a guerra se desenvolvam segundo as 67.0 tempo do direito, p 371, 59 j j , | i regras estabelecidas pelo próprio espaço democrático”, Logo, jamais alcançará a hiperaceleração, o imediatismo característico da virtua- lidade, Ademais, O juiz interpõe-se no processo numa dimensão espa- cial, mas principalmente ternporal, situando-se entre o passado-crime e o futuro-pena, incumbindo-se a ele (e ao processo) a importante missão de romper com o binômio ação-reação”. O processo nasceu para dilatar o tempo da reação, nasceu para retardar. Contudo, algurna melhora na dinâmica não só é possível, como também necessária. Obviamente que não pela mera aceleração pro- cedimental (e consequente supressão de garantias fundamentais), mas sim por meio da inserção de um pouco da ampla tecnologia à dispo- sição, especialmente na fase pré-processual. Também devemos con- siderar o referencial “luz”, a visibilidade. Nesse (des)velar, a luz é fundamental, ainda que indireta, como ensina Paul Virillo. Tal ques- tão nos leva — também — a repensar a publicidade e a visibilidade dos atos. A fransparência do processo, mas sem cair no bizarro espetácu- lo televisivo. Esse é um ponto de dificílimo equilíbrio. No que tange à duração razoável do processo, entendemos que a aceleração deve produzir-se não a partir da visão utilitarista, da ilusão de uma justiça imediata, destinada à imediata satisfação dos desejos de vingança. O processo deve durar um prazo razoável para a necessária maturação e cognição, mas sem excessos, pois o grande prejudicado é o réu, aquele submetido ao ritual degradante e à angás- tia prolongada da situação de pendência, O processo deve ser mais célere para evitar o sofrimento desnecessário de quem a ele está submetido. É uma inversão na ótica da aceleração: acelerar para abreviar o sofrimento do réu. Também chegou o momento de aprofundar o estudo de um novo dixeito: o direito de ser julgado num processo sem dilações indevidas. 68. Democracia aqui & considerada em uma dimensão substancial, enquanto sistema político e cultural que valoviza, fortalece, o indivíduo entee todo feixe de selações que elo mantém com os demais e com o Estado. 69. MESSUTI, Ana. O tempo como pena, p. 103. Trata-se de decorrência natural de uma série de outros direitos fan- É i damentais, como o respeito à dignidade da pessoa humana e à própria garantia da jurisdição. Na medida em que a jurisdição é um poder, mas também um direito, pode-se falar em verdadeira mora jurisdi- cional quando o Estado abusar do tempo necessário para prestar a tutela. Entendemos adequado falar-se em uma nova pena processual, decorrente desse atraso, na qual o tempo desempenha uma função punitiva no processo. É a demora excessiva que pune pelo sofrimen- to decorrente da angústia prolongada, do desgaste psicológico (o processo como gerador de depressão exógena), do empobrecimen- to do réu, enfim, por toda estigmatização social e jurídica gerada pelo simples fato de estar sendo processado. O processo é wma cerimônia degradante e, como tal, o caráter estigmatizante está diretamente relacionado com a duração desse titual punitivo. Assumido o caráter punitivo do tempo, não resta outra coisa ao juiz que (além da elementar detração em caso de prisão cautelar) compensar a demora reduzindo a pena aplicada, pois parte da puni- ção já foi efetivada pelo tempo. Para tanto, formalmente, poderá lançar mão da atenuante genérica do art. 66 do Código Penal. O próprio tempo do cárcere deve ser pensado a partir da distin- ção objetivo/subjetivo, partindo-se do clássico exemplo de Einstein”, afim de explicar a relatividade: “quando um homem se senta ao lado de uma moça bonita, durante uma hora, tem 2 impressão de que passou apenas um minuto. Deixe-o sentar-se sobre um fogão quente. detante um minuto somente — e esse minuto lhe parecerá mais com- prido que uma hora, — Isso é relatividade”, O tempo na prisão? deve ser repensado, pois está mumificado pela instituição e gera grave defasagem enquanto sempo de involução. 70. EINSTEIN, Vida e pensaneentos, p. t00. 71. Sobre o tema, consulte-se o trabalho de Giuseppe Mosconi, “Tiempo social y tiempo de cárcel”. In: BEIRAS, aki Rivera; DOBON, Juan (orgs.). Secuestros institucionales y derechos humanos: la cárcel y el manicomio como laberíntos de obediencias fngidas. Em suma, uma infinidade de novas questões que envolvem o binômio tempo/direito está posta e exige profunda reflexão. 1.5. Princípio da necessidade do processo penal em relação à pena A titularidade exclusiva pot parte do Estado do poder de punir (ou penar, se considerarmos à pena como essência do poder punitivo) surge no momento em que é suprimida a vingança privada e são implantados os critérios de justiça. O Estado, como ente jurídico e político, avoca para si o direito (e o dever) de proteger a comunidade é também o próprio réi, como meio de cumprir sua função de pro- curar o bem comum, que se veria afetado pela transgressão da ordem jurídico-penal, por causa de uma conduta detitiva?. À medida que o Estado se fortalece, consciente dos perigos que encerra a autodefesa, assume o monopólio da justiça, ocorrendo não só a revisão da natureza contratual do processo, senão à proibição expressa para os particulares de tomar a justiça por suas próprias mãos. Frente à violação de um bem juridicamente protegido, não cabe ontra atividade? que não a invocação da devida tutela jurisdicional. Impõe-se a necessária utilização da estmtura preestabelecida pelo Estado — o processo penal — em que, mediante a atuação de um ter- cejro imparcial, cuja designação não corresponde à vontade das partes é resulta da imposição da estrutura institucional, será apurada a existência do delito e sancionado o autor. O processo, como insti« tuição estatal, é a única estrutura que se reconhece como legítima pára a imposição da pena. Não há uma atividade propriamente subs- titutiva, pois a pena pública nunca pertenceu aos particulares para que houvesse a “substituição”. Por isso, é uma avocação para o Es- tado do poder de punir, afastando as formas de vingança privada. 2, ALONSO, Pedro Aragoneses. Instituciones de derecho procesal penal, EA 73, Salvo aquelas protegidas pelas causas de exciusão da ilicitude ou da cul- pabitidade juridicamente reconhecidas pelo direito penal. 2 Isso porque o direito penal é despido de coerção direta e, ao contrário do direito privado, não tem atuação nem realidade concre- ta fora do processo correspondente. No direito privado, as normas possuem uma eficácia direta, imediata, pois as particulares detêm o poder de praticar atos jurídicos e negócios jurídicos, de modo que a incidência das normas de direi to material — sejam civis, comerciais etc. — é direta. As partes materiais, em gua vida diária, aplicam o direito privado sem qualquer interven- ção dos órgãos jurisdicionais, que, em regra, são chamados apenas para solucionar eventuais conílitos surgidos pelo incumprimento do acordado. Em resumo, não existe o monopólio dos tribunais na apli- cação do direito privado e “ni siquiera puede decirse que estatística- mente sean sus aplicadores más importantes”. No entanto, totalmente distinto é o tratamento do direito penal, pois, ainda que os tipos penais tenham uma função de prevenção geral e também de proteção (não só de bens jurídicos, mas também do particular em relação aos atos abusivos do Estado), sua verdadei- ra essência está.na pena e essa não pode prescindir do processo penal. Existe um monopólio da aplicação por parte dos órgãos jurisdicionais e isso representa um enorme avanço da humanidade. Para que possa ser aplicada uma pena, não só é necessário que exista um injusto culpável, mas também que exista previamente o devido processo penal, A pena não só é efeito jurídico do delito”, senão que é um efeito do processo; mas O processo não é efeito do delito, senão da necessidade de impor a pena ao delito por meio do processo. r A pena depende da existência do delito e da existência efetiva e total do processo penal, posto que, se o processo termina antes de desenvolver-se completamente (arquivamento, suspensão condicional eic.) ou se não se desenvolve de forma válida (nulidade), não pode ser imposta uma pera. 74. AROCA, Juan Montero. Princípios dei proceso penal - una explicación basada en ia razóm, p. 15. “75. Como explica ORBANEIJA, Emilio Gómez, Comentarios « la Ley de Enjuiciuniento Criminal, LL p.27e ss. o ais” i do Estado as desigualdades sociais “, baseando-se nas modificações do iberal rumo ao Estado Social, mas , lado a uma posição especial do juiz no contexto democrático, dando-lhe poderes sobre-humanos, na linha de realização dos gscoros processuais, com forte influência da superada, filosofia da conscê e q deslizando no Imaginário e facilitando o surgimento de Juízes Just ceiros da Sociedade. E conclui o autor afirmando que à . o pretensão de Dinamarco de que o juiz deve aspitár aos anseios sociais ou mesmo ao espírito das leis, tendo em vista uma vinculação boa lógica, moralizante do jurídico, com. º objetivo de a [o] e mento de justiça do seu tempo, não mais pode ser acolhida dem ticamente*?. . Nenhuma dúvida temos do enorme acerto e valor dessas lições, e de que esse perigo denunciado por Morais da Rosa é aa encontra em movimentos repressivos, como leis ordem, to) cia zero e direito penal do inimigo, um terreno fértil para suas nei construções. o , . Ainda mais danosas são as viragens linguísticas, os giros dis- cursivos, pregados por lobos, que em pele de cordeiro (e eso ainda dizem falar em nome da Constituição...) seduzem é menti em crença uma multidão de ingênuos, cuja frágil base eórica seco que sejam presas fáceis, iludidos pelo discurso pseudoeradi o desses ilusionistas. Cuidado leitor, mais perigosos do que os sinto ss midos (e, por essa assunção, até mereceram algum. resp o ' o que, falando em nome da Constituição, operam num aum o NI de aparência, para seduzir 0s incautos. Como diz Tacinto Cou o e “parecem pavões, com belas plumas multicoloridas, mas com 05 pf cheios de craca”. a Em suma, nossa noção de instrumentalidade tem por conteúdo amáxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais da Consti- 88, Idem. 89. Idem. o 90. No Prefécio da nossa obra Introdução crítica ao processo mentos da instrumentalidade constitucional. penal = funda- 68 tuição, pautando-se pelo valor dignidade da pessoa humana subme- tida à violência do ritual judiciário. Voltando ao binômio direito penal-processual, a independência - conceitual e metodológica do direito processual em relação ao direj- to material foi uma conquista fundamental. Direito e processo cons- ; tituem dois planos verdadeiramente distintos no sistema jurídico, mas | estão relacionados pela unidade de objetivos sociais e políticos; o que conduz a uma relatividade do binômio direito-processo (substance- procedure). Respeitando sua separação institucional e a autonomia de seu tratamento científico, o processo penal estã a serviço do direito penal, ou, para ser mais exato, da aplicação dessa parcela do direito objeti- vo”, Por esse motivo, não pode descuidar do fiel cumprimento dos objetivos traçados por aquele, entre os quais está o de proteção do indivíduo. À autonomia extrema do processo com relação ao direito mate- rial foi importante no seu momento, e, sem ela, os processualistas não haveriam podido chegar tão longe na construção do sistema processual. Mas isso já cumpriu com a sua função, A acentuada visão autônoma está em vias de extinção e a instrumentalidade está servin- do para relatívizar o binômio direito-processo, para a liberação de velhos conceitos e superar os limites que impedem o processo de aicançar outros objetivos, além do limitado campo processual. A ciência do processo já chegou a um ponto de evolução que lhe permite deixar para trás todos os medos é preocupações de ser absorvida pelo direito material, assumindo sua função instramental sem qualquer menosprezo. O direito penal não pode prescindir do processo, pois a pena sem processo perde sua aplicabilidade. Com isso, conclufmos que a instrumentalidade do processo penal é o fundamento de sua existência, mas com uma especial ca- racterística: é um instrumento de proteção dos direitos e garantias individuais, É uma especial conotação do caráter instrumental e que só se manifesta no processo penal, pois se trata de instrumentalidade 91, SANTOS, Andrés Oliva. Na obra coletiva Derecho procesal penal, p. 6. o” relacionada ao direito penal e à pena, mas, principalmente, tam ins trumento a serviço da máxima eficácia das garantias constturiontis, Está legitimado enquanto instrumento à serviço do projeto constitu cional, , Trata-se de limitação do poder e tutela do débil a ele submetido (réu, por evidente), cuja debilidade é estrutural (e estruturante do sem tugar), Essa debilidade sempre existirá e não tem absolutamente e nhuma relação com as condições econômicas ou sociopo ic: são imputado, senão que decorre do lugar em que ele é chamas oa e p u nas relações de poder estabelecidas no ritual Judiciário (pois geo sujeito passivo, ou seja, aquele sobre quem recaem os dil e es cone trangimentos e limitações impostos pelo poder estatal). o e trumentalidade constitucional que a nosso juizo funda sua existência. ári à i | do processo. 1.7. A necessária recusa à teoria geral Respeitando as categorias próprias do processo penal, Quando Cinderela terá suas próprias roupas? Era uma vez três irmãs, que tinham em comura, pelo meros, tm dos progenitores: chamavam-se à Ciência do Direito Penal, a Cif meia do Processo Penal e a Ciência do Processo Civil. E Spore qu segunda, em comparação com as demais, que eram belas e pri jeperas, teve uma infância e uma adolescência desleixada, abandonad a. Du rante muito tempo, dividiu com a primeira o mesmo quarto. feet ra, bela e sedutora, ganhou o mundo e despertou todas as atenções. Assim começa Camelutti, que com sua genialidade escrevea em 1946 um breve, mas brilhante, artigo (infelizmente pouco a no Brasil), intitulado “Cencrentola”*? (a Cinderela, da conhecida fábul infantil). . . R O processo penal segue sendo a irmã preterida, que sempre tevi de se contentar com as sobras das outras duas. Durante muito tempo, foi visto como um mero apêndice do direito penal. Evolui um pouco iginari je ivista di Diritto Processuale, w, 1, parte 1, 92. Originariamente publicado na Rivista di Di ocessiua » p. 73-78. Em espanhol, foi publicado com o título “La Cenicienta”, na obra Cues- riones sobre el proceso penal, p. 15-21. 70 rumo à autonomia, é verdade, mas continua sendo preterido. Basta ver que não se tem notícia, na história acadêmica, de que o processo penal tivesse sido ministrado ao longo de dois anos, como costumei- ramente o é o direito penal. Se compararmos com o processo civil chtão, a distância é ainda maior, Mas, em relação ao direito penal, a autonomia obtida é suficien- te, até porque, como define Carnelutti, delito e pena são como cara e coroa da mesma moeda, Como o são direito penal e processual penal. Recorde-se o que falamos sobre o princípio da necessidade. O problema maior está na relação com o processo civil. O pro- cesso penal, como a Cinderela, sempre foi preterido, tendo de se contentar em utilizar as roupas velhas de sua irmã. Mais do que ves- timentas usadas, eram vestes produzidas para sua irmã (não para ela). A irmã favorita aqui, corpotificada pelo processo civil, tem uma superioridade científica e dogmática inegável. Tinha razão Bettiol, como reconhece Carneluttiº?, de que assis- timos imextes a um pancivilismo, E isso nasce na academia, com as famigeradas disciplinas de “Teoria Geral do Processo”, tradicional mente ministradas por processualistas civis que pouco sabem e pou- co falam do processo penal e, quando o fazem, é com um olhar e discurso completamente viciado, Nessa linha, no Brasil, entre os pioneiros críticos está Tucci, que principia o desvelamento do fracasso da Teoria Geral do Processo a partir da desconstrução do conceito de lide (e sua consequente irre- levância) para o processo penal, passando pela demonstração da 93. Carnelutti teve uma produção científica bastante ampla, prolixa até, escre- vendo do direito comercial ao direito penal, passando pelo processo civil é pelo processo penal, Natuzal que cometesse, como de fato cometeu, diversos tropeços nessa longofssima caminhada dograática. Também caiu diversas vezes em contradi- são, Em casos assim, é preciso conhecer também o autor das obras, para não fazer equivocados juízos « priori. Fazemos essa advertência porque, em gue pese no final da vida ter feito verdadeiras declarações de amor ao direito peral é ao processo penal, lutando por sua evolução e valoxização, também foi ele um defensor da equi vocada teoria unitária (teoria geral do processo), pensando ser o conceito de lide algo unificador. Logo, La Cenicienta deve ser compreendida nesse contexto (e nesses conflitos científicos que ele mesmo vivia). A necessidade de se conceber o conceito de jurisdição penal (pera além das categorias de juisdição voluntária e litigiosa) e o próprio repen- sar a ação (ação judiciária e ação da parte). Aponta q autor, ainda criticando a Teoria Geral do Processo, que esse, atiás, foi um dos (poucos, ratos) aspectos negativos da grandio- sa obra de José Frederico Marques, ao transplantar (sem, ou, às vezes, com modestos, avaros, retoques) institutos de processo civil para o processo penal, numa nítida adaptação dos Elementos de direito pro- cessual penal às Instituições de direito processual civil E...] incorpo- rando-se numa prolixa e confusa concepção, que poderia ser denomi- nada teoria civil do processo penal [...]*, Como adverte Coutinho”, outro antigo crítico da Teoria Unitá- ria, “teoria geral do processo é engodo; teoria geral é a do processo civil e, a partir dela, as demais”. Qu seja, pensam tado desde o lugar do processo civil, com um olhar viciado, que conduz a um engessa- mento do processo penal nas estruturas do processo civil. "Todo um erro de pensar, que podem ser transmitidas e aplicadas no processo penal as categorias do processo civil, como se fossem as roupas da irmã mais velha, cujas mangas se dobram, para caber na irmã proterida. É a velha falta de respeito, a que se referia Goldsch- midt, às categorias jurídicas próprias do processo penal. Contudo, há chegado o momento (e se vão mais de 60 anos do trabalho de Camelutti) de desvelar a diversidade fenomenológica (e metodológica) das duas irmãs processuaisS e compreender que O processo periai possui suas categorias jurídicas próprias, sua Siversi- dade inerente, e que não mais se contenta em usar as vestes da inmã. Como explica Carnelutti, o processo civil é, nove de cada dez vezes, um processo de sujeitos que “têm”, e, quando um dos dois não tem, aspira muito “ter”. É o processo do “meu” e do “teu”, o que 94. TUCCE, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal, p. 54. 95. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. 4 Lide e o conteúdo do proces- so penal, p, 1t9. 96. No mesmo sentido, Andrés Oliva Santos, na obra coletiva Derecho proces sei perial, p. 51. qº2 | está em jogo é a propriedade, é uma relação coisificada, diria Simmel” (muito antes e muito além dos juristas). é O processo civil é o cenário da riqueza (de quem possui); ao passo que no processo penal, cada vez mais, é o processo de quem não tem, do excluído, Isso contribui para o estigma da gata borralhei- ra, mas não justífica. No processo penal, em (radical) câmbio, do que estamos traian- do? Não é do ter, mas sim da liberdade. No lugar da coisa, pensa-se na liberdade, de quem, tendo, está na iminência de pezdex, ou que já não tendo pode recuperá-la ou perdê-la ainda mais. Trata-se de voltar pata casa ou ser encarcerado. Como adverte Carnekutti, é com a li- berdade o que verdadeiramente se joga no processo penal. “Al juez penal se le pide, como al juez civil, algo que nos falta y de lo cual no podemos prescindir; y es mucho más grave cl defecto de libextad que ei defecto de propiedad'*8, Significa dizer que ao juiz penal não se pede, como ao juiz civil, algo que nos falta, o tal “bema da vida” como se referem os civilistas. Éa própria vida que está em jogo. Para Camelutti, tanto ao juiz penal como ao juiz civil, compete dar a cada um o seu. À (imensa) diferen- ça está em que no penal é dispor do próprio “ser”, ao passo que no civil é o“ Não se pode esquecer, ainda, como adverte certeiramente Juarez Cirino dos Santos”, de que 97. Aqui estamos fazendo alusão 20 complexo pensamento de Simmel, quan- do, já em 1896, escreveu sobre “O dinheiro na cultura moderna”, demonstrando o processo de coisificação da humanidade. Importante, ainda, a leitura de Ruth Gauer (O reino da estupidez e o reino da razão, p. 146 e ss.), quando, abordando Simamel, explica que a “morte do homem” foi diagnosticada quando o auior analisou o papel do dinheiro na sociedade e a separação entre as culturas subjetiva e objetiva, Essa coisificação do ser humano levou ao domínio da coisa sobre o homem. Como expli- ca Gauer, o dinheiro é o Deus modemo, onipotente e onipresente, uma unidade é referência, que une « todos. “Sua busca é a sua faita, produz o ritmo nervoso 6 o estresse da vida moderna. Que novo tipo de vida o dinheiro constitui”. 98. CARNELUTTI, Francesco. La Cenicienta, Cuestionos sobre es proceso penal, p. 19. 99, Direito penal — Parte Geral, p. 655. 73 78 reo, como regra de julgamento, e à presunção de inocência, como regra de tratamento, é impossível anatisar a questão. à) Fumus boni iuris e periculum in mora? É impactante ver um juiz (deformado pela TGP decretar ujna prisão preventiva porque presentes o furmus boni iuris é 0 periculum in mora. Ora, quando alguém é cautelarmente preso é porque praticou um fato aparentemente criminoso. Desde quando isso é “fu- maça de bom direito”? Crime É bom direito? Reparem no absurdo da transmissão de categorias! E qual é o fundamen- to da prisão? Perigo da demora? O réu vai “perecer”? Claro que não... Mas não falará alguém para — incorrendo em grave reducionismo - dizer que é apenas “palavra”, Mais um erro. Para nós, no direito penal e processual penal, palavra é limite, palavra é legalidade, as palavras “dizem coisas” & trabalhamos de lupa em cima do que diz a palavra e do que o intérprete diz que a palavra diz. Logo, nunca se diga que é “apenas” palavra, pois a palavra € tudo. à) Poder geral de cautelo? De vez em quando, algum juiz “cria” medidas restritivas de direitos fundamentais invocando o CPC (11) é o “poder geral de cautela” (ilustre desconhecido para o CPP). Mais um absurdo de quem desconhece que o sistema penal se funda no princípio da legalidade, na reserva de lei certa, taxativa e estrita, Não se admite criar “punição” por analogia! Sim, mas é isso que fazem os que operam na lógi- cada TGP. E) Vou decretar a revelia do réu! Não raras vezes ouvimos isso em uma audiência. Gostaríamos de perguntar: vai inverter a carga da prova também, Excelência? Elementar que não. À categoria “revelia” é absolutamente inadequada e inexisten- te no processo penal, sendo figura típica do processo civil, carregada de sentido negativo, impondo ainda a “presunção de veracidade” sobre os fatos não contestados e outras con- sequências inadequadas ao processo penal. A inatividade processual (incluindo a omissão e a ausência) não encontra qualquer tipo de reprovação jurídica. Não conduz à nenhuma presunção, exceto a de inocência, que continua inabalável. O não agir probatório do réu não conduz à nenhum tipo de punição processual ou presunção de culpa. Não existe um dever de agir para o imputado para que se lhe possa punir pela omissão **, 1) Esse recurso especial/extraordinário não tem efeito suspen- sivo! Até recentemente, por culpa da TGP, as pessoas eram “automaticamente” presas ao ingressar com esses recursos, porque a Lei n. 8.038 (civilista...) diz que tais recursos não têm efeito suspensivo. Mas desde quando prender alguém ou deixar em. liberdade está situado na dimensão de efeito re- cursal? Desde nunca! É um absurdo gerado pela cultura da TGP, que desconhece a presunção de inocência! m) Nulidade relativa. Essa é a fatura mais alta que a TGP cobra do processo penal; acabaram com a teoria das nulidades pela importação do pomposo pas zullité sans grief. Tão pomposo quanto inadequado e danoso. Iniciemos por um princípio básico — desconhecido pela TGP, por elementar: forma é garantia, Oritual judiciário está constituído, essencialmente, por discursos e, no sistema acusatório, forma é garantia, pois processo penal é exercício de poder é todo poder tende a ser autoritário, Violou a forma? Como regra, violou uma garan- tia do cidadão. E o tal “prejuízo”? É uma cláusula genética, de conteúdo vago, impreciso e indeterminado, que vai encon trar referencial naquilo que quiser o juiz (autoritarismo-de- cisionismo-espaços impróprios de discricionariedade, con- forme Lenio Streck). Como dito, no processo penal existe exetcício condicionado e limitado de poder, sob pena de autoritarismo, E esse limite vem dado pela “forma”, Portan- to, flexibilizar & forma é abrir a porta para que os agentes estatais exerçam o poder sern limite, em franco detrimento dos espaços de liberdade. É rasgar o princípio da legalidade e toda a teoria da tipicidade dos atos processuais, Érasgara | OO. Sobre essa é as demais questões mencionadas neste tópico, sugerimos a leitura de nossa obra Direito processual penal, publicada pela editora Saraiva, onde esses ternas são tratados com mais profundidade. 79 i í Ê Constituição. Por culpa da TGP, está chancelado o vale-tudo O conflito entre a dinâmica social e a jurídica é inevitável, evi- processual. O decisionismo se legitima na TGP. Eu-tribunal anulo o que eu quiser, quando eu quiser. E viva a teoria geral do processo! . , Portanto, em rápidas pinceladas (sim, teria muito mais à dizer) está demonstrada (e desenhada) a necessidade de se recusar a Teoria Geral do Processo e assimilar o necessário respeito às categorias jurídicas próprias do processo penal, o Voltando ao início carnelurtiano, Cinderela é uma bos iumã e não aspira uma superioridade em retação às outras, senão, unicamen- te, uma afirmação de paridade. O processo civil, ao contrário do que sempre se fez, não serve para compreender o que é o processo penal: serve para compreender o que não é. Daf por que, com todo o res- peito, basta de Teoria Geral do Processo. 1.8. inserindo o processo penal na epistemologia da incerteza e do risco: lutando por um sistema de garantias mínimas Como já apontamos, vivemos em uma sociedade complexa, em que o risco está em todos os lugares, em todas as atividades e atinge atodos de forma indiscriminada, Concomitantemente, é uma socie- dade regida pela velocidade e dominada pela lógica do tempo curto. Toda essa aceleração potencializa o risco. Alheio à tudo isso, O direito opera com construções técnicas artificiais, recorrendo a mitos como “segurança jurídica”ê!, “verdade denciando uma vez mais a falência do monólogo científico diante da complexidade imposta pela sociedade contemporânea. Nossa abor- dagem € introdutória, um convite à reflexão pelo viés interdisciplinar, com todos os perigos que encerra uma incursão para além de um saber compartimentado, Sem esquecer que, em meio a tudo isso, está alguém sendo punido pelo processo e, se condenado, sofrendo uma pena, concreta, efetiva e dolorosa. 1.8.1. Risco exógeno Não há como iniciar uma abordagem sobre risco sem falar na risk society de Beck!?, Obviamente que a análise perpassa essa visão, que serve apenas como ponto inicial. A doutrina de Beck desempenha uma importante missão na superação da compreensão de que o so- frimento e a miséria eram apenas para O outro, pois haviam paredes e fronteiras reais e simbólicas para nos escondermos. Isso desapare- ceu com Chemobil, Acabaram-se as zonas protegidas da modemida- de, “ha Ilegado el final de Jos otros”! O grande desafio passa a ser viver com essa descoberta do perigo. Caiu o manto de proteção, deixando descoberto esse desolador cenário. A sociologia do risco é firmada e definida pela emergência dos perigos ecológicos, caracteristicamente novos e problemáticos. Mas a dimensão desse risco transcende a esfera ecológica e também afeta o processo, pois alcança a sociedade como um todo, e o processo penal não fica imune aos riscos. real”, “reversibilidade de medidas” etc. Em outros mementos, parece correr atrás do tempo perdido, numa desesperada tentativa de acom- panhar o “tempo da sociedade”. Surgem então alquimias do estilo “antecipação de tutela”, “aceleração procedimental” etc. Como aponta Beck, as sociedades humanas sempre correram tiscos, mas eram riscos e azares conhecidos, cuja ocorrência podia ser prevista e sua probabilidade, calculada. Os riscos das sociedades industrisis eram importantes numa dimensão local e frequentemente devastadores na esfera pessoal, mas seus efeitos eram limitados em 101. A crítica dirige-se à visão tradicional, paleopositivista e erinigada, no dogma da completude lógica do sistema. Da mesma forma, a crítica está dirigida iusão de controle que emerge do conceito. Como explicaremos no final, a tal segu- zança jurídica deve ser (re)pensada no atual contexto (de insegutença exógena e endógena) enquanto instrumento limitador do poder pumitivo estatal e emancipador do débil submetido ao processo penal. 102. Trabalhamos aqui com os conceitos de Beck contidos na obra La sociedad del riesgo; e também de Goldblar, “A sociologia de risco — Ulrich Beck”, Teoria social e ambiente. 103. BECK, Ultich. La sociedad det riesgo, p. 11. 8 80 1 termos espaciais, pois não ameaçavam sociedades inteiras'*, Atual- mente, as novas ameaças ultrapassam limites espaciais e sociais € também excedem limites temporais, pois são irreversíveis e seus efeitos (toxinas) no corpo humano e no ecossistema vão se acumu- lando, Os perigos ecológicos de um acidente nucigar em grande es- cala, pela liberação de químicos ou pela alteração e manipulação da composição genética da flora & fauna (transgênicos), colocam em risco o próprio planeta, Existe um risco real de autodestruição. Outro problema é que nos riscos ecológicos modernos, segundo Becld, o ponto de impacto pode não estar obviamente ligado ao seu ponto de origem e sua transmissão é movimentos podem. ser muitas vezes invisíveis e insondáveis para a percepção quotidiana. É um gravíssimo problema que dificulta ou impossibilita a identificação do nexo causal, como ocorreu, v.g., COM as contaminações pelo Aniraz. Se, na sociedade pré-industrial, o risco revestia a forma natural (tremores, secas, enchentes etc.), não dependendo da vontade do homem e, sendo por isso, inevitável, o risco na sociedade industrial clássica passou a depender de ações dos indivíduos ou de forças sociais (ex.: perigo no trabalho em razão da utilização de máquinas e venenos; no Ambito social, o perigo do desemprego e da penúria, ocasionado pelas incertezas da dinâmica econômica etc). Nesse momento, nas- ce a ilusão do Estado Segurança. Em que pese o fato de certos perigos e azates constantemente ameaçarem determinados grupos, tais riscos eram conhecidos, cuja ocorrência poderia ser prevista e cuja probabilidade poderia ser (ou será?) calculada. Mas os riscos contemporâneos são qualitativa é quantitativamente distintos, pois assumem consequências transgera- cionais (pois sobrevivem aos seus causadores) e marcados pelo que Beck chama de glocalidade (globais e locais ao mesmo tempo). 104, Invocando Beck, Goldblats (A sociologia de risco — Ulrich Beck”, p. 232) cita o exemplo da poluição causada por uma siderurgia ou fundição, no século HIX ou meados do século XX: o lixo produzido tinha. consequências relevantes em nível local pará as pessoas que trabalhavam já c para é comunidade local, que bebia a água e respirava e ar contaminado. Contudo, essa ameaça (mesmo considerando todas as siderurgias do mundo) não alcançava populações inteiras, nem o planeta no seutodo. 105. GOLDELATT, “A sociologia de risco - Ulrich Beck”, p. 233. 82 Í 1 . Ademais, é patente a desconstrução dos parâmetros culturais tradicionais e as estruturas institucionais da sociedade industrial. (classe, consciência de classe, estrutura familiar e demarcação de funções por sexo). Não há estratificação econômica rígida, funções demarcadas por sexo e núcleo familiar. Todo o oposto. ; . o mito do Estado Segurança cai por terra quando se verifica fragilidade de seus postulados. Beck? justifica o estado de insegu- rança sustentando que a dimensão dos tiscos que enfrentamos é tal, e os meiys pelos quais tentamos lutar contra eles, a nível político e institucional, são tão de- ploráveis, que a fina capa de tranquilidade e normalidade é constante- gente quebrada pela realidade bem dura de perigos e ameaças inevi- veis. . Por conseguinte, as atuais formas de degradação do ambiente atingem a todos indistintamente, ou seja, não há que se considerar qualquer tipo de barreixa sociaf ou geográfica como meio de proteção contra tais perigos. Os gases poluentes emitidos pelos automóveis que circulam nas grandes cidades atingem da mesma forma ricos e pobres, causando-lhes os mesmos problemas respiratórios, assim como 0 fato de morar na periferia de uma grande cidade ou em um bairro nobre não protege ninguém de uma catástrofe. Orisco também está no trabalho e manifesta-se pelo desempre- go estrutural em larga escala e a longo prazo. Não há mais estrutura de trabalho por sexo; há uma queda do trabalho por tempo integral e o aumento das jornadas parciais; operou-se um rompimento da es- uutuxa tradicional do emprego'regulay (vitalício); flexibilidade geral das relações. Tudo isso gera uma grande insegurança econômica que se vai alastrar em todo feixe de relações dos indivíduos. - Também na esfera das relações afetivas e na própria estrutura familiar, o risco está mais presente do que nunca, No núcleo familiar, não há mais a distinção entre trabalho doméstico (não remunerado e educação dos filhos) e trabalho assalariado (privativo do homem). Está consagrada a decadência do patriarcado. Intensificou-se a indi- vidualização com o rompimento das funções tradicionais (homem e 106. GOLDBLATT, David. “A sociologia de risco — Ulrich Beck”, p. 240. 8 tempo absoluto ou universal que todos relógios mediriam. Tudo era relativo2?, não havendo, portanto, um padrão a ser seguido. Partindo da premissa de que todo saber é datado, Einstein dis- tingue uma teoria verdadeira de uma falsa à partir do seu prazo de validade; maior tempo para a primeira, tal como décadas ou anos; já para a desmistificação da segunda, bastam apenas dias ou instantes! Nesse ínterim, “somente há uma verdade científica até que ou- tra venha a ser descoberta para contradizer a anterior” 2. Caso con- 120. Contudo, ensina Hawking (ob. cit, p. 79), “a felmtividade geral falhou ao tentar descrever os momentos iniciais do universo porque não incorporava o princf- pio da incerteza, o elemento aleatório da teoria quântica a que Einstein tinha se oposto, como o ptetexto de que Deus não joga dados” (recordemos da célebre frase de Einstein: “Deus não joga dados com o Universo"). Mas, ao que tudo indica, prossegue Hawking, é que Deus seja um grande jogador, onde o Universo não pas- sa de um imenso cassino, com dados sendo lançados e roletas girando a todo mo- Mento. Existo um grando risco de “perder dinheiro” a cada lançamento de dados, mas existe uma previsibilidade (probabilidade), senão os proprietários de Cassinos não seriam tão ricos! O mesmo ocorre com o grande universo que termos hoje, em que existe um número enorme de lançamento de dados, em que a média de resulta- dos pode ser prevista. É aqui que as leis clássicas da fisica fancionam: para 05 grandes sistemas. Sem embargo, quando o universo é minúsculo, como q era próxi- mo à época do big-bang, “O número de lançamentos de dados é pequeno. 6 & pein- cípio da incerteza é muito importante”. Aqui está a falha da relatividade, ao não incorporar esse elemento aleatório da incerteza. Hoje, a incerteza está tão arcaigada nas diferentes dimensies da vida (economia, sociologia, antropologia etc) que à discussão supera a fase da “probabilidade”, para atingir o nível da “possibitidade”, ou ainda das “propensões”, como definiu Kai! Popper (ao longo da obra Um mundo de propensões) para quem a tendência para que as médias estatísticas se mantenham, se as condições se mantiverem estáveis, é uma das características mais notáveis do nosso universo. Sustento que isso só pode sex explicado pela teoria da propensão que são mais do que meras possibilidades, são roesmo tendências ou propensões para se tomarem realidade: ou propensões para se” realizarem a si mesmas, às quais ado inerentes à todas as possibilidades em vários graus e que são algo como uma força que mantém as estatísticas estáveis” (ob. it p. A), À propensão, entendemos, poderia ser definida como uma “possibilidade qualificado”, conduzindo assim 40 abandono da categoria “probabilidade” diante do princípio da incerteza. 121. VIRILIO, Paul. À inércia polar, p. 19. 129, THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais: tempo, dromologia, tecnologia é garantismo, p21 88 úério, a vida se resumiria em reproduzir o conhecimento científico: os antepassados, assim como não haveria motivo para a ciência ' buscar novas fronteiras. | . i Em síntese, a ciência estrutura-se a partir do princípio dáincer- , teza. E por causa dele : i não haverá apenas uma história do universo contendo vida inteligen- : te. Ao contrário: as histórias no tempo imaginário serão toda wma ” família de esferas ligeiramente deformadas, cada uma corresponden- do a uma história no tempo real na qual o universo infla por um tongo tempo, mas não indefinidamente. Podemos então perguntar qual dessas histórias possíveis é a mais provável!?, Essa incerteza também está intimamente relacionada com a noção de. futuro contingente, em que se opera uma ruptura com a €X- periência vulgar do tempo — enquanto simples recondução do passa- do-, pois tudo se torna possível. O futuro é verdadeiramente contin- gente, indeterminado, o instante é verdadeiramente instantâneo, suspenso, sem sequência previsível ou preserita!?*, Projetos e promes- sas (impulso prometeico) perdem toda pertinência. É a incerteza elevada ao quadrado. Como aponta Ost!%, “toda ciência começa por uma secusa [...] o espírito científico mede-se pela sua capacidade de requestionar as certezas do sentido comum — tudo aquilo que Bachelard designava pelo nome de obstáculo epistemológico”, pois “uma teoria nunca pode ser provada positivamente, nem definitivamente: lá pelo facto de termos contado milhares de cisnes brancos, como poderíamos ter a certeza de não existir pelo menos um que fosse preto?” A ciência está sempre em suspenso. Nessa perspectiva de incerteza, a ordem é, pois, excepcional: é o caos que é regra. A própria demoeracia é uma “política de indeterminação”, pois torna o poder infigurável. Ao contrário do totalitarismo, explica 123. HANWKING; Stephen. O universo numa casca de noz, p. 94. 124. OST, François. O tempo do direito, p. 324. 125. Ibidem, p. 327. 89 | Ost!'5, na democracia ninguém tem o direito natural de deter o poder. Ninguém pode aspirar exercê-lo de forma durável. Nenhuma força ou partido poderá apropriar-se do poder, senão por meio do abuso. Enquanto o totalitarismo esradica o conflito e reduz toda espécie de oposição, a democracia está baseada no pluralismo de opiniões e na sua oposição conflitual (é uma visão de caos como regra). A demo- cracia não elimina o conflito, apenas tenta garantir um desfecho ne- gociável (por meio de procedimentos aceitos). Nunca há uma con- clusão, mas apenas uma decisão que gera um acordo apenas parcial, uma verdade aproximada. Inserida na epistemologia da incerteza, à democracia está cen» trada num conflito interminável, pois ela é essencialmente transgres- sivae desprovida de base estável. Recordemos que, etimologicamen- te, político não se refere apenas à polis, mas também a polemas, isto é, à guerra, de forma que O espaço político não é apenas aquele re- conciliado e harmônico, da ordem. consensual, mas também do con- flito. A arte consiste em transformar O antagonismo potencialmente destruidor em agonismo democrático”, 1.83. Risco endógeno: processo como guerra ou jogo? Mas o fisco e a incerteza não estão apenas fora ou em tomo do processo. São inerentes ao próprio processo, seja ele civil ou penal. A noção de processo como relação jusídica, estruturada na obra. de Búlow!?, foi fundante de equivocadas noções de segurança e igualdade que brotaram da chamada relação de direitos e deveres estabelecidos entre as partes e entre as partes é 0 julz. Õ erro foi º de crer que no processo penal houvesse uma efetiva relação jurídica, com um autêntico processo de partes. A teoria do processo como uma relação juxídica (a seguir ana- lisada no Capítulo “Teorias acerca da natureza jurídica do processo 126. Ibidem, p. 332. 127. OST, François. O tempo do direito, p. 335. l 128, Desenvolvida na obra La teoria de las excepetones dilatorias » los prer «upuestos procesales publicada (original em alemão) em 1868. so (penal)”) é um marco relevante para o estudo do conceito de partes, principalmente porque representou uma evolução de conteúdo demo- crático-liberal do processo em um momento em que o processo penal era visto como uma simples intervenção estatal com fins de “desin- : fecção social” ou “defesa social”'?. Com certeza, foi muito sedutora a tese de que no processo haveria um sujeito que exercitasse nele direitos subjetivos e, principalmente, que poderia exigir do juiz que efetivamente prestasse a tutela jurisdicional solicitada sob a forma de resistência (defesa). Apaixonante, ainda, & ideia de que existiria uma relação jurídica, obrigatória, do juiz com relação às partes, que teriam o direito de lograr por meio do ato final um verdadeiro clima de le- galidade e restabelecimento da “paz social”, Tal relação deveria instaurar-se entre as partes (MP e réu) e O juíz, dando origem a uma reciprocidade de direitos e obrigações processuais. Ademais, a existência de partes constitui uma exigência lógica da instituição, da própria estrutura dialética do processo, pois, dogmaticamente, o processo não pode ser concebido sem a existência de partes contrapostas, a9 menos ir potentia", Mas a tese de Bilow gerou diversas críticas e, sem dúvida, a mais apropriada veio de James Goldschmidt e sua teoria do processo como siluação jurídica, tratada na sua célebre obra Prozess als Rechislage, publicada em Bexlim em 1925 e posteriormente difundida em diversos outros trabalhos do autor. Goldschmidt ataca, primeiramente, os pres- supostos da relação jurídica, em seguida, nega a existência de direitos e obrigações processuais, ou seja, o próprio conteúdo da relação e, por fira, reputa definitivamente como estática ou metafísica a doutri- na vigente nos sistemas processuais contemporâneos, Nesse sentido, os pressupostos processuais não representam pressupostos do pro- cesso, deixando, por sua vez, de condicionar o nascimento da relação jurídica processual para ser concebidos como pressupostos da decisão sobre o mérito. Interessa-nos, pois, a crítica pelo viés da inércia e da 129. BETTIOL, Guisepps. Instituciones de derecho penal y procesal penal, p.243. 130. GUASP, Jaime. “Administración de justicia y derechos de la personali- dad”, p. i8e ss. 9 falsa noção de segurança que traz ínsita a teoria do processo enquan- to relação jurídica. Foi Goldschmidt quem evidenciou O caráter di- nâmico do processo ao transformar a certeza própria do direito ma- texiai na incerteza característica da atividade processual. Na síntese do autor, durante a paz, a relação de um Estado com seus territórios de súditos é estática, constitui um império intangível. Sem embargo, ensina Goldschmidt, quando a guerra estoura, tudo se encontra na ponta da espada; os di reitos mais intangíveis se convertem em expectativas, possibilidades e obrigações, € todo direito pode se aniquilar como consequência de não ter aproveitado uma ocasião ou descuidado de uma obrigação; como, pelo contrário, a guerra pode proporcionar ao vencedor o des- frute de um dixeito que não lhe corresponde!" Ficamos apenas nessa introdução, pois a Teoria de James Golds- chmidt será analisada com profundidade no próximo capítulo, quan- do irataremos da “natureza jurídica do processo penal”. Essa rápida exposição do pensamento de Goldschmidt serve para mostrar que O processo — assim como a guerra — está envolto por uma nuvem de incerteza. A expectativa de uma sentença favoré- vel ou a perspectiva de uma sentença desfavorável está sempre pen- dente do aproveitamento das chances e da liberação de cargas. Em nenhum momento, tem-se a certeza de que a sentença será proceden- te. A acusação e a defesa podem ser verdadeiras ou não; uma teste- munha pode ou não dizer a verdade, assim como a decisão pode ser acertada ou não (justa ou injusta), o que evidencia sobremaneira O risco no processo. O mundo do processo é o mundo da instabilidade, de modo que não há que se falar em juízos de segurança, certeza € estabilidade quando se está tratando com o mundo da realidade, o qual possui riscos que lhes são inerentes. É evidente que não existe certeza (segurança), nem mesmo após o trânsito em julgado, pois a'coisa julgada é uma construção técnica do direito, que nem sempre encontra abrigo na realidade, algo assim 131. Princípios gerais do processo civil, p. 49. 92 como a matemática, na visão de Einstein"? É necessário destacar que o direito material € um mundo de entes irreais, vez que construf- do à semelhança da matemática pura, enquanto o mundo do proces- so, como anteriormente mencionado, idetitifica-se com 0 mundo das realidades (concretização), pelo qual há um enfrentamento da ordem judicial com a ordem legal. Por derradeiro, tanto no jogo (Calamandrei) como na guerra (Goldschmidt), importam a estratégia e o bom manuseio das armas disponíveis. Mas, acima de tudo, são atividades de alto risco, envol- tos na nuvem de incerteza. Não há como prever com segurança quem sairá vitorioso. Assim, deve ser visto o processo, uma situação jurf- dica dinâmica inserida na lógica do risco e do giuoco. Reina a incer- teza até o final. A consciência dessa realidade processual é funda- mental para definirmos um sistema de garantias minimas e também demarcar o melhor possível o espaço decisório. Importante com- preender que a assunção da incerteza e da insegurança diz respeito à dinâmica do processo e não significa, em hipósese alguma, que estejamos avelizando o “decisionismo” 8, 1,8.4, Assumindo os riscos e lutando por um sistema de garantias mínimas Em que pese o risco inerente ao jogo ou à guerra, em gualquer dos dois casos é necessário definir um sistema (ainda que mínimo) de regras (limites). Diante desse cenário de risco total em que o processo penal se insere, mais do que nunca devemos lutar por um sistema de garantias mínimas. Não é querer resgatar a ilusão de segurança, mas sim assu- 132. Ensina Binstein (ob. cit, p. 66-68) que “o princípio criador reside na rnatemática; a sua certeza é absoluta, enquanto se trata de matemática, abstrata, mas diminui na razão direta de sua concretização [...] as teses matemáticas não são certas quando relacionadas com a realidade e, enquanto certas, não se relacionam com à realidade”, 133. Sobre os perigos do “decisionismo” e o “solipsisma”, recomendamos 2 Jeitura de Lenio Streck, entre outros, na obra O que é isto — decido conforme a minha consciência? 93

1 / 34

Toggle sidebar

Documentos relacionados