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Guias e Dicas
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Mémórias Póstumas de Brás Cubas: Análise e Interpretação, Provas de História

Machado de AssisLiteratura Brasileira ModernaGênero Cômico-FantásticoTeoria Literária

Uma análise literária detalhada sobre a obra 'mémórias póstumas de brás cubas' de joaquim maria machado de assis. O texto aborda a maturidade literária do autor, a teoria darwiniana, o humorismo machadiano, a complexa narrativa de brás cubas e suas digressões, além de detalhes biográficos da personagem. O documento também discute a influência de autores como lawrence sterne e o gênero cômico-fantástico.

O que você vai aprender

  • Qual é a importância da teoria darwiniana na obra Mémórias Póstumas de Brás Cubas?
  • Quais são as principais características do gênero cômico-fantástico na obra Mémórias Póstumas de Brás Cubas?
  • Como Brás Cubas se relaciona com outros personagens da obra?
  • Como Machado de Assis utiliza o humorismo em sua narrativa?
  • Qual é a influência de Lawrence Sterne sobre Mémórias Póstumas de Brás Cubas?

Tipologia: Provas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Raimundo
Raimundo 🇧🇷

4.6

(212)

217 documentos


Pré-visualização parcial do texto

Baixe Mémórias Póstumas de Brás Cubas: Análise e Interpretação e outras Provas em PDF para História, somente na Docsity! Memórias Póstumas de Bras Cubas 3 OS LIVROS DA FUVEST - II MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS MACHADO DE ASSIS Análise da obra, seleção de textos e questionário FERNANDO TEIXEIRA DE ANDRADE OS LIVROS DA FUVEST - II 4 ÍNDICE 1. VIDA 77 2. OBRA: O POLÍGRAFO 80 3. O MACHADO “O ROMÂNTICO” E O MACHADO REALISTA 81 4. CARACTERÍSTICAS CENTRAIS DA FICÇÃO MACHADIANA 82 4.1. A despreocupação com as modas literárias dominantes 82 4.2. Os temas profundos 83 4.3. “Ao vencedor, as batatas” 84 4.4. A ruptura com a narrativa linear 86 4.5. A organização metalingüística do discurso narrativo ............................ 86 4.6. O universalismo 86 4.7. As influências 87 4.8. Os grandes arquétipos 87 4.9. O pessimismo 87 4.10. A ironia, o humor negro 88 4.11. O psicologismo 88 4.12. O estilo “enxuto” 89 4.13. Um carioca sorri em surdina 89 5. MEMÓRlAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS 90 6. ANTOLOGIA ANOTADA 94 7. ESTUDO CRÍTICO 112 EXERCíCIOS 119 Mémórias Póstumas de Brás Cubas 7 Sob o burguês comedido, “britânico”, que viveu convencionalmente ajustado às manifestações exteriores, respeitando para ser respeitado; debaixo das boas maneiras, do humor elegante e dos laivos acadêmicos e arcaizantes, funcionava um escritor poderoso e atormentado, que se aplicava discreta, mas agudamente, em desmascarar, investigar, descobrir o mundo da alma, rir da sociedade e expor alguns dos componentes mais esquisitos da personalidade. Ao aluno que pretender ir além do que se exige no vestibular, introduzir-se no universo machadiano, recomendamos dois trabalhos que servem de excelente porta de entrada: Machado de Assis - Antologia e Estudos, Alfredo Bosi e outros, São Paulo, Ática, 1982, e o “Esquema de Machado de Assis”, in: Vários Escritos, Antônio Cândido, São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1977. Neste capítulo, transcrevemos ou refundimos os autores citados, bibliografia “quase” oficial nos exames para o curso superior em São Paulo. OS LIVROS DA FUVEST - II 8 2. OBRA: O POLÍGRAFO A. Romance Ressurreição, 1872 A Mão e a Luva, 1874 Helena, 1876 laiá Garcia, 1878 Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881 Quincas Borba, 1891 Dom Casmurro, 1899 Esaú e Jacó, 1904 Memorial de Aires, 1908 B. Conto Contos Fluminenses, 1872 Histórias da Meia-Noite, 1873 Papéis Avulsos (livro que inclui “O Alienista”), 1882 Histórias sem Data, 1884 Várias Histórias, 1896 Páginas Recolhidas, 1899 Relíquias da Casa Velha, 1906 C. Teatro A Queda que as Mulheres Têm pelos Tolos, 1861 Desencantos, 1861 Caminho da Porta, 1863 Protocolo, 1863 Quase Ministro, 1864 Os Deuses de Casaca, 1866 Tu, Só Tu, Puro Amor, 1880 Não Consultes Médico, 1896 D. Poesia Crisálidas, 1864 Falenas, 1870 Americanas, 1875 Ocidentais, 1882 Mémórias Póstumas de Brás Cubas 9 E. Crônicas F. Críticas Teatrais G. Críticas Literárias 3. O MACHADO “ROMÂNTICO” E O MACHADO REALISTA Tornou-se convencional a divisão da obra machadiana em duas fases. A primeira, impropriamente chamada “romântica” (como veremos logo mais), abrange a produção literária entre 1870 e 1880 e engloba os romances Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena e Iaiá Garcia, os livros de contos Contos Fluminenses e Histórias da Meia- Noite e as poesias de Crisálidas, Falenas e Americanas. A segunda fase, conhecida como realista, configura a maturidade artística de Machado e inclui os romances Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires, os livros de contos Papéis Avulsos, Histórias sem Data, Várias Histórias, Páginas Recolhidas e Relíquias da Casa Velha e o livro de poesias Ocidentais. O marco inicial da fase realista, o “salto qualitativo”, deu-se entre 1881 e 1882, com o romance Memórias Póstumas (1881), com os contos de Papéis Avulsos (1882) e com as poesias de Ocidentais(l882). Não se pense, contudo, numa ruptura entre as duas fases, num salto abrupto, numa oposição diametral entre a obra dita “romântica” e a obra realista. A crítica mais moderna tem observado que muito do Machado realista, maduro, já estava em seus primeiros livros. Assim, prefere denominar convencionais, e não “românticos”, os livros da primeira fase, anteriores ao Memórias Póstumas, ao Papéis Avulsos e aos poemas de Ocidentais. A fusão de ingredientes convencionais e antecipações realistas observa-se sobretudo nos romances e nos contos. Mesmo nos livros impropriamente chamados “românticos” estão presentes a observação psicológica das personagens, o interesse como móvel principal das ações humanas, o humor reflexivo e o estilo conciso, distante da linguagem adjetivosa dos românticos. Ainda que haja tipos e situações convencionais da ficção romântica, a tensão bem x mal, herói x vilão não existe, e as heroínas agem cal- culadamente por interesse na obtenção de “status”, na ascensão social através do casamento. A “explosão” realista de Memórias Póstumas e Papéis Avulsos de há muito vinha sedimentando seu caminho e a “ruga sardônica” de Quincas OS LIVROS DA FUVEST - II 12 4.3. “Ao vencedor, as batatas.” Além da densa investigação das contradições do ser e do caráter relativo da verdade e da moral, num ângulo mais sociológico, outras questões que vários contos e romances de Machado colocam são: · a transformação do homem em objeto do homem; · a submissão econômica e espiritual; · o egoísmo e o sadismo de uns massacrando a fragilidade de outros; · a falta de liberdade verdadeira. O império da lei do mais forte, do mais rico e do mais esperto é o fulcro da famosa teoria do “humanitismo”, elaborada, no romance Quincas Borba, pelo filósofo-doido Joaquim Borba dos Santos, doido e, por isso mesmo, machadianamente lúcido. Transcrevemos o “miolo” da teoria do “humanitismo”, o momento em que Quincas Borba defende o caráter benéfico da guerra, como “seleção natural” do mais forte: “–– Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas. –– Mas a opinião do exterminado? –– Não há exterminado. Desaparece o fenômeno; a substância é a mesma. Nunca viste ferver água? Hás de lembrar-te que as bolhas fazem- se e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma água. Os indivíduos são essas bolhas transitórias.” O “humanitismo” pode ser interpretado como sátira ao positivismo, ao cientificismo, ao naturalismo filosófico do século XIX, principalmente à Mémórias Póstumas de Brás Cubas 13 teoria darwiniana da luta pela vida, da seleção natural do mais apto como processo essencial da evolução das espécies. A teoria do “ao vencedor, as batatas” pode ser lida como uma paródia irônica do cientificismo da época realista/naturalista, relativizando as verdades científicas de seu tempo e desnudando ironicamente o caráter desumano e antiético da “lei do mais forte”. Nessa direção, no conto “O Alienista”, o hospício pode ser visto como a casa do poder, que subjuga seus pacientes ao arbítrio do alienista Simão Bacamarte, representante da ciência, da lei e da ordem, que a todos submete, escorado em suas convicções “científicas" sobre a normalidade e a anormalidade do comportamento humano. 4.4. A ruptura com a narrativa linear Os fatos e as ações não seguem um fio lógico ou cronológico; obedecem a um ordenamento interior, são relatados à medida que afloram à consciência ou à memória do narrador, num processo que se aproxima do impressionismo associativo. 4.5. A organização metalingüística do discurso narrativo É comum, na ficção machadiana, que o narrador interrompa a narrativa para, com saborosa e bem-humorada bisbilhotice, comentar com o leitor a própria escritura do romance, fazendo-o participar de sua construção, ou ainda para dialogar sobre uma personagem, refletir sobre um episódio do enredo ou tecer suas digressões sobre os mais variados assuntos. Machado assume a posição de quem escreve e ao mesmo tempo se vê escrevendo. Esses comentários à margem da narração constituem o principal interesse, pois neles está a mensagem artística do escritor. 4.6. O universalismo Machado captou na sociedade carioca do século XIX os grandes temas de sua obra. O seu interesse jamais recaiu sobre o típico, o pitoresco, a cor local, o exótico, tão ao gosto dos românticos. Buscou, na sociedade do seu tempo, o universal, a essência humana, os grandes temas filosóficos: a essência e a aparência, o caráter relativo da moral humana, as convenções sociais e os impulsos interiores, a normalidade e a loucura, o acaso, o ciúme, a irracionalidade, a usura, a crueldade. A pobreza de descrições, a quase ausência da paisagem, é ainda desdobramento dessa concentração na análise psicológica e na reflexão filosófica. As tramas dos romances machadianos poderiam, sem grandes prejuízos à narrativa, ser transplantadas para qualquer época e qualquer OS LIVROS DA FUVEST - II 14 cidade. 4.7. As influências Machado de Assis esteve acima dos modismos da época. Enquanto Gustave Flaubert, pai do Realismo, defendia a superioridade do “romance que se narra a si mesmo”, ocultando por completo a figura do narrador, Machado subverte essa regra, intrometendo-se na narrativa, fazendo com que o leitor identifique sempre por trás e acima do narrador, a existência do escritor Machado de Assis. Autodidata, Machado adquiriu sólida formação clássica: Shakespeare, Dante Alighieri, Cervantes e Goethe eram suas leituras obrigatórias. Mas os modelos que seguiu mais de perto foram os do século XVIII: o “sprit” de Voltaire, com sua ironia cortante, além do refinado “sense of humor” dos autores ingleses Sterne e Swift. 4.8. Os grandes arquétipos Uma das linhas mestras da ficção machadiana parte do aprovei- tamento dos arquétipos, que remontam à tradição clássica e aos textos bíblicos. (Arquétipo = modelo de seres criados; padrão exemplar; imagens psíquicas do inconsciente coletivo e que são o patrimônio coletivo de toda a humanidade.) Assim, o conflito dos irmãos Pedro e Paulo, em Esaú e Jacó, remonta ao arquétipo bíblico da rivalidade entre Caim e Abel; a psicose do ciúme de Bentinho, em Dom Casmurro, aproxima-se do drama de Otelo e Desdêmona, de Shakespeare. 4.9. O pessimismo Machado revela sempre uma visão desencantada da vida e do homem. Não acreditava nos valores do seu tempo e, a rigor, não acreditava em nenhum valor. Mais do que pessimista ou negativista, sua postura é niilista (“nihil” = nada). O desmascaramento do cinismo e da hipocrisia, do egoísmo e do interesse, que se camuflavam sob as convenções sociais, é o móvel de grande parte da ficção machadiana. O capítulo final de Memórias Póstumas, o antológico “Das Negativas”, é exemplo cabal do pessimismo do autor: Mémórias Póstumas de Brás Cubas 17 abrasileirou profundamente essa mesma visão problematizadora. Tal foi o sentido concreto que sua obra conferiu àquela exigência, que Machado formulou no limiar da sua maturidade, de um “instinto da nacionalidade”, de um brasileirismo interior. (Transcrevemos José Guilherme Merquior.) 5. MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRAS CUBAS Disposto em 160 capítulos de extensões variáveis, Memórias Póstumas de Brás Cubas foi publicado originalmente em folhetim, na Revista Brasileira, em 1880. No ano seguinte, 1881, foi editado em livro, inaugurando o que a história literária passou a consignar como fase realista da ficção machadiana, e dando início ao período realista da Literatura Brasileira. Após a “Dedicatória” e um irônico prólogo “Ao Leitor”, Brás Cubas, defunto-autor, em posição transtemporal, “do outro lado do mistério”, começa a narrar sua autobiografia. Apoiado na memória, sem nenhuma ordem lógica ou cronológica, num processo de livre-associação de idéias, imagens e palavras (impressionismo associativo), o autor, do túmulo, revê sua existência de homem rico, excêntrico, inteligente, culto, leviano, preguiçoso, cínico, ambicioso, às vezes sádico, que, entediado da morte e da eternidade, se compraz em contar sua vida de fracassado, suas baixezas e as dos outros, para compor, fragmentariamente, uma implacável análise do homem de seu tempo e de todos os tempos. Como defunto pode, impunemente, difamar amigos e inimigos e confessar suas intenções mais sórdidas e suas ações mais vis, pois está além de qualquer vingança ou punição. Brás Cubas é um narrador estranhíssimo, ao mesmo tempo consciente-participante e onisciente (no sentido “fantástico” e “ingênuo"), que, além da posição singular de morto que escreve, se entretém em comentar com o leitor a própria escritura, através de freqüentes digressões, de comentários paralelos sobre os mais diversos assuntos: comparações com elementos alheios ao livro; retratos morais de personagens secundárias ou alheias à trama; sondagem das reações do leitor; experiências e “brincadeiras” gráficas e toda a sorte de desvios, com os quais o autor/narrador discute, em posição metalingüística, o ato de escrever e a tecitura do romance, com a bem-humorada bisbilhotice e o tom desabusado e provocativo que a ficção machadiana instaura, a partir de Memórias Póstumas. O romance começa pelos funerais de Brás Cubas, narrados por ele mesmo. Entretém-se, a seguir, em comentar a causa mortis – a pneumonia contraída quando inventava o “emplasto Brás Cubas”, panacéia medicamentosa que foi sua última obsessão e que lhe garantiria a glória. No capítulo VII, “O Delírio”, narra o que antecedeu ao óbito (interpretado como o centro do niilismo filosófico de Machado, o qual OS LIVROS DA FUVEST - II 18 analisaremos em outra parte). No capítulo IX, “Transição”, principiam propriamente as memórias. Observe, neste capítulo, a interferência do narrador que, em posição metalingüística, comenta com o leitor a estruturação do próprio livro. Observe, também, a independência do autor-narrador em relação ao método e a maneira pela qual relativiza tudo, colocando-se acima dos modismos e convenções: Capítulo IX Transição E vejam agora com que destreza, com que arte faço eu a maior transição deste livro. Vejam: o meu delírio começou em presença de Virgília; Virgília foi o meu grão-pecado da juventude; não há juventude sem meninice; meninice supõe nascimento; e eis aqui como chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci. Viram? Nenhuma juntura aparente, nada que divirta a atenção pausada do leitor: nada. De modo que o livro fica assim com todas as vantagens do método, sem a rigidez do método. Na verdade, era tempo. Que isto de método, sendo, como é, uma cousa indispensável, todavia é melhor tê-lo sem gravata nem suspensórios, mas um pouco à fresca e à solta, como quem não se lhe dá da vizinha fronteira, nem do inspetor de quarteirão. É como a eloqüência, que há uma genuína e vibrante, de uma arte natural e feiticeira, e outra tesa, engomada e chocha. Vamos ao dia 20 de outubro. Brás Cubas começa revendo a própria infância de menino rico, mimado e endiabrado. Em “O Menino é Pai do Homem”, freudianamente antes de Freud, o narrador fundamenta a explicação dos traços de seu caráter a partir da relação pai - mãe. Caracteriza-se como opiniático, egoísta, volúvel, e define sua tendência a julgar as atitudes humanas ao sabor das circunstâncias, dos lugares e das conveniências. Aos dezessete anos, Brás Cubas detém-se na narrativa de seu primeiro amor –– Marcela ––, “amiga de rapazes e de dinheiro”, prostituta de luxo, amor que durou “quinze meses e onze contos de réis”, e que quase deu cabo da fortuna da família. Para se curar desse amor, Brás Cubas é mandado para Coimbra, onde se forma em Direito, após alguns anos de boêmia desbragada, “fazendo romantismo prático e liberalismo teórico”. Retoma ao Rio de Janeiro por ocasião da morte da mãe. Depois de um namoro inconseqüente entre Brás Cubas e Eugênia, “coxa de nascença”, filha de D. Eusébia, antiga pobre da família, seu pai planeja induzi-lo à política, através do casamento. Encaminha o relacionamento do filho com Virgília, filha do Conselheiro Dutra, homem bem posto no mundo político e que certamente apadrinharia o Mémórias Póstumas de Brás Cubas 19 futuro genro. Mas Virgília prefere se casar com Lobo Neves, mais decidido que Brás Cubas e também candidato a uma carreira política. Sobrevém a morte do pai do narrador e, por causa da herança, instaura-se o conflito entre Brás Cubas e sua irmã, Sabina, casada com Cotrim. Virgília reaparece, anunciada pelo primo Luís Dutra. Reencontra-se com Brás Cubas e tomam-se amantes, vivendo agora, no adultério, a paixão que não viveram quando noivos. Seguem-se as peripécias da relação, que se vai esfriando, mas reacende quando Virgília fica grávida de um filho de Brás Cubas. No entanto, a criança morre antes de nascer. Para manter discretamente sua relação amorosa, Brás Cubas corrompe a empregada de Virgília, Dona Plácida, velha beata, cuja miséria obriga-a a figurar como moradora de uma casinha na Gamboa, que Brás Cubas alugou para seus encontros. Por cinco contos de réis, Dona Plácida aceita proteger os amantes, cuidar da casinha e rezar por Brás Cubas, diante de uma imagem da Virgem que conserva no quarto. Segue-se o reencontro de Brás Cubas com seu amigo de infância, Quincas Borba (Joaquim Borba dos Santos). No primeiro reencontro, Quincas Borba, pobre e miserável, rouba o relógio de Brás Cubas; mais tarde, graças a uma herança, refaz suas finanças e repõe o relógio. É Quincas Borba, filósofo-doido, que expõe ao amigo o “humanitismo”, doutrina filosófica que será retomada e aprofundada no romance seguinte: Quincas Borba. Perseguindo a celebridade ou procurando uma vida menos tediosa, Brás Cubas torna-se deputado. Lobo Neves é nomeado presidente de uma província e parte com Virgília para o Norte. Termina a relação dos amantes. Sabina arranja uma noiva para Brás Cubas, a Nhã-Loló (Eulália Damascena de Brito), sobrinha de Cotrim, de 19 anos. Mas Nhã-Loló morre de febre amarela e Brás Cubas toma-se definitivamente um solteirão. Ainda perseguindo a celebridade, Brás Cubas tenta ser ministro de Estado e não consegue. Funda um jornal de oposição e fracassa. Quincas Borba dá os primeiros sinais de demência. Virgília, já velha e desfigurada em sua beleza, solicita a Brás Cubas o amparo à indigência de Dona Plácida, que morre em seguida. Morrem também Lobo Neves, Marcela e Quincas Borba. Eugênia é encontrada num cortiço. A última tentativa de glória é o emplasto Brás Cubas, remédio contra todas as doenças. Irônica e tragicamente, porém, numa de suas saídas à rua para cuidar de seu projeto, molha-se na chuva e apanha uma pneumonia, da qual vem a falecer, aos 64 anos. Virgília, acompanhada do filho, visita Brás Cubas agonizante. Após longo delírio, morre, assistido por alguns familiares. Depois de morto, começa a contar, de trás para frente, a história de sua vida. Mas, antes de tudo, faz estampar, na OS LIVROS DA FUVEST - II 22 gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado”. Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; 5 Observe que o jogo de palavras, que a mudança da ordem dos termos altera o senado e o resultado. Não se trata de autor que já morreu (autor defunto), mas de um morto que se torna autor e escreve, do túmulo, suas memórias. Na posição “surrealista” de morto que escreve, Brás Cubas está livre de qualquer constrangimento para articular o discurso e produzir a sucessão dos fatos. Pode difamar amigos e inimigos, pode expor suas próprias baixezas, sem risco de vingança, punição juízo moral dos vivos, que não podem atingi-lo. 6 Pentateuco = os cinco livros de Moisés, que são os primeiros da Bíblia, desde o Gênese até o Deuteronômio. As alusões bíblicas reforçam a ironia decorrente da aproximação proposta pelo narrador entre sua obra e os escritos sagrados de Moisés. Mesmo descontando a alta dose de ironia, é preciso insistir na elevada consciência que tem Machado de sua posição inovadora e do modo de narrar fora dos hábitos conhecidos do leitor da época. foi assim que me encaminhei para o undiscovered country7 de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, a filha –– um lírio do vale –– e... Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, convulsa. Nem o meu óbito era cousa altamente dramática... Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima8 era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção. “Morto! morto!” dizia consigo. E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o vôo desde o Ilisso9 às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos – a imaginação dessa senhora também voou por sobre Mémórias Póstumas de Brás Cubas 23 os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranqüilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e cousa nenhuma.” Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma idéia grandiosa e útil, a causa da minha 7 Undiscovered country = reino desconhecido ou, no contexto, a morte. Palavras ditas por Hamlet, na peça homônima de Shakespeare, no conhecido monólogo do 3º ato, que começa por “ser ou não ser: eis a questão”. 8 anônima = Trata-se de Virgília que, discretamente, fora visitar o ex- amante. Observe como o narrador ironiza e relativiza a própria morte. 9 Ilisso = riacho próximo de Atenas, na Grécia. O “ilustre viajante” é uma alusão ao escritor francês Chateaubriand (l768-1848), que na obra Itinerário de Paris a Jerusalém descreve o vôo das cegonhas a que se refere Brás Cubas. 10 A repetição do conectivo “e” (polissíndeto) faz avolumar-se, por adição e sucessão, a força da idéia, para chegar à inutilidade com a eliminação de tudo. Observe a gradação em anticlímax. morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo. C. Capítulo II O emplasto Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim11, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a OS LIVROS DA FUVEST - II 24 forma de um X: decifra-me ou devorote. Essa idéia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco12, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade13. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: –– amor da glória. Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos 11 Volatim = em senado figurado é o indivíduo que muda facilmente de opinião ou partido. 12 Anti-hipocondríaco = É possível ver, nessa pretensão de criar um medicamento que curasse a tristeza e a melancolia da humanidade, uma crítica severa e radical às pretensões científicas da segunda metade do século passado: positivismo e determinismo. 13 Veja que o foco narrativo centrado num narrador além-túmulo, num defunto-autor, possibilita um distanciamento “objetivo” e “realista”, na apreciação dos atos e intenções do próprio narrador. antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a cousa mais verdadeiramente humana que há no homem, e conseguintemente, a sua mais genuína feição. Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto14. D. Capítulo VII O delírio15 Mémórias Póstumas de Brás Cubas 27 imensa brancura da neve, que desta vez invadira o próprio céu, até ali azul. Talvez, a espaços, me aparecia uma ou outra planta, enorme, brutesca, meneando ao vento as suas largas folhas. O silêncio daquela região era igual ao do sepulcro: dissera-se que a vida das cousas ficara estúpida diante do homem. Caiu do ar? destacou-se da terra? não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delírio. –– Chama-me Natureza ou Pandora18; sou tua mãe e tua inimiga. Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das cousas externas. –– Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma. Vives: não quero outro flagelo. –– Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para certificar-me da existência. –– Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho da miséria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua consciência reouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres viver. Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. Só então pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorção violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a feição única, geral, completa, era a da impassibilidade egoísta, a da eterna surdez, a da vontade imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão glacial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço, diante do qual me sentia eu o mais débil e decrépito dos seres. 18 Pandora = outro arquétipo clássico: primeira mulher mandada à Terra, para vingar-se dos homens com sua famosa caixa. –– Entendeste-me? disse ela, no fim de algum tempo de mútua contemplação. OS LIVROS DA FUVEST - II 28 –– Não, respondi; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma fábula. Estou sonhando, decerto, ou, se é verdade, que enlouqueci, tu não passas de uma concepção de alienado, isto é, uma cousa vã, que a razão ausente não pode reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro. E por que Pandora? –– Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens. Tremes? –– Sim; o teu olhar fascina-me. –– Creio; eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.19 Quando esta palavra ecoou, como um trovão, naquele imenso vale, afigurou-se-me que era o último som que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposição súbita de mim mesmo. Então, encarei- a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos. –– Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da Terra, o sono, enfim, o maior benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota? –– Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, senão tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando-me? –– Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jucundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.20 19 Nada = O que se vai ler nos quatro próximos parágrafos é uma densa reflexão sobre o nada da vida, sobre a inutilidade de tudo. 20 Aqui, uma antecipação do “humanitismo”; a constatação cruel de que a única lei é o egoísmo: a onça mata o novilho, a tribo mais forte elimina a mais fraca. É a lei universal que marcará a visão dos séculos, que passarão pela visão aterrorizada de Brás Cubas, a partir daqui, até o final do espetáculo. Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos Mémórias Póstumas de Brás Cubas 29 a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma cousa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das cousas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, – flagelos e delícias –, desde essa cousa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das cousas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, –– nada menos que a quimera da felicidade ––, ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão. Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, de um riso descompassado e idiota. –– Tens razão, disse eu, a cousa é divertida e vale a pena, talvez monótona –– mas vale a pena. Quando Jó amaldiçoava o dia em que fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o espetáculo. Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a cousa é divertida, mas digere-me. A resposta foi compelir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os séculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações que sei superpunham às gerações, umas tristes, como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de Cômodo21, e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma força misteriosa me retinha os pés; então disse comigo: ––“Bem, os séculos vão passando, chegará o meu, e passará também, até o último, que me dará a decifração da eternidade”. E fixei os OS LIVROS DA FUVEST - II 32 23 Prudêncio = O negrinho Prudêncio é importante personagem do romance, pelas múltiplas funções que apresenta. Neste capítulo ele é vítima da desumanidade do sistema da escravidão. No capítulo LXVIII, “O Vergalho”, Prudêncio reaparece, já adulto, alforriado, espancando outro preto no Valongo, porque este, seu escravo, deixou a quitanda para ir à venda beber. Prudêncio, nas duas situações, exatamente opostas, representa os condicionamentos sociais, os comportamentos e valores que refletem o sistema de trabalho e de produção. das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos. Não se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida a quebrar a cabeça dos outros nem a esconder-lhes os chapéus; mas opiniático, egoísta e algo contemptor dos homens, isso fui; se não passei o tempo a esconder-lhes os chapéus, alguma vez lhes puxei pelo rabicho das cabeleiras. Outrossim, afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana, inclinei- me a atenuá-la, a explicá-la, a classificá-la por partes, a entendê-la, não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e lugares. Minha mãe doutrinava-me a seu modo, fazia-me decorar alguns preceitos e orações; mas eu sentia que, mais do que as orações, me governavam os nervos e o sangue, e a boa regra perdia o espírito, que a faz viver, para se tornar uma vã fórmula. De manhã, antes do mingau, e de noite, antes da cama, pedia a Deus que me perdoasse, assim como eu perdoava aos meus devedores; mas entre a manhã e a noite fazia uma grande maldade, e meu pai, passado o alvoroço, dava-me pancadinhas na cara, e exclamava a rir: Ah! brejeiro! ah! brejeiro! Sim, meu pai adorava-me. Minha mãe era uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração, assaz crédula, sinceramente piedosa, –– caseira, apesar de bonita, e modesta, apesar de abastada; temente às trovoadas e ao marido. O marido era na Terra o seu deus. Da colaboração dessas duas criaturas nasceu a minha educação, que, se tinha alguma cousa boa, era no geral viciosa, incompleta e, em partes, negativa. Meu tio cônego fazia às vezes alguns reparos ao irmão; dizia-lhe que ele me dava mais liberdade do que ensino, e mais afeição do que emenda; mas meu pai respondia que aplicava na minha educação um sistema inteiramente superior ao sistema usado; e por este modo, sem confundir o irmão, iludia-se a si próprio. Mémórias Póstumas de Brás Cubas 33 De envolta com a transmissão e a educação, houve ainda o exemplo estranho, o meio doméstico. Vimos os pais; vejamos os tios. Um deles, o João, era um homem de língua solta, vida galante, conversa picaresca. Desde os onze anos entrou a admitir-me às anedotas reais ou não, eivadas todas de obscenidade ou imundície. Não me respeitava a adolescência, como não respeitava a batina do irmão; com a diferença que este fugia logo que ele enveredava por assunto escabroso. Eu não; deixava-me estar, sem entender nada, a princípio, depois entendendo, e enfim achando-lhe graça. No fim de certo tempo, quem o procurava era eu; e ele gostava muito de mim, dava-me doces, levava-me a passeio. Em casa, quando lá ia passar alguns dias, não poucas vezes me aconteceu achá-lo, no fundo da chácara, no lavadouro, a palestrar com as escravas que batiam roupa; aí é que era um desfiar de anedotas, de ditos, de perguntas, e um estalar de risadas, que ninguém podia ouvir, porque o lavadouro ficava muito longe de casa. As pretas, com uma tanga no ventre, a arregaçar-lhes um palmo dos vestidos, umas dentro do tanque, outras fora, inclinadas sobre as peças de roupa, a batê-las, a ensaboá-las, a torcê-las, iam ouvindo e redargüindo às pilhérias do tio João, e a comentá-las de quando em quando com esta palavra: –– Cruz, diabo!... Este sinhô João é o diabo! Bem diferente era o tio cônego. Esse tinha muita austeridade e pureza; tais dotes, contudo, não realçavam um espírito superior, apenas compensavam um espírito medíocre. Não era homem que visse a parte substancial da Igreja; via o lado externo, a hierarquia, as preeminências, as sobrepelizes, as circunflexões. Vinha antes da sacristia que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que uma infração dos mandamentos. Agora, a tantos anos de distância, não estou certo se ele poderia atinar facilmente com um trecho de Tertuliano24, ou expor, sem titubear, a história do símbolo de Nicéia25; mas ninguém, nas festas cantadas, sabia melhor o número e casos das cortesias que se deviam ao oficiante. Cônego foi a única ambição de sua vida; e dizia de coração que era a maior dignidade a que podia aspirar. Piedoso, severo nos costumes, minucioso na observância das regras, frouxo, acanhado, subalterno, possuía algumas virtudes, em que era exemplar, mas carecia absolutamente da força de as incutir, de as impor aos outros. Não digo nada de minha tia materna, D. Emerenciana, e aliás era a pessoa que mais autoridade tinha sobre mim; essa diferençava-se grandemente dos outros; mas viveu pouco tempo em nossa companhia, uns dois anos. Outros parentes e alguns íntimos não merecem a pena de ser citados; não tivemos uma vida comum, mas 24 Tertuliano = um dos doutores da Igreja, nascido em Cartago, autor de O Apologético, Sobre o Batismo, entre outras. OS LIVROS DA FUVEST - II 34 25 Símbolo de Nicéia = o símbolo dos apóstolos, imposto pelo Concílio de Nicéia (325 d.C.), a fim de distinguir os cristãos ortodoxos dos hereges seguidores de Ário, que negavam a Santíssima Trindade, colocando em dúvida um dogma católico. intermitente, com grandes claros de separação. O que importa é a expressão geral do meio doméstico, e essa aí fica indicada, –– vul- garidade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão da vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor26. F. Capítulo XX Bacharelo-me Um grande futuro! Enquanto esta palavra me batia no ouvido, devolvia eu os olhos, ao longe, no horizonte misterioso e vago. Uma idéia expelia outra, a ambição desmontava Marcela. Grande futuro? Talvez naturalista, literato, arqueólogo, banqueiro, político, ou até bispo, –– bispo que fosse ––, uma vez que fosse um cargo, uma preeminência, uma grande reputação, uma posição superior.27 A ambição, dado que fosse águia, quebrou nessa ocasião o ovo, e desvendou a pupila fulva e penetrante. Adeus, amores! adeus, Marcela! dias de delírio, jóias sem preço, vida sem regímen, adeus! Cá me vou às fadigas e à glória; deixo- vos com as calcinhas da primeira idade. E foi assim que desembarquei em Lisboa e segui para Coimbra. A Universidade esperava-me com as suas matérias árduas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel; deram-mo com a solenidade do estilo, após os anos da lei; uma bela festa que me encheu de orgulho e de saudades, – principalmente de saudades. Tinha eu conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; era um acadêmico estróina, superficial, tumultuário e petulante, dado às aventuras, fazendo romantismo prático e liberalismo teórico, vivendo na pura fé dos olhos pretos e das constituições escritas. No dia em que a Universidade me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, con- 26 Admirável síntese do convencionalismo e da superficialidade do ambiente familiar, do qual Brás Cubas se considera fruto ou, como ironicamente quer, “flor”. Mémórias Póstumas de Brás Cubas 37 BRÁS CUBAS ....................! VIRGÍLIA ....................! H. Capítulo CXXV Epitátio29 AQUI JAZ DONA EULÁLIA DAMASCENA DE BRITO MORTA AOS DEZENOVE ANOS DE IDADE ORAI POR ELA! 1. Capítulo LXXI O senão do livro Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...30 E caem! –– Folhas misérrimas do meu cipreste, heis de cair, como quaisquer outras belas e vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar- 29 Aqui é o próprio túmulo de Eulália (Nhã-Loló) que anuncia sua morte. O ícone substitui as palavras. 30 Ainda uma vez a intervenção metalingüística do narrador explica o processo de composição não convencional do livro, a ruptura com a OS LIVROS DA FUVEST - II 38 linearidade da narrativa. vos-ia uma lágrima de saudade. Esta é a grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar... Heis de cair.31 J. Capítulo CXIX Parêntesis32 Quero deixar aqui, entre parêntesis, meia dúzia de máximas das muitas que escrevi por esse tempo. São bocejos de enfado; podem servir de epígrafe a discursos sem assunto: –––––––––––––––––– Suporta-se com paciência a cólica do próximo. –––––––––––––––––– Matamos o tempo; o tempo nos enterra. –––––––––––––––––– Um cocheiro filósofo costumava dizer que o gosto da carruagem seria diminuto, se todos andassem de carruagem. –––––––––––––––––– Crê em ti; mas nem sempre duvides dos outros. –––––––––––––––––– Não se compreende que um botocudo fure o beiço para enfeitá-lo com um pedaço de pau. Esta reflexão é de um joalheiro. –––––––––––––––––– Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens, Mémórias Póstumas de Brás Cubas 39 que de um terceiro andar. L. Capítulo CXXXVI Inutilidade Mas, ou muito me engano, ou acabo de escrever um capítulo inútil. 31 A “grande vantagem da morte” a que o narrador se refere, através da construção antitética (rir x chorar), é a neutralidade, a possibilidade de reconstruir a própria vida, “de fora”. 32 O humor machadiano, quase sempre irônico, reflexivo, amargo e algumas vezes negro, tem aqui outra conotação: a gratuidade do frasista, do manipulador de palavras e idéias. Lembra as “Reflexões sem Dor”, de Millôr Fernandes, ou “O Avesso das Coisas”, de Drummond. M. Capítulo CLIX Semidemência Compreendi que estava velho, e precisava de uma força; mas o Quincas Borba partira seis meses antes para Minas Gerais, e levou consigo a melhor das filosofias. Voltou quatro meses depois, e entrou-me em casa, certa manhã, quase no estado em que eu o vira no Passeio Público. A diferença é que o olhar era outro. Vinha demente. Contou-me que, para o fim de aperfeiçoar o Humanitismo, queimara o manuscrito todo e ia recomeçá-lo. A parte dogmática ficava completa, embora não escrita; era a verdadeira religião do futuro. –– Juras por Humanitas? perguntou-me. –– Sabes que sim. A voz mal podia sair-me do peito; e aliás não tinha descoberto toda a cruel verdade. Quincas Borba não só estava louco, mas sabia que estava louco, e esse resto de consciência, como uma frouxa lamparina no meio das trevas, complicava muito o horror da situação. Sabia-o, e não se irritava contra o mal; ao contrário, dizia-me que era ainda uma prova de Humanitas, que assim brincava consigo mesmo. Recitava-me longos capítulos do livro, e antífonas, e OS LIVROS DA FUVEST - II 42 A segunda diferença é a natureza “fantástica” da narrativa. Sterne também regurgita de excentricidades, mas todas elas se devem, em última análise, às desordenadas perambulações do espírito de Tristam, ao contar a sua vida. Sterne queria explorar no romance a teoria da “associação de idéias”, chave do processo psíquico; daí haver, em suas páginas, muita fantasia –– mas não propriamente o “fantástico”. Porém, a moldura narrativa do Brás Cubas é resolutamente fantástica, isto é, “inverossímil”, a começar pelo fato de o romance ser apresentado como relato feito por um defunto... Essa “fusão” de humorismo filosófico e fantástico nos permite atinar com o verdadeiro gênero do romance; com efeito, Brás Cubas é um representante moderno do gênero cômico-fantástico. Também conhecido como literatura menipéia, o gênero cômico-fantástico tomou corpo, na literatura ocidental, no fim da Antigüidade; sua realização mais perfeita são as sátiras em prosa de Luciano de Samósata (séc. II), autor dos Diálogos dos Mortos. Seus principais atributos são: * a ausência de qualquer enobrecimento dos personagens e de suas ações –– aspecto pelo qual a literatura cômico-fantástica se distingue nitidamente da epopéia e da tragédia; * o mistura do sério e do cômico, com abordagem humorística das questões mais cruciais: o sentido da realidade, o destino do homem, a orientação da existência etc.; * o absoluta liberdade em relação aos ditames da verossimilhança; nos diálogos de Luciano, como no romance de seu contemporâneo Apuleio, O Asno de Ouro, ou na obra renascentista de Rabelais, as “fantasmagorias” mais desvairadas convivem sem transição com os detalhes mais veristas; * a freqüência da representação de estados psíquicos aberrantes: desdobramentos da personalidade, paixões descontroladas, delírios (v. o delírio de Brás Cubas); * o uso constante de gêneros intercalados –– por exemplo, cartas ou novelas –– embutidos na obra global (as historietas de Marcela, D. Plácida, do Vilaça e do almocreve, nas Memórias Póstumas). Pelas citações do próprio Machado, sabemos que ele conhecia e apreciava a obra de Luciano e de seus imitadores, barrocos, como Fontenelle, Dialogues des Morts (l683), e Fénélon, ou modernos, como o grande pessimista Leopardi, Operette Morali (1826). Mas o decisivo são as analogias de concepção e estrutura entre as grandes expressões do gênero cômico-fantástico e as nossas Memórias Póstumas. Luciano possui até um personagem (o filósofo Menipo) que gargalha no reino do além-túmulo –– em situação idêntica à de Brás Cubas. Portanto, podemos afirmar que Machado elaborou uma combinação original da menipéia Mémórias Póstumas de Brás Cubas 43 com a perspectiva “autobiográfica” de Sterne e de Maistre, acentuando simultaneamente os seus ingredientes filosóficos. Brás Cubas é um caso de novelística filosófica em tom bufo; um manual de moralista em ritmo foliônico. Quase nenhum sentimento, crença ou conduta escapam, nesse livro, à chacota corrosiva, ao ânimo de sátira e paródia. O enredo –– a vida do rico “fainéant” (= “faz-nada”, vagabundo) Brás Cubas, seus amores, tédios e veleidades –– é somente o ponto de partida de uma crítica moral que se exprime pela imaginação ficcional e pela reflexão concretamente motivada e não pelo conceito abstrato ou pela máxima isolada. Aí temos a razão de ser da estrutura elástica do romance, de suas constantes digressões e dos “piparotes” dados no leitor. O célebre delírio do autor-personagem, no capítulo VII, é a chave da filosofia das Memórias Póstumas. Agonizante, Brás Cubas sonha que, montado num hipopótamo, cavalga rumo à “origem dos séculos”, até que uma vasta figura de mulher, Natureza ou Pandora, arrebatando-o ao alto de uma montanha, o faz contemplar o cortejo das épocas. O desfile dos séculos é um espetáculo “acerbo”; o homem, presa das paixões, é um rebelde inútil, para quem mesmo o prazer é “uma dor bastarda”. Reencontramos aqui o universo vicioso d’O Alienista, dos Papéis Avulsos . A ironia machadiana é, como a de Swift, turvada pela repugnância pelo absurdo da condição humana. A Natureza é um flagelo; a História, uma catástrofe. Brás Cubas é um fátuo, prisioneiro dos desejos, que aspira egoisticamente ao gozo, ao poder e à glória. Sua história evolui num palco onde reina a decomposição dos seres e das experiências: a beleza de Marcela, o seu amor por Virgília, a sua ternura pela própria irmã, tudo se esvai, tudo apodrece. Conforme avisa o narrador, o livro “cheira a sepulcro”. A crueldade é a norma da vida. O herói mata, com volúpia, borboletas (cap. XXXI), moscas e formigas (cap. CII). E os oprimidos não são melhores do que os opressores: assim que o libertam, o escravo Prudêncio, que o menino Brás maltratava, chicoteia sem piedade o seu próprio servo; os criados de Virgília se desforram espionando-lhe o adultério. As causas mais nobres ocultam sempre interesses impuros, pois “quem não sabe que ao pé de cada bandeira grande, pública, ostensiva, há muitas vezes várias outras bandeiras, modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam à sombra daquela, e não poucas vezes lhe sobrevivem?”. Mestre do desmascaramento, Machado é um discípulo dos moralistas franceses; para ele os bons sentimentos são a máscara do egoísmo. Quanto aos valores sociais, repousam na mentira e nas conveniências. O pai de Brás Cubas adere sem rebuços à “Teoria do Medalhão” –– Papéis Avulsos: “Olha que os homens”, diz ele ao filho, “valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens”. OS LIVROS DA FUVEST - II 44 As bases sociais desse mundo não são difíceis de circunscrever. O ambiente de Brás Cubas é o das elites escravocratas de Oitocentos; ambiente em que ócio e sadismo prevalecem. Astrogildo Pereira mostrou a acuidade sociológica de Machado, a fidelidade com que ele evoca os modos de vida dos bacharéis e barões, sinhás e sinhazinhas, agregados e escravos. É um espaço comunitário fundado nas relações de força, onde a separação das classes só é atenuada por poucos cimentos culturais e válvulas políticas; uma estrutura social que reflete e estimula instintos agressivos. Mas o traço psicológico mais típico desse meio é menos a agressividade do que o tédio. O tédio, “flor amarela, solitária e mórbida”, “volúpia do aborrecimento” é um velho amigo de Brás Cubas. No entanto, esse pessimismo, que vê nos homens o joguete de instintos, não se assemelha ao rígido determinismo dos naturalistas. A liberdade é uma ilusão, mas os determinismos são volúveis e contraditórios. O homem “é uma engata pensante... Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes”. A natureza, matriz da evolução, é às vezes “um imenso escárnio”: ela se contraria a si mesma. O pessimismo machadiano desconhece qualquer justificativa racional. Machado impregnou-se profundamente do pensamento de Schopenhauer. Segundo este filósofo, o universo é Vontade; cega, obscura e irracional vontade de viver. A lei do real não é nenhum logos harmonioso, mas sim um conflitivo querer, fatalmente doloroso, porque necessariamente insatisfeito. Por isso a dor é a essência das coisas, e só no ideal de renúncia aos desejos se pode colher alguma felicidade. Há nas Memórias Póstumas um personagem –– Quincas Borba, o mendigo filósofo –– que se apresenta como criador do “humanitismo”. O “humanitismo” é ao mesmo tempo uma caricatura da “religião da humanidade” dos positivistas (J. Matoso Câmara) e uma refutação da antologia da dor de Schopenhauer. Não que o “humanitismo” negue a violência e a dor; no romance Quincas Borba, o seu lema será o darwiniano “ao vencedor, as batatas”. Mas a ironia de Machado está justamente em atribuir- lhe a pretensão de justificar a crueza da realidade, “explicando” todas as desgraças deste mundo como outras tantas vitórias de Humanitas, o princípio superior do Ser... Como o Pangloss de Voltaire, Quincas Borba é um otimista ridículo. Fazendo do “humanitismo” uma teodicéia absurda, e do seu profeta uma figura grotescamente dogmática, o humorismo machadiano denuncia suas afinidades com a metafísica desiludida de Schopenhauer. Diante da ingenuidade do cientificismo, que, no Brasil de 1880, ainda se dava por coveiro da filosofia, o sarcasmo de Brás Cubas reabre a interrogação metafísica, a perplexidade radical ante o ser humano.

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