Baixe Livro de Psicanálise e outras Resumos em PDF para Psicanálise, somente na Docsity! Psicanálise e Saúde Mental :: Í ndice Editorial: ”O I nst ituto e a Orientação Lacaniana“ - Antônio Benet i Ensaio: “A psicanálise aplicada ao campo da Saúde Mental” - Francisco Paes Barreto Contribuições: “ Um matema para a supervisão” – Lázaro Elias Rosa Seção Clínica: “Considerações iniciais sobre Psicose e debilidade” - Henri Kaufmanner “Duas referências de Lacan” - Crist ina Drummond “A toxicom ania não designa um a est rutura” - Lilany Vieira Pacheco “O que é a saúde para o sexo?” – Celso Rennó Lima Aula I naugural : "A disponibilidade do analista” – Sérgio Mat tos Ficha Catalográfica: I lustrações: ( Figura 1 ) Gravura copiada de um baixo relevo m ost rando um método de guardar rolos na Roma ant iga. Observem -se as et iquetas penduradas nas pontas dos rolos. ( Figura 2 ) O vendedor de livretos, uma livraria ambulante do século XVI O I nst ituto e a Orientação Lacaniana O I nst ituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais é um dos I nst itutos brasileiros vinculados ao I nst itut du Cham p Freudien (Paris-FR) com função de t ransm issão da psicanálise, na orientação lacaniana, sob a forma de Cursos de Formação, Núcleos de I nvest igação e Pesquisa em Psicanálise (nos campos da psicose, toxicomanias, medicina e t rabalhos com crianças) , Jornadas, Publicações e, agora, at ravés de sua Home Page. O Inst ituto é “parceiro-aguilhão” da Escola Brasileira de Psicanálise – Campo Freudiano que, em vários momentos, em bora inst ituições independentes estatutariam ente, t rabalham conjuntam ente em publicações e out ras promoções de t ransm issão da psicanálise, desde que at ravessadas e sustentadas pela mesma orientação: a Orientação Lacaniana sustentada e t ransm it ida por Jacques Alain Miller. Em um percurso de t rabalho que já conta com 6 anos, com um a t ransm issão r igorosa do pr imeiro ensino de Lacan, o I nst ituto inicia agora uma nova etapa com a t ransm issão do seu últ imo ensino at ravés do Curso de Formação (principalmente) com sua nova programação e, dos Núcleos de I nvest igação. Proposta ousada, mas, como é do feit io do I nst ituto, certamente será sustentada, com o entusiasmo e r igor de sempre, pelo seu corpo docente e professores convidados, em sua maioria composto de Membros da Escola. A Hom e Page inaugurada neste agosto de 2003, m ais além de um veículo de com unicação dos t rabalhos realizados no âmbito do I nst ituto, poderia produzir também efeitos de t ransm issão da psicanálise e, se const ituir enquanto um espaço de inter locução com a cidade at ravés daqueles que m ilitam nos vários out ros campos da cultura e que desejem uma aproximação com o saber psicanalít ico. m édica.(4) A ênfase sobre os fatores morais na et iologia e na terapêut ica será reassegurada por Esquirol. E encont rará, na t r istemente célebre teoria da degenerescência, de Morel, que supunha as doenças mentais com causas m orais que se t ransm it iam por hereditariedade genét ica, sua expressão m ais ext rem ada e menos fundamentada, m as que, m esmo assim , dom inará a psiquiat r ia por quase um século. A importância desse período pode ser expressa, pelo menos em parte, pela seguinte fórmula: o t ratamento moral tornou-se o núcleo fundam ental da terapêut ica psiquiát r ica.(5) O norm al e o patológico na m edicina O que aconteceu desde os tempos de antanho até os dias de hoje? Situarei, inicialmente, a medicina. Embora seja prát ica social mult im ilenar, som ente a part ir do século XVI I I a medicina int roduziu-se no método cient ífico, com o nascim ento da Clínica, est ruturada com o método (a análise, apropriada do filósofo Condillac) , experiência (que pr ivilegia o olhar) e linguagem (que pr ivilegia os signos) . Pinel foi o principal art íf ice do m étodo clínico, e Bichat enraizou a clínica na anatom ia patológica, estabelecendo o método anátom o-clínico.(6) E som ente no século XX foi possível falar de uma prát ica m édica com bases cient íficas. O divisor de águas foram os t rabalhos de Cannon sobre homeostasia e de Claude Bernard sobre as constantes do m eio interno, que perm it iram estabelecer em termos biológicos, ou, mais precisamente, f isiológicos, aquilo que a clínica havia definido como norm al e patológico. Cito Canguilhem. “Se existem norm as biológicas, é porque a vida, sendo não apenas subm issão ao meio mas tam bém inst ituição de seu m eio próprio, estabelece, por isso mesm o, valores, não apenas no meio, mas também no próprio organismo. É o que chamamos norm at ividade biológica.” (7) Para o autor, não é absurdo considerar o estado patológico como normal, mas esse normal não é idênt ico ao normal fisiológico, pois t rata-se de normas diferentes: o estado mórbido é sempre uma certa maneira de viver. E a cura é a reconquista de um estado de estabilidade das normas fisiológicas; curar é cr iar para si novas normas de vida, às vezes superiores às ant igas. A norma não pode ser reduzida a um conceito objet ivam ente determ inável por m étodos cient íf icos.(8i) O que dizer, agora da m edicina contem porânea? O avanço cient ífico e tecnológico é tal que os m étodos diagnóst icos realizam uma dissecação vir tual in vivo, ou apresentam os valores da normalidade orgânica por meios rápidos e precisos. Estabelece-se uma relação direta ent re, de um lado, o exam inador e, de out ro, o subst rato anatôm ico ou anátomo-patológico e os índices fisiológicos ou fisiopatológicos, situação que, aparentemente, dispensa a mediação da clínica. Fala-se, inclusive, no fim da clínica. Evidentemente, não se t rata disso. O que há é que, m ais do que nunca, present ifica-se o que Lacan denom inou falha epistemossomát ica, que é o efeito do progresso da ciência sobre a relação da medicina com o corpo. Dizendo, em poucas palavras, em que consiste esta falha: é a que se verifica ent re o corpo considerado como um sistem a homeostát ico, em sua pura presença animal —corpo- m áquina estabelecido pela ciência médica— e o organismo desejante e gozoso.(9) O norm al e o patológico na psiquiat r ia Se a m edicina conseguiu ancorar a clínica na anatom ia patológica e estabelecer o normal e o patológico em bases fisiológicas, com a psiquiat r ia não se deu nem uma coisa nem a out ra. A int rodução da psiquiat r ia no m étodo anátomo-clínico, iniciada por Bayle com a paralisia geral (1822) (10) , f icou rest r ita aos casos de dem ência, de deficiência m ental e às psicoses orgânicas e sintomát icas. Na grande maioria dos casos, prevaleceu o método clínico. Quanto às bases fisiológicas para o normal e o patológico, m esmo com o avanço das neurociências tal possibilidade não desponta sequer no horizonte. Nem a mais grave das doenças mentais, a esquizofrenia, pode ser caracterizada em termos biológicos. Se não é na anatom ia, se não é na fisiologia, onde é que a psiquiat r ia vai se fundar para definir o normal e o patológico? Não há out ra resposta: a norma de que se t rata é a norma social ou cultural. Um t ratado de psiquiat r ia muito ut ilizado em nosso meio apresenta a questão de m odo m uito claro. Trarei algumas de suas passagens. “No conceito de norma devemos dist inguir um conteúdo e um a form a- função. O conteúdo da norma, equiparável ao termo médio, tem um a base estat íst ica e, com o assinala a dout r ina do relat ivismo cultural, não const itui um estado absoluto, nem tem um fundam ento ontológico, mas está subordinado ao tempo histórico, ao lugar e às peculiar idades de uma cultura. Uma norma estável de validade geral não existe. Mas o conteúdo da norm a está condicionado fenom enologicam ente pela existência da norma como função. A função da norma existe em todo tempo e lugar. Transcende, pois, ao relat ivismo.” Mais adiante, o autor estabelece a correlação: “Em virtude do exercício da faculdade de t ipificação, todos nós co-part icipamos do m esmo mundo. O mundo norm al é um mundo t ipificado. O mundo do doente psíquico se dist ingue fundamentalm ente do normal não por seu conteúdo, m as por sua forma. Podemos descrever a patologia da t ipificação como o mórbido.” Para, pouco depois, concluir : “Eis aqui m inha definição predileta de psiquiat r ia: ‘A psiquiat r ia é o ramo humanista por excelência da m edicina que t rata do estudo, da prevenção e do t ratamento dos modos psíquicos de adoecer’. A idéia do modo psíquico de adoecer, segundo acabo de expor, se funda na perda involuntária da faculdade normat iva.” (11) Podemos, a part ir das citações, relacionar saúde mental com norm a cultural, doença mental com perda involuntária da faculdade normat iva e t ratamento psiquiát r ico com meio ut ilizado para o seu restabelecim ento. A rest itut io ad integrum, tão cara à m edicina, na psiquiat r ia tornou-se, assim , rest ituição dessa normalidade. O DSM- I V e a CI D- 1 0 A questão do norm al e do patológico na psiquiat r ia pode ser abordada a part ir das classificações das doenças mentais. Quanto a isso, t ivemos t rês grandes m omentos, distanciados aproximadamente um século um do out ro. O primeiro foi const ituído pela nosologia pinel-esquiroliana, no início do século XI X; era uma classificação em inentem ente sindrôm ica. O segundo grande momento foi a nosologia kraepeliniana, no final do século XI X e início do XX; privilegiava as ent idades mórbidas, consideradas com o as verdadeiras doenças mentais. O terceiro mom ento, no final do século XX e início do XXI , é quando assist imos à universalização dos diagnóst icos dos t ranstornos mentais e comportamentais, catalogados no DSM ( IV) e na sua correlata e subsidiária, a CI D (10) . Com entam os, há pouco, a est r ita relação que os psiquiat ras clássicos estabeleciam ent re doença mental e degradação moral. Como se situa, frente a isso, a psiquiat r ia contem porânea, que se autoproclama cient ífica e ancorada no progresso das neurociências? Uma primeira constatação nos most ra que foram exorcizadas as referências ao papel da moral social. Mas, na verdade, existe aqui uma cont radição fundam ental. Ao mesmo tem po em que postula uma determ inação biológica, em últ ima análise, genét ica, tal psiquiat r ia concebe o patológico de diferentes maneiras, mas sempre em cont raposição à norma social ou cultural. Basta perfilarmos os t ranstornos relacionados no DSM ( I V) ou na CI D (10) para verif icarmos que nenhuma base biológica sustenta tais classificações. Darei dois exem plos que considero elucidat ivos. Há alguns anos o homossexualismo estava incluído do DSM com o t ranstorno mental, enquanto que o tabagism o não estava incluído. Atualmente, ocorre o cont rário: o homossexualism o foi excluído e o tabagism o incluído. O que determ inou a mudança? Algum progresso cient ífico? Nada disso. Apenas isto: o hom ossexualism o está m ais aceito e o tabagism o m enos aceito pela moralidade social contem porânea. Dissemos, há pouco, que a psiquiat r ia exorcizou de sua term inologia as referências à moral. Mas, se considerarm os que a m oral são os costumes, as regras de conduta adm it idas numa época, numa sociedade determ inada,(12) poderem os estabelecer est r ita correlação dela com a norma social ou cultural. E concluir que a psiquiat r ia mudou muito menos do que aparenta e é muito m ais moralista do que admite. A nova concepção de Saúde Mental O Relatório Sobre a Saúde no Mundo 2001, da Organização Pan-Am ericana de Saúde e da Organização Mundial de Saúde, tem o seguinte t ítulo: Saúde Mental: Nova Concepção, Nova Esperança(13) . O novo modelo, ou seja, a nova concepção e a nova esperança, é todo ele baseado nos t ranstornos catalogados pela CI D-10. O que se procura é certa ordem na casa a part ir dessa referência. Ora, o campo da saúde mental é o resultado de uma reorganização do campo da psiquiat r ia. Ent raram em cena out ros saberes, out ros profissionais, out ros serviços. A saúde mental, portanto, é a herdeira, é a sucessora do campo da psiquiat r ia, psiquiat r ia que, por sua vez, enquanto disciplina, é hoje um a parte im portante, mas, apenas uma parte do campo da saúde mental. Talvez a importância maior da psiquiat r ia para a saúde mental seja esta: fornecer a descrição e a classificação dos t ranstornos mentais e comportamentais. E isto é muito. É definir o que deve ser t ratado. E mais: a que objet ivo o t ratam ento deve visar. Se retomarmos agora a definição de Miller: “a saúde mental não tem out ra definição que a da ordem pública” , podemos concluir que, da psiquiat r ia à saúde mental, m udaram-se os meios, mas cont inuam essencialmente iguais as concepções de normal e de patológico, bem como a direção do t ratamento. A direção do t ratam ento Procurarei, agora, definir em term os m ais precisos qual é a direção do t ratamento. Para tanto, tom arei para exam e as pesquisas realizadas nos ensaios clínicos da psiquiat r ia biológica. Poderia ser objetado que a situação de pesquisa é diferente da situação clínica propriamente dita. Mas, sem dúvida, os resultados das pesquisas influenciam a clínica; por out ro lado, é importante explicitar ao que visam as condições estabelecidas nessas pesquisas. Os ensaios clínicos da psiquiat r ia biológica são pesquisas onde se afirma proceder com rigor, inclusive com rigor cient ífico. Suponham os que se t rata de um ensaio para avaliar a eficácia abolição do sintoma, por out ro lado a reabilitação pretende, part indo dos “pontos fortes” ou da “parte sadia” de cada indivíduo, o restabelecimento de papéis sociais normais. A tarefa é deixar para t rás o est igm a de “paciente” e restaurar a capacidade de viver de maneira independente. A meta da recuperação de homens e m ulheres com t ranstornos mentais graves e persistentes se cum pre por meio de empregos, moradias, am igos e dinheiro para o dia a dia. Existe uma tendência na reabilitação psicossocial —com presença expressiva inclusive em certos setores da reforma psiquiát r ica— que propõe um t ratamento que não t rabalhe com o sintoma. Ou seja: propõe-se a reabilitação como uma exclusão da clínica. Um meio mais direto de tentar inserir o louco em alguma form a de t roca social. Existem aí dois aspectos a serem observados. O primeiro é a desconsideração da est rutura clínica, o incent ivo a um certo não saber como fazer com o sintoma. O segundo aspecto é que reabilitar o louco seria, nesses termos, no ext rem o, fazer dele um não- louco. Uma reabilitação que exclui a clínica se resume numa forma de adaptação social, quer dizer, é um modelo que produz segregação. É a prevalência da norma, o obstáculo à diferença. Como adverte Viganò, não falar com o louco, ou ficar com ele sem o discurso é uma forma de segregação, ainda que sem m anicôm io; é a neo-segregação.(17) A lógica do todo Creio ter cam inhado o suficiente para poder, nesse mom ento, concluir que o t ratam ento psiquiát r ico, a psicoterapia, a reabilitação psicossocial, enfim , os cuidados que vêm sendo dispensados no campo hoje denom inado da saúde m ental, em bora muito diversificados quanto aos seus meios, são muito próxim os quanto a dois aspectos cruciais: o seu ponto de part ida e o seu fim . O ponto de part ida é o sintoma. O fim é a elim inação do sintoma e a adaptação social do indivíduo; é o que poderia ser chamado de normalização psicossocial. É possível, talvez, reuni- los sob uma única denom inação: Tratamento de Normalização Psicossocial. Mais do que aproximar cuidados à primeira vista tão dist intos, tentarei avançar no sent ido de demonst rar que funcionam dent ro de um mesmo sistem a lógico; eles operam de acordo com a lógica do todo. Trata-se de uma lógica que na atualidade conhece grande difusão a part ir do discurso da ciência. Seu aspecto essencial é a busca de leis universais que dariam fundamento aos seus procedim entos. Para elucidar, tomarei um a vez m ais o exem plo da depressão. É possível estabelecer o universal no t ratamento da depressão? Pode-se, pelo m enos, cam inhar nesse rum o. O primeiro passo é a definição operacional de depressão. Quanto a isso, o DSM- I V e a CI D- 10 cum priram a sua parte, e pretendem tê- lo feito em escala universal! Na psiquiat r ia clássica, os autores das escolas francesa e alemã não chegavam a um acordo ent re si; havia, quase, uma classificação para cada autoridade. Hoje —nos tempos da globalização— a classificação tem apagado até mesmo as fronteiras dos cont inentes. Além de definir o que é depressão, é preciso um critér io para dizer quem é um deprim ido. Ent ram em cena as escalas de avaliação, que, além , de catalogar, perm item quant if icar os sintomas. Pode-se, então, formar um conjunto de deprim idos e submetê- lo a t ratam ento estat íst ico, embora isso anule ainda mais as part icularidades que diferenciavam um do out ro. A validação estat íst ica é im prescindível quando se pretende alcançar o universal. Tão importante como definir a part ida é precisar a chegada: o que se almeja com o t ratamento. A abordagem em termos negat ivos —a redução ou abolição dos sintomas— cumpre esse item, como já foi visto, e possibilita a avaliação estat íst ica dos resultados. O ideal, nesses casos, é estabelecer uma conduta terapêut ica padronizada, o que na m edicina é conhecido como guideline: isso já vem sendo adotado pela psiquiat r ia e até mesmo pela psicoterapia. Assim , temos: um início padronizado, um m eio padronizado e um térm ino padronizado. Não é que sejam desconsideradas as variações individuais. Elas são levadas em conta: exatamente para inst ruir medidas excepcionais que procuram retomar o cam inho padrão. O final do t ratam ento pode ser abordado, também, em termos posit ivos. Exemplificando: por meio das escalas de adaptação social (EAS) . O que im porta, no caso, é exatamente isto: a ident ificação com a normalidade social. Poderia ser objetado que a lógica do todo visa à lei universal e que a norma se afasta do universal. Pondero, a tal respeito, que a norma, a regra, o padrão estão incluídos na lógica do todo e que const ituem, na verdade, uma modulação do universal. TRATAMENTO DE NORMALI ZAÇÃO PSI COSSOCI AL (Psiquiat r ia, psicoterapia, reabilitação, saúde mental) PSI CANÁLI SE (psicanálise pura,psicanálise aplicada) Ét ica ( igual a) Moral Ét ica (diferante de) Moral Conform idade, adaptação social Autent icidade, singular idade do sujeito Rest ituição da normalidade anterior Mutação subjet iva Norma Paradigma Validação estat íst ica Const rução do caso clínico Gozo socialmente modelado Gozo próprio do sujeito Reabilitação, no sent ido ortopédico Reabilitação, no sent ido jurídico Lógica do todo (o universal) Lógica do não- todo (o um por um ) Segunda parte A Psicanálise Aplicada A prim eira parte foi necessária para situar a proposta da psicanálise aplicada ao campo da saúde mental, aos t ratam entos realizados nos serviços públicos, tema que passo a desenvolver. Questão complexa, que exige de imediato precisar alguns aspectos. A pretensão é levar o discurso analít ico ao serviço público, no campo da saúde mental. Noto a importância de advert ir : não se t rata de psicanálise pura, mas de psicanálise aplicada. Espero que no decurso do texto a diferença seja problemat izada, mesmo sabendo que temas tão amplos serão aqui apenas esboçados. Tampouco se preconiza o t ratamento de todos os pacientes com o discurso analít ico. Longe disso. O serviço público, como toda inst ituição, é, ou deveria ser, o lugar de muitos discursos. O que se procura é isto: situar o discurso analít ico no serviço público com o um discurso ent re out ros. Desfazendo equívocos Por que razão o discurso analít ico no campo da saúde mental? Muitos levantam, pelo cont rár io, objeções a esse propósito. Darei alguns exemplos, ao mesmo tempo em que procurarei esclarecer pontos cruciais. Uma objeção freqüentemente levantada é que a psicanálise só ter ia uma função no t ratamento dos ext ratos sócio-econôm icos m ais abastados. O que não é verdade. Em nosso meio, a psicanálise tem sido aplicada em serviços que atendem exclusivamente a pacientes do SUS, muitos deles em situação sócio-econôm ica ext remamente precária. Uma segunda objeção é que o t ratamento psicanalít ico seria excessivamente longo, e impróprio para os serviços públicos. Respondo lem brando que t ratamentos psicanalit icam ente em basados podem consist ir num a única sessão. Terceira objeção: nos serviços públicos de saúde mental são atendidos geralm ente casos muito graves, e a psicanálise seria indicada para casos leves. Frente a esse argumento apresento o seguinte dado: já existe, em nosso meio (assim como em out ros lugares) , experiência e literatura expressiva a respeito do t ratamento psicanalít ico de psicót icos e de toxicômanos. Exponho uma últ ima objeção. O avanço da psicofarmacoterapia inviabilizaria e far ia caducar a abordagem psicanalít ica. Na m inha avaliação, nem uma coisa nem a out ra. É falsa a idéia segundo a qual o fármaco necessariamente se opõe à psicanálise, ou a que esta nada teria a dizer sobre aquele. A psicanálise tem o que dizer sobre o fármaco, que, por sua vez, em certas circunstâncias, pode viabilizar a abordagem analít ica. Não está aí a diferença ent re psiquiat r ia e psicanálise. Tentarei, então, colocá- la em termos claros. A oposição ent re psicanálise e psiquiat r ia é a m esm a que existe ent re psicanálise e o que foi nomeado Tratam ento de Norm alização Psicossocial. A oposição se situa na diferença radical na direção do t ratamento, diferença esta que pode ser formulada em termos ét icos. Um a outra ét ica Afirmar que existe diferença radical na direção do t ratamento quando se tem , de um lado, a psicanálise, e de out ro, o Tratamento de Normalização Psicossocial (psiquiat r ia, psicoterapia, reabilitação, saúde m ental) , e que tal diferença se form ula em termos ét icos, é algo que exige um a digressão. O Vocabulário da Filosofia de Lalande assim define ét ica: “Ciência que tem por objeto o juízo de apreciação enquanto se aplica à dist inção do bem e do mal.” (18) E assim define moral: “O que concerne seja aos costum es, seja às regras de conduta adm it idas numa época, numa sociedade determ inada.” (19) À prim eira vista, por essas definições, ét ica seria diferente de moral. Ocorre, porém, que o juízo de apreciação a que se refere aproxima, sistem at icamente, do que é valor izado como bem , o que é definido como norm a social. Com o conseqüência, há um apagam ento da para a direção do t ratam ento ou teorizações de validade geral. Lacan costumava dizer que tudo o que sabemos sobre neurose obsessiva devem os à análise que Freud fez do hom em dos ratos. Temos out ros paradigmas: Dora, para a histeria; o pequeno Hans, para a fobia; Schreber, para a psicose; Aimée, para a paranóia; para citar alguns. A idéia de paradigma clínico não é específica da psicanálise; tem os, por exem plo, o caso de Ellen West , de Binswanger, paradigm át ico para a analít ica existencial.(24) Com o é possível fazer uma teoria a part ir de um? Uma resposta para a questão é a const rução do caso clínico, a part ir de sua est rutura lógica. É o que ver if icamos nos paradigm as citados. Cumpre destacar a importância diam et ralmente oposta do diagnóst ico para a psiquiat r ia e para a psicanálise. O diagnóst ico psiquiát r ico anula o sujeito. O psiquiat ra, como vim os, t rata a depressão e nesta designação se perdem as part icular idades que dist inguem os diversos deprim idos. O psicanalista, por sua vez, ainda que teorize sobre hister ia, por exemplo, ao fazer esse diagnóst ico está apontando para o sujeito. O diagnóst ico psicanalít ico é um a interpretação da relação do sujeito com a est rutura. A part ir daí, o percurso de um a análise evidenciará, cada vez m ais, a singular idade do sujeito, sendo que, no final, teremos a teoria do próprio caso. É o que propõe Lacan com o procedim ento do passe. O depoim ento do passante é um a boa história que pode ser contada, mas é também uma versão teorizada da própria análise. A construção do caso clínico Na psicanálise, por conseguinte, a validação do t ratam ento se faz por meio da const rução do caso clínico. Trabalho artesanal, que se realiza um por um, em que cada um é diferente do out ro e em que cada caso é sem pre algo inédito. Existe, aqui, uma reconst ituição da história do sujeito. É importante destacar, ainda, que a const rução do caso clínico se faz tendo em vista a lógica do t ratamento e a lógica do caso. Para abordar a questão, muitos cam inhos são possíveis. Tomarei como base o percurso de um a análise. Freud, numa célebre metáfora que Lacan certamente endossou, comparou a psicanálise ao jogo de xadrez. O começo e o fim são bem estabelecidos, mas o meio comporta uma série infinita de possibilidades. Seja com o for, uma psicanálise tem um começo, um meio e um fim . Numa conferência, Miller discute a questão da lógica do percurso analít ico. E considera vários meios ut ilizados por Lacan para est ruturar logicamente o t ratamento psicanalít ico. Mencionarei um deles: o percurso analít ico pode ter a est rutura do tempo lógico.(25) Em síntese, ser ia isto: o com eço de um a análise como instante do olhar, o m eio com o tempo para compreender e o fim como momento de concluir. A instauração do sujeito suposto saber seria da ordem do instante do olhar, a const rução da fantasia corresponderia ao tempo para compreender e o ato psicanalít ico, com a precipitação que ele comporta, seria um momento de concluir . A ent rada em análise, como instante do olhar, antecipa como poderá ser o final de análise, e este, com o m omento de concluir , ressignifica, ret roat ivamente, a ent rada em análise. A est rutura do tempo lógico pode estar presente no percurso analít ico, quando se t rata de uma psicanálise pura, mas também na psicanálise aplicada, ou seja, na const rução do caso clínico em saúde mental,(26) e até mesm o quando se considera uma única sessão. Por exemplo, o corte com o mom ento de concluir . Do sintom a ao “sinthom a” Assim como a psiquiat r ia, assim como a psicoterapia, assim como a saúde mental, a psicanálise também parte do sintoma. Mas, se o ponto de part ida é comum , o ponto de chegada é diametralmente oposto. Sim , a psicanálise parte do sintoma, do sofr im ento do sintoma, que indica que algo não está funcionando, que algo vai m al. Não basta, no entanto, que se procure o alívio para o sofr im ento por meio do levantamento do sintoma. A dem anda analít ica exige m ais: im plica querer t ratar o sintoma não só pela vertente do sofr im ento como pela vertente do enigma que ele representa, ou seja, implica um querer saber sobre o sintoma. Um passo importante é dado quando o analista é suposto com o aquele que detém esse saber. A postulação do analista como sujeito-suposto-saber é a ent rada na t ransferência. O saber de que se t rata é do próprio inconsciente do sujeito; o inconsciente como um saber que não se sabe. No contexto, a interpretação pode, então, ter lugar como um a leitura, uma decifração do sintoma, explicitando seu significado inconsciente. Uma análise também produz efeitos terapêut icos, com o levantamento do sintoma. E às vezes, é o que se consegue fazer. Freud chegou a comentar, porém , que freqüentemente tal resultado está a serviço da resistência, evitando os verdadeiros objet ivos de uma análise, caracterizando uma “ fuga para a cura” . O querer saber sobre o sintoma pode levar à sua leitura e desaparição, m as pode ainda, num a evolução mais ousada, cam inhar em direção à fantasia, à relação do sujeito com seu desejo e com seu gozo. É isso que, em últ ima instância, um t ratamento analít ico visa a m udar. A psicanálise, já foi dito, não se fia na elim inação do sintom a; a r igor, ela não considera que haja desaparecimento, mas, sim , t ransmutação, metamorfose do sintom a. Com freqüência, na clínica dos serviços de saúde mental, o que se consegue é a subst ituição de um sintoma, m ais penoso e m ais lim itante, por out ro, mais suportável. Na últ im a etapa de seu ensino, Lacan reelabora o conceito de sintoma (symptôme) , denom inando-o então sinthoma (sinthome) . E propõe: “Ame o seu sinthoma” —tal como Freud dizia que o psicót ico ama o seu delír io. E situa mesm o, no final da análise, uma reconciliação do sujeito com o seu sinthoma, uma ident if icação: o sujeito como sinthoma. O sinthom a inclui o sintom a e a fantasia; aproxim a-se da idéia de est ilo. Um exemplo de sinthoma seria o próprio psicanalista. Do sintoma ao sinthoma há, assim , um avanço do sujeito rumo àquilo que nele existe de m ais singular. As duas clínicas de Lacan O ret rospecto que apresentei, em bora sinópt ico, perm ite ent rever que, tal como em Freud, há uma incessante m udança no ensino de Lacan. Ao ponto de perm it ir formular a idéia de duas clínicas: a pr imeira, clínica est rutural ou clínica do significante, e a segunda, clínica borromeana ou clínica do gozo. Na pr im eira, Lacan relê Freud à luz da teoria do significante; na segunda, ult rapassa-o a part ir da reformulação lógica. A proposição da segunda clínica inspira-se nos sem inários de Jacques-Alain Miller que t rabalham a últ im a parte do ensino de Lacan, ensino este que anteviu, com notável precisão, os tempo atuais. Época de declínio das ident ificações vert icais (com o pai, com os ideais) , época em que o grande Out ro não existe, pois se sabe, de algum m odo, de sua est rutura de ficção e que tudo não passa de semblante. Era de globalização, em que pequenos objetos (a) são encont rados em todas as esquinas, at rás de todas as vit r ines, e cuja proliferação foi feita para causar o nosso desejo, pelo discurso cient ífico que agora o governa. Era que sofre um desvario do seu gozo. As conseqüências estão aí; a clínica está a cada dia m ais distante daquela dos tempos de Freud. Os serviços de saúde m ental conhecem bem as dem andas procedentes dos novos sintomas: a depressão, o pânico, a anorexia, a bulim ia, as toxicomanias, a obesidade mórbida, a delinqüência e assim por diante. A clínica é, cada vez mais, uma clínica da passagem ao ato. Como enfrentar esses novos desafios? A segunda clínica alcança em seu horizonte a subjet iv idade de nossa época, preparando o terreno para o t ratamento dos novos sintomas. Apontarei alguns de seus aspectos, lembrando que se t rata de tema novo, complexo e pouco sistemat izado. Para delim itar a questão, abordarei um item do t ratamento da psicose. Enquanto que a pr imeira clínica tenta examinar a psicose a part ir da neurose (paradigma: Schreber) , a segunda clínica cam inha da psicose para a neurose (paradigma: Joyce) . Reviravolta que tem implicações teóricas e clínicas, passando-se da aplicação da psicanálise à psicose à aplicação da psicose à psicanálise.(27) Em poucas palavras: é a psicose que nos ensina. Ensina-nos sobre a est rutura e sobre as soluções que ela própria encont ra para uma falta cent ral no simbólico. Uma conseqüência é a inversão da suposição de saber, que poderia ser formulada nos seguintes termos: o psicót ico sabe o seu cam inho. O que nos coloca em posição de aprendizagem em relação à clínica, em posição de sujeito suposto não saber. Propõe-se, com isso, levar ao lim ite o que se conhece desde os tempos de Freud: que o psicót ico sabe encont rar as suas soluções, que o seu cam inho é autoconst ruído. Posição que está de acordo, também, com o que, há muito, se verif ica na prát ica clínica e que Miller t raduz nos seguintes termos: “O paranóico só conhece o saber. Sua relação com o saber const itui seu sintoma. O que o persegue a não ser um saber que passeia pelo mundo, um saber que se faz mundo?” (28) Com efeito, quando o Out ro se apresenta para o psicót ico como o Outro do saber, ele é encont rado de forma persecutória ou erotom aníaca. Ora, se o saber está do lado do psicót ico, não há lugar, no t ratam ento, do lado do analista, para nenhuma tentat iva de envio a out ro sent ido, nenhum deciframento ou interpretação. A interpretação está do lado do psicót ico, e a posição de aprendizado é que pode, no t ratamento, perm it ir ao analista escutar as indicações que o psicót ico t raz para o seu caso. Psicanálise pura, psicanálise aplicada Como diferenciar psiquiat r ia, psicoterapia, psicanálise pura e psicanálise aplicada? Existem várias maneiras de fazê- lo. A m inha escolha está sendo buscar a diferença pela vertente da ét ica. A psiquiat r ia e a psicoterapia têm como ponto de part ida o sintoma e t rabalham visando a sua elim inação, tendo como fim a normalização psicossocial. É uma perspect iva de adaptação e conform idade social, sendo o retorno à normalidade uma versão da rest itut io ad integrum. A psicoterapia ut iliza a via da palavra e a psiquiat r ia, além dela, em prega m eios quím icos e/ ou físicos. O que im porta, porém, é que ambas estão sob a égide de uma ét ica que coincide com a moral. A psicanálise, por out ro lado, em bora tendo também como ponto de part ida o sintoma, psicanalít icos. A dificuldade de adm it ir tais proposições tem out ro fundamento. O discurso capitalista, hegemônico em nossa época, sustenta-se na ét ica do bem -estar e prom ete, com os produtos da ciência, felicidade out rora inimaginável. A psicanálise, no mundo contem porâneo, é intolerável não mais pelo sexo, hoje explícito na novela das 20 horas, não m ais pelo inconsciente, numa civilização em que os objetos mais-de-gozar superam os ideais. O que torna a psicanálise hoje insuportável é a postulação das pulsões de morte, é a verif icação de um para além do princípio do prazer. A coincidência do bem com o bem-estar vem desde Aristóteles, para quem o Bem Suprem o é da ordem da felicidade. Em Kant já se pode encont rar a cisão ent re bem e bem-estar: “É preciso que o hom em esteja apegado a algum bem que o separe de sua comodidade para que chegue a ser m oral.” (35) Ele dist ingue das Gute, o Bem , de das Wohl, o bem-estar. Nesse sent ido, é um precursor do além do princípio do prazer. Não há referência melhor do que a kant iana para a conciência moral. Exem plo disso é o que ele denom inou im perat ivo categórico: “Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer- te sempre como princípio de uma legislação universal.” (36) Há, assim , subordinação radical do prazer à lei universal. Em nome da moralidade universal, a exigência de renúncia às pulsões. Trata-se, portanto, de uma ét ica do racalcamento, sendo possível ident if icar o imperat ivo categórico kant iano ao supereu. O mal-estar na civilização é um texto fundamental para o desenvolvimento do conceito de supereu. Ali Freud descreve a sua gênese. Farei uma breve recapitulação. Num prim eiro m omento, a renúncia à pulsão se faz frente a uma autoridade externa, que ameaça com perda de amor e cast igo. Há quem permaneça nesse nível, de um a m oralidade exterior, cujo suporte é a polícia, a just iça, a presença do Out ro. Num segundo tempo, surge a organização do supereu como uma autoridade interna e a renúncia se deve ao medo dele. O supereu como um a int rojeção do Outro. Num terceiro tempo, o paradoxo: cada renúncia à pulsão, em vez de aplacar, aumenta a severidade do supereu.(37) O supereu exige renúncia e esta, por sua vez, engorda o supereu. É o que Lacan, em Televisão, chama de “a gula do supereu” . Da agressividade que o sujeito retorna cont ra si mesmo provém , portanto, o que se chama a energia do supereu. Miller comenta que a renúncia à pulsão não é a renúncia ao gozo. Se não há renúncia, o sujeito goza. Se há renúncia, o sujeito goza de renunciar. Ou goza porque comeu a m armelada, ou goza porque não com eu a m armelada.(38) Ou goza desde o isso, ou goza desde o supereu. Daí a afirmação de Lacan, também em Televisão, que “o sujeito é feliz” .(39) O paradoxo apresentado (a renúncia à pulsão aum enta a severidade do supereu) prepara o terreno para out ro aspecto da questão. Lacan considera o imperat ivo categórico uma enunciação sem enunciado. E usa Sade para explicitar, num encont ro quase surrealista, o objeto da ét ica, que está escondido em Kant . Nesses termos formula o imperat ivo sadeano: “Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode dizer-m e qualquer um , e exercerei esse direito, sem que nenhum lim ite m e detenha no capricho das extorsões que m e dê gosto de nele saciar.” (40) Trata-se da descrição da experiência de gozo como fundam ental. Se a m áxima kant iana corresponde ao supereu, a máxima sadeana corresponde ao Goza! , que é o imperat ivo do supereu. Exigência paradoxal, exigência de gozo absoluto, im possível e não perm it ido. Por que razão usar o cúmulo da imoralidade para esclarecer o cúm ulo da moralidade? Lacan avança, na verdade, na t r ilha aberta por Freud: o que sustenta a consciência moral é o gozo da pulsão. A crueldade sádica do supereu nada mais é do que um deslocam ento das exigências pulsionais. E a moral kant iana, com seu r igor absoluto, é a out ra face da perversão polimorfa sadeana. Como lembra Freud numa célebre formulação, a psicanálise veio demonst rar não só que os homens são mais im orais do que admitem, como também que eles são mais m oralistas do que supõem. A ét ica do desejo No horizonte da psicanálise há uma ét ica que não é do bem -estar, que não é da universalidade, que não é do supereu. Para apresenta- la em term os m ínim os é necessário situar, pr imeiro, a ant inom ia ent re desejo e gozo. No Projeto encont ram os a m enção de Freud a uma experiência (m ít ica) de sat isfação plena (Befr iedgungserlebnis) . Corresponderia à relação incestuosa; com efeito, o objeto de sat isfação, a Coisa (das Ding) , Out ro absoluto do sujeito, é a mãe, o objeto do incesto.(41) E Lacan afirm a que “das Ding é o fundamento, derrubado, invert ido, em Freud, da lei moral.” (42) A experiência m ít ica de sat isfação plena é o gozo absoluto, exatamente o que é t ransposto como imperat ivo superegóico: Goza! Por out ro lado, o que Lacan chama de lei simbólica ou lei do pai é a que dita a proibição do incesto, que im plica não apenas o “não te deitarás com tua mãe” dir igido à cr iança, como, também, um “não reintegrarás o teu produto” endereçado à mãe.(43) O Nome-do-Pai, ou pai simbólico é, no Outro, um significante especial, que funda a lei. E a instância que exerce de maneira duradoura a função de lei proibidora é o supereu. Nesse aspecto, é um vest ígio da resolução do conflito pr incipal da cena edipiana. É célebre a fórmula freudiana segundo a qual “o supereu é o herdeiro do com plexo de Édipo” . Lacan com enta a propósito: “atenhamo-nos ao supereu edipiano. Que ele nasça no declínio do Édipo quer dizer que o sujeito incorpora sua instância ( interditora) .” (44) O supereu, por conseguinte, é uma instância paradoxal. Nele pode-se dist inguir o que se chama de supereu paterno ou edipiano ( freudiano) , com função interditora de gozo, e o que se chama de supereu materno, pré-edipiano ( lacaniano) , que é um a exortação de gozo. O que a lei simbólica interdita, então, é a sat isfação impensável do desejo incestuoso da criança, ou seja, o gozo absoluto. Ao barrar o gozo puro, estabelece uma perda de gozo, define um a falta. Nessa falta se origina o desejo. A lim itação do gozo abre espaço para o desejo. A r igor, só se pode falar em desejo quando está inscrita a lei simbólica. Desejo e gozo são, assim , ant inôm icos. O gozo absoluto exclui o desejo. E a lim itação do gozo pelo significante deixa um resto de gozo, o objeto mais-de-gozar, objeto (a) , que é também objeto causa de desejo. Encont ramos, com o desejo, novo paradoxo. Ele se origina de uma falta e, se o sujeito se dir ige a um objeto, é para preenchê- la. Em out ros termos, o desejo busca a sat isfação plena, quer dizer, prossegue a procura da sat isfação incestuosa, ainda que proibida. E que, se alcançada, aniquilar ia o desejo (daí, talvez, aquela expressão: matar o desejo) . Por esse m ot ivo o desejo é, a um só tempo, vontade e rechaço de gozo. Razão pela qual é, necessariamente, desejo insat isfeito. “O desejo é a sua insat isfação.” (45) Na clínica, ver ificam os que o obsessivo, perturbado com o conflito inerente à sat isfação, perde-se na dúvida e na indecisão e procura desconhecer seu desejo. A histérica, por sua vez, m ira o im possível da plenitude e só consegue realçar ainda mais sua falta, afogando-se na insat isfação. No curso de uma análise cam inha-se do desejo não decidido para o decidido; do desejo impossível para o est ruturalmente insat isfeito. É im portante salientar que, se de um lado, enquanto instância interditora, o supereu é função coordenada ao desejo, por out ro lado, enquanto exortação de gozo, ele se opõe ao desejo. No seu sem inário sobre A ét ica da psicanálise, Lacan diz que a experiência psicanalít ica perm ite constatar que, se o sujeito se sente efet ivamente culpado, isso acontece sempre, na raiz, na medida em que ele cedeu de seu desejo.(46) O sujeito é sem pre responsável “Por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis. Que chamem a isso como quiserem, terrorismo.” (47) De forma radical e provocadora, Lacan assim se expressa, numa formulação que tem sérias implicações ét icas. Apontar a responsabilidade do sujeito é diferente de apontar a influência dos neurot ransm issores, da genét ica, da fam ília, do Out ro. Novam ente, aqui, a ét ica da psicanálise se diferencia. A idéia de responsabilidade está t radicionalm ente ligada à idéia de culpa, numa conotação jurídica ou m oral. É importante, do ponto de vista psicanalít ico, o sent imento de culpa; significa um sujeito responsável, um sujeito ét ico. Um canalha é, precisamente, alguém que se desculpa de tudo.(48) A culpa pressupõe o sujeito de direito que, assim como o Estado de direito, é indispensável à psicanálise. Por essa razão —concordando com Viganò— considero a definição de reabilitação dada por Franco Rotelli mais próxima da prát ica desenvolvida sob a orientação lacaniana. Rotelli assim afirma: “A reabilitação, em psiquiat r ia, pode ser ident ificada com o um programa de rest ituição, reconst rução e, às vezes, const rução do direito pleno à cidadania e da const rução m aterial de um direito como tal.” (49) O que não quer dizer, ent retanto, que a psicanálise está aí para culpar ou punir o sujeito. Ela parte do sent imento de culpa para chegar à responsabilidade, mas considerando-o a “patologia” da responsabilidade. Parte da culpa para chegar ao “cr ime” desconhecido. A perspect iva psicanalít ica procura, pelo cont rár io, ret irar a idéia de responsabilidade do contexto moralista. Responsabilizar pode, num prim eiro momento, confrontar o sujeito com uma situação penosa. Não obstante, num segundo m om ento, põe a seu alcance meios que ele havia repelido. Não é terrorism o; é aposta no sujeito. REFERÊNCI AS BI BLI OGRÁFI CAS 1i. MI LLER, J.-A. Saúde Mental e Ordem Pública. I n: Curinga, nº 13. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Minas Gerais, set . 1999, p. 20-21. 2i. FOUCAULT, M. A const ituição histór ica da doença m ental. I n: Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tem po Brasileiro, 1968, p. 78. 3. BERCHERI E, P. Os Fundamentos da Clínica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989, capítulo I . 4. FOUCAULT, M. A const ituição histór ica da doença mental. Op. cit . , p. 82-3. 5. BI RMAN, J. A psiquiat r ia com o discurso da m oralidade. Rio de Janeiro: Graal, 1978, p. 344 et seq. 6. FOUCAULT, M. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense-Universitár ia, 1987, c. VI I e VI I I . 7. CANGUI LHEM, G. O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Forense-Universitár ia, 3ª ed., a I PA, mas também aos colegas, aos alunos, aos pacientes e ao público. c) Polít ica na Cura: Aqui, t rês termos, Tát ica, Est ratégia e Polít ica são art iculados respect ivamente à I nterpretação,Transferência e à finalidade mesma da cura analít ica. Esta últ ima, a polít ica para a cura, inclui os objet ivos da form ação dos analistas e da conclusão da cura(4) . 3 ) O ATO DE LACAN Qual foi o ato de Lacan e o que ele inaugurou em 21/ 06/ 64? Seu Ato “ inaugurou um a disjunção inédita, jamais pensada — a disjunção ent re Psicanálise e I PA” . (5) A expressão Escola com o Experiência I naugural se encont ra na Nota Adjunta e é aí que Lacan enuncia: “o ensino da psicanálise não se pode t ransm it ir de um sujeito ao out ro a não ser pelas vias de uma t ransferência de t rabalho. ...os sem inários nada fundarão se não remeterem a essa t ransferência” . (6) A razão m esm a do Ato de Fundação da Escola seria a de perm it ir que se efetue a t ransferência de t rabalho como t ransm issão de um ao out ro, efetuada segundo o modelo da experiência analít ica. I sto é absolutamente novo na história da psicanálise — a Escola com a finalidade de m inim izar todo e qualquer obstáculo a t ransm issão da Psicanálise. A Escola foi fundada para o ensino de Lacan, o que lhe foi ret irado desde Estocolm o — daí, pr incípios e polít icas em vez de regras (7) . Todo esforço que fizermos no sent ido de t raçar polít icas e princípios é um a recuperação da presença de Lacan — desde um simples acolhimento de alguém que deseja ser escutado num dado momento, a cada conclusão de cura verificada pelo passe. “A Escola é a casa de Lacan, quer dizer, feita completamente para sustentar a t ransferência de t rabalho” . (8) Quanto à form ação, há um princípio em Lacan: “não ceder frente ao real nela em jogo” . A vida de Lacan nos m ost ra que, este pr incípio, ele o entendeu, como “não ceder frente os efeitos t ransferenciais de seu ensino — ele os assumiu até o final” . Escutamos aí o eco de um princípio ét ico célebre de Lacan: “não ceder sobre seu desejo” .(9) 4 ) O REAL EM JOGO NA FORMAÇÃO “Denom ina-se Ato o que é suscept ível de isolar o Real em jogo na formação analít ica. Esta definição é dada em Ato por Lacan como resposta ao sent imento de vazio de seus alunos. Lacan vai preencher esse vazio com o Passe e com uma redefinição da prát ica analít ica em termos de Ato” . (10)* * . Com o episódio do seu fracasso com a Proposição, “ ( .. .) quando reconhece que não conseguiu desalojar seus alunos de suas posições, Lacan nos diz que eles, finalmente, preferiram o semblante de decisões calcadas na form a, em vez de considerarem o de que se t rata o Real. Cada vez que se percebe que o respeito às form as t r iunfa sobre o Real em jogo, o que se capta é o sent imento de fracasso” . (11) Penso que este índice pode ser elevado ao nível de princípio, pois é preciso considerar o fato de que um significante pode receber significações muito diferentes ao longo do tempo (12) . “Foram necessár ios muitos anos para que Proposição e Passe deixassem de ser uma em presa perversa, um experimento paranóico e um a aberração de Lacan” . ( l3) . Não ceder frente o real em jogo perm it iu a Lacan todo o avanço obt ido a part ir de 1967. Mas, quanto a isto é bom estarmos advert idos de que “nada protege o Passe de tornar-se tam bém uma cerim ônia” (14) j á que ele, além de sua face clínica, contém também uma face inst itucional, e como tal, sujeito ao real em jogo que visa afrontar. Essas duas faces devem se art icular e nos colocam questões cruciais para nossa própria orientação. Se a Escola faz Psicanálise e I PA se separarem, o Passe faz romper o que pode ter ficado de mal entendido de “Análise Term inável e I nterm inável” . Lacan propõe, com o Passe, que há final de análise. O Passe consiste em dizer o que é exatamente esse final, isto é, uma análise perfeitamente term inada. “Trata-se de uma ruptura de Lacan com o texto freudiano de 1937 — um a sensacional e ousada ruptura — tanto que o texto não é citado por Lacan na Proposição” . (15) Penso que há ruptura sim , mas com o que de equivocado se foi convencionando a part ir do monum ental texto de Freud. Seria necessário um exploração maior do que nele se postula como sendo Resto. Não se poderia dizer a part ir disto e por isto — porque ao final há um resto — que uma análise é interm inável e poderia ser levada ao infinito de uma seqüência de sessões. Pelo cont rário, entendo que Lacan form aliza no Passe o que é esse final, retomando o resto em sua dim ensão de Real, de impossível, de lim ite, que é exatam ente o ponto a ser tocado para que a análise se conclua e, se aí se chega na empreitada, é porque a análise é perfeitamente term inável. 5 ) TRANSFERÊNCI A DE TRABALHO E SURPERVI SÃO Retomo a Nota Adjunta: “O ensino da psicanálise não pode se t ransm it ir de um sujeito ao out ro a não ser pelas vias de uma t ransferência de t rabalho. Os sem inários, incluindo o meu nos Altos Estudos, nada fundarão se não remeterem a essa t ransferência” . (16) Esta frase de Lacan não concerne à direção da cura, mas ao ensino, à t ransm issão da psicanálise. O t rabalho em questão só poderia ser o do analista, de algum modo se pondo no lugar de analisante, daquele que fala, que ensina. Os termos maiores são Trabalho e Escola. Esta é um organism o para realiza- lo. O t rabalho seria um único “ ( . ..) restaurar a lâm ina cortante da verdade freudiana... . . .objet ivo.. . indissolúvel de um a formação a ser m inist rada nesse m ovim ento de reconquista” . (17) . Out ro termo é Transferência, que em Freud é Übert ragung, cujo sent ido or iginal é passagem , deslocam ento de um lugar para out ro. O que vir ia em 67, o Passe, já se encont ra aí, nesse termo inaugural de Freud. O que Lacan nos diz é que há t rabalho que se t ransfere e que isto se dá unicamente de um sujeito ao out ro — e não de um sujeito para uma massa de sujeitos. “ “Esta lógica tem um a est rutura de recorrência matem át ica de sucessão engendrada pela cláusula + 1, que perm ite part ir de Zero e cont inuar até o infinito. É esta linha de recorrência que nos perm ite indicar que a t ransferência de t rabalho não se inscreve ent re Um, e Todos. Pelo cont rário, tal como a experiência psicanalít ica, concerne ao laço de Um com Um, de Um com Outro, e não de Um com Todos” . (18) . À pergunta o que é que é que se supõe que é passado de Um a Out ro na Transferência de Trabalho, a resposta “é precisamente o t rabalho, ou seja, Transferência de Trabalho é Passe de Trabalho. Então, há que se t rabalhar, pois, se vadiar, o que se tem é Passe de Preguiça.” (19) . No Ato de Fundação a idéia de Transferência de Trabalho está ligada à indução, termo de Lacan para “conduzir à, conduzir para dent ro. Para que esta indução seja realizável é necessário que reste algo a fazer, a induzir ao t rabalho” . (20) . Art iculado à indução e à Transferência de Trabalho, encont ram os o term o I mpasse — também aqui encont ramos o Passe. Além da vertente indut iva, em contra-ponto, há a idéia de exdução, a qual conduzir ia o analisante para fora da análise. Aqui, quero apenas assinalar que “no Passe se tem esta dupla dimensão do que nele se ganha e do que se perde” . Tanto num caso quanto no out ro diz respeito ao Saber. “O que se ganha, ao final, é o desejo de Saber e o que se perde é o horror ao Saber” . (21) . O que sustenta o sujeito em análise é o amor ao saber, quer como t ransferência quer com o t rabalho da m esma. “O desejo de saber vem ao final — é o novo que se ganha da experiência. Passa-se do amor ao desejo. Este desejo de saber começa mais além da t ransferência e de seu t rabalho, necessário para produzir saber. Trata-se portanto de passar do amor ao saber, ao t rabalho pelo saber” .(22) . Em “Cinco Variações sobre o Tema da Elaboração Provocada” , (23) o Discurso da Histeria, tomado como paradigma do discurso da ciência, é manipulado em sua est rutura, fornecendo-nos os matemas do Trabalho da Transferência e da Transferência de Trabalho. A simplicidade do art ifício dispensa qualquer exposição mais detalhada. Eis o matema: O art ifício consiste em deslocar o pequeno a de seu lugar estatutário e coloca- lo antes de $, esvaziando o lugar da verdade e t ransform ando o de mais de gozo em agente provocador, assim : Então, de a a $ há Trabalho de Transferência, que prolongado dessa maneira, t ransforma-se em Transferência de Trabalho, assim : O art ifício do deslocam ento de a de seu lugar estatutár io implica na m udança de seu estatuto de + de gozar para o de causa de desejo –condição necessár io para o surgimento de seu poder de causar, provocar o sujeito barrado para o t rabalho próprio que aí se realiza. Por out ro lado, o sujeito ter ia t ido, aí, o seu gozo esvaziado, o que só é possível, penso, quando o próprio t rabalho da t ransferência ter ia sido levado ao ponto de poder ter provocado no sujeito, em sua relação com seus significantes mest res, uma alteração capaz de leva- lo a produzir saber, não mais por am or, m as pela via de um desejo, novo, o de saber, desejo de t rabalhar pelo saber. em seu ensino, m ais especificamente a part ir do sem inário De um out ro ao Out ro de 1968, Lacan retomará suas art iculações sobre a debilidade produzindo inclusive um a renovação no conceito. Pretendo nessa abertura de nossos t rabalhos sobre o tema Psicose e Debilidade, me cent rar mais nessa primeira elaboração de Lacan, presente no Seminário 11, e para tal tom arei como principais referências, além do texto de Lacan e de Pierre Bruno, o texto "Psicose e Debilidade" de Eric Laurent . Ao longo do ano acredito, poderemos nos aprofundar na evolução do conceito. Lacan discorda da assert iva de Maud Mannoni segundo a qual na debilidade haveria uma fusão ao nível do corpo, e sustenta que a fusão se daria a nível significante, retomando a idéia da holófrase. Assim , Lacan se afasta da suposição de que o sintoma da debilidade seria portador da verdade do par parental, o que certamente abrir ia o campo para os psicologism os da debilidade, or ientando-se em direção à idéia de que a cr iança seria um objeto sem a mediação do fantasma materno. O que condicionaria a debilidade não seria especificamente a holófrase do par significante S1-S2, mas a int rodução na “educação do débil da dim ensão psicót ica” , tanto que a cr iança é reduzida pela m ãe “a não ser m ais que o suporte de seu desejo num termo obscuro” .(Lacan citado por Pierre Bruno) . A part ir de agora tentaremos nos aprofundar um pouco m ais nessa problemát ica. “ .. . o ser humano tem uma relação especial para com a imagem que lhe é própria – relação de hiância, tensão alienante. É aí que se insere a possibilidade da ordem da presença e ausência, ou seja, da ordem sim bólica” .(Lacan,1955: 403) Essa afirmação expressa quase que de maneira conclusiva, a elaboração que Lacan desenvolve ao longo do Sem inário 2, O Eu na teoria de Freud e na técnica da Psicanálise. Ela ganha part icular importância se observarmos que ao se refer ir ao ser hum ano ele não faz qualquer dist inção quanto às diferentes est ruturas. Podemos afirmar então, que para Lacan, desde os primórdios de sua elaboração, o humano, no que diz respeito à const ituição do aparelho psíquico, se dá na tensão alienante de um a hiância, hiância que é fruto da junção ent re o sim bólico e o imaginário. Assim , anteriormente mesmo a uma definição do que vir ia a ser o Nome do Pai, e independentemente deste, a const ituição do humano, at ravessada que é pela linguagem, tem em vir tude mesm o desse at ravessamento, a presença est rutural de um furo, furo esse, que nesse momento de seu ensino, Lacan art icula à pulsão de morte, e o im possível de sua plena sat isfação. Diríamos mais: o humano não o é sem esse at ravessam ento, sem essa hiância. Tal assert iva pode ser encont rada sob a pena de Lacan, em seu texto “De um a questão prelim inar a todo t ratamento possível da psicose” , quando a respeito do Out ro da linguagem, ele nos escreve: “ .. . Pois, ret irem -no dali e o homem nem sequer consegue sustentar-se na posição de Narciso. O anima, como que pelo efeito de um elást ico, reduz-se ao animus, ao animal, o qual, ent re S e a, m antém com seu Um welt ‘relações externas’ sensivelmente m ais ínt imas do que as nossas, sem que se possa dizer, de resto, que sua relação com o Out ro seja nula, m as apenas que ela não nos aparece de out ro modo senão em esporádicos esboços de neurose” .(Lacan, 1955: 557) Tomemos como exemplo dessa situação, a famosa experiência de Pavlov. Sabemos que Pavlov oferecia alimento a um cachorro, de maneira interm itente. Associava a essa oferta de alimento um est ímulo sonoro, para que o pobre do cachorro também os associasse, até que em determ inado m omento de seu experim ento, Pavlov passa a oferecer ao animal, somente os est ímulos sonoros. A part ir de tal evento o cachorro desenvolve um a disfunção gást r ica. Sabemos que os animais são sensíveis à forma, seja ela visual ou acúst ica, e o experimento de Pavlov é uma boa demonst ração disso. Sabemos também que quando na natureza, os anim ais não estariam isentos de uma certa antecipação de um acontecimento, como, por exemplo, a aproximação de uma forma, bem com o também não estar iam isentos de um a certa decepção decorrente da frust ração de suas expectat ivas antecipatórias. Toda a mult iplicidade de r ituais de acasalamento, de agressividade, ent re out ros, tantas vezes abordados por Lacan, demonst ram-nos a existência no inst into dessa dim ensão antecipatória. Logo, não podemos simplesmente dedicar à decepção, o valor de causa no desenvolvimento dos problemas gást r icos no cachorro da experiência de Pavlov. O que podemos perceber, é que a relação ínt ima desse anim al com seu Umwelt é arbit rar iamente at ravessada por aquilo que se oferece na dimensão de presença e ausência, mais especificamente é at ravessado pela ordem simbólica. Se inicialmente o cachorro não se enganava a respeito de sua necessidade, a intervenção do desejo do cient ista int roduziu a dimensão simbólica na realidade do anim al, int roduzindo assim a dimensão do equívoco, sustentada pela tensão produzida pela hiância que conseqüentem ente surge na apreensão da forma. Ao animal, por não poder falar, não poder se representar no campo significante, não se apresenta a via de tom ar o Out ro com o simbólico, nem a consequente possibilidade de tomar no regist ro do dom, aquilo que se apresenta como capricho desse Out ro. Diante da presença infinita do desejo, na hiância aí produzida, resta ao animal o tampão de seu organism o. A experiência a que é submet ido o cachorro no laboratório de Pavlov, não é muito diferente da experiência de qualquer cr iança, em sua relação com o Out ro, e que Lacan nos apresenta no Seminário 4, “As relações de Objeto” . A mãe, que de acordo com seus desejos alimenta ou não a cr iança, const itui-se para essa como seu primeiro objeto. Esse objeto simbólico é const ituído pela cr iança a part ir de sua alternância de presença e ausência. A part ir da experiência de frust ração da cr iança diante da mãe, esta decai de sua posição sim bólica e passa então a ser tomada em sua dimensão real e caprichosa. A mãe real, em sua onipotência, surge então como possuidora dos objetos que de acordo com seu capricho poderão sat isfazer ou não a criança. Esses objetos, no decaimento da mãe de seu estatuto simbólico para real, ascendem à dimensão simbólica sendo então reconhecidos como um dom da m ãe. À cr iança resta a possibilidade de se alojar ali onde ela acredita ser amada pela mãe, tentando em sua interpretação, localizar- lhe o desejo, ident ificando-se ao objeto imaginado deste desejo, na tentat iva de assim iludi- lo. É, portanto na relação com a m ãe que a cr iança experimenta o falo como o cent ro do desejo da mãe. (Lacan, 1956: 231) A part ir dos dois exem plos t rabalhados podemos começar a operar com a dimensão de corte do significante e com as respostas possíveis a apresentação desse corte. No exemplo do cachorro, paradigmát ico do fenômeno psicossomát ico, o S1 significante que escreve a presença ausência da carne é associado em oposição ao significante S2 que escreve a presença ausência do est ímulo sonoro. A ret irada da carne pelo cient ista interrompe o circuito repet it ivo de um dos significantes, produzindo um holofraseamento im possível de ser interrogado pelo animal, pelo sim ples fato de lhe ser impossível falar. Lacan nos diz: Quer Pavlov reconheça isso ou não, é propriamente associar um significante que é característ ica de qualquer condição de experiência, no que ela é inst ituída com o corte que se pode fazer na organização orgânica de uma necessidade – o que se designa por uma manifestação ao nível de um ciclo de necessidades interrompidas, e que reencont ramos aqui, no nível da experiência pavloviana, como sendo o corte do desejo.(Lacan, 1964: 224) Já na cr iança neurót ica, encont ram os um a repercussão bem diferente ao efeito de corte do significante. É no intervalo ent re os significantes que ela localiza o desejo do Out ro, fazendo- se objeto desse desejo e aí tam bém , localizando o seu próprio desejo. Basta lembrarmos a oposição dos significantes Fort Da tão bem assinalada por Freud na brincadeira de seu neto, onde ele most ra o sujeito alienado em sua ident if icação ao carretel, objeto no qual se defende de sua afânise, de seu desaparecim ento. O desejo, em sua dimensão infinita, se mantém na fantasia, que se instala no intervalo mesm o da cadeia significante, sustentada pelo falo, significante que funciona com o razão do desejo. A debilidade e a psicose seriam situações onde o holofraseamento do par significante, impossibilitar ia a afânise do sujeito, e, portanto sua const ituição com o sujeito do desejo. Tal holofraseam ento se daria, contudo, de form a dist inta em cada um dos casos, e certamente não seria pelos mot ivos de uma impossibilidade natural com o no caso do cachorro, o que, acentua Pierre Bruno, descarta a dimensão deficitár ia na debilidade e na psicose. Ainda segundo Bruno, ao invés do déficit teríamos o excesso, excesso esse responsável pela inibição do débil e pela foraclusão na psicose. Na psicose, a hiância, o furo, o corte produzido pelo significante, int roduzindo a função da causa não se produzir ia, pela recusa a esse corte. Como nos diz Lacan, falta um dos termos da crença, o que impede a sua apreensão no mom ento de seu desvanecimento. Tal recusa tem como conseqüência o fato de que esse buraco, essa hiância observada a part ir da ausência da m ãe, da falta do Out ro, seja experim entada no real. Eric Laurent nos fornece um a série de exem plos desse surgimento da hiância no real, como o da paciente que não podia comer pois seu corpo estava aberto, ou out ra paciente que via buracos se abrirem no chão enquanto andava. É nesse buraco que Schreber exper im enta delirantemente sua m orte, m as é também em torno desse furo que ele vai ordenar toda a reconst rução de seu m undo. Esse buraco no real nada m ais é do que a presença real do objeto de um desejo sem lei, o sujeito psicót ico não aparece aqui ident ificado ao objeto, mas como objeto real de um gozo infinito. Na debilidade, se há a int rodução de um a dimensão psicót ica, essa não se faz por um a impostura do lugar do pai. O débil segundo Lacan, é um suporte do desejo da m ãe num termo obscuro.(p.225) Para Bruno ele se auto interdita, como se ele se fundasse nos significantes do Outro, interditando-se de se interrogar sobre sua vontade. Mas é exatamente nessa interdição que pela insistência em esconder, acaba o débil, por essa via mesm o, revelando a própria divisão. Como a cr iança que relatava a Maud Mannoni: Meu irmãozinho anda... , um out ro dia dizia, m eu irmãozinho chora..., ou num out ro dia, meu irmãozinho sorr i. Essa insistência na repet ição revelaria pela própria insistência o valor de defesa que ter ia diante da divisão. Para o débil, a língua se torna caduca como fonte de equívocos. Segundo ainda Bruno, o débil apresenta uma resistência ocasionalmente genial, m ant ida cont ra tudo o que poderia contestar a veracidade do Out ro do significante, para melhor se prevenir das dúvidas que os assaltam, concernentes ao Out ro da lei. É assim , sustentando a verdade a qualquer preço que ele denuncia o seu horror a sua afânise, tornando um pouco mais clara a afirmação presente no sem inário . ..ou Pire de que o débil flutua ent re dois discursos. O débil mantém-se no lugar da verdade apesar da virada do discurso. Mantendo-se nesse lugar, insist indo na verdade ele mente. Mente ao negar a falta do Out ro, mente ao negar sua divisão. Tal ment ira se sustenta no imaginário, onde ele faz do seu organism o um corpo, m ent indo aí também pela via da negação da hiância presente em todos os seres humanos quando da apreensão da imagem . I nsist indo na verdade o débil mantém a ment ira de se fazer UM, de fazer exist ir a relação sexual. BI BLI OGRAFI A: 1)O t ratamento lacaniano do conceito freudiano de sintoma: o sintoma é sintoma da relação do sujeito com o Out ro O primeiro tem po seria aquele do sim bólico como organizador da form ação dos sintomas. O sintoma é o efeito de um sent ido recalcado. Ele faz enigma, se m anifestando suportado por um significante cujo significado está recalcado. Podemos situar esse cam inho no gráfico L sobre o eixo sujeito- Out ro e é nessa art iculação que o sintoma se situa. Lacan inclui poster iorm ente esse primeiro esquem a num grafo m ais complexo, o grafo do desejo, onde vários cam inhos podem ser desenhados, o que lhe perm it irá art icular o sent ido ao gozo. Aqui o sintoma se situa em s(A) com o um efeito de significado do Out ro. Ele é um efeito especial de sent ido porque se conecta com o fantasma. O que Lacan busca é art icular o circuito pulsional com o circuito semânt ico. A terceira art iculação do sujeito com o Outro apresentada por Lacan é sustentada pelas operações de alienação e separação escritas como círculos e em cuja interseção se situa o gozo sob a form a do a vindo complem entar o efeito de sent ido. Primeiro há significante e sent ido, é o que Lacan chama de alienação. Depois há mais de gozo, o que Lacan chama de separação. 2) O inconsciente é um aparelho de gozo Na escrita do discurso do inconsciente temos, a part ir do aparelho de sent ido, a produção do m ais de gozar. S1 = > S2 $ a 3) O sintoma é um sent ido gozado Quando Lacan escreve o aparelho psíquico com os nós, eles ilust ram que os círculos são equiparados e que há uma equivalência ent re gozo e sent ido. É o que Lacan chama de sent ido gozado. Na conferência Lacan vai abordar inicialmente o problema pelo viés do corpo: “Se o homem ( .. .) não t ivesse o que se chama um corpo ( .. .) ele não seria profundamente captado pela imagem do corpo” ( iv) . A relação do sujeito com a imagem de seu corpo lhe é profundam ente est ruturante e o m omento onde essa est rutura é de alguma forma perturbada se torna um m om ento privilegiado para que ele faça uso de um sintom a. A posição de Lacan agora é a de dizer que o imaginário é o único lugar a part ir de onde o sim bólico pode se revelar ao sujeito e acrescenta que a infância é a época decisiva em que os sintomas se cristalizam para o sujeito. Podemos tomar essa conferência como um a primeira m aneira de form ular sua definição de 79 de que o sintom a é um acontecimento de corpo. Essa leitura das conferências tem um ponto de desacordo com Freud: o do autoerot ismo na formação dos sintomas e o exem plo que Lacan toma dessa objeção é Hans. O sintoma fóbico ilust ra o gozo como sendo sempre hetero. “O gozo que resulta desse Wiwimacher é- lhe desconhecido a ponto de estar no princípio de sua fobia” (v) .” Voltem os ao caso Hans para melhor compreendermos essa indicação de Lacan. Qual foi a dificuldade que levou Hans à elaboração do sintom a fóbico? Esse menino que se encont rava na posição imaginária de ser o falo da mãe vê esse jogo de m imar ser interrompido primeiramente pelo nascimento de sua irm ã, Hanna. Esse bebê t raz uma dest ituição narcísica, uma dest ituição da posição falocêntr ica de Hans, levando-o a colocar novamente em questão o Desejo da Mãe. O bebê é a prova de que ele, Hans, não sat isfaz inteiramente sua m ãe em seu desejo de ter um equivalente do falo. Lacan o enunciou da seguinte maneira : “Essa experiência do desejo do Outro, a clínica nos most ra que ela não é decisiva pelo fato de o sujeito nela aprender se ele mesm o tem ou não um falo real, mas por aprender que a mãe não o tem . É esse o momento da experiência sem o qual nenhuma conseqüência sintom át ica ( fobia) ou est rutural (Penisneid) que se refira ao complexo de cast ração tem efeito (v i) .” Em segundo lugar, temos o “encont ro com a própria ereção” à qual Lacan dá um valor fundam ental. Esse encont ro se int roduz e desarranja de forma abrupta o circuito da relação mãe- filho, ou como indicamos acima, do sujeito e seu Outro. Esse gozo irrompe no corpo como vindo de fora e faz do órgão sexual de Hans, seu Wiwimacher, um órgão unheim lich, ao mesm o tempo próprio e est rangeiro, um órgão justaposto ao corpo, agregado a ele. A organização do corpo que anter iorm ente t inha com o fundam entação i(a) , uma imagem , se vê de certa maneira esfacelada por esse buraco int roduzido no real, o objeto a se coloca a descoberto com a queda da imagem. Esse gozo sexual é t raumát ico porque confronta o sujeito com algo que não tem sent ido. Se esse gozo fosse autoerót ico, ele ent rar ia no circuito do princípio do prazer. No entanto, o que se passa é que ele int roduz um excesso no nível do prazer, e conseqüentem ente, um a ruptura na representação narcísica do corpo. Se Hans recorre ao sintom a nesse mom ento é porque o Desejo da Mãe não pode ser inteiramente metafor izado pelo Nome-do-Pai, j á que há para ele um a carência no nível da função do pai. Se o pai de Hans lhe faltava não era no nível da atenção e cuidado. Ele se m ost rava insuficiente como parceiro da mãe, não a sat isfazendo enquanto m ulher, sendo insuficiente, portanto, para promover um deslocamento da cr iança do lugar de ser o falo da m ãe e conseqüentem ente separar o que ele era como criança daquilo que falta à mãe e que ele não pode preencher. Se a mãe de Hans perm anece insat isfeita, ela se apresenta como gulosa de falo e faz valer para seu filho uma relação de devoração com a cast ração. A angúst ia surge para o sujeito do real, do sem sent ido do gozo. Para sair dessa angúst ia ele vai encarnar esse gozo num objeto externo. Com o a função paterna é insuficiente para m etaforizar esse gozo significant izando-o, fazendo-o passar para o sent ido, Hans vai apelar para um significante, o cavalo, que se encarrega então do não sent ido do gozo. Há, portanto, uma passagem do sem sent ido ao significante cavalo. A angúst ia se t ransforma em medo e Hans pode agora localizar aquilo que se passava com ele e que ele não entendia do lado de fora, no cavalo, que passa a poder ser evitado. Essa metáfora da fobia cavalo é um efeito de sent ido. O sintoma perm ite ao sujeito gozo est ruturar portanto uma versão do gozo est ruturado a part ir da const rução de uma metáfora significante que é uma const rução simbólica. A lição do sem inário de um Outro ao outro Nossa segunda referência é a lição de 7 de maio de 69 do sem inário “de um Outro ao out ro” . Nela Lacan vai comentar o caso de fobia de galinhas apresentado por Hélène Deutsch em suas conferências ( e cuja t radução vocês já t iveram acesso) que foram publicadas em 1930 sob o t ítulo de “A psicanálise das neuroses” . Aqui, ele se refere também a uma mudança profunda, a um rearranjo do gozo para o sujeito, que faz uso de sua fobia como uma plataforma giratória. Seria essa plataforma giratória a efetuação da est rutura? O termo “plaque tournante” , de acordo com o pet it Robert , significa plataforma giratória que serve para a mudança de direção dos t rens; cent ro, lugar de t rocas, encruzilhada. Lacan diz que podemos tomar a fobia não como uma ent idade clínica, m as com o uma plataform a giratór ia onde a posição do sujeito se elucidará de acordo com a via que ele tomar. Se num primeiro tem po do ensino de Lacan a fobia parecia ser cont ingente e a angúst ia est rutural, agora, o sintoma fóbico aparece como est rutural para o sujeito e me parece que o termo de plataforma giratória nos aponta para o uso que o sujeito faz de seu sintoma para lidar com os im passes da falta no Out ro que é de est rutura. É por isso que a fobia é um sintoma tão freqüente na infância. Esse caso esclarece de um a forma part icular a discordância ent re a imagem do corpo e o objeto que ela reveste. Ela se torna patente no momento de vacilação da ident ificação imaginária do menino no circuito do desejo materno. Se o caso Hans parece elucidar mais a questão da falha da metáfora paterna para significant izar o gozo, esse caso parece deixar m ais evidente os im passes com a ext ração do objeto. Temos no início uma relação part icular desse menino com sua mãe, ele na posição de ser e fornecer a ela o objeto de seu interesse. Ele ia com ela ao galinheiro todos os dias onde verif icavam os ovos que t inham sido postos. Seu interesse part icular era pela maneira pela qual sua mãe apalpava as galinhas, br incadeira que queria que ela também fizesse com ele no banho. Ele aspirava fornecer esse objeto que t inha um interesse part icular para a m ãe. O lugar de galinha era para esse m enino um lugar no e para o gozo do Out ro e é deste lugar que ele atua, m esmo sem saber porque. Ocorre então um acontecimento perturbador aos sete anos quando o irmão, j á adulto, com quem ele t inha uma relação de compet ição, o agarra por t rás numa situação que Hélène Deutsch chama de cena lúdica de agressão sexual, dizendo ser o galo e o irmão, a galinha. Essa cena revela para o sujeito o que ele era sem, no entanto, sabe- lo. Esse saber diz respeito à diferença dos sexos e a percepção da mãe enquanto cast rada, e o menino faz um a equivalência ent re o fem inino, o objeto e o passivo. O que cai nessa cena é a imagem menino-galinha que recobria o objeto a, o ovo como mais de gozar da mãe. Se ele gr ita que não quer ser a galinha é porque, diante desse saber revelado, ele não suporta mais ficar nesse lugar. Lacan nos diz que há uma inversão de uma posição de poder sem saber a uma posição de saber sem poder. É de um ponto de virada que se t rata, e podemos assim apreender um dos sent idos do termo plataforma giratória usado por Lacan. Há uma mudança de regist ro que t ransforma todas as relações do sujeito, fazendo surgir novos circuitos de sua relação com o Outro. O menino é tomado de angúst ia. Se ele sabe o que t inha sido, não sabe mais o que fazer com o desejo do Outro, no caso, da mãe. O sujeito começa a evitar as gozações do irmão, em seguida evita as galinhas inicialmente com medo dos ataques sádicos do irmão. Ele passa da galinha como objeto de gozo à galinha causa de angúst ia e depois ao significante do medo: medo de ser bicado pela galinha. Tal como diz Lacan: “O viramento(vii) de um regist ro ao out ro, eu não digo a viragem(viii) do que está invest ido num a certa significação de um regist ro ao out ro, eis aí o ponto onde t ropeça a função precedente e onde nasce o seguinte, que a galinha vai tomar a part ir daí para ele uma função perfeitam ente significante e totalmente imaginária, a saber, que ela lhe dá medo” ( ix) . O medo se coloca no lugar da toxicom aníaco onde os t ratamentos m esm os se tornaram um objeto a mais na escala de consumo. Jean Baudrillard situa na metade do século XX, a linha que separa a sociedade de consum o da sociedade que a precedeu e coloca, nessa linha, com o pivô fundamental, os meios massivos de comunicação, dent ro os quais sublinha com especial ênfase a mensagem publicitár ia. O projeto ét ico-social que tem sido denom inado de Sociedade de Consumo nasce, segundo Baudrillard, no momento em que os meios massivos de comunicação "se convertem, por si mesm os, em objetos de consumo privilegiados, no momento em que a mensagem publicitár ia é absorvida de um modo prior itár io, se ent ra em um t ipo de organização sócio-econômica diferente da que tem prevalecido até meados do século XX. A sociedade de consum o é aquela na qual j á não há som ente objetos e produtos que se desejam adquir ir , mas o próprio consumo é consum ido sob a forma a forma de m ito". Enfim , saídas encont radas pelos sujeitos, frente ao mal-estar na civilização contem porânea, marcado pela preponderância dos efeitos dos discursos do universitár io, da ciência e do capitalismo de tal modo que na “sociedade de consumo” , os objetos valem mais que os ideais. O termo gadget foi ut ilizado por Lacan para referir-se aos objetos de consumo produzidos pelo saber cient ífico e pelas tecnologias. Gadget ' ' é definido como sendo um em blem a da sociedade pós- indust rial. Trata-se de um term o que não encont ra uma definição precisa, m as que é const ituído, segundo Baudrillard, na combinação ent re "a inut ilidade potencial e o valor lúdico". Como se vê, t rata-se de respostas técnicas que servem como meio para o manejo dos problemas colocados pela civilização, marca comum das novas formas do sintoma, onde um "fazer com o corpo" se coloca em lugar do "dizer" , modo simples e claro de se definir, o campo clínico das “novas formas do sintoma” , no qual encont ram os sujeitos que fazem do corpo uma máquina para gozar, sem se interrogarem, sequer, que gozo é perm it ido, que gozo é legít imo obter com esse corpo. Constata-se, desse m odo, que a escala de consum o, a diversidade de drogas popular izadas fazem do fenôm eno da toxicomania um fato discut ido por diferentes organizações sociais, verif icando-se, nesse contexto, a importância da ent rada da psicanálise e de uma oferta clínica nesse campo das toxicomanias, na medida em encont ra-se aqui, um terreno fért il de discussão ét ica sobre o “direito ao uso do corpo” , tema esse que tem ocupado os com itês de ét ica, quando encont ramo-nos em um ponto da civilização em que o “Out ro não existe” . A discussão acim a m ost ra-nos com o, nas "novas formas do sintoma", o disposit ivo analít ico se vê confrontado com um modo de gozo onde o "fazer" tornou-se preponderante em relação ao "dizer" , colocando a exigência de que concent rem os nossos esforços para a elucidação desses fenômenos já que as "toxicomanias" oferecem-nos o paradigma para pensarmos o futuro da clínica psicanalít ica. Os tempos atuais têm revelado aos psicanalistas a necessidade de discut ir o m odo com o os sintomas contem porâneos dem onst ram art iculações idiossincrásicas ent re "as palavras e os corpos", marcando claramente o modo como a ciência se faz presente em nosso dia - a - dia como discurso, povoando a civilização com objetos "causa de gozo", que se prestam a tam ponar a "causa do desejo". Esses usos são encont rados com freqüência na clínica das neuroses esclarecendo-nos sobre as dificuldades de verificação da dem anda e da t ransferência nesses casos, de tal modo, que a clínica das toxicomanias designa um a “clínica de borda” . Sob a marca da Orientação Lacaniana e, em especial, tendo em vista o I Encont ro Americano do Campo Freudiano, que se realizará em Buenos Aires, em setembro de 2003, com o tema “A psicanálise e seus usos” , o Núcleo de Toxicomania tomará como pesquisa para o ano de 2003 as discussões sobre a clínica borromeana e as toxicomanias, tendo como eixo temát ico um percurso que esclareça a dist inção ent re o “gozo cínico” enquanto um gozo que não passa pelo Out ro e a “ex-sistência do Outro” com o condição de possibilidade para que, no além do Pai, o sujeito possa responsabilizar-se pelo gozo. A clínica dos nós, most ra de que modo os psicanalistas, na contemporaneidade, ao escutarem a singularidade de cada caso, verificam as mais originais e inéditas amarrações, apontando um a diversidade de soluções contem porâneas ao paradoxo do gozo, genuína resposta ao declínio do Out ro. Como amplamente discut ido no Campo Freudiano, as toxicomanias exemplificam, de modo paradigmát ico, as soluções e amarrações borromeanas idiossincrásicas. Deve-se considerar, como referência de capital importância, para se pensar a especificidade do gozo da droga como “gozo cínico” , a inexistência do Out ro, ou seja, a degradação da função paterna na cena sócio-histórica contemporânea, na qual assiste-se um a dispersão dos significantes mest res, das insígnias fálicas responsáveis por um desvanecim ento do Outro, deixando o sujeito à mercê do desvario do gozo(1) . Desse modo, encont ramos no campo clínico das toxicomanias, oportunidade de verificação dos impasses da clínica psicanalít ica e, m ais ainda, o im perat ivo que se coloca, de um avanço em relação ao problema epistêm ico da dom inância do simbólico sobre o real e o im aginário, e, sobretudo, do modo como as amarrações contem porâneas e suas idiossincrasias “concernem um a radical subversão aos pressupostos da clínica do Nom e-do-Pai” . As at ividades do NI PP durante o ano de 2003 serão dedicadas à explicitação desse tema conforme programa apresentado na agenda. Desse modo tomarem os como ponto de part ida a afirmação recolhida da literatura psicanalít ica or ientada desde Freud, passando por Lacan, até as recentes cont r ibuições de Jacques Alain Miller, Eric Laurent e out ros leitores contem porâneos de Freud e Lacan, de que, para a psicanálise, a toxicomania não designa um a est rutura clínica, m as sim um fenôm eno que pode ocorrer em qualquer est rutura clínica. Dizer que a toxicom ania é um fenôm eno implica, também, lembrar uma out ra advertência: a toxicom ania não é um sintom a na acepção clássica de sintoma postulada desde Freud. Com Freud poderíamos dizer que a toxicomania é uma saída, um modo de t ratar o mal estar da pulsão pela via da intoxicação na proporção mesma em que se constata a impossibilidade do princípio do prazer, ponto esse ressaltado por ele no capítulo dois do livro “O m al-estar na civilização” onde dist ingue o t rabalho, a ciência e as artes, enfim as saídas subst itut ivas. Define, a intoxicação como a mais rúst ica para enfrentar as privações que a vida impõe, seja pelo seu efeito imediato, alteração da sensibilidade que impede a percepção de sensações de desprazer, ou seja, a anestesia, e, por fim a sensação de independência frente ao mundo exter ior. Existe som ente um a referência no texto de Freud a um paciente toxicôm ano que havia feito um a consulta com ele em um a ocasião. A observação que Freud faz sobre o caso é a seguinte: ( .. .) “ creio que é um caso ruim , nada adequado para o livre exercício da psicanálise. Para tanto lhe faltam duas coisas – pr imeiro um certo conflito doloroso ent re seu eu e aquilo que as pulsões exigem, pois no fundo está muito contente consigo mesm o e sofre somente pelas resistências de circunstâncias externas. E, em segundo lugar, com esse seu eu aparentemente normal, que pudesse colaborar com o analista, procurará sempre, ao cont rár io, despistar esse últ imo, enganar- lhe com falsas aparências e deixa- lo de lado” . Com o se vê, Freud não era ot im ista sobre a abordagem do toxicômano pela psicanálise. Pois bem, o fato de exist irem poucas referências nos textos de Freud e de Lacan sobre as drogas e sobre a toxicom ania com o um a patologia, j á aponta que a toxicomania encont ra-se nos lim ites abordáveis pelo discurso, e conseqüentem ente, nos lim ites abordáveis pela psicanálise, daí a sugestão de Daniel Sillit t i de que a clínica das toxicom anias é uma “clínica de borda” . Em um m omento da história da psicanálise as psicoses representavam a borda. Part indo de certa leitura de Freud, os psicanalistas de toda uma época deixaram fora dos efeitos da psicanálise, as psicoses. É a part ir de Lacan que os psicanalistas aprenderam a se orientarem no terr itór io das psicoses. É conhecida a afirmação de Lacan “não ret roceder diante das psicoses” . Haver at ravessado essa fronteira não significou elim inar a fronteira. Novas form as de t ratamento do mal-estar na civilização dão lugar a novas bordas, novos desafios, novos obstáculos ante os quais a psicanálise não deve ret roceder. As toxicomanias é uma delas. A sugestão do termo “clínica de borda” não faz referência a uma categoria psicopatológica, mas aos obstáculos que o psicanalista encont ra em sua prát ica enquanto essa não pode definir-se sem que se leve em conta a época na qual está inserida. Desde Freud somos levados a reconhecer que o tema das toxicomanias não ent ra classicamente na psicanálise, ponto de vista que inspira Freud ao sublinhar o encont ro harm ônico do bebedor com o vinho, em oposição ao que ele anuncia desde “A degradação da vida amorosa” , que é a im possibilidade da pulsão encont rar o objeto original da sua sat isfação, como elem ento decisivo para se postular o que Lacan designou de “ inexistência da relação sexual” , ou seja, a im possibilidade de harm onia com o parceiro sexual. Assim , encont ramos cedo na obra de Freud a referência à relação do bebedor com o vinho como um casamento incomum. Freud chama atenção, nesse texto, para o fato de que, de um m odo geral, se desloca m uito a atenção para o objeto quando se aborda a vida am orosa e que a ênfase para se pensar a visa sexual dos seres falantes deve ser posta no funcionam ento m esmo da pulsão e não no objeto. Penso que não é por acaso que Freud t rata, justam ente nesse texto, da relação do bebedor com o vinho, e, sobretudo, penso que se pode ext rair daí, também, a prem issa que pode orientar a clínica psicanalít ica no tocante às drogas – ou seja, o acento deve ser colocado no funcionamento m esmo da pulsão e não no objeto. I nteressa, portanto, ao psicanalista, o aparecimento do sujeito e da sua divisão const itut iva, dada a natureza pulsional do ser falante e do prim ado do falo com o o nó de amarração do funcionamento pulsional que subm ete a sat isfação pulsional aos desfiladeiros do significante de modo tal, que a cast ração pode ser assim enunciada: onde o sujeito não goza ele se submete, onde ele goza ele tem culpa – insígnia inequívoca do m al-estar na civilização. Tais considerações, oferecidas pelo referencial psicanalít ico, interrogam as abordagens clássicas sobre o tema da toxicomania, freqüentemente designada como drogaadicção, dependência quím ica, toxicodependência, enfim , esses e tantos out ros nomes ut ilizados para designar ent idades nosológicas que possuem , em si mesmas, valor diagnóst ico, fazendo exist ir , conseqüentemente, “o dependente quím ico” , o “alcoólat ra” , e uma infinidade de clínicas, inspiradas por um a pluralidade de discursos que sustentam não só a existência do toxicômano, mas, sobretudo, a existência da droga enquanto realidade em pír ica, meios esses responsáveis por concepções clínicas nas quais impera a regra da abst inência, a noção de dependência, e, conseqüentemente, uma ênfase na substância e no uso que um indivíduo possa fazer dela, esquecendo-se daquilo que o próprio toxicômano fez questão de se esquecer – que ele é um sujeito, que a droga é um objeto eleito, é objeto de uma escolha e que essa escolha se dá sob a égide do inconsciente. Então, tem-se alguns dados que são m uitos importantes para o desenvolvimento deste t rabalho: o sintoma é uma tentat iva de cr iar uma harmonia ali, onde um menos se instalou provocando uma desarmonia. É neste ponto que se pode ver uma discordância fundamental ent re os conceitos de sintoma para a medicina e para a psicanálise. Se por um lado a posição médica se refere à noção de harmonia como um objet ivo a alcançar quando se está diante de um sintoma - este, portanto, aparecendo como o que perturba e dest rói a harmonia - , o sent ido do sintoma vai mudar se a referência não for mais a harmonia que ele vem perturbar, mas sim o fato de que ele é harmônico a uma falta, a um menos, ou seja, à cast ração. J.A. Miller(6) em um texto sobre o envelope formal do sintoma diz que a palavra sintoma tem no seu radical “sin” que quer dizer síntese, reunião, conjunto, o que vem junto, o que coincide. Desta form a, o sintoma é o que faz coincidir duas coisas: a cast ração e a sat isfação. Esta afirm ação pode-se fazer sustentando, também, o que escreveu Freud na definição descrita acim a. Para ut ilizar o nosso jargão, pode-se dizer que a cast ração é “o ser do sintom a” (7) , seu núcleo. Este núcleo vai se apresentar embrulhado, envolvido pelo “envelope form al do sintoma” - seu invólucro significante. Este termo, ut ilizado por Lacan no texto “De nossos antecedentes” (8) surge de um certo retorno à psiquiat r ia clássica de Clérambault , e da “necessidade que levou Lacan à psicanálise” (9) por ocasião do seu famoso caso Aimée: “Pois a fidelidade ao envelope formal do sintoma, que é o verdadeiro t raço clínico do qual tomamos o gosto, nos leva a este lim ite onde ele retorna em efeitos de criação” (10) . Um pequeno parêntese, neste ponto, para dizer que esta afirmação de Lacan, feita em 1966, aparece com o um prenuncio do que, m ais tarde, será definido como “saber aí fazer com seu sintoma” (11) . Part indo da frase de Lacan, descrita acim a, Miller chama a atenção para os dois eixos do sintoma: (1) se, por um lado, há um núcleo que pode se denom inar de cast ração, de sofr imento, de “mais de gozo” em conseqüência do “menos de gozo” da operação significante, há, no sintoma, (2) um a m ensagem endereçada ao Out ro e que espera um a decifração(12) . Em out ras palavras, é possível um t rajeto na formação do sintoma que, a part ir de um ‘menos’ que se instala como conseqüência da ext ração do objeto “a” pela operação significante, faz surgir uma intenção de significação que produz uma resposta que, exatamente por ser da ordem do impossível, relança a busca de significação. Esta busca de significação é explicada por J.A.M. como sendo a “ t ransformação da queixa que emerge do fundo do desprazer em m ensagem ( ...) fazendo exist ir o sujeito de uma maneira nova no campo do Out ro, e sob forma const ituída” (13) . No entanto, quando se formata uma queixa, ou com o nos diz M. Silvest re(14) : quando fazemos coincidir um a queixa e um sofr imento, vamos perceber que ela se desnatura, pois há o que se pode dizer e o que não se pode dizer pela própria impossibilidade do significante em dizer tudo. Esta dificuldade é o que faz com que a lógica própria ao Out ro, ao estabelecer esta relação ent re queixa e sofr imento, vá congelar e fixar a queixa numa certa cena. Em outras palavras, do que se t rata aqui é de um certo percurso pulsional(15) que se estabelece na relação do sujeito com “um dos objetos que havia anteriormente abandonado” (16) , porque “a libido é induzida a tomar o cam inho da regressão pela fixação que deixou at ras de si nesses pontos do seu desenvolvimento” (17) Pontos em que queixa e sofr im ento, gozo e mensagem , cast ração e envelope formal, se fizeram coincidir.(18) Quando alguém vai até um analista, o que se espera é que ele faça um relato de sua infelicidade. Neste relato pode-se, então, perceber que há um a harmonia, há um arranjo que faz exist ir uma sat isfação ali mesm o onde o sujeito se queixa de dor. Este é o paradoxo que Lacan define em Televisão quando nos diz, que a demanda “de um que sofre” , nos diz que “o sujeito é feliz” . E cont inua: “É mesm o sua definição, pois que ele não pode nada dever senão ao momento oportuno (heur) , à sorte ( fortune) dito de out ra forma, e todo momento oportuno é bom para isso que o mantém, ou seja, por que ele se repete” (19) . Por tudo isso se pode afirmar que “o sintoma analít ico, enquanto form atado no campo do Out ro, const ituído como o que se instaura da cadeia significante, tem est rutura de ficção” (20) . I sto o dem onst ra muito bem o sintoma histérico, na medida em que, na hister ia, vê-se o sintoma como ser de verdade do sujeito, pois ele é deslocado desde baixo e colocado em evidência. Em out ras palavras, no sintoma histérico “o objeto ‘a’ como real virá ao lugar da verdade” , como muito bem o most ra a est rutura do Discurso da Histeria. Pode-se acrescentar, ainda, que ao instalar-se como “ser de verdade” , o sintoma promove a const rução de um a suposição de saber no campo do Out ro. Part indo da prem issa est rutural de que não há relação ent re o sujeito e o Out ro, o sujeito está, desde sempre, afastado de sua verdade. O laço possível, ent re o sujeito e o Out ro, se faz pelo sintoma. E se faz, com a cr iação de um “ser de saber” ali, onde a verdade lhe está vetada. Um fragmento clínico, t razido ao cartel(21) por Flávio Monteiro de Carvalho pode ilust rar esta questão: Trata-se de uma senhora de 32 anos, casada há 2 anos, sem filhos. O m arido, com 35 anos por ocasião da consulta, encont ra-se no segundo casamento. No seu prim eiro casamento, o marido teve 4 filhos. Até dezembro de 2001 a paciente fez uso de cont racept ivo hormonal. De janeiro de 2002 até o momento da consulta ela vem lidando com o desejo de engravidar-se. Fez a pr imeira consulta com Flávio no início de março de 2002. O m ot ivo da consulta foi saber por que não havia engravidado ainda. Flávio explica- lhe que t rês meses de interrupção do uso de cont racept ivos era um tempo muito curto. De qualquer forma pediram- lhe alguns exames com plementares que deveriam ser t razidos na próxima consulta. No retorno, quinze dias depois, ela voltou acompanhada pelo marido, que veio disposto a conversar com o m édico. Ent retanto, sem dar, ao médico, tem po nem mesm o de perguntar alguma coisa, foi logo dizendo: “ fui ao urologista há alguns dias e ele me disse que sou portador de varicolece e isso dificulta a gravidez” . Diante desta afirmação, Flávio assinala que, no casamento anterior ele teve quat ro filhos e a varicocele não havia prejudicado tanto assim ... Ele, porém, cont inuou dizendo que agora a situação estava pior, pois de Janeiro de 2002 para cá sua atual mulher (que estava ao seu lado, no consultór io, sem dizer uma palavra) marcava hora para eles t ransarem, pois ela queria, de qualquer forma, engravidar-se. Flávio percebeu nisso uma dificuldade que, provavelmente explicava a int rodução do tem a da cirurgia de varicocele. Esta talvez fosse uma saída para aliv iar esta cobrança. Em função disto, disse- lhes, então, que para um casal que não evite filhos com o uso de contracept ivos e tenham contatos sexuais freqüentes, a gravidez ocorre em um prazo de um ano em 68% dos casos e que os out ros 32% só se completam em 2 anos. Só depois desse tempo é que médicos ginecologista ou urologista deve começar a invest igar a situação para depois, se for necessário, estabelecer o t ratamento. A paciente perguntou, então, se alguma medicação lhe seria prescrito. A resposta de que não era necessário foi acom panhada de um a ponderação sobre a urgência da demanda o que abriu um novo cam inho possibilitando um a escuta do sintom a, para além das demandas que t razia aquele casal. As conseqüências desta conduta só puderam ser colhidas depois, mas a verdade é que ao decidir não m edicar, apaziguando o m al-estar, pôde-se abrir um cam inho para que uma criação advenha, ou seja, abriu-se um cam inho para o novo a part ir do velho sintoma. Est rutura de ficção, queixa, sofr imento, não importa com o a ele se refere, a verdade é que o sintoma é o que vai dizer de algo que não vai bem e o “clam or da hum anidade” é pelo apaziguamento do mal-estar que isso provoca. No entanto, é preciso repet ir aqui uma afirm ação que merece toda atenção: “o sintoma é o m ais part icular que cada um tem e, por out ra parte, o mais real. O sintoma é precisamente o que faz com que cada um, em alguma coisa, não consiga fazer absolutamente o que lhe está prescrito pelo discurso de seu tempo.” (22) Esta afirmação alerta para uma questão de ordem prát ica e, por que não?, Ét ica! É fundamental ao se escutar o relato da infelicidade de alguém, que se tenha em conta o fato de que esta infelicidade é o que há de mais part icular, é o que sustenta este sujeito enquanto const ituído e, mesm o que tenha sido por não estar mais funcionando como antes que ele procura uma análise, ainda assim é seu t raço mais part icular: “Eu sou assim !” , dizem de várias maneiras os candidatos à análise. Talvez por isso é que, ao se diferenciar o lugar do analista, do lugar do terapeuta, está-se dizendo de um comprom isso que não é com o movimento humanitário que, com seu clamor, espera poder universalizar o que há de mais part icular. O comprom isso que se estabelece é com a part icular idade de cada um. Pôr-se a serviço desta verdade supõe um desejo que já foi qualificado de inumano. Talvez por isso é que Lacan, em sua Nota I taliana(23) , diz que o analista é o rebotalho da hum anidade, na medida em que quer saber disso que todos querem esquecer. Em out ras palavras, Lacan vai afirmar que o mal-estar na civilização consiste em gozar da renuncia ao gozo. Sim , porque ao estabelecer uma solução de compromisso ent re as duas forças opostas que estão em conflito, o sujeito renuncia à uma possibilidade de um gozo possível. Gozo este que só será possível na medida que o Outro é esvaziado de gozo, ou seja, na medida em que o sujeito deixa de acreditar que o Out ro quer dele sua cast ração, que o Out ro vai ret irar o que ele tem de mais precioso: seu pequeno nada. Uma analisante explicita muito bem esta questão ao pronunciar esta frase: “Percebi que sem pre t ive m edo de perder o que nunca t ive.” Talvez estejam se perguntando: o que tudo isso tem a ver com o nosso tema? Ora, sim plesmente o seguinte: na verdade o que está no cerne do que se entende por sexo, m ais precisamente, por relação sexual – e aqui se refere, obviamente, ao que diz a psicanálise – é a sua im possibilidade, o menos, o resto irredut ível de gozo que se assinalou a pouco. Assim , a única possibilidade de estabelecer uma relação com o Out ro sexo é pelo viés do sintoma. [ ($< > a) à A] . É por isso que as tentat ivas de se curar o “sexo” , seja pela medicina, seja pelas terapias “ sexológicas” acabam, na maioria das vezes, em fracasso, pois apenas reforçam a im possibilidade que já existe ali. Mas, seria possível curar o sexo at ravés da psicanálise? Talvez o que se possa dizer é que, diante da impossibilidade da relação sexual, ela deixa claro que homem e mulher estão do mesm o lado, qual seja, ambos tem apenas uma única maneira de representar o sexo: o simulacro fálico. Em out ras palavras pode-se dizer que ambos os gêneros tem em comum um a só espécie de gozo: o gozo fálico. O que vai diferencia- los é o acesso diferente ao Out ro. É esta diferença que os reparte em duas espécies fazendo obstáculo a que a dimensão cultural de gênero venha recobrir a sexuação. Referências 1. Texto apresentado no Núcleo de Psicanálise e Medicina do I PSM-MG em 02/ 04/ 02 2. Dicionário Aurélio, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1ª Edição. 3. Sabemos que para Freud o prazer está ligado a econom ia de energia, ou seja, se conota o prazer pelo m ínimo de excitação do sistema libidinal do corpo. A este propósito, Lacan comenta que o princípio de prazer freudiano consist ir ia em nada fazer ou fazer o m ínim o possível, o que está na cont ra-mão da ét ica da psicanálise, pois o pr incípio de prazer corresponderia ao querer o bem. O gozo se refere a uma situação m ít ica de um corpo antes da ent rada do significante. Vemos ai uma mudança de perspect iva: da ênfase dada às normas e aos cr itér ios, passa-se com Lacan, a enfat izar a formação do que é um analista, a mutação subjet iva por ele experimentada e que o capacita, se assim podemos dizer, a se oferecer como analista de um a out ra experiência. E na perspect iva de nossas preocupações atuais poderíam os então parafrasear Lacan dizendo que uma psicanálise aplicada ou não, é também o t ratam ento que se espera de um psicanalista. É importante notar que desde essa mudança proposta por Lacan, a palavra t ratamento deixou de saturar a significação at r ibuída à prát ica da psicanálise, e que a part ir daí, Lacan subst itui o termo t ratam ento psicanalít ico, pelo termo experiência psicanalít ica. Portanto, de um t ratamento que podia, do ponto de vista da I PA, ser “ indicado” ou “cont ra - indicado” pela avaliação de um profissional, passa-se a conceber a psicanálise como a oferta de uma experiência vital, existencial, que pode ser desejada ou não pelo sujeito. A part ir dai um fato não pode ser desconhecido: o psicanalista está desde então mais disponível no mercado, e se presta a usos bem dist intos daquele que foi out rora concebido sob o termo “psicanálise pura” . Nesta virada proposta por Lacan, digamos: dos padrões ao psicanalista como objeto, cr ia-se um novo cam po de indicações para análise. É que o objeto psicanalista é surpreendentemente versát il, disponível, mult i- funcional se assim se pode dizer. (4) Sendo assim , me parece que um psicanalista pode se dispor, pelo menos a princípio, a ser um “endereço” para o t ratamento do mental e suas fragilidades nas mais diversas condições. Nessa perspect iva, t rata-se menos de antecipar se a natureza da perturbação é acessível à psicanálise, que de saber se um encont ro com um analista será út il ou não. Como exemplo, relato o caso de uma analisante em curso de t ratamento a mais de 15 anos e que está em vias de sofrer um t ransplante do coração. Ela se encont ra no CTI dada sua condição precária de vida. Ela espera com urgência por um doador, pois todos os recursos m édicos se esgotaram, m esmo seu desfr ibilador de últ ima geração, implantado à alguns meses não é o bastante para sustentar suas condições vitais. Seu analista é cham ado a cont inuar a atendê- la com grande freqüência. Poderíam os nos perguntar: o que pode fazer um analista nestas condições? Pois é nessas condições que ela lhe diz que somente a ele pode falar certas coisas que nem os am igos, os fam iliares ou os médicos suportam escutar. O analista está ai bem localizado. Ele é chamado a ouvir o insuportável. A analisante fala da morte e de suas est ranhas fantasias “meio canibalescas” sobre um possível doador e esse “pedaço de corpo” que ela deverá incorporar. Assim , mesm o em um CTI e t rabalhando com fam iliares, m édicos, e inserido em est ranhos procedim entos hospitalares, é possível perceber a importância e eficácia de um lugar próprio à psicanálise: o lugar de acolher o im possível de suportar. Em um out ro caso enviado ao analista por uma inst ituição do poder judiciár io, um pai chega dizendo ter sido obrigado pela juíza a buscar “acompanhamento” , instala-se ai o que Célio Garcia chamou de sujeito suposto poder. Diante da intervenção de que então o profissional não sabe o que fazer com ele, já que todos que o procuram estão lá porque sofrem e querem se t ratar, o sujeito revela que suas idas podem ser úteis, pois caso cont rário vai acabar agredindo a juíza e pondo tudo a perder, enunciando assim o que mais tarde se configurará como um a posição fantasmát ica que lhe gera sofr im ento. Trata-se ai do analista anteparo, o analista no lugar do anteparo contra as pulsões dest rut ivas desse sujeito, único lugar disponível para o analista nesse mom ento e que, no entanto, deve consent ir para dar a chance a que algo de novo possa acontecer. Sem dúvida este t ipo de encont ro tem freqüentemente um caráter experimental. Teremos que ver ificar que sent ido este sujeito pode t irar de seu sintoma e, se t irando algum sent ido, poderá advir talvez qualquer coisa de seu gozo, da sat isfação pulsional inconsciente, que podemos supor se encont ra em seu sintom a. I sso indica, segundo J.A Miller, pelo menos um a condição, que haja a condição do sintoma, que haja sofr imento com o sintoma, e que este gozo do sintoma se apresente como desprazer . I sto quer dizer que, mesm o que o sujeito possa não dar nenhum sent ido a seu sofr im ento, o encont ro com um analista ainda assim pode ser út il se há sofr im ento. A disponibilidade do analista tem , portanto uma certa afinidade com a posição fem inina. Pois me parece que podemos dizer que é mais próprio do fem inino poder assist ir a um sofr im ento diante do qual é impossível fazer algo, porque não há nada a fazer, t rata-se ai de uma maior afinidade do fem inino com o impossível. Se ainda fosse preciso combater, fazer alguma coisa, pegar uma arm a, acionar um inst rum ento o masculino saberia se m ost rar út il e eficaz. Mas estar simplesmente lá, ser testem unha paciente, sabendo inclusive que se o sujeito se queixa de seu sintom a, ele é, ent retanto, um m eio de gozo e um a adaptação, restabelecem um a out ra eficácia, uma out ra ut ilidade mais próxima daquela produzida pela disposição do analista. Não se crer grande coisa Encont rei as seguintes palavras de Lacan em seu discurso na Universidade Americana em 1974. O Analista se põe à disposição do analisante com o o últ imo dos últ imos, porque vai estar com ele t rês ou quat ro vezes por semana para escutar o que vai sair naturalmente, para isso é necessário que haja um nível onde não se creia muita coisa” , ou não se creia grande coisa. A disponibilidade do psicanalista como se vê, está diretamente ligada ao fato dele não se crer muita coisa ou grande coisa. É uma definição precisa e de longo alcance. Há ai o lado epistem ológico e o lado pessoal nesse não se crer m uita coisa. Do ponto de vista pessoal, t rata-se para Lacan desde “Os variantes do t ratamento padrão” em fazer com que o analista apague o seu eu, que apague sua equação pessoal. Hoje em dia dizemos que o analista não é um sujeito, ele não opera de acordo com seu inconsciente, mas a part ir de sua desubjet ivação. Hoje estamos orientados pela noção de que o que conta no analista, é um certo estado de vacuidade, um estado zen, se assim podemos dizer, de uma disponibilidade ao inesperado. Trata-se do que poderíamos descrever como um a vacuidade fért il e atenta. Podemos até dizer que tudo que chamamos de formação do analista não tem por finalidade senão obter no analista isso que se cham a, presença de espír ito. Presença de espírito que poderia se definir como uma apt idão para aproveitar das ocasiões para falar e para agir.(5) Do ponto de vista epistêm ico, isto é do saber, t rata-se de saber não saber. Já em Freud encont ramos que a recomendação por ele enfat izada desde o início de sua prát ica foi a de não prejulgar, de se esforçar em nada saber antecipadamente em relação ao que vai acontecer. E com Lacan temos inúmeras passagens onde ele dá como a chave da formação analít ica, o saber não saber. Cito como exemplo, a frase dos Escritos “a paixão da ignorância dá sent ido a toda formação do analista” . (6) Porém tem os ai um problema, pois por out ro lado, tem os inúmeras passagens onde Lacan faz aparecer na formação do analista uma exigência imensa e quase desm esurada de saber o que fazer com o real da experiência. Nota-se ai uma oscilação constante do discurso de Lacan sobre a formação. Será preciso saber, ou não se deve saber? Segundo Miller, para ordenar essa perspect iva é preciso est rat if icar essas teses de Lacan. Em um prim eiro nível, sem dúvida, Lacan recomenda uma anulação do saber ao nível dos fenômenos da experiência, um a anulação do saber como condição para que possa surgir a surpresa ou o aleatório, quer dizer, para dar lugar ao real como impossível a prever, como im possível de saber antecipadam ente. Mas há um out ro nível onde ele exige o saber, porém não é o saber do acúmulo de experiência. Ele não exige o saber obt ido por termos prat icado muito a experiência analít ica. A exigência de saber muito não incide sobre o muito experiente, o analista “com cancha” , mas a exigência de saber se coloca muito precisam ente ao nível da est rutura da experiência. Tudo repousa sobre a est rutura, sobre a noção lacaniana de que há um simbólico no real, e que a formação analít ica de maneira elet iva deve aproveita-se dos saberes que estão à altura de tocar esse simbólico no real.(7) I sso é muito importante, pois faz objeção a um relat iv ismo, à t ransformação da disponibilidade do analista em uma desorientação, que levaria a psicanálise para o campo geral das psicoterapias. Poderíamos pensar: estou disposto a tudo para ser út il se há sofr imento. Na verdade, ocorre com muita freqüência, que operemos com o psicoterapeutas, oferecendo sent ido e ident if icações para um sujeito, algumas vezes temos que fazer isso, mas temos que saber que cada vez que um analista opera assim , como um mest re, ele paga por isso. Pode ocorrer que tenha que fazê- lo, quando, por exemplo, há r isco de passagem ao ato, e nesse momento temos que nos colocar no lugar do Out ro poderoso, proibindo ou exigindo. Mas cada vez que ocupamos essa posição pagamos obturando os efeitos de real, e demora um tem po para que esse efeito de m est r ia se pacifique, seja esquecido e se supere. As condições de nossa prát ica O que chamo de disponibilidade tem , portanto, seu lugar na est rutura da experiência. Para Lacan a experiência analít ica é condicionada por um a est rutura, e essa est rutura comporta determ inações, condições, lim ites e conseqüências. Disponibilidade é servir para muitas coisas segundo condições precisas. Nossa disponibilidade, a enorme variação que caracteriza a prat ica lacaniana repousa em sua congruência com o real. Podemos estar disponíveis, à medida de nossa congruência. Nossa disponibilidade quer dizer que não temos regras ou critér ios gerais, ou melhor; nossas regras são somente art ifícios congruentes com o real, congruentes com a condição príncipes de nossa prat ica, que é a de dar lugar ao real como impossível de prever, como impossível