Baixe Memórias Póstumas de Brás Cubas e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Português (Gramática - Literatura), somente na Docsity! Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis Fonte: Assis, Machado de. Obra Completa. vol. I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br> A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais. Texto-base digitalizado por: Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística <http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/literat.html> Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para <
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Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; e ei- lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião. Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o meio eficaz para isto é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composi- ção destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agra- dar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus. Brás Cubas CAPÍTULO 1 Óbito do Autor Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja co- meçar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propria- mente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco. Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-fei- ra do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompa- nhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia - peneirava - uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que profe- riu à beira de minha cova: -- "Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece es- tar chorando a perda irreparável de um dos mais belos carac- teres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado." Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apó- lices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço ter, meu pai, varão digno e leal como poucos. Tinha, é verda- de, uns fumos de pacholice; mas quem não é um pouco pachola nesse mundo? Releva notar que ele não recorreu à inventiva senão depois de experimentar a falsificação; primei- ramente, entroncou-se na família daquele meu famoso homô- nimo, o capitão-mor Brás Cubas, que fundou a vila de São Vicente, onde morreu em 1592, e por esse motivo é que me deu o nome de Brás. Opôs-se-lhe, porém, a família do capi- tão-mor, e foi então que ele imaginou as trezentas cubas mouriscas. Vivem ainda alguns membros de minha família, minha sobrinha Venância, por exemplo, o lírio-do-vale, que é a flor das damas do seu tempo; vive o pai, o Cotrim, um sujeito que... Mas não antecipemos os sucessos; acabemos de uma vez com o nosso emplasto. CAPÍTULO 4 A Idéia Fixa A minha idéia, depois de tantas cabriolas, constituíra-se idéia fixa. Deus te livre, leitor, de uma idéia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho. Vê o Cavour; foi a idéia fixa da unidade italiana que o matou. Verdade é que Bismarck não morreu; mas cumpre advertir que a natureza é uma gran- de caprichosa e a história uma eterna loureira. Por exemplo, Suetônio deu-nos um Cláudio, que era um "verdadeiro bana- na", -- ou "uma abóbora" como lhe chamou Sêneca, e um Tito, que mereceu ser as delícias de Roma. Veio moder- namente um professor e achou meio de demonstrar que am- bos esses conceitos eram errôneos e abstrusos, e que dos dois césares, o delicioso, o verdadeiramente delicioso, foi o "abó- bora" de Sêneca. E tu, madama Lucrécia, flor dos Bórgias, se um poeta te pintou como a Messalina católica, apareceu um Gregorovius incrédulo que te apagou muito essa qualidade, e, se não vieste a lírio, também não ficaste pântano. Eu dei- xo-me estar entre o poeta e o sábio. Viva pois a história, a volúvel história que dá para tudo; e, tomando à idéia fixa, direi que é ela a que faz os varões fortes e os doidos; a idéia móbil, vaga ou furta-cor é a que faz os Cláudios, -- formula Suetônio. Era fixa a minha idéia, fixa como... Não me ocorre nada que seja assaz fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pirâmi- des do Egito, talvez a finada dieta germânica. Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte nar- rativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a ane- dota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um ho- mem já desafrontado da brevidade do século, obra supina- mente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado. Vamos lá; retifique o seu nariz, e tornemos ao emplasto. Deixemos a história com os seus caprichos de dama elegante. Nenhum de nós pelejou a batalha de Salamina; nenhum es- creveu a confissão de Augsburgo; pela minha parte, se algu- ma vez me lembro de Cromwell, é só pela idéia de que Sua Alteza, com a mesma mão que trancara o parlamento, teria imposto aos ingleses o emplasto Brás Cubas. Não se riam des- sa vitória comum da farmácia e do puritanismo. Quem não sabe que ao pé de cada bandeira grande, pública, ostensiva, há muitas vezes várias outras bandeiras modestamente parti- culares, que se hasteiam e flutuam à sombra daquela, com ela caem e não poucas vezes lhe sobrelevam? Mal comparando, é como a arraia-miúda, que se acolhia à sombra do castelo-feu- dal; caiu este e a arraia ficou. Verdade é que se fez graúda e castelã... Não, a comparação não presta. CAPÍTULO 5 Em Que Aparece a Orelha de Uma Senhora Vai senão quando, estando eu ocupado em preparar e apurar a minha invenção, recebi em cheio um golpe de ar; adoeci logo, e não me tratei. linha o emplasto no cérebro; trazia comigo a idéia fixa dos doidos e dos fortes. Via-me, ao longe, ascender do chão das turbas, e remontar ao céu, como uma águia imortal, e não é diante de tão excelso espetáculo que um homem pode sentir a dor que o punge. No outro dia estava pior; tratei-me enfim, mas incompletamente, sem mé- todo, nem cuidado, nem persistência, tal foi a origem do mal que me trouxe à eternidade. Sabem já que morri numa sexta- feira, dia aziago, e creio haver provado que foi a minha in- venção que me matou. Há demonstrações menos lúcidas e não menos triunfantes. Não era impossível, entretanto, que eu chegasse a galgar o cimo de um século, e a figurar nas folhas públicas, entre ma- cróbios. Tinha saúde e robustez. Supunha-se que, em vez de estar lançando os alicerces de uma invenção farmacêutica, tratava de coligir os elementos de uma instituição política, ou de uma reforma religiosa. Vinha a corrente de ar, que vence em eficácia o cálculo humano, e lá se ia tudo. Um sopro de ar foi portanto o meu grão de areia de Cromwell. Assim corre a sorte dos homens. Com esta reflexão me despedi eu da mulher, não direi mais discreta, mas com certeza mais formosa entre as contemporâ- neas suas, a anônima do primeiro capítulo, a tal, cuja imagi- nação à semelhança das cegonhas do Ilisso... Tinha então 54 anos, era uma ruína, uma imponente ruína. Imagine o leitor que nos amamos, ela e eu, muitos anos antes e que um dia, já enfermo, vejo-a assomar à porta da alcova... CAPÍTULO 6 Chimène, qui L Eût Dit? Rodrigue, qui L'Eût Cru? Vejo-a assomar à porta da alcova, pálida, comovida, tra- jada de preto, e ali ficar durante uns dez segundos, sem âni- mo de entrar ou detida pela presença de um homem que es- tava comigo. Da cama, onde jazia, contemplei-a durante esse tempo, esquecido de lhe dizer nada ou de fazer nenhum ges- to. Havia já dois anos que nos não víamos, e eu via-a agora não qual era, mas qual fora, quais fôramos ambos, porque um Ezequias misterioso fizera recuar o sol até os dias juvenis. Recuou o sol, sacudi todas as misérias, e este punhado de pó, que a morte ia espalhar na eternidade do nada, pôde mais do que o tempo, que é o ministro da morte. Nenhuma água de Juventa igualaria ali a simples saudade. Creiam-me, o menos mau é recordar; ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de Caim. Cor- rido o tempo e cessado o espasmo, então sim, então talvez se pode gozar deveras, porque entre uma e outra dessas duas ilu- sões, melhor é a que se gosta sem doer. Não durou muito a evocação; a realidade dominou logo; o presente expediu o passado. Talvez eu exponha ao leitor, em algum canto deste livro, a minha teoria das edições humanas. O que por agora importa saber é que Virgília -- chamava-se Virgília -- entrou na alcova, firme, com a gravidade que lhe davam as roupas e os anos, e veio até o meu leito. O estranho levantou-se e saiu. Era um sujeito, que me visitava todos os dias para falar do câmbio, da colonização e da necessidade de desenvolver a viação férrea; nada mais interessante para um moribundo. Saiu; Virgília deixou-se estar de pé; durante al- gum tempo ficamos a olhar um para o outro, sem articular palavra. Quem diria? De dois grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia ali, vinte anos depois; ha- via apenas dois corações murchos, devastados pela vida e sa- ciados dela, não sei se em igual dose, mas enfim saciados. Virgília tinha agora a beleza da velhice, um ar austero e ma- ternal; estava menos magra do que quando a vi, pela última vez, numa festa de São João, na Tijuca; e porque era das que resistem muito, só agora começavam os cabelos escuros a in- tercalar-se de alguns fios de prata. - Anda visitando os defuntos? disse-lhe eu. - Ora, defuntos! respondeu Virgília com um muxoxo. E depois de me apertar as mãos: -- Ando a ver se ponho os vadios para a rua. Não tinha a carícia lacrimosa de outro tempo; mas a voz era amiga e doce. Sentou-se. Eu estava só, em casa, com um simples enfermeiro; podíamos falar um ao outro, sem perigo. enorme, brutesca, meneando ao vento as suas largas folhas. O silêncio daquela região era igual ao do sepulcro: dissera-se que a vida das coisas ficara estúpida diante do homem. Caiu do ar? destacou-se da terra? não sei; sei que um vul- to imenso, uma figura de mulher me apareceu então, fitan- do-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura ti- nha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à com- preensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delírio. - Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga. Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das coisas externas. - Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma. Vives: não quero outro flagelo. - Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para certificar-me da existência. - Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho da miséria. Vives: agora mesmo que ensan- deceste, vives; e se a tua consciência reouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres viver. Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e levantou-me ao ar, como se fora uma simples plu- ma. Só então, pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorção violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a feição única, geral, com- pleta, era a da impassibilidade egoísta, a da eterna surdez, a da vontade imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão gla- cial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço, diante do qual me sentia eu o mais débil e decrépito dos seres. - Entendeste-me? disse ela, no fim de algum tempo de mútua contemplação. - Não, respondi; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma fábula. Estou sonhando, decerto, ou, se é verdade que enlouqueci, tu não passas de uma concepção de alienado, isto é, uma coisa vã, que a razão ausente não pode reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro. E por que Pandora? - Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens. Tremes? - Sim; o teu olhar fascina-me. - Creio; eu não sou somente a vida; sou também a mor- te, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Gran- de lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada. Quando esta palavra ecoou, como um trovão, naquele imenso vale, afigurou-se-me que era o último som que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposição súbita de mim mes- mo. Então, encarei-a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos. - Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais al- guns instantes de vida! Para devorar e seres devorado depois! Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da terra, o sono, enfim, o maior benefício das mi- nhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota? - Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, se não tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando-me? - Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jocundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha. Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Incli- nei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tem- po largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de to- dos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfila- vam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, -- flagelos e delícias, -- desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devo- ra, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e pas- seava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferen- ça, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, fei- ta de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, -- nada menos que a quimera da felicidade, -- ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apa- nhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão. Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um gri- to de angústia, que Natureza ou Pandora escutou sem protes- tar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, -- de um riso descompassado e idiota. -- Tens razão, disse eu, a coisa é divertida e vale a pena, -- talvez monótona -- mas vale a pena. Quando Jó amaldi- çoava o dia em que fora concebido, é porque lhe davam ga- nas de ver cá de cima o espetáculo. Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a coisa é divertida, mas digere-me. A resposta foi compelir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os séculos que continuavam a passar, velozes e turbu- lentos, as gerações que se superpunham às gerações, umas tris- tes, como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os de- vassos de Cômodo, e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma força misteriosa me retinha os pés; então disse comi- go: -- "Bem, os séculos vão passando, chegará o meu, e passa- rá também, até o último, que me dará a decifração da eternida- de." E fixei os olhos, e continuei a ver as idades, que vinham chegando e passando, já então tranqüilo e resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Cada século trazia a sua porção de som- bra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de idéias novas, de novas ilusões; em cada um deles rebentavam as verduras de uma primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma regularidade de calendário, faziam-se a história e a civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria a face do glo- bo, descia ao ventre da terra, subia à esfera das nuvens, cola- borando assim na obra misteriosa, com que entretinha a ne- cessidade da vida e a melancolia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distraído, viu enfim chegar o século presente, e atrás dele os futuros. Aquele vinha ágil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros, com a mesma rapidez e igual monotonia. Redobrei de atenção; fitei a vista; ia enfim ver o último, -- o último!; mas então já a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a compreensão; ao pé dela o relâmpago seria um século. Talvez por isso entra- ram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros mingua- ram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo -- menos o hipopótamo que ali me trouxera, e que aliás come- çou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel... outrora derramado na guerra contra Holanda. Cuido que os nomes de ambos foram das primeiras coisas que aprendi; e certamente os dizia com muita graça, ou revelava algum ta- lento precoce, porque não havia pessoa estranha diante de quem me não obrigassem a recitá-los. - Nhonhô, diga a estes senhores como é que se chama seu padrinho. - Meu padrinho? é o Coronel Paulo Vaz Lobo César de Andrade e Sousa Rodrigues de Matos; minha madrinha é a Excelentíssima Senhora Dona Mana Luisa de Macedo Resen- de e Sousa Rodrigues de Matos. - E muito esperto o seu menino, comentavam os ou- vintes. - Muito esperto, concordava meu pai; e os olhos baba- vam-se-lhe de orgulho, e ele espalmava a mão sobre a minha cabeça, fitava-me longo tempo, namorado, cheio de si. Item, comecei a andar, não sei bem quando, mas antes do tempo. Talvez por apressar a natureza, obrigavam-me cedo a agarrar às cadeiras, pegavam-me da fralda, davam-me carri- nhos de pau. - Só só, nhonhô, só só, dizia-me a mucama. E eu, atraído pelo chocalho de lata, que minha mãe agitava di- ante de mim, lá ia para a frente, cai aqui, cai acolá; e andava, provavelmente mal, mas andava, e fiquei andando. CAPÍTULO 11 O Menino É Pai do Homem Cresci; e nisso é que a família não interveio; cresci natu- ralmente, como crescem as magnólias e os gatos. Talvez os gatos são menos matreiros, e, com certeza, as magnólias são menos inquietas do que eu era na minha infância. Um poeta dizia que o menino é pai do homem. Se isto é verdade, veja- mos alguns lineamentos do menino. Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de "menino diabo"; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e vo- luntarioso.. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma es- crava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce "por pirraça"; e eu tinha apenas seis anos. Prudência, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixas, à guisa de freio, eu tre- pava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, - algumas vezes gemendo, - mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um - "ai, nhonhô!" - ao que eu retorquia: - "Cala a boca, besta!" - Esconder os chapéus das visitas, deitar ra- bos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabelei- ras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robus- to, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples for- malidade: em particular dava-me beijos. Não se conclua daqui que eu levasse todo o resto da mi- nha vida a quebrar a cabeça dos outros nem a esconder-lhes os chapéus; mas opiniático, egoísta e algo contemptor dos homens, isso fui; se não passei o tempo a esconder-lhes os chapéus, alguma vez lhes puxei pelo rabicho das cabeleiras. Outrossim, afeiçoei-me à contemplação da injustiça hu- mana, inclinei-me a atenuá-la, a explicá-la, a classificá-la por partes, a entendê-la, não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e lugares. Minha mãe doutrinava-me a seu modo, fazia-me decorar alguns preceitos e orações; mas eu sentia que, mais do que as orações, me governavam os nervos e o sangue, e a boa regra perdia o espírito, que a faz viver, para se tomar uma vã fórmula. De manhã, antes do mingau, e de noite, antes da cama, pedia a Deus que me per- doasse, assim como eu perdoava aos meus devedores; mas entre a manhã e a noite fazia uma grande maldade, e meu pai, passado o alvoroço, dava-me pancadinhas na cara, e excla- mava a rir: Ah! brejeiro! ah! brejeiro! Sim, meu pai adorava-me. Tinha-me esse amor sem mé- rito, que é um simples e forte impulso da carne; amor que a razão não contrasta nem rege. Minha mãe era uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração, assaz crédula, sin- ceramente piedosa, - caseira, apesar de bonita, e modesta, apesar de abastada; temente às trovoadas e ao mando. O marido era na Terra o seu deus. Da colaboração dessas duas criaturas nasceu a minha educação, que, se tinha alguma coi- sa boa, era no geral viciosa, incompleta, e, em partes, negati- va. Meu tio cônego fazia às vezes alguns reparos ao irmão; dizia-lhe que ele me dava mais liberdade do que ensino e mais afeição do que emenda; mas meu pai respondia que aplicava na minha educação um sistema inteiramente superior ao sis- tema usado; e por este modo, sem confundir o irmão, iludia- se a si próprio. Havia em minha mãe uma sombra de melancolia, que eu herdei, como herdei de meu pai a fatuidade. Os aspec- tos da vida acrescentavam-lhe a natural tendência. Tinha coração demais, uma sensibilidade melindrosa, exigente, doentia. De envolta com a transmissão e a educação, houve ain- da o exemplo estranho, o meio doméstico. Vimos os pais; ve- jamos os tios. Um deles, o João, era um homem de língua solta, vida galante, conversa picaresca. Desde os onze anos entrou a admitir-me às anedotas reais ou não, eivadas todas de obscenidade ou imundície. Não me respeitava a adoles- cência, como não respeitava a batina do irmão; com a dife- rença que este fugia logo que ele enveredava por assunto escabroso. Eu não; deixava-me estar, sem entender nada, a princípio, depois entendendo e enfim achando-lhe graça. No fim de certo tempo, quem o procurava era eu; e ele gostava muito de mim, dava-me doces, levava-me a passeio. Em casa, quando lá ia passar alguns dias, não poucas vezes me acon- teceu achá-lo, no fundo da chácara, no lavadouro, a palestrar com as escravas que batiam roupa; e aí é que era um desfiar de anedotas, de ditos, de perguntas, e um estalar de risadas, que ninguém podia ouvir, porque o lavadouro ficava muito longe de casa. As pretas, com uma tanga no ventre, a arre- gaçar-lhes um palmo dos vestidos, umas dentro do tanque, outras fora, inclinadas sobre as peças de roupa, a batê-las, a ensaboá-las, a torcê-las, iam ouvindo e redargüindo às pi- lhérias do tio João, e a comentá-las de quando em quando com esta palavra: - Cruz, diabo!... Este sinhô João é o diabo! Bem diferente era o tio cônego. Esse tinha muita austeri- dade e pureza; tais dotes, contudo, não realçavam um espíri- to superior, apenas compensavam um espírito medíocre. Não era homem que visse a parte substancial da Igreja; via o lado externo, a hierarquia, as preeminências, as sobrepelizes, as circunflexões. Vinha antes da sacristia que do altar. Uma la- cuna no ritual excitava-o mais do que uma infração dos man- damentos. Agora, a tantos anos de distância, não estou certo se ele poderia atinar facilmente com um trecho de Tertuliano, ou expor, sem titubear, a história do símbolo de Nicéia; mas ninguém, nas festas cantadas, sabia melhor o número e caso das cortesias que se deviam ao oficiante. Cônego foi a única ambição de sua vida; e dizia de coração que era a maior dig- nidade a que podia aspirar. Piedoso, severo nos costumes, minucioso na observância das regras, frouxo, acanhado, su- balterno, possuía algumas virtudes, em que era exemplar, mas carecia absolutamente da força de as incutir, de as impor aos outros. Não digo nada de minha tia materna, Dona Emerenciana, e aliás era a pessoa que mais autoridade tinha sobre mim; essa diferençava-se grandemente dos outros; mas viveu pouco tem- po em nossa companhia, uns dois anos. Outros parentes e alguns íntimos não merecem a pena de ser citados; não tive- mos uma vida comum, mas intermitente, com grandes claros de separação. O que importa é a expressão geral do meio do- méstico, e essa aí fica indicada, - vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão da von- tade, domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse es- trume é que nasceu esta flor. CAPÍTULO 12 Um Episódio de 1814 Mas eu não quero passar adiante, sem contar sumaria- era, e a sobremesa continuava intacta. Ninguém se lembrava de dar a primeira voz. Meu pai, à cabeceira, saboreava a goles extensos a alegria dos convivas, mirava-se todo nos carões ale- gres, nos pratos, nas flores, deliciava-se com a familiaridade travada entre os mais distantes espíritos, influxo de um bom jantar. Eu via isso, porque arrastava os olhos da compota para ele e dele para a compota, como a pedir-lhe que ma servisse; mas fazia-o em vão. Ele não via nada; via-se a si mesmo. E as glosas sucediam-se, como bátegas d'água, obrigando-me a re- colher o desejo e o pedido. Pacientei quanto pude; e não pude muito. Pedi em voz baixa o doce; enfim, bradei, berrei, bati com os pés. Meu pai, que seria capaz de me dar o sol, se eu lho exi- gisse, chamou um escravo para me servir o doce; mas era tarde. A tia Emerenciana arrancara-me da cadeira e entregara-me a uma escrava, não obstante os meus gritos e repelões. Não foi outro o delito do glosador: retardara a compota e dera causa à minha exclusão. Tanto bastou para que eu cogi- tasse uma vingança, qualquer que fosse, mas grande e exem- plar, coisa que de alguma maneira o tomasse ridículo. Que ele era um homem grave o Doutor Vilaça, medido e lento, quarenta e sete anos, casado e pai. Não me contentava o rabo de papel nem o rabicho da cabeleira; havia de ser coisa pior. Entrei a espreitá-lo, durante o resto da tarde, a segui-lo, na chácara aonde todos desceram a passear. Vio-o conversar com Dona Eusébia, irmã do sargento-mor Domingues, uma robusta donzelona, que se não era bonita, também não era feia. - Estou muito zangada com o senhor, dizia ela. - Porquê? - Porque... não sei por que... porque é a minha sina... creio às vezes que é melhor morrer... Tinham penetrado numa pequena moita; era lusco-fus- co; eu segui-os. O Vilaça levava nos olhos umas chispas de vinho e de volúpia. - Deixe-me, disse ela. - Ninguém nos vê. Morrer, meu anjo? Que idéias são essas! Você sabe que eu morrerei também... que digo?... mor- ro todos os dias, de paixão, de saudades... Dona Eusébia levou o lenço aos olhos. O glosador vascu- lhava na memória algum pedaço literário e achou este, que mais tarde verifiquei ser de uma das óperas do Judeu: - Não chores, meu bem; não queiras que o dia amanheça com duas auroras. Disse isto; puxou-a para si; ela resistiu um pouco, mas deixou-se ir; uniram os rostos, e eu ouvi estalar, muito ao de leve, um beijo, o mais medroso dos beijos. - O Doutor Vilaça deu um beijo em Dona Eusébia! bra- dei eu correndo pela chácara. Foi um estouro esta minha pala- vra; a estupefação imobilizou a todos; os olhos espraiavam-se a uma e outra banda; trocavam-se sorrisos, segredos, à socapa, as mães arrastavam as filhas, pretextando o sereno. Meu pai pu- xou-me as orelhas, disfarçadamente, irritado deveras com a indiscrição; mas, no dia seguinte, ao almoço, lembrando o caso, sacudiu-me o nariz, a rir: Ah! brejeiro! ah! brejeiro! CAPÍTULO 13 Um Salto Unamos agora os pés e demos um salto por cima da esco- la, a enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanhá-las, e ir fazer diabruras, ora nos mor- ros, ora nas praias, onde quer que fosse propício a ociosos. Tinha amarguras esse tempo; tinha os ralhos, os castigos, as lições árduas e longas, e pouco mais, mui pouco e mui leve. Só era pesada a palmatória, e ainda assim... O palmatória, ter- ror dos meus dias pueris, tu que foste ocompefle inrrare com que um velho mestre, ossudo e calvo, me incutiu no cérebro o alfa- beto, a prosódia, a sintaxe, e o mais que ele sabia, benta palmatória, tão praguejada dos modernos, quem me dera ter ficado sob o teu jugo, com a minha alma imberbe, as minhas ignorân- cias, e o meu espadim, aquele espadim de 1814, tão superior à espada de Napoleão! Que querias tu, afinal, meu velho mestre de primeiras letras? Lição de cor e compostura na aula; nada mais, nada menos do que quer a vida, que é a mestra das últi- mas letras; com a diferença que tu, se me metias medo, nunca me meteste zanga. Vejo-te ainda agora entrar na sala, com as tuas chinelas de couro branco, capote, lenço na mão, calva à mostra, barba rapada; vejo-te sentar, bufar, grunhir, absorver uma pitada inicial, e chamar-nos depois à lição. E fizeste isto durante vinte e três anos, calado, obscuro, pontual, metido numa casinha da rua do Piolho, sem enfadar o mundo com a tua mediocridade, até que um dia deste o grande mergulho nas trevas, e ninguém te chorou, salvo um preto velho, - ninguém, nem eu, que te devo os rudimentos da escrita. Chamava-se Ludgero o mestre; quero escrever-lhe o nome todo nesta página: Ludgero Barata, - um nome funesto, que servia aos meninos de eterno mote a chufas. Um de nós, o Quincas Borba, esse então era cruel com o pobre homem. Duas, três vezes por semana, havia de lhe deixar na algibeira das calças, - umas largas calças de enfiar -, ou na gaveta da mesa, ou ao pé do tinteiro, uma barata morta. Se ele a encontrava ainda nas horas da aula, dava um pulo, circulava os olhos chamejantes, dizia-nos os últimos nomes: éramos sevandijas, capadócios, malcriados, moleques. - Uns tre- miam, outros rosnavam; o Quincas Borba, porém, deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar. Uma flor, o Quincas Borba. Nunca em minha infância, nunca em toda a minha vida, achei um menino mais gracioso, inventivo e travesso. Era a flor, e não já da escola, senão de toda a cidade. A mãe, viúva, com alguma coisa de seu, adorava o filho e trazia-o amimado, asseado, enfeitado, com um vistoso pajem atrás, um pajem que nos deixava gazear a escola, ir caçar ninhos de pássaros, ou perseguir lagartixas no morro do Livra- mento e da Conceição, ou simplesmente arruar, à toa, como dois peraltas sem emprego. E de imperador! Era um gosto ver o Quincas Borba fazer de imperador nas festas do Espírito Santo. De resto, nos nossos jogos pueris, ele escolhia sempre um papel de rei, ministro, general, uma supremacia, qualquer que fosse. Tinha garbo o traquinas, e gravidade, certa magnificência nas atitudes, nos meneios. Quem diria que... Suspendamos a pena; não adiantemos os sucessos. Fujamos sobretudo desse passado tão remoto, tão coberto, ai de mim! de cruzes fúnebres. Vamos de um salto a 1822, data da nossa independência política, e do meu primeiro cativeiro pessoal. CAPÍTULO 14 O Primeiro Beijo Tinha dezessete anos; pungia-me um buçozinho que eu forcejava por trazer a bigode. Os olhos, vivos e resolutos, eram a minha feição verdadeiramente máscula. Como ostentasse certa arrogância, não se distinguia bem se era uma criança com fumos de homem, se um homem com ares de menino. Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo me- dieval, para dar com eles nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à mar- gem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e ver- mes, e, por compaixão, o transportou para os seus livros. Sim, eu era esse garção bonito, airoso, abastado; e facilmen- te se imagina que mais de uma dama inclinou diante de mim a fronte pensativa, ou levantou para mim os olhos cobiçosos. De todas porém a que me cativou logo foi uma... uma... não sei se diga; este livro é casto, ao menos na intenção; na intenção é castíssimo. Mas vá lá; ou se há de dizer tudo ou nada. A que me cativou foi uma dama espanhola. Marcela, a "linda Marcela", como lhe chamavam os rapazes do tempo. E tinham razão os rapazes. Era filha de um hortelão das Astúrias; disse-mo ela mesma, num dia de sinceridade, porque a opinião aceita é que nas- cera de um letrado de Madrid, vítima da invasão francesa, feri- do, encarcerado, espingardeado, quando ela tinha apenas doze anos. Cosas de España. Quem quer que fosse, porém, o pai, letra- do ou hortelão, a verdade é que Marcela não possuía a inocência rústica, e mal chegava a entender a moral do código. Era boa moça, lépida, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austerida- de do tempo, que lhe não permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes. Naquele ano, ela morria de amores por um certo Xavier, sujeito abastado e tísico, - uma pérola. E logo, súbita como um passarinho, espalmou as mãos, cingiu-me com elas o rosto, puxou-me a si e fez um trejeito gracioso, um momo de criança. Depois, reclinada na marque- sa, continuou a falar daquilo, com simplicidade e franqueza. jamais consentiria que lhe comprassem os afetos. Vendera muita vez as aparências, mas a realidade, guardava-a para poucos. O Duarte, por exemplo, o alferes Duarte, que ela amara deveras, dois anos antes, só a custo conseguia dar-lhe alguma coisa de valor, como me acontecia a mim; ela só lhe aceitava sem relutância os mimos de escasso preço, como a cruz de ouro, que lhe deu, uma vez, de festas. - Esta cruz... Dizia isto, metendo a mão no seio e tirando uma cruz fina, de ouro, presa a uma fita azul e pendurada ao colo. - Mas essa cruz, observei eu, não me disseste que era teu pai que... Marcela abanou a cabeça com um ar de lástima: - Não percebeste que era mentira, que eu dizia isso para te não molestar? Vem cá, chiquito , não sejas assim desconfia- do comigo... Amei a outro; que importa, se acabou? Um dia, quando nos separarmos... - Não digas isso! bradei eu. - Tudo cessa! Um dia... Não pôde acabar; um soluço estrangulou-lhe a voz; es- tendeu as mãos, tomou das minhas, conchegou-me ao seio, e sussurrou-me baixo ao ouvido: - Nunca, nunca, meu amor! Eu agradeci-lho com os olhos úmidos. No dia seguinte levei- lhe o colar que havia recusado. - Para te lembrares de mim, quando nos separarmos, disse eu. Marcela teve primeiro um silêncio indignado, depois fez um gesto magnífico: tentou atirar o colar à rua. Eu retive-lhe o braço; pedi-lhe muito que não me fizesse tal desfeita, que ficasse com a jóia. Sorriu e ficou. Entretanto, pagava-me à farta os sacrifícios; espreitava os meus mais recônditos pensamentos; não havia desejo a que não acudisse com alma, sem esforço, por uma espécie de lei da consciência e necessidade do coração. Nunca o desejo era razoável, mas um capricho puro, uma criancice, vê-la trajar de certo modo, com tais e tais enfeites, este vestido e não aquele, ir a passeio ou outra coisa assim, e ela cedia a tudo, risonha e palreira. - Você é das Arábias, dizia-me. E ia pôr o vestido, a renda, os brincos, com uma obediên- cia de encantar. CAPÍTULO 16 Uma Reflexão Imoral Ocorre -me uma reflexão imoral, que é ao mesmo tempo uma correção de estilo. Cuido haver dito, no capitulo 13, que Marcela morria de amores pelo Xavier. Não morria, vivia. Viver não é a mesma coisa que morrer; assim o afirmam todos os joalheiros desse mundo, gente muito vista na gramática. Bons joalheiros, que seria do amor se não fossem os vossos dixes e fiados? Um terço ou um quinto do universal comércio dos corações. Esta é a reflexão imoral que eu pretendia fazer, a qual é ainda mais obscura do que imoral, porque não se entende bem o que eu quero dizer. O que eu quero dizer é que a mais bela testa do mundo não fica menos bela, se a cin- gir um diadema de pedras finas; nem menos bela, nem menos amada. Marcela, por exemplo, que era bem bonita, Marcela amou-me... CAPÍTULO 17 Do Trapézio e Outras Coisas ...Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos réis; nada menos. Meu pai, logo que teve aragem dos onze contos, sobressaltou-se deveras; achou que o caso excedia as raias de um capricho juvenil. - Desta vez, disse ele, vais para a Europa; vais cursar uma Universidade, provavelmente Coimbra; quero-te para homem sério e não para arruador e gatuno. E como eu fizesse um ges- to de espanto: - Gatuno, sim senhor; não é outra coisa um filho que me faz isto... Sacou da algibeira os meus títulos de dívida, já resgatados por ele, e sacudiu-mos na cara. - Vês, peralta? é assim que um moço deve zelar o nome dos seus? Pensas que eu e meus avós ganhamos o dinheiro em casas de jogo ou a vadiar pelas ruas? Pelintra! Desta vez ou tomas juízo, ou ficas sem coisa nenhuma. Estava furioso, mas de um furor temperado e curto. Eu ouvi-o calado, e nada opus à ordem da viagem, como de ou- tras vezes fizera; ruminava a idéia de levar Marcela comigo. Fui ter com ela; expus-lhe a crise e fiz-lhe a proposta. Marcela ouviu-me com os olhos no ar, sem responder logo; como in- sistisse, disse-me que ficava, que não podia ir para a Europa. - Por que não? - Não posso, disse ela com ar dolente; não posso ir res- pirar aqueles ares, enquanto me lembrar de meu pobre pai, morto por Napoleão... - Qual deles: o hortelão ou o advogado? Marcela franziu a testa, cantarolou uma seguidilha, entre dentes; depois queixou-se do calor, e mandou vir um copo de aluá. Trouxe-lho a mucama, numa salva de prata, que fazia parte dos meus onze contos. Marcela ofereceu-me polidamente o refresco; minha resposta foi dar com a mão no copo e na salva; entornou-se-lhe o líquido no regaço, a preta deu um grito, eu bradei-lhe que se fosse embora. Ficando a sós, derramei todo o desespero de meu coração; disse-lhe que ela era um monstro, que jamais me tivera amor, que me deixara descer a tudo, sem ter ao menos a desculpa da sinceridade; chamei-lhe muitos nomes feios, fazendo muitos gestos descompostos. Marcela deixara-se estar sentada, a estalar as unhas nos dentes, fria como um pedaço de mármore. Tive ímpetos de a estrangular; de a humilhar ao menos, subjugando-a a meus pés. Ia talvez fazê-lo; mas a ação trocou-se noutra; fui eu que me atirei aos pés dela, contrito e súplice, beijei-lhos, recordei aqueles meses da nossa felicidade solitária, repeti-lhe os nomes queridos de outro tem- po, sentado no chão, com a cabeça entre os joelhos dela, aper- tando-lhe muito as mãos; ofegante desvairado, pedi-lhe com lágrimas que me não desamparasse... Marcela esteve alguns instantes a olhar para mim, calados ambos, até que brandamente me desviou e, com um ar enfastiado: - Não me aborreça, disse. Levantou-se, sacudiu o vestido, ainda molhado, e cami- nhou para a alcova. - Não! bradei eu; não hás de entrar... não quero... Ia a lançar-lhe as mãos: era tarde; ela entrara e fechara-se. Saí desatinado; gastei duas mortais horas a vaguear pelos bairros mais excêntricos e desertos, onde fosse difícil dar co- migo. Ia mastigando o meu desespero, com uma espécie de gula mórbida; evocava os dias, as horas, os instantes de delí- rio, e ora me comprazia em crer que eles eram eternos, que tudo aquilo era um pesadelo, ora, enganando-me a mim mes- mo, tentava rejeitá-los de mim, como um fardo inútil. Então resolvia embarcar imediatamente para cortar a minha vida em duas metades, e deleitava-me com a idéia de que Marcela, sabendo da partida, ficaria ralada de saudades e remorsos. Que ela amara-me a tonta, devia de sentir alguma coisa, uma lem- brança qualquer, como do alferes Duarte... Nisto, o dente do ciúme enterrava-se-me no coração; e toda a natureza me bra- dava que era preciso levar Marcela comigo. - Por força... por força... dizia eu ferindo o ar com uma punhada. Enfim, tive uma idéia salvadora... Ah! trapézio dos meus pecados, trapézio das concepções abstrusas! A idéia salvadora trabalhou nele, como a do emplasto (capítulo 2). Era nada menos que fasciná-la, fasciná-la muito, deslumbrá-la, arrastá- la; lembrou-me pedir-lhe por um meio mais concreto do que a súplica. Não medi as conseqüências: recorri a um derradei- ro empréstimo; fui à rua dos Ourives, comprei a melhor jóia da cidade, três diamantes grandes, encastoados num pente de marfim; corri à casa de Marcela. Marcela estava reclinada numa rede, o gesto mole e can- sado, uma das pernas pendentes, a ver-se-lhe o pezinho cal- çado de meia de seda, os cabelos soltos, derramados, o olhar quieto e sonolento. - Vem comigo, disse eu, arranjei recursos... temos mui- marítima. Eram versos dele. - Que tal? Não me lembra o que lhe disse; lembra-me que ele me apertou a mão com muita força e muitos agradecimentos; logo depois recitou-me dois sonetos; ia recitar-me outro, quando o vieram chamar da parte da mulher. - Lá vou, disse ele; e recitou-me o terceiro soneto, com pausa, com amor. Fiquei só; mas a musa do capitão varrera-me do espírito os pensamentos maus; preferi dormir, que é modo interino de morrer. No dia seguinte, acordamos debaixo de um temporal, que meteu medo a toda a gente, menos ao doido; esse entrou a dar pulos, a dizer que a filha o mandava buscar, numa berlinda; a morte de uma filha fora a causa da loucura. Não, nunca me há de esquecer a figura hedionda do pobre homem, no meio do tumulto das gentes e dos uivos do furacão, a can- tarolar e a bailar, com os olhos a saltarem-lhe da cara, pálido, a coma hirsuta e descomposta. As vezes parava, erguia ao ar as mãos ossudas, fazia uma cruzes com os dedos, depois um xadrez, depois umas argolas, e ria muito, desesperadamente. A mulher não podia já cuidar dele; entregue ao terror da morte, rezava por si mesma a todos os santos do céu. Enfim, a tempestade amainou. Confesso que foi uma diversão excelente à tempestade do meu coração. Eu, que meditava ir ter com a morte, não ousei fitá-la quando ela veio ter comigo. Amainou o temporal, o capitão veio perguntar-me se ti- vera medo, se estivera em risco, se não achara sublime o es- petáculo; tudo isso com um interesse de amigo. Naturalmen- te a conversa versou sobre a vida do mar; o capitão pergun- tou-me se não gostava de idílios piscatórios; eu respondi-lhe ingenuamente que não sabia o que era. - Vai ver, respondeu ele. E recitou-me um poemazinho, depois outro, - uma églo- ga, - e enfim cinco sonetos, com os quais rematou nesse dia a confidência literária. No dia seguinte, antes de me recitar nada, explicou-me o capitão que só por motivos graves abra- çara a profissão marítima, porque a avó queria que ele fosse padre, e com efeito possuía algumas letras latinas; não che- gou a ser padre, mas não deixou de ser poeta, que era a sua vocação natural; e em prova de que tal era a sua vocação, recitou-me logo, de corpo presente, uma centena de versos. Notei um fenômeno: os ademanes que ele usava eram tais, que uma vez me fizeram rir; mas o capitão, quando recitava, de tal sorte olhava para dentro de si mesmo, que não viu nem ouviu nada. Os dias passavam, e as águas, e os versos, e com eles ia também passando a vida da mulher. Estava por pouco. Um dia, logo depois do almoço, disse-me o capitão que a enferma talvez não chegasse ao fim da semana. - Já! exclamei. - Passou muito mal a noite. Fui vê-la; achei-a, na verdade, quase moribunda, mas fa- lando ainda de descansar em Lisboa alguns dias, antes de ir comigo a Coimbra, porque era seu propósito levar-me à Uni- versidade. Deixei-a consternado; fui achar o marido a olhar para as vagas, que vinham morrer no costado do navio, e tra- tei de o consolar; ele agradeceu-me, relatou-me a história dos seus amores, elogiou a fidelidade e a dedicação da mulher, relembrou os versos que lhe fez, e recitou-mos. Neste ponto vieram buscá-lo da parte dela; corremos ambos; era uma cri- se. Esse e o dia seguinte foram cruéis; o terceiro foi o da mor- te; eu fugi ao espetáculo, tinha-lhe repugnância. Meia hora depois encontrei o capitão, sentado num molho de cabos, com a cabeça nas mãos; disse-lhe alguma coisa de conforto. - Morreu como uma santa, respondeu ele; e, para que estas palavras não pudessem ser levadas à conta de fraqueza, ergueu-se logo, sacudiu a cabeça, e fitou o horizonte, com um gesto longo e profundo. - Vamos, continuou, entreguemo- la à cova que nunca mais se abre. Efetivamente, poucas horas depois, era o cadáver lança- do ao mar, com as cerimônias do costume. A tristeza murcha- ra todos os rostos; o do viúvo trazia a expressão de um cabeço rijamente lascado pelo raio. Grande silêncio. A vaga abriu o ventre, acolheu o despojo, fechou-se, - uma leve ruga, - e a galera foi andando. Eu deixei-me estar alguns minutos, à popa, com os olhos naquele ponto incerto do mar em que fi- cava um de nós... Fui dali ter com o capitão, para distraí-lo. - Obrigado, disse-me ele compreendendo a intenção; creia que nunca me esquecerei dos seus bons serviços. Deus é que lhos há de pagar. Pobre Leocádia! tu te lembrarás de nós no céu. Enxugou com a manga uma lágrima importuna; eu bus- quei um derivativo na poesia, que era a paixão dele. Falei-lhe dos versos, que me lera, e ofereci-me para imprimi-los. Os olhos do capitão animaram-se um pouco. - Talvez aceite, disse ele; mas não sei... são bem frouxos versos. Jurei-lhe que não; pedi que os reunisse e me desse antes do desembarque. - Pobre Leocádia! murmurou ele sem responder ao pe- dido. Um cadáver... o mar... o céu... o navio... No dia seguinte veio ler-me um epicédio composto de fres- co, em que estavam memoradas as circunstâncias da morte e da sepultura da mulher; leu-mo com a voz comovida deveras, e a mão trêmula; no fim perguntou-me se os versos eram dig- nos do tesouro que perdera. - São, disse eu. - Não haverá estro, ponderou ele, no fim de um instan- te, mas ninguém me negará sentimento, se não é que o pró- prio sentimento prejudicou a perfeição... - Não me parece; acho os versos perfeitos. - Sim, eu creio que... Versos de marujo. - De marujo poeta. Ele levantou os ombros, olhou para o papel, e tornou a recitar a composição, mas já então sem tremuras, acentuan- do as intenções literárias, dando relevo às imagens e melodia aos versos. No fim, confessou-me que era a sua obra mais aca- bada; eu disse-lhe que sim; ele apertou-me muito a mão e predisse-me um grande futuro. CAPÍTULO 20 Bacharelo-me Um grande futuro! Enquanto esta palavra me batia no ouvido, devolvia eu os olhos, ao longe, no horizonte misterioso e vago. Uma idéia expelia outra, a ambição desmontava Marcela. Um grande futuro? Talvez naturalista, literato, ar- queólogo, banqueiro, político ou até bispo, - bispo que fos- se, - uma vez que fosse um cargo, uma preeminência, uma grande reputação, uma posição superior. A ambição, dado que fosse águia, quebrou nessa ocasião o ovo, e desvendou a pu- pila fulva e penetrante. Adeus, amores! adeus, Marcela; dias de delírio, jóias sem preço, vida sem regime, adeus. Cá me vou às fadigas e à glória; deixo-vos com as calcinhas da primeira idade. E foi assim que desembarquei em Lisboa e segui para Coimbra. A Universidade esperava-me com as suas matérias árduas, e não sei se profundas; estudei-as muito mediocremen- te, e nem por isso perdi o grau de bacharel; deram-mo com a solenidade do estilo, após os anos da lei; uma bela festa que me encheu de orgulho e de saudades, - principalmente de saudades. Tinha eu conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; era um acadêmico estróina, superficial, tumultuário e petulante, dado às aventuras, fazendo roman- tismo prático e liberalismo teórico, vivendo na pura fé dos olhos pretos e das constituições escritas. No dia em que a Universidade me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso. Ex- plico-me: o diploma era uma carta de alforria; se me dava a liberdade, dava-me a responsabilidade. Guardei-o, deixei as margens do Mondego, e vim por ali fora assaz desconsolado, mas sentindo já uns ímpetos, uma curiosidade, um desejo de acotovelar os outros, de influir, de gozar, de viver, - de pro- longar a Universidade pela vida adiante... CAPÍTULO 21 O Almocreve Vai então, empacou o jumento em que eu vinha montado; fustiguei-o, ele deu dois corcovos, depois mais três, enfim mais um, que me sacudiu fora da sela, e com tal desastre, que o pé esquerdo me ficou preso no estribo; tento agarrar-me ao ven- Triste, Mas Curto Vim; e não nego que, ao avistar a cidade natal, tive uma sensação nova. Não era efeito da minha pátria política, era-o do lugar da infância, a rua, a torre, o chafariz da esquina, a mulher de mantilha, o preto do ganho, as coisas e cenas da meninice, buriladas na memória. Nada menos que uma re- nascença. O espírito, como um pássaro, não se lhe deu da corrente dos anos, arrepiou o vôo na direção da fonte origi- nal, e foi beber da água fresca e pura, ainda não mesclada do enxurro da vida. Reparando bem, há aí um lugar-comum. Outro lugar- co- mum, tristemente comum, foi a consternação da família. Meu pai abraçou-me com lágrimas. - Tua mãe não pode viver, disse-me ele. Com efeito, não era já o reumatismo que a ma- tava, era um cancro no estômago. A infeliz padecia de um modo cru, porque o cancro é indiferente às virtudes do sujei- to; quando rói, rói; roer é o seu ofício. Minha irmã Sabina, já então casada com o Cotrim, andava a cair de fadiga. Pobre moça! dormia três horas por noite, nada mais. O próprio tio João estava abatido e triste. Dona Eusébia e algumas outras senhoras lá estavam também, não menos tristes e não menos dedicadas. - Meu filho! A dor suspendeu por um pouco as tenazes; um sorriso alu- miou o rosto da enferma, sobre o qual a morte batia a asa eter- na. Era menos um rosto do que uma caveira: a beleza passara, como um dia brilhante; restavam os ossos, que não emagre- cem nunca. Mal poderia conhecê-la; havia oito ou nove anos que nos não víamos. Ajoelhado, ao pé da cama, com as mãos dela entre as minhas, fiquei mudo e quieto, sem ousar falar, porque cada palavra seria um soluço, e nós temíamos avisá-la do fim. Vão temor! Ela sabia que estava prestes a acabar; dis- se-mo; verificamo-lo na seguinte manhã. Longa foi a agonia, longa e cruel, de uma crueldade mi- nuciosa, fria, repisada, que me encheu de dor e estupefação. Era a primeira vez que eu via morrer alguém. Conhecia a morte de oitiva; quando muito tinha-a visto já petrificada no rosto de algum cadáver, que acompanhei ao cemitério, ou trazia- lhe a idéia embrulhada nas amplificações de retórica dos pro fessores de coisas antigas, - a morte aleivosa de César, a aus- tera de Sócrates, a orgulhosa de Catão. Mas esse duelo do ser e do não-ser, a morte em ação, dolorida, contraída, convulsa, sem aparelho político ou filosófico, a morte de uma pessoa amada, essa foi a primeira vez que a pude encarar. Não cho- rei; lembra-me que não chorei durante o espetáculo: tinha os olhos estúpidos, a garganta presa, a consciência boquiaberta. Quê? uma criatura tão dócil, tão meiga, tão santa, que nunca jamais fizera verter uma lágrima de desgosto, mãe carinhosa, esposa imaculada, era força que morresse assim, trateada, mordida pelo dente tenaz de uma doença sem misericórdia? Confesso que tudo aquilo me pareceu obscuro, incongruen- te, insano... Triste capitulo; passemos a outro mais alegre. CAPÍTULO 24 Curto, Mas Alegre Fiquei prostrado. E contudo era eu, nesse tempo, um fiel compêndio de trivialidade e presunção. Jamais o problema da vida e da morte me oprimira o cérebro; nunca até esse dia me debruçara sobre o abismo do Inexplicável; faltava-me o es- sencial, que é o estimulo, a vertigem... Para lhes dizer a verdade toda, eu refletia as opiniões de um cabeleireiro, que achei em Módena, o qual se distinguia por não as ter absolutamente. Era a flor dos cabeleireiros; por mais demorada que fosse a operação do toucado, não enfadava nun- ca; ele intercalava as penteadelas com muitos motes e pulhas, cheios de um pico, de um sabor... E não tinha outra filosofia. Nem eu. Não digo que a Universidade me não tivesse ensina- do alguma; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim: embolsei três versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e poli ticas, para as despesas da conversação. Tratei-os como tratei a História e a Jurisprudência. Colhi de todas as coisas a fraseologia, a casca, a omamentação, que eram para o meu espírito, vaido- soe nu, o mesmo que, para o peito do selvagem, são as conchas do mar e os dentes de pessoa morta. Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe expo- nho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opi- nião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os re- mendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, por- que em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação pe- nosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, des- pregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizi- nhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem es- tranhos, não há platéia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão inco- mensurável como o desdém dos finados. CAPÍTULO 25 Na Tijuca Ui! lá me ia a pena a escorregar para o enfático. Sejamos simples, como era simples a vida que levei na Tijuca, durante as primeiras semanas depois da morte de minha mãe. No sétimo dia, acabada a missa fúnebre, travei de uma espingarda, alguns livros, roupa, charutos, um moleque, - o Prudêncio do capitulo 11, - e fui meter-me numa velha casa de nossa propriedade. Meu pai forcejou por me torcer a reso- lução, mas eu é que não podia nem queria obedecer-lhe. Sabina desejava que eu fosse morar com ela algum tempo - duas semanas, ao menos; meu cunhado esteve a ponto de me levar à fina força. Era um bom rapaz este Cotrim; passara de estróina a circunspecto. Agora comerciava em gêneros de estiva, labutava de manhã até à noite, com ardor, com perse- verança. De noite, sentado à janela, a encaracolar as suíças, não pensava em outra coisa. Amava a mulher e um filho, que então tinha, e que lhe morreu alguns anos depois. Diziam que era avaro. Renunciei tudo; tinha o espírito atônito. Creio que por então é que começou a desabotoar em mim a hipocondria, essa flor amarela, solitária e mórbida, de um cheiro ine- briante e sutil. - "Que bom que é estar triste e não dizer coisa nenhuma!" - Quando esta palavra de Shakespeare me chamou a atenção, confesso que senti em mim um eco, um eco delicioso. Lembra-me que estava sentado, debaixo de um tamarineiro, com o livro do poeta aberto nas mãos, e o espírito ainda mais cabisbaixo do que a figura, - ou jururu, como dizemos das galinhas tristes. Apertava ao peito a minha dor taciturna, com uma sensação única, uma coi- sa a que poderia chamar volúpia do aborrecimento. Volúpia do aborrecimento: decora esta expressão, leitor; guarda-a, examina-a, e se não chegares a entendê-la, podes concluir que ignoras uma das sensações mais sutis desse mundo e daquele tempo. As vezes caçava, outras dormia, outras lia, - lia muito, - outras enfim não fazia nada; deixava-me atoar de idéia em idéia, de imaginação em imaginação, como uma borboleta vadia ou faminta. E as horas iam pingando uma a uma, o sol caía, as sombras da noite velavam a montanha e a cidade. Ninguém me visitava; recomendei expressamente que me deixassem só. Um dia, dois dias, três dias, uma semana intei- ra passada assim, sem dizer palavra, era bastante para sacu- dir-me da Tijuca fora e restituir-me ao bulício. Com efeito, ao cabo de sete dias, estava farto da solidão; a dor aplacara; o espírito já se não contentava com o uso da espingarda e dos livros, nem com a vista do arvoredo e do céu. Reagia a mocidade, era preciso viver. Meti no baú o pro- blema da vida e da morte, os hipocondríacos do poeta, as ca- misas, as meditações, as gravatas, e ia fechá-lo, quando o moleque Prudêncio me disse que uma pessoa do meu conhe- cimento se mudara na véspera para uma casa roxa, situada a chegar ao nome do próprio poeta, por causa da primeira síla- ba; ia a escrever virumque, - e sai-me Virgílio, então conti- nuei: Vir Virgílio Virgílio Virgílio Virgílio Virgílio Meu pai, um pouco despeitado com aquela indiferença, ergueu-se, veio a mim, lançou os olhos ao papel... - Virgílio! exclamou. Es tu, meu rapaz; a tua noiva cha- ma-se justamente Virgília. CAPÍTULO 27 Virgília? Virgília? Mas então era a mesma senhora que alguns anos depois...? A mesma; era justamente a senhora, que em 1869 devia assistir aos meus últimos dias, e que antes, muito antes, teve larga parte nas minhas mais íntimas sensações. Naquele tempo contava apenas uns quinze ou dezesseis anos; e era tal- vez a mais atrevida criatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa. Não digo que já lhe coubesse a primazia da bele- za, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sar- das e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o ros- to nenhuma sarda ou espinha, não. Era bonita, fresca, sala das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação. Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção, - devoção, ou talvez medo; creio que medo. Aí tem o leitor, em poucas linhas, o retrato físico e moral da pessoa que devia influir mais tarde na minha vida; era aquilo com dezesseis anos. Tu que me lês, se ainda fores viva, quando estas páginas vierem à luz, - tu que me lês, Virgília amada, não repa- ras na diferença entre a linguagem de hoje e a que primeiro em- preguei quando te vi? Crê que era tão sincero então como agora; a morte não me tornou rabugento, nem injusto. - Mas, dirás tu, se você não guardou na retina da me- mória a imagem do que fui, como é que podes assim discernir a verdade daquele tempo, e exprimi-la depois de tantos anos? Ah! indiscreta! ah! ignorantona! Mas é isso mesmo que nos faz senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer o Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes. CAPÍTULO 28 Contanto Que... Virgília? interrompi eu. - Sim, senhor; é o nome da noiva. Um anjo, meu pate- ta, um anjo sem asas. Imagina uma moça assim, desta altura, viva como um azougue, e uns olhos... filha do Dutra... - Que Dutra? - O Conselheiro Dutra, não conheces; uma influência política. Vamos lá, aceitas? Não respondi logo; fitei por alguns segundos a ponta do botim; declarei depois que estava disposto a examinar as duas coisas, a candidatura e o casamento, contanto que... - Contanto que? - Contanto que não fique obrigado aceitar as duas; creio que posso ser separadamente homem casado ou homem pú- blico... - Todo o homem público deve ser casado, interrompeu sentenciosamente meu pai. Mas seja como queres; estou por tudo; fico certo de que a vista fará fé! Demais, a noiva e o casamento são a mesma coisa... isto é, não... saberás depois... Vá; aceito a dilação, contanto que... - Contanto que?... interrompi eu, imitando-lhe a voz. - Ah! brejeiro! Contanto que não te deixes ficar aí inútil, obscuro, e triste; não gastei dinheiro, cuidados, em- penhos, para te não ver brilhar, como deves, e te convém, e a todos nós; é preciso continuar o nosso nome, continuá- lo e ilustrá-lo ainda mais. Olha, estou com sessenta anos, mas se fosse necessário começar vida nova, começava sem hesitar um só minuto. Teme a obscuridade, Brás; foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens. Não estragues as vantagens da tua posição, os teus meios... E foi por diante o mágico, a agitar diante de mim um cho- calho, como me faziam, em pequeno, para eu andar depressa, e a flor da hipocondria recolheu-se ao botão para deixar a outra flor menos amarela, e nada mórbida, - o amor da nomeada, o emplasto Brás Cubas. CAPÍTULO 29 A Visita Vencera meu pai; dispus-me a aceitar o diploma e o casa- mento, Virgília e a Câmara dos Deputados. - As duas Vir- gílias, disse ele num assomo de ternura política. Aceitei-os; meu pai deu-me dois fortes abraços. Era o seu próprio sangue que ele, enfim, reconhecia. Rigorosamente, o filho dele aca- bava de desembarcar naquele instante, de rodaque de linho e mãos nos bolsos. Havia então nos olhos de meu pai alguma coisa do velho Cid; era a alma que coligira numa só flama todas as últimas centelhas. - Desces comigo? - Desço amanhã. Vou fazer primeiramente uma visita a Dona Eusébia... Meu pai torceu o nariz, mas não disse nada; despediu-se e desceu. Eu, na tarde desse mesmo dia, fui visitar Dona Eusébia. Achei-a a repreender um preto jardineiro, mas dei- xou tudo para vir falar-me, com um alvoroço, um prazer tão sincero, que me desacanhou logo. Creio que chegou a cingir- me com o seu par de braços robustos. Fez-me sentar ao pé de si, na varanda, entre muitas exclamações de contentamento: - Ora, o Brasinho! Um homem! Quem diria, há anos... Um homenzarrão! E bonito! Qual! Você não se lembra bem de mim... Disse-lhe que sim, que não era possível esquecer uma amiga tão familiar de nossa casa. Dona Eusébia começou a falar de minha mãe, com muitas saudades, com tantas sauda- des, que me cativou logo, posto me entristecesse. Ela perce- beu-o nos meus olhos, e torceu a rédea à conversação; pediu- me que lhe contasse a viagem, os estudos, os namoros... Sim, os namoros também; confessou-me que era uma velha patusca. Nisto recordei-me do episódio de 1814, ela, o Vilaça, a moi- ta, o beijo, o meu grito; e estando a recordá-lo, ouço um ran- ger de porta, um farfalhar de saias e esta palavra: - Mamãe... mamae... CAPÍTULO 30 A Flor da Moita A voz e as saias pertenciam a uma mocinha morena, que se deteve à porta, alguns instantes, ao ver gente estranha. Silêncio curto e constrangido. Dona Eusébia quebrou-o, en- fim, com resolução e franqueza: - Vem cá, Eugênia, disse ela, cumprimenta o Doutor Brás Cubas, filho do Senhor Cubas; veio da Europa. E voltando-se para mim: - Minha filha Eugênia. Eugênia, a flor da moita, mal respondeu ao gesto de cor- tesia que lhe fiz; olhou-me admirada e acanhada, e lentamente se aproximou da cadeira da mãe. A mãe arranjou-lhe uma das tranças do cabelo, cuja ponta se desmanchara. - Ah! tra- vessa! dizia. Não imagina, doutor, o que isto é... E beijou-a com tão expansiva ternura que me comoveu um pouco; lem- brou-me minha mãe, e - direi tudo, - tive umas cócegas de ser pai. me demoro mais. Desço imediatamente; desço, ainda que algum leitor circunspecto me detenha para perguntar se o capítulo passado é apenas uma sensaboria ou se chega a empulhação... Ai de mim! Não contava com Dona Eusébia. Estava pronto, quando me entrou por casa. Vinha convidar- me para transferir a descida, e ir lá jantar nesse dia. Che- guei a recusar; mas instou tanto, tanto, tanto, que não pude deixar de aceitar, demais, era-lhe devida aquela compensa- ção; fui. Eugênia desataviou-se nesse dia por minha causa. Creio que foi por minha causa, - se é que não andava muita vez assim. Nem as bichas de ouro, que trazia na véspera, lhe pen- diam agora das orelhas, duas orelhas finamente recortadas numa cabeça de ninfa. Um simples vestido branco, de cassa, sem enfeites, tendo ao colo, em vez de broche, um botão de madrepérola, e outro botão nos punhos, fechando as mangas, e nem sombra de pulseira. Era isso no corpo; não era outra coisa no espírito. Idéias claras, maneiras chás, certa graça natural, um ar de senhora, e não sei se alguma outra coisa; sim, a boca, exatamente a boca da mãe, a qual me lembrava o episódio de 1814, e então dava- me ímpetos de glosar o mesmo mote à filha... - Agora vou mostrar-lhe a chácara, disse a mãe, logo que esgotamos o último gole de café. Saímos à varanda, dali à chácara, e foi então que notei uma circunstância. Eugênia coxeava um pouco, tão pouco, que eu cheguei a perguntar-lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a filha respondeu sem titubear: - Não, senhor, sou coxa de nascença. Mandei-me a todos os diabos; chamei-me desastrado, gros- seirão. Com efeito, a simples possibilidade de ser coxa era bastante para lhe não perguntar nada. Então lembrou-me que da primeira vez que a vi - na véspera - a moça chegara-se lentamente à cadeira da mãe, e que naquele dia, já a achei à mesa de jantar. Talvez fosse para encobrir o defeito; mas por que razão o confessava agora? Olhei para ela e reparei que ia triste. Tratei de apagar os vestígios de meu desazo; não me foi difícil, porque a mãe era, segundo confessara, uma velha patusca, e prontamente travou de conversa comigo. Vimos toda a chácara, árvores, flores, tanque de patos, tanque de lavar, uma infinidade de coisas, que ela me ia mostrando, e comentando, ao passo que eu, de soslaio, perscrutava os olhos de Eugênia... Palavra que o olhar de Eugênia não era coxo, mas direito, perfeitamente são; vinha de uns olhos pretos e tranqüilos. Creio que duas ou três vezes baixaram eles à terra, um pouco turvados; mas duas ou três somente; em geral fitavam-me com franqueza, sem temeridade, nem biocos. CAPÍTULO 33 Bem-Aventurados os que Não Descem O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse con- traste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso es- cárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, e não atinava com a solução do enigma. O melhor que há, quando se não resolve um enigma, é sacu- di-lo pela janela fora; foi o que eu fiz; lancei mão de uma toa- lha e enxotei essa outra borboleta preta, que me adejava no cérebro. Fiquei aliviado e fui dormir. Mas o sonho, que é uma fresta do espírito, deixou novamente entrar o bichinho, e ai fiquei eu a noite toda a cavar o mistério, sem explicá-lo. Amanheceu chovendo, transferi a descida; mas no ou- tro dia, a manhã era límpida e azul, e apesar disso deixei-me ficar, não menos que no terceiro dia, e no quarto, até o fim da semana. Manhãs bonitas, frescas, convidativas; lá embai- xo a família a chamar-me, e a noiva, e o parlamento, e eu sem acudir a coisa nenhuma, enlevado ao pé da minha Vênus Manca. Enlevado é uma maneira de realçar o estilo; não havia enlevo, mas gosto, uma certa satisfação física e moral. Queria-lhe, é verdade; ao pé dessa criatura tão singela, filha espúria e coxa, feita de amor e desprezo, ao pé dela sentia- me bem, e ela creio que ainda se sentia melhor, ao pé de mim. E isto na Tijuca. Uma simples égloga. Dona Eusébia vigia- va-nos, mas pouco; temperava a necessidade com a convi- vência. A filha, nessa primeira explosão da natureza, entre- gava-me a alma em flor. - O senhor desce amanhã? disse-me ela no sábado. - Pretendo. - Não desça. Não desci, e acrescentei um versículo ao Evangelho: - Bem-aventurados os que não descem, porque deles é o pri- meiro beijo das damas. Com efeito, foi no domingo esse pri- meiro beijo de Eugênia, - o primeiro que nenhum outro varão jamais lhe tomara, e não furtado ou arrebatado, mas candi- damente entregue, como um devedor honesto paga uma dí- vida. Pobre Eugênia! Se tu soubesses que idéias me vagavam pela mente fora naquela ocasião! Tu, trêmula de comoção, com os braços nos meus ombros, a contemplar em mim o teu bem-vindo esposo, e eu com os olhos em 1814, na moita, no Vilaça, e a suspeitar que não podias mentir ao teu sangue, à tua origem... Dona Eusébia entrou inesperadamente, mas não tão sú- bita, que nos apanhasse ao pé um do outro. Eu fui até à jane- la. Eugênia sentou-se a consertar uma das tranças. Que dissi- mulação graciosa! que arte infinita e delicada! que tartufice profunda! e tudo isso natural, vivo, não estudado, natural como o apetite, natural como o sono. Tanto melhor! Dona Eusébia não suspeitou nada. CAPÍTULO 34 A Uma Alma Sensível Há aí, entre as cinco ou dez pessoas que me lêem, há aí uma alma sensível, que está decerto um pouquito agastada com o capítulo anterior, começa a tremer pela sorte de Eugê- nia, e talvez.., sim, talvez, lá no fundo de si mesma, me cha- me cínico. Eu cínico, alma sensível? Pela coxa de Diana! esta injúria merecia ser lavada com sangue, se o sangue lavasse alguma coisa nesse mundo. Não, alma sensível, eu não sou cínico, eu fui homem; meu cérebro foi um tablado em que se deram peças de todo gênero, o drama sacro, o austero, o pie- gas, a comédia louçã, a desgrenhada farsa, os autos, as bu- fonerias, um pandemônio, alma sensível, uma barafunda de coisas e pessoas, em que podias ver tudo, desde a rosa de Esmirna até a arruda do teu quintal, desde o magnífico leito de Cleópatra até o recanto da praia em que o mendigo tirita o seu sono. Cruzavam-se nele pensamentos de vária casta e fei- ção. Não havia ali a atmosfera somente da águia e do beija- flor; havia também a da lesma e do sapo. Retira, pois, a ex- pressão, alma sensível, castiga os nervos, limpa os óculos, - que isso às vezes é dos óculos, - e acabemos de uma vez com esta flor da moita. CAPÍTULO 35 O Caminho de Damasco Ora aconteceu, que, oito dias depois, como eu estivesse no caminho de Damasco, ouvi uma voz misteriosa, que me sussurrou as palavras da Escritura (Act., IX, 7): "Levanta-te, e entra na cidade." Essa voz saia de mim mesmo, e tinha duas origens: a piedade, que me desarmava ante a candura da pe- quena, e o terror de vir a amar deveras, e desposá-la. Uma mulher coxa! Quanto a este motivo da minha descida, não há duvidar que ela o achou e mo disse. Foi na varanda, na tarde de uma segunda-feira, ao anunciar-lhe que na seguinte manhã viria para baixo. - Adeus, suspirou ela estendendo- me a mão com simplicidade; faz bem. - E como eu nada dis- sesse, continuou: - Faz bem em fugir ao ridículo de casar comigo. Ia dizer-lhe que não; ela retirou-se lentamente, en- golindo as lágrimas. Alcancei-a a poucos passos, e jurei-lhe por todos os santos do céu que eu era obrigado a descer, mas que não deixava de lhe querer e muito; tudo hipérboles frias, que ela escutou sem dizer nada. - Acredita-me? perguntei eu no fim. - Não, e digo-lhe que faz bem. apenas lhe dirigi a palavra. Os olhos chisparam e trocaram a expressão usual por outra, meia doce e meia triste. Vi-lhe um movimento como para esconder-se ou fugir; era o instinto da vaidade, que não durou mais de um instante. Marcela aco- modou-se e sorriu. - Quer comprar alguma coisa? disse ela estendendo-me a mão. Não respondi nada. Marcela compreendeu a causa do meu silêncio (não era difícil), e só hesitou, creio eu, em decidir o que dominava mais, se o assombro do presente, se a memória do passado. Deu-me uma cadeira, e, com o balcão permeio, falou-me longamente de si, da vida que levara, das lágrimas que eu lhe fizera verter, das saudades, dos desastres, enfim das bexigas, que lhe escalavraram o rosto, e do tempo, que aju- dou a moléstia, adiantando-lhe a decadência. Verdade é que tinha a alma decrépita. Vendera tudo, quase tudo; um homem, que a amara outrora, e lhe morreu nos braços, deixara-lhe aquela loja de ourivesaria, mas, para que a desgraça fosse com- pleta, era agora pouco buscada a loja - talvez pela singulari- dade de a dirigir uma mulher. Em seguida pediu-me que lhe contasse a minha vida. Gastei pouco tempo em dizer-lha; não era longa, nem interessante. - Casou? disse Marcela no fim de minha narração. - Ainda não, respondi secamente. Marcela lançou os olhos para a rua, com a atonia de quem reflete ou relembra; eu deixei-me ir então ao passado, e, no meio das recordações e saudades, perguntei a mim mesmo por que motivo fizera tanto desatino. Não era esta certamente a Marcela de 1822; mas a beleza de outro tempo valia uma ter- ça parte dos meus sacrifícios? Era o que eu buscava saber, in- terrogando o rosto de Marcela. O rosto dizia-me que não; ao mesmo tempo os olhos me contavam que, já outrora, como hoje, ardia neles a flama da cobiça. Os meus é que não soube- ram ver-lha; eram olhos da primeira edição. - Mas por que entrou aqui? Viu-me da rua? perguntou ela, saindo daquela espécie de torpor. - Não, supunha entrar numa casa de relojoeiro; queria comprar um vidro para este relógio; vou a outra parte; des- culpe-me; tenho pressa. Marcela suspirou com tristeza. A verdade é que eu me sentia pungido e aborrecido, ao mesmo tempo, e ansiava por me ver fora daquela casa. Marcela, entretanto, chamou um moleque, deu-lhe o relógio, e, apesar da minha oposição, mandou-o, a uma loja na vizinhança, comprar o vidro. Não havia remédio; sentei-me outra vez. Disse ela então que de- sejava ter a proteção dos conhecidos de outro tempo; ponde- rou que mais tarde ou mais cedo era natural que me casasse, e afiançou que me daria finas jóias por preços baratos. Não disse preços baratos, mas usou uma metáfora delicada e trans- parente. Entrei a desconfiar que não padecera nenhum de- sastre (salvo a moléstia), que tinha o dinheiro a bom recado, e que negociava com o único fim de acudir paixão do lucro, que era o verme roedor daquela existência; foi isso mesmo que me disseram depois. CAPÍTULO 39 O Vizinho Enquanto eu fazia comigo mesmo aquela reflexão, entrou na loja um sujeito baixo, sem chapéu, trazendo pela mão uma menina de quatro anos. - Como passou de hoje de manhã? disse ele a Marcela. - Assim, assim. Vem cá, Maricota. O sujeito levantou a criança pelos braços e passou-a para dentro do balcão. - Anda, disse ele; pergunta a Dona Marcela como pas- sou a noite. Estava ansiosa por vir cá, mas a mãe não tinha podido vesti-la... Então, Maricota? Toma a bênção... Olha a vara de marmelo! Assim... Não imagina o que ela é lá em casa; fala na senhora a todos os instantes, e aqui parece uma pamonha. Ainda ontem... Digo, Maricota? - Não diga, não, papai. - Então foi alguma coisa feia? perguntou Marcela ba- tendo na cara da menina. - Eu lhe digo; a mãe ensina-lhe a rezar todas as noites um padre-nosso e uma ave-maria, oferecidos a Nossa Senho- ra; mas a pequena ontem veio pedir-me com voz muito hu- milde... imagine o quê?... que queria oferecê-los a Santa Marcela. - Coitadinha! disse Marcela beijando-a. - E um namoro, uma paixão, como a senhora não ima- gina... A mãe diz que é feitiço... Contou mais algumas coisas o sujeito, todas mui agradá- veis, até que saiu levando a menina, não sem deitar-me um olhar interrogativo ou suspeitoso. Perguntei a Marcela quem era ele. - É um relojoeiro de vizinhança, um bom homem; a mulher também; e a filha é galante, não? Parecem gostar muito de mim... é boa gente. Ao proferir estas palavras havia um tremor de alegria na voz de Marcela; e no rosto como que se lhe espraiou uma onda de ventura... CAPÍTULO 40 Na Sege Nisto entrou o moleque trazendo o relógio com o vidro novo. Era tempo; já me custava estar ali; dei uma moedinha de prata ao moleque; disse a Marcela que voltaria noutra oca- sião, e saí a passo largo. Para dizer tudo, devo confessar que o coração me batia um pouco; mas era uma espécie de dobre de finados. O espírito ia travado de impressões opostas. No- tem que aquele dia amanhecera alegre para mim. Meu pai, ao almoço, repetiu-me, por antecipação, o primeiro discurso que eu tinha de proferir na Câmara dos Deputados; rimo-nos muito, e o sol também, que estava brilhante, como nos mais belos dias do mundo; do mesmo modo que Virgília devia rir, quando eu lhe contasse as nossas fantasias do almoço. Vai senão quando, cai-me o vidro do relógio; entro na primeira loja que me fica à mão; e eis me surge o passado, ei-lo que me lacera e beija; ei-lo que me interroga, com um rosto cortado de saudades e bexigas... Lá o deixei; meti-me às pressas na sege, que me esperava no largo de São Francisco de Paula, e ordenei ao boleeiro que rodasse pelas ruas fora. O boleeiro atiçou as bestas, a sege entrou a sacolejar-me, as molas gemiam, as rodas sulcavam rapidamente a lama que deixara a chuva recente, e tudo isso me parecia estar parado. Não há, às vezes, um certo vento morno que não bochorno, não forte nem áspero, mas abafa- diço, que nos não leva o chapéu da cabeça, nem rodomoinha nas saias das mulheres, e todavia é ou parece ser pior do que se fizesse uma e outra coisa, porque abate, afrouxa, e como que dissolve os espíritos? Pois eu tinha esse vento comigo; e, certo de que ele me soprava por achar-me naquela espécie de garganta entre o passado e o presente, almejava por sair à pla- nície do futuro. O pior é que a sege não andava. - João, bradei eu ao boleeiro. Esta sege anda ou não anda? - Uê! nhonhô! Já estamos parados na porta de sinhô Conselheiro. CAPÍTULO 41 A Alucinação E era verdade. Entrei apressado, achei Virgília ansiosa, mau humor, fronte nublada. A mãe, que era surda, estava na sala com ela. No fim dos cumprimentos disse-me a moça com sequidão: - Esperávamos que viesse mais cedo. Defendi-me do melhor modo; falei do cavalo que em- pacara, e de um amigo, que me detivera. De repente mor- re-me a voz nos lábios, fico tolhido de assombro. Virgília... seria Virgília aquela moça? Fitei-a muito, e a sensação foi tão penosa, que recuei um passo e desviei a vista. Tomei a olhá-la. As bexigas tinham-lhe comido o rosto; a pele, ain- da na véspera tão fina, rosada e pura, aparecia-me agora amarela, estigmada pelo mesmo flagelo que devastara o rosto da espanhola. Os olhos, que eram travessos, fizeram- se murchos; tinha o lábio triste e a atitude cansada. Olhei- a bem; peguei-lhe na mão, e chamei-a brandamente a mim. bem, pode ser que não morresse precisamente do desastre; mas que o desastre lhe complicou as últimas dores, é positivo. Morreu dai a quatro meses, - acabrunhado, triste, com uma preocupação intensa e contínua, à semelhança de remorso, um desencanto mortal que lhe substituiu os reumatismos e tosses. Teve ainda uma meia hora de alegria; foi quando um dos ministros o visitou. Vi-lhe, - lembra-me bem, - vi-lhe o grato sorriso de outro tempo, e nos olhos uma concentra- ção de luz, que era por assim dizer, o último lampejo da alma expirante. Mas a tristeza tomou logo, a tristeza de morrer sem me ver posto em algum lugar alto, como aliás me cabia. - Um Cubas! Morreu alguns dias depois da visita do ministro, uma manhã de maio, entre os dois filhos, Sabina e eu, e mais o tio Ildefonso e meu cunhado. Morreu sem lhe poder valer a ciên- cia dos médicos, nem o nosso amor, nem os cuidados, que foram muitos, nem coisa nenhuma; tinha de morrer, morreu. - Um Cubas! CAPÍTULO 45 Notas Soluços, lágrimas, casa armada, veludo preto nos portais, um homem que veio vestir o cadáver, outro que tomou a medida do caixão, caixão, essa, tocheiros, convites, convida- dos que entravam. Lentamente, a passo surdo, e apertavam a mão à família, alguns tristes, todos sérios e calados, padre e sacristão, rezas, aspersões d'água benta, o fechar do caixão a prego e martelo, seis pessoas que o tomam da essa, e o levan- tam, e o descem a custo pela escada, não obstante os gritos, soluços e novas lágrimas da família, e vão até o coche fúne- bre, e o colocam em cima e traspassam e apertam as correias, o rodar do coche, o rodar dos carros, um a um... Isto que pa- rece um simples inventário, eram notas que eu havia tomado para um capítulo extremamente suculento, em que provava que a terra deve continuar a girar em volta do sol; porquan- to: - a) a natureza não inventou a morte, senão com o fim de dar vida a algumas indústrias - armadores, segeiros, em- presas funerárias, tipografias, e outras que ela sagazmente pre- viu; - b) mortas essas indústrias, pela ausência da morte humana, não é improvável que viessem a morrer os respecti- vos industriais; o que dava na mesma. Mas tudo isto são ape- nas notas de um capítulo que não escrevo. CAPÍTULO 46 A Herança Veja-nos agora o leitor, oito dias depois da morte de meu pai, - minha irmã sentada num sofá, - pouco adiante, o Cotrim, de pé, encostado a um consolo, com os braços cruza- dos e a morder o bigode, - eu a passear de um lado para outro, com os olhos no chão. Luto pesado. Profundo silêncio. - Mas afinal, disse Cotrim; esta casa pouco mais pode valer de trinta contos; demos que valha trinta e cinco... - Vale cinqüenta, ponderei; a Sabina sabe que custou cinqüenta e oito... - Podia custar até sessenta, tomou Cotrim; mas não se segue que os valesse, e menos ainda que os valha hoje. Você sabe que as casas, aqui há anos, baixaram muito. Olhe, se esta vale os cinqüenta contos, quantos não vale a que você deseja para si, a do Campo? - Não fale nisso! Uma casa velha. - Velha! exclamou Sabina, levantando as mãos ao teto. - Parece-lhe nova, aposto? - Ora, mano, deixe-se dessas coisas, disse Sabina, er- guendo-se do sofá; podemos arranjar tudo em boa amizade, e com lisura. Por exemplo, o Cotrim não aceita os pretos, quer só o boleeiro de papai e o Paulo... - O boleeiro não, acudi eu; fico com a sege e não hei de ir comprar outro. - Bem, fico com o Paulo e o Prudêncio. - O Prudêncio está livre. - Livre? - Há dois anos. - Livre? Como seu pai arranjava estas coisas cá por casa, sem dar parte a ninguém! Está direito. Quanto à prata... creio que não libertou a prata? Tínhamos falado na prata, a velha prataria do tempo de Dom José I, a porção mais grave da herança, já pelo lavor, já pela vetustez, já pela origem da propriedade; dizia meu pai que o Conde da Cunha, quando vice-rei do Brasil, a dera de pre- sente a meu bisavô Luís Cubas. - Quanto à prata, continuou o Cotrim, eu não faria ques- tão nenhuma, se não fosse o desejo que sua irmã tem de ficar com ela; e acho-lhe razão. Sabina é casada, e precisa de uma copa digna, apresentável. Você é solteiro, não recebe, não... - Mas posso casar. - Para quê? interrompeu Sabina. Era tão sublime esta pergunta, que por alguns instantes me fez esquecer os interesses. Sorri; peguei na mão de Sabina, bati-lhe levemente na palma, tudo isso com tão boa sombra, que o Cotrim interpretou o gesto como de aquiescência, e agradeceu-mo. - Que é lá? redargüi; não cedi coisa nenhuma, nem cedo. - Nem cede? Abanei a cabeça. - Deixa, Cotrim, disse minha irmã ao marido; vê se ele quer ficar também com a nossa roupa do corpo, é só o que falta. - Não falta mais nada. Quer a sege, quer o boleeiro, quer a prata, quer tudo. Olhe, é muito mais sumário citar-nos a juízo e provar com testemunhas que Sabina não é sua irmã, que eu não sou seu cunhado, e que Deus não é Deus. Faça isto, e não perde nada, nem uma colherinha. Ora, meu amigo, ou- tro oficio! Estava tão agastado, e eu não menos, que entendi ofe- recer um meio de conciliação: dividir a prata. Riu-se e per- guntou-me a quem caberia o bule e a quem o açucareiro; e depois desta pergunta, declarou que teríamos tempo de li- quidar a pretensão, quando menos em juízo. Entretanto, Sabina fora até janela que dava para a chácara, - e de- pois de um instante, voltou, e propôs ceder o Paulo e outro preto, com a condição de ficar com a prata; eu ia dizer que não me convinha, mas o Cotrim adiantou-se e disse a mes- ma coisa. - Isso nunca! não faço esmolas! disse ele. Jantamos tristes. Meu tio cônego apareceu sobremesa, e ainda presenciou uma pequena altercação. - Meus filhos, disse ele, lembrem-se que meu irmão deixou um pão bem grande para ser repartido por todos. Mas o Cotrim: - Creio, creio. A questão, porém, não é de pão, é de manteiga. Pão seco é que eu não engulo. Fizeram-se finalmente as partilhas, mas nós estávamos brigados. E digo-lhes, que ainda assim, custou-me muito a brigar com Sabina. Éramos tão amigos! Jogos pueris, fúrias de crianças, risos e tristezas da idade adulta, dividimos muita vez esse pão da alegria e da miséria, irmamente, como bons irmãos que éramos. Mas estávamos brigados. Tal qual a beleza de Marcela, que se esvaiu com as bexigas. CAPÍTULO 47 O Recluso Marcela, Sabina, Virgília... aí estou eu a fundir todos os contrastes, como se esses nomes e pessoas não fossem mais do que modos de ser da minha afeição anterior. Pena de maus costumes, ata uma gravata ao teu estilo, veste-lhe um colete menos sórdido; e depois sim, depois vem comigo, entra nessa casa, estira-te nessa rede que me embalou a melhor parte dos anos que decorreram desde o inventário de meu pai até 1842. Vem; se te cheirar a algum aroma de toucador, não cuides que o mandei derramar para meu regalo; é um vestígio da N. ou da Z. ou da U. - que todas essas letras maiúsculas embala- ram aí a sua elegante abjeção. Mas, se além do aroma, quise- res outra coisa, fica-te com o desejo, porque eu não guardei retratos, nem cartas, nem memórias; a mesma comoção es- vaiu-se e só me ficaram as letras iniciais. Vivi meio recluso, indo de longe em longe a algum baile, ou teatro, ou palestra, mas a mor parte do tempo passei-a na carruagem, que os esperava um pouco acima; eu fiquei atônito. Oito dias depois, encontrei-a num baile; creio que chega- mos a trocar duas ou três palavras. Mas noutro baile, dado dai a um mês, em casa de uma senhora, que ornara os salões do primeiro reinado, e não desornava então os do segundo, a apro- ximação foi maior e mais longa, porque conversamos e valsa- mos. A valsa é uma deliciosa coisa. Valsamos; e não nego que, ao conchegar ao meu corpo aquele corpo flexível e magnífico, tive uma singular sensação, uma sensação de homem roubado. - Está muito calor, disse ela, logo que acabamos. Vamos ao terraço? - Não; pode constipar-se. Vamos a outra sala. Na outra sala estava o Lobo Neves, que me fez muitos cumprimentos, acerca dos meus escritos políticos, acrescen- tando que nada dizia dos literários, por não entender deles; mas os políticos eram excelentes, bem pensados e bem escri- tos. Respondi-lhe com iguais esmeros de cortesia, e separamo- nos contentes um com o outro. Cerca de três semanas depois recebi um convite dele para uma reunião intima. Fui; Virgília recebeu-me com esta graciosa palavra: - O senhor hoje há de valsar comigo. - Na verda- de, eu tinha fama e era valsista emérito; não admira que ela me preferisse. Valsamos uma vez, e mais outra vez. Um livro perdeu Francesca; cá foi a valsa que nos perdeu. Creio que nessa noite apertei-lhe a mão com muita força, e ela deixou- a ficar, como esquecida, e eu a abraçá-la e todos com os olhos em nós, e nos outros que também se abraçavam e giravam... Um delírio. CAPÍTULO 51 É Minha - E minha! disse eu comigo, logo que a passei a outro cavalheiro; e confesso que durante o resto da noite, foi-se- me a idéia entranhando no espírito, não à força de martelo, mas de verruma, que é mais insinuativa. - E minha! dizia eu ao chegar à porta de casa. Mas aí, como se o destino ou o acaso, ou o que quer que fosse, se lembrasse de dar algum pasto aos meus arroubos possessórios, luziu-me no chão uma coisa redonda e amarela. Abaixei-me; era uma moeda de ouro, uma meia dobra. - E minha! repeti eu a rir-me, e meti-a no bolso. Nessa noite não pensei mais na moeda; mas no dia seguin- te, recordando o caso, senti uns repelões da consciência, e uma voz que me perguntava por que diabo seria minha uma moe- da que eu não herdara nem ganhara, mas somente achara na rua. Evidentemente não era minha; era de outro, daquele que a perdera, rico ou pobre, e talvez fosse pobre, algum operário que não teria com que dar de comer à mulher e aos filhos; mas se fosse rico, o meu dever ficava o mesmo. Cumpria res- tituir a moeda e o melhor meio, o único meio, era fazê-lo por intermédio de um anúncio ou da polícia. Enviei um carta ao chefe de polícia, remetendo-lhe o achado, e rogando-lhe que, pelos meios a seu alcance, fizesse devolvê-lo às mãos do ver- dadeiro dono. Mandei a carta e almocei tranqüilo, posso até dizer que jubiloso. Minha consciência valsara tanto na véspera, que chegou a ficar sufocada, sem respiração; mas a restituição da meia dobra foi uma janela que se abriu para o outro lado da moral; entrou uma onda de ar puro, e a pobre dama respirou à larga. Ventilai as consciências! não vos digo mais nada. To- davia, despido de quaisquer outras circunstâncias, o meu ato era bonito, porque exprimia um justo escrúpulo, um sentimen- to de alma delicada. Era o que me dizia a minha dama inte- rior, com um modo austero e meigo a um tempo; é o que ela me dizia, reclinada ao peitoril da janela aberta. - Fizeste bem, Cubas; andaste perfeitamente. Este ar não é só puro, é balsâmico, é uma transpiração dos eternos jar- dins. Queres ver o que fizeste, Cubas? E a boa dama sacou um espelho e abriu-mo diante dos olhos. Vi, claramente vista, a meia dobra da véspera, redon- da, brilhante, nítida, multiplicando-se por si mesma, - ser dez - depois trinta - depois quinhentas, - exprimindo assim o benefício que me daria na vida e na morte o simples ato da restituição. E eu espraiava todo o meu ser na contem- plação daquele ato, revia-me nele, achava-me bom, talvez grande. Uma simples moeda, hem? Vejam o que é ter valsado um pouquinho mais. Assim, eu, Brás Cubas, descobri uma lei sublime, a lei da equivalência das janelas, e estabeleci que o modo de compen- sar uma janela fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa arejar continuamente a consciência. Talvez não entendas o que ai fica; talvez queiras uma coisa mais concreta, um em- brulho, por exemplo, um embrulho misterioso. Pois toma lá o embrulho misterioso. CAPÍTULO 52 O Embrulho Misterioso Foi o caso que, alguns dias depois, indo eu a Botafogo, tropecei num embrulho, que estava na praia. Não digo bem; houve menos tropeção que pontapé. Vendo um embrulho, não grande, mas limpo e corretamente feito, atado com um bar- bante rijo, uma coisa que parecia alguma coisa, lembrou-me bater-lhe com o pé, assim por experiência, e bati, e o embru- lho resistiu. Relanceei os olhos em volta de mim; a praia esta- va deserta; ao longe uns meninos brincavam, - um pescador curava as redes ainda mais longe, - ninguém que pudesse ver a minha ação; inclinei-me, apanhei o embrulho e segui. Segui, mas não sem receio. Podia ser uma pulha de rapa- zes. Tive idéia de devolver o achado à praia, mas apalpei-o e rejeitei a idéia. Um pouco adiante, desandei o caminho e guiei para casa. - Vejamos, disse eu ao entrar no gabinete. E hesitei um instante, creio que por vergonha; assaltou- me outra vez o receio da pulha. E certo que não havia ali nenhuma testemunha externa; mas eu tinha dentro de mim mesmo um garoto, que havia de assobiar, guinchar, grunhir, patear, apupar, cacarejar, fazer o diabo, se me visse abrir o embrulho e achar dentro um dúzia de lenços velhos ou duas dúzias de goiabas verdes. Era tarde; a curiosidade estava aguçada, como deve estar a do leitor; desfiz o embrulho, e vi... achei... contei... recontei nada menos de cinco contos de réis. Nada menos. Talvez uns dez mil-réis mais. Cinco contos em boas notas e dobras, tudo asseadinho e arranjadinho, um acha- do raro. Embrulhei-as de novo. Ao jantar pareceu-me que um dos moleques falara a outro com os olhos. Ter-me-iam esprei- tado? Interroguei-os discretamente, e concluí que não. Sobre o jantar, fui outra vez ao gabinete, examinei o dinheiro, e ri- me dos meus cuidados maternais a respeito de cinco contos, - eu, que era abastado. Para não pensar mais naquilo fui de noite à casa do Lobo Neves, que instara muito comigo não deixasse de freqüentar as recepções da mulher. Lá encontrei o chefe de polícia; fui- lhe apresentado; ele lembrou-se logo da carta e da meia do- bra que eu lhe remetera alguns dias antes. Aventou o caso. Virgília pareceu saborear o meu procedimento, e cada um dos presentes acertou de contar uma anedota análoga, que eu ouvi com impaciência de mulher histérica. De noite, no dia seguinte, em toda aquela semana pensei o menos que pude nos cinco contos, e até confesso que os deixei muito quietinhos na gaveta da secretária. Gostava de falar de todas as coisas, menos de dinheiro, e principalmente de dinheiro achado; todavia não era crime achar dinheiro, era uma felicidade, um bom acaso, era talvez um lance da Provi- dência. Não podia ser outra coisa. Não se perdem cinco con- tos, como se perde um lenço de tabaco. Cinco contos levam- se com trinta mil sentidos, apalpam-se a miúdo, não se lhes tiram os olhos de cima, nem as mãos, nem o pensamento, e para se perderem assim tolamente, numa praia, é necessário que... Crime é que não podia ser o achado; nem crime, nem desonra, nem nada que embaciasse o caráter de um homem. Era um achado, um acerto feliz, como a sorte grande, como as apostas de cavalo, como os ganhos de um jogo honesto e até direi que a minha felicidade era merecida, porque eu não me sentia mau, nem indigno dos benefícios da Providência. - Estes cinco contos, dizia eu comigo, três semanas de- pois, hei de empregá-los em alguma ação boa, talvez um dote a alguma menina pobre, ou outra coisa assim... hei de ver... Nesse mesmo dia levei-os ao Banco do Brasil. Lá me re- ........................................................! ....................... ....! ...........................................................! Virgília .......................................? Brás Cubas .....................! Virgília .....................! CAPÍTULO 56 O Momento Oportuno Mas, com a breca! quem me explicará a razão desta di- ferença? Um dia vimo-nos, tratamos o casamento, desfizemo-lo e separamo-nos, a frio, sem dor, porque não houvera paixão nenhuma; mordeu-me apenas algum despeito e nada mais. Correm anos, torno a vê-la, damos três ou quatro giros de valsa, e eis-nos a amar um ao outro com delírio. A beleza de Virgília chegara, é certo, a um alto grau de apuro, mas nós éramos substancialmente os mesmos, e eu, à minha parte, não me tornara mais bonito nem mais elegante. Quem me expli- cará a razão dessa diferença? A razão não podia ser outra senão o momento oportu- no. Não era oportuno o primeiro momento, porque, se ne- nhum de nós estava verde para o amor, ambos o estávamos para o nosso amor; distinção fundamental. Não há amor possível sem a oportunidade dos sujeitos. Esta explicação achei-a eu mesmo, dois anos depois do beijo, um dia que Virgília se me queixava de um pintalegrete que lá ia e tenaz- mente a galanteava. - Que importuno! dizia ela fazendo uma careta de raiva. Estremeci, fitei-a, vi que a indignação era sincera; então ocorreu-me que talvez eu tivesse provocado alguma vez aquela mesma careta, e compreendi logo toda a grandeza da minha evolução. Tinha vindo de importuno a oportuno. CAPÍTULO 57 Destino Sim senhor, amávamos. Agora, que todas as leis sociais no-lo impediam, agora é que nos amávamos deveras. Achá- vamo-nos jungidos um ao outro, como as duas almas que o poeta encontrou no Purgatório: Di pari, come buoi, che vanno a giogo; e digo mal, comparando-nos a bois, porque nós éramos outra espécie de animal menos tardo, mais velhaco e lascivo. Eis- nos a caminhar sem saber até onde, nem por que estradas escusas; problema que me assustou, durante algumas sema- nas, mas cuja solução entreguei ao destino. Pobre Destino! Onde andarás agora, grande procurador dos negócios huma- nos? Talvez estejas a criar pele nova, outra cara, outras ma- neiras, outro nome, e não é impossível que... Já me não lem- bra onde estava... Ah! nas estradas escusas. Disse eu comigo que já agora seria o que Deus quisesse. Era a nossa sorte amar- nos; se assim não fora, como explicaríamos a valsa e o resto? Virgília pensava a mesma coisa. Um dia, depois de me con- fessar que tinha momentos de remorsos, como eu lhe dissesse que, se tinha remorsos, é porque me não tinha amor, Virgília cingiu-me com os seus magníficos braços, murmurando: - Amo-te, é a vontade do céu. E esta palavra não vinha à toa; Virgília era um pouco re- ligiosa. Não ouvia missa aos domingos, é verdade, e creio até que só ia às igrejas em dia de festa, e quando havia lugar vago em alguma tribuna. Mas rezava todas as noites, com fervor, ou pelo menos, com sono. Tinha medo às trovoadas; nessas ocasiões, tapava os ouvidos, e resmoneava todas as orações do catecismo. Na alcova dela havia um oratoriozinho de jacarandá, obra de talha, de três palmos de altura, com três imagens dentro; mas não falava dele às amigas; ao contrário, tachava de beatas as que eram só religiosas. Algum tempo desconfiei que havia nela certo vexame de crer, e que a sua religião era uma espécie de camisa de flanela preservativa e clandestina; mas evidentemente era engano meu. CAPÍTULO 58 Confidência O Lobo Neves, a princípio, metia-me grandes sustos. Pura ilusão! Como adorasse a mulher, não se vexava de mo dizer muitas vezes; achava que Virgília era a perfeição mesma, um conjunto de qualidades sólidas e finas, amorável, elegante, austera, um modelo. E a confiança não parava aí. De fresta que era, chegou a porta escancarada. Um dia confessou-me que trazia uma triste carcoma na existência; faltava-lhe a gló- ria pública. Animei-o; disse-lhe muitas coisas bonitas, que ele ouviu com aquela unção religiosa de um desejo que não quer acabar de morrer; então compreendi que a ambição dele an- dava cansada de bater as asas, sem poder abrir o vôo. Dias depois disse-me todos os seus tédios e desfalecimentos, as amarguras engolidas, as raivas sopitadas; contou-me que a vida política era um tecido de invejas, despeitos, intrigas, perfídias, interesses, vaidades. Evidentemente havia aí uma crise de melancolia; tratei de combatê-la. - Sei o que lhe digo, replicou-me com tristeza. Não pode imaginar o que tenho passado. Entrei na política por gosto, por família, por ambição, e um pouco por vaidade. Já vê que reuni em mim só todos os motivos que levam o homem à vida pública; faltou-me só o interesse de outra natureza. Vira o teatro pelo lado da platéia; e, palavra, que era bonito! Sober- bo cenário, vida, movimento e graça na representação. Escri- turei-me; deram-me um papel que... Mas para que o estou a fatigar com isto? Deixe-me ficar com as minhas amofinações. Creia que tenho passado horas e dias... Não há constância de sentimentos, não há gratidão, não há nada... nada... nada... Calou-se profundamente abatido, com os olhos no ar, parecendo não ouvir coisa nenhuma, a não ser o eco de seus próprios pensamentos. Após alguns instantes, ergueu-se e estendeu-me a mão: - O senhor há de rir-se de mim, disse ele; mas desculpe aquele desabafo; tinha um negócio, que me mordia o espírito. E ria, de um jeito sombrio e triste; depois pediu-me que não referisse a ninguém o que se passara entre nós; ponderei-lhe que a rigor não se passara nada. Entraram dois deputados e um chefe político da paróquia. O Lobo Ne- ves recebeu-os com alegria, a princípio um tanto postiça, mas logo depois natural. No fim de meia hora, ninguém diria que ele não era o mais afortunado dos homens; conversava, chas- queava, e ria, e riam todos. CAPÍTULO 59 Um Encontro Deve ser um vinho bem enérgico a política, dizia eu co- migo, ao sair da casa de Lobo Neves; e fui andando, fui an- dando, até que na rua dos Barbonos vi uma sege, e dentro um dos ministros, meu antigo companheiro de colégio. Corteja- mo-nos afetuosamente, a sege seguiu, e eu fui andando... an- dando... andando... - Por que não serei eu ministro? Esta idéia, rútila e grande, - trajada ao bizarro, como diria o padre Bernardes, - esta idéia começou uma vertigem de cabriolas e eu deixei-me estar com os olhos nela, a achar-lhe graça. E não pensei mais na tristeza de Lobo Neves; senti a atração do abismo. Recordei aquele companheiro de colégio, as correrias nos morros, as alegrias e travessuras, e comparei o menino com o homem, e perguntei a mim mesmo por que não seria eu como ele. Entrava então no Passeio Público, e tudo me parecia dizer a mesma coisa. - Por que não serás minis- tro, Cubas? - Cubas, por que não serás ministro de Estado? Ao ouvi-lo, uma deliciosa sensação me refrescava todo o sis- tema. Entrei, fui sentar-me num banco, a cavar comigo aque- la idéia. E Virgília que havia de gostar! Alguns minutos de- pois vejo encaminhar-se para mim uma cara, que me não pa- - Adeus! - E obrigado. Deixa-me agradecer-lhe de mais perto? E dizendo isto abraçou-me com tal ímpeto que eu não pude evitá-lo. Separamo-nos finalmente, eu a passo largo, com a camisa amarrotada do abraço, enfadado e triste. Já não do- minava em mim a parte simpática da sensação, mas a outra. Quisera ver-lhe a miséria digna. Contudo, não pude deixar de comparar outra vez o homem de agora com o de outrora, entristecer-me e encarar o abismo que separa as esperanças de um tempo da realidade de outro tempo... - Ora adeus! Vamos jantar, disse comigo. Meto a mão no colete e não acho o relógio. Ultima desi- lusão! o Borba furtara-mo no abraço. CAPÍTULO 61 Um Projeto Jantei triste. Não era a falta do relógio que me pungia, era a imagem do autor do furto, e as reminiscências de cri- ança, e outra vez a comparação, e a conclusão... Desde a sopa, começou a abrir em mim a flor amarela e mórbida do capítulo 25, e então jantei depressa, para correr à casa de Virgília. Virgília era o presente; eu queria refugiar-me nele, para escapar às opressões do passado, porque o encontro do Quincas Borba tornara-me aos olhos o passado, não qual fora deveras, mas um passado roto, abjeto, mendigo e ga- tuno. Saí de casa, mas era cedo; iria achá-los à mesa. Outra vez pensei no Quincas Borba, e tive então um desejo de tomar ao Passeio Público, a ver se o achava; a idéia de o regenerar surgiu-me como uma forte necessidade. Fui; mas já não o achei. Indaguei do guarda; disse-me que efetivamente esse sujeito" ia por ali às vezes. - A que horas? - Não tem hora certa. Não era impossível encontrá-lo noutra ocasião; prometi a mim mesmo lá voltar. A necessidade de o regenerar, de o trazer ao trabalho e ao respeito de sua pessoa enchia-me o coração; eu começava a sentir um bem-estar, uma elevação, uma admiração de mim próprio... Nisto caia a noite; fui ter com Virgília. CAPÍTULO 62 O Travesseiro Fui ter com Virgilia; bem depressa esqueci o Quincas Borba. Virgília era o travesseiro do meu espírito, um traves- seiro mole, tépido, aromático, enfronhado em cambraia e bruxelas. Era ali que ele costumava repousar de todas as sen- sações más, simplesmente enfadonhas, ou até dolorosas. E, bem pesadas as coisas, não era outra a razão da existência de Virgília; não podia ser. Cinco minutos bastaram para olvidar inteiramente o Quincas Borba; cinco minutos de uma con- templação mútua, com as mãos presas umas nas outras; cinco minutos e um beijo. E lá se foi a lembrança do Quincas Borba... Escrófula da vida, andrajo do passado, que me importa que exista, que molestes os olhos dos outros, se eu tenho dois pal- mos de um travesseiro divino, para fechar os olhos e dormir? CAPÍTULO 63 Fujamos Ai! nem sempre dormir. Três semanas depois, indo à casa de Virgilia, - eram quatro horas da tarde, - achei-a triste e abatida. Não me quis dizer o que era; mas, como eu instasse muito: - Creio que o Damião desconfia alguma coisa. Noto agora umas esquisitices nele... Não sei... Trata-me bem, não há dúvi- da; mas o olhar parece que não é o mesmo. Durmo mal; ainda esta noite acordei, aterrada, estava sonhando que ele me ia matar. Talvez seja ilusão, mas eu penso que ele desconfia... Tranqüilizei-a como pude; disse que podiam ser cuidados políticos. Virgília concordou que seriam, mas ficou ainda muito excitada e nervosa. Estávamos na sala de visitas, que dava justamente para a chácara, onde trocáramos o beijo inicial. Uma janela aberta deixava entrar o vento, que sacudia frou- xamente as cortinas, e eu fiquei a olhar para as cortinas, sem as ver. Empunhara o binóculo da imaginação; lobrigava, ao longe, uma casa nossa, uma vida nossa, um mundo nosso, em que não havia Lobo Neves, nem casamento, nem moral, nem nenhum outro liame, que nos tolhesse a expansão da vonta- de. Esta idéia embriagou-me; eliminados assim o mundo, a moral e o marido, não haveria mais que penetrar naquela habitação dos anjos. - Virgília, disse, eu proponho-te uma coisa. - Que é? - Amas-me? - Oh! suspirou ela, cingindo-me os braços ao pescoço. Virgília amava-me com fúria; aquela resposta era a verda- de patente. Com os braços ao meu pescoço, calada, respirando muito, deixou-se ficar a olhar para mim, com os seus grandes e belos olhos, que davam uma sensação singular de luz úmida; e eu deixei-me estar a vê-los, a namorar-lhe a boca, fresca como a madrugada, e insaciável como a morte. A beleza de Virgília tinha agora um tom grandioso, que não possuira antes de casar. Era dessas figuras talhadas em pentélico, de um lavor nobre, rasgado e puro, tranqüilamente bela, como as estátuas, mas não apática nem fria. Ao contrário, tinha o aspecto das naturezas cálidas, e podia-se dizer que, na realidade, resumia todo o amor. Resumia-o sobretudo naquela ocasião, em que exprimia muda- mente tudo quanto pode dizer a pupila humana. Mas o tempo urgia; deslacei-lhe as mãos, peguei-lhe nos pulsos, e, fito nela, perguntei-lhe se tinha coragem. - De quê? - De fugir. Iremos para onde nos for mais cômodo, uma casa grande ou pequena, à tua vontade, na roça ou na cida- de, ou na Europa, onde te parecer, onde ninguém nos aborre- ça, e não haja perigos para ti, onde vivamos um para o ou- tro... Sim? fujamos. Tarde ou cedo, ele pode descobrir alguma coisa, e estarás perdida... ouves? perdida... morta... e ele também, porque eu o matarei, juro-te. Interrompi-me; Virgília empalidecera muito, deixou cair os braços e sentou-se no canapé. Esteve assim alguns instan- tes, sem me dizer palavra, não sei se vacilante na escolha, se aterrada com a idéia da descoberta e da morte. Fui-me a ela, insisti na proposta, disse-lhe todas as vantagens de uma vida a sós, sem zelos, nem terrores, nem aflições. Virgília ouvia-me calada; depois disse: - Não escaparíamos talvez; ele iria ter comigo e mata- va-me do mesmo modo. Mostrei-lhe que não. O mundo era assaz vasto, e eu tinha os meios de viver onde quer que houvesse ar puro e muito sol; ele não chegaria até lá; só as grandes paixões são capazes de grandes ações, e ele não a amava tanto que pudesse ir buscá- la, se ela estivesse longe. Virgília fez um gesto de espanto e quase indignação; murmurou que o marido gostava muito dela. - Pode ser, respondi eu; pode ser que sim... E fui até a janela, e comecei a assobiar e a rufar com os dedos no peitoril. Virgília chamou-me; eu deixei-me estar, a remoer os meus zelos, a desejar estrangular o marido, se o ti- vesse ali à mão... Justamente, nesse instante, apareceu na chácara o Lobo Neves. Não tremas assim, leitora pálida; des- cansa, que não hei de rubricar esta lauda com um pingo de sangue. Logo que o Lobo Neves entrou na chácara, fiz-lhe um gesto amigo, acompanhado de uma palavra graciosa; Virgília retirou-se apressadamente da sala, e ele entrou daí a três mi- nutos. - Está cá há muito tempo? disse-me ele. - Não. Entrara sério, pesado, derramando os olhos de um modo distraído, costume seu, que trocou logo por uma verdadeira expansão de jovialidade, quando viu chegar o filho, o nhonhô, o futuro bacharel do capítulo 8; tomou-o nos braços, levan- tou-o ao ar, beijou-o muitas vezes. Eu, que tinha ódio ao menino, afastei-me de ambos. Virgília tomou à sala - Ah! respirou Lobo Neves, sentando-se preguiçosa- mente no sofá. - Cansado? perguntei eu. - Muito; aturei duas maçadas de primeira ordem, uma na câmara e outra na rua. E ainda temos terceira, acrescen- tou, olhando para a mulher. - Que é? perguntou Virgília. - Um... Adivinha! Virgília sentara-se ao lado dele, pegou-lhe numa das mãos, - Se a senhora está assim com dor de cabeça, disse eu, parece que o melhor é não receber. - Já se apeou? perguntou Virgília ao escravo. - Já se apeou; diz que precisa muito de falar com sinhá! - Que entre! A baronesa entrou daí a pouco. Não sei se contava comi- go na sala; mas era impossível mostrar maior alvoroço. - Bons olhos o vejam! explodiu ela. Onde se mete o senhor que não aparece em parte nenhuma? Pois olhe, on- tem admirou-me não o ver no teatro. A Candiani esteve de- liciosa. Que mulher! Gosta da Candiani? E natural. Os se- nhores são todos os mesmos. O barão dizia ontem, no cama- rote, que uma só italiana vale por cinco brasileiras. Que desa- foro! e desaforo de velho, que é pior. Mas por que é que o senhor não foi ontem ao teatro? - Uma enxaqueca. - Qual! Algum namoro; não acha, Virgília? Pois, meu amigo, apresse-se, porque o senhor deve estar com quarenta anos... ou perto disso... Não tem quarenta anos? - Não lhe posso dizer com certeza, respondi eu; mas se me dá licença vou consultar a certidão de batismo. - Vá, vá... E estendendo-me a mão: - Até quando? Sábado ficamos em casa; o barão está com umas saudades suas... Chegando à rua, arrependi-me de ter saído. A baronesa era uma das pessoas que mais desconfiavam de nós. Cinqüenta e cinco anos, que pareciam quarenta, macia, risonha, vestígios de beleza, porte elegante e maneiras finas. Não falava muito nem sempre; possuía a grande arte de escutar os outros, espian- do-os; reclinava-se então na cadeira, desembainhava um olhar afiado e comprido, e deixava-se estar. Os outros, não sabendo o que era, falavam, olhavam, gesticulavam, ao tempo que ela olhava só, ora fixa, ora móbil, levando a astúcia ao ponto de olhar às vezes para dentro de si, porque deixava cair as pálpe- bras; mas, como as pestanas eram rótulas, o olhar continuava o seu oficio, remexendo a alma e a vida dos outros. A segunda pessoa era um parente de Virgília, o Viegas, um cangalho de setenta invernos, chupado e amarelado, que pade- cia de um reumatismo teimoso, de uma asma não menos teimo- sa e de uma lesão do coração: era um hospital concentrado. Os olhos porém luziam de muita vida e saúde. Virgília, nas primeiras semanas, não lhe tinha medo nenhum; dizia-me que, quando o Viegas parecia espreitar, com o olhar fixo, estava simplesmente contando dinheiro. Com efeito, era um grande avaro. Havia ainda o primo de Virgília, o Luís Dutra, que eu, en- tretanto, agora desarmava à força de lhe falar nos versos e pro- sas, e de o apresentar aos conhecidos. Quando estes, ligando o nome à pessoa, se mostravam contentes da apresentação, não há dúvida que Luís Dutra exultava de felicidade; mas eu cura- va-me da felicidade com a esperança de que ele nos não de- nunciasse nunca. Havia, enfim, umas duas ou três senhoras, vários gamenhos, e os fâmulos, que naturalmente se desforra- vam assim da condição servil, e tudo isso constituía uma ver- dadeira floresta de olheiros e escutas, por entre os quais tínhamos de resvalar com a tática e maciez das cobras. CAPÍTULO 66 As Pernas Ora, enquanto eu pensava naquela gente, iam-me as per- nas levando, ruas abaixo, de modo que insensivelmente me achei à porta do hotel Pharoux. De costume jantava ai; mas, não tendo deliberadamente andado, nenhum merecimento da ação me cabe, e sim às pernas, que a fizeram. Abençoadas pernas! E há quem vos trate com desdém ou indiferença. Eu mesmo, até então, tinha-vos em má conta, zangava-me quan- do vos fatigáveis, quando não podíeis ir além de certo ponto, e me deixáveis com o desejo a avoaçar, à semelhança de gali- nha atada pelos pés. Aquele caso, porém, foi um raio de luz. Sim, pernas ami- gas, vós deixastes à minha cabeça o trabalho de pensar em Virgília, e dissestes uma à outra: - Ele precisa comer, são horas de jantar, vamos levá-lo ao Pharoux; dividamos a consciên- cia dele, uma parte fique lá com a dama, tomemos nós a ou- tra, para que ele vá direito, não abalroe as gentes e as carro- ças, tire o chapéu aos conhecidos, e finalmente chegue são e salvo ao hotel. E cumpristes à risca o vosso propósito, amá- veis pernas, o que me obriga a imortalizar-vos nesta página. CAPÍTULO 67 A Casinha Jantei e fui a casa. Lá achei uma caixa de charutos, que me mandara o Lobo Neves, embrulhada em papel de seda, e ornada de fitinhas cor-de-rosa. Entendi, abria-a, e tirei este bilhete: "Meu B... Desconfiam de nós; tudo está perdido; esqueça-me para sempre. Não nos veremos mais. Adeus; esqueça-se da infeliz V.. a." Foi um golpe esta carta; não obstante, apenas fechou a noite, corri à casa de Virgília. Era tempo; estava arrependida. Ao vão de uma janela, contou-me o que se passara com a baronesa. A baronesa disse-lhe francamente que se falara muito, no teatro, na noite anterior, a propósito da minha au- sência do camarote do Lobo Neves; tinham comentado as minhas relações na casa; em suma, éramos objeto da suspeita pública. Concluiu dizendo que não sabia que fazer. - O melhor é fugirmos, insinuei. - Nunca, respondeu ela abanando a cabeça. Vi que era impossível separar duas coisas que no espírito dela estavam inteiramente ligadas: o nosso amor e a conside- ração pública. Virgília era capaz de iguais e grandes sacrifícios para conservar ambas as vantagens, e a fuga só lhe deixava uma. Talvez senti alguma coisa semelhante a despeito; mas as comoções daqueles dois dias eram já muitas, e o despeito morreu depressa. Vá lá; arranjemos a casinha. Com efeito, achei-a, dias depois, expressamente feita em um recanto da Gamboa. Um brinco! Nova, caiada de fresco, com quatro janelas na frente e duas de cada lado - todas com venezianas cor de tijolo, - trepadeira nos cantos, jar- dim na frente; mistério e solidão. Um brinco! Convencionamos que iria morar ali uma mulher, conhe- cida de Virgília, em cuja casa fora costureira e agregada. Virgília exercia sobre ela verdadeira fascinação. Não se lhe diria tudo; ela aceitaria facilmente o resto. Para mim era aquilo uma situação nova do nosso amor, uma aparência de posse exclusiva, de domínio absoluto, algu- ma coisa que me faria adormecer a consciência e resguardar o decoro. Já estava cansado das cortinas do outro, das cadei- ras, do tapete, do canapé, de todas essas coisas, que me tra- ziam aos olhos constantemente a nossa duplicidade. Agora podia evitar os jantares freqüentes, o chá de todas as noites, enfim a presença do filho deles, meu cúmplice e meu inimi- go. A casa resgatava-me tudo; o mundo vulgar terminaria à porta - dali para dentro era o infinito, um mundo eterno, superior, excepcional, nosso, somente nosso, sem leis, sem instituições, sem baronesas, sem olheiros, sem escutas, - um só mundo, um só casal, uma só vida, uma só vontade, uma só afeição - a unidade moral de todas as coisas pela exclusão das que me eram contrárias. CAPÍTULO 68 O Vergalho Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrom- peu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava ou- tro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: - "Não, perdão, meu senhor; meu se- nhor, perdão!" Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súpli- ca, respondia com uma vergalhada nova. - Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado! - Meu senhor! gemia o outro. - Cala a boca, besta! replicava o vergalho. Parei, olhei... justos céus! Quem havia de ser o do ver- galho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio - o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve- se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto ção direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem... E caem! - Folhas misérrimas do meu cipreste, heis de cair, como quaisquer outras belas e vistosas; e, se eu tives- se olhos, dar-vos-ia uma lágrima de saudade. Esta é a gran- de vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, tam- bém não deixa olhos para chorar... Heis de cair. Turvo é o ar que respirais, amadas folhas. O sol que vos alumia, com ser de toda gente, é um sol opaco e reles, de cemitério e carnaval. CAPÍTULO 72 O Bibliômano Talvez suprima o capítulo anterior; entre outros motivos, há aí, nas últimas linhas, uma frase muito parecida com des- propósito, e eu não quero dar pasto à crítica do futuro. Olhai: daqui a setenta anos, um sujeito magro, amarelo, grisalho, que não ama nenhuma outra coisa além dos livros, inclina-se sobre a página anterior, a ver se lhe descobre o des- propósito; lê, relê, treslê, desengonça as palavras, saca uma sílaba, depois outra, mais outra, e as restantes, examina-as por dentro e por fora, por todos os lados, contra a luz, espaneja- as, esfrega-as no joelho, lava-as, e nada. Fica sempre o mes- mo despropósito. E um bibliômano. Não conhece o autor; este nome de Brás Cubas não vem nos seus dicionários biográficos. Achou o volume, por acaso, no pardieiro de um alfarrabista. Comprou- o por duzentos réis. Indagou, pesquisou, esgaravatou, e veio a descobrir que era um exemplar único... Unico! Vós, que não só amais os livros, senão que padeceis a mania deles, vós sabeis mui bem o valor desta palavra, e adivinhais, portanto, as de- lícias de meu bibliômano. Ele rejeitaria a coroa das Índias, o papado, todos os museus da Itália e da Holanda, se os hou- vesse de trocar por esse único exemplar; e não porque seja o das minhas Memórias, fazia a mesma coisa com o Almanac de Laemmert, uma vez que fosse único. O pior é o despropósito. Lá continua o homem inclinado sobre a página, com uma lente no olho direito, todo entregue à nobre e áspera função de decifrar o despropósito. Já prome- teu a si mesmo escrever uma breve memória, na qual relate o achado do livro e a descoberta da sublimidade, se a houver por baixo daquela frase obscura. Ao cabo, não descobre nada e contenta-se com a posse. Fecha o livro, mira-o, remira-o, chega-se à janela e mostra-o ao sol. Um exemplar único. Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um César ou um Cromwell, a caminho do poder. Ele dá de ombros, fecha a janela, estira-se na rede e folheia o livro devagar, com amor, aos goles... Um exemplar único! CAPÍTULO 73 O Lunch O despropósito fez-me perder outro capítulo. Que me- lhor não era dizer as coisas lisamente, sem todos estes sola- vancos! Já comparei o meu estilo ao andar dos ébrios. Se a idéia vos parece indecorosa, direi que ele é o que eram as minhas refeições com Virgilia, na casinha da Gamboa, onde às vezes fazíamos a nossa patuscada, o nosso lunch. Vinho, frutas, compotas. Comíamos, é verdade, mas era um comer virgulado de palavrinhas doces, de olhares temos, de crian- cices, uma infinidade desses apartes do coração, aliás o ver- dadeiro, o ininterrupto discurso do amor. As vezes vinha o arrufo temperar o nímio adocicado da situação. Ela deixava- me, refugiava-se num canto do canapé, ou ia para o interior ouvir as denguices de Dona Plácida. Cinco ou dez minutos depois, reatávamos a palestra, como eu reato a narração, para desatá-la outra vez. Note-se que, longe de termos horror ao método, era nosso costume convidá-lo, na pessoa de Dona Plácida, a sentar-se conosco à mesa; mas Dona Plácida não aceitava nunca. - Você parece que não gosta mais de mim, disse-lhe um dia Virgília. - Virgem Nossa Senhora! exclamou a boa dama alçan- do as mãos para o teto. Não gosto de Iaiá! Mas então de quem é que eu gostaria neste mundo? E, pegando-lhe nas mãos, olhou-a fixamente, fixamente, fixamente, até molharem-se-lhe os olhos, de tão fixo que era. Virgília acariciou-a muito; eu deixei-lhe uma pratinha na algibeira do vestido. CAPÍTULO 74 História de Dona Plácida Não te arrependas de ser generoso; a pratinha rendeu-me uma confidência de Dona Plácida, e conseguintemente este capitulo. Dias depois, como eu a achasse só em casa, travamos palestra, e ela contou-me em breves termos a sua história. Era filha natural de um sacristão da Sé e de uma mulher que fazia doces para fora. Perdeu o pai aos dez anos. Já então ralava coco e fazia não sei que outros misteres de doceira, compatíveis com a idade. Aos quinze ou dezesseis casou com um alfaiate, que morreu tísico algum tempo depois, deixando-lhe uma filha. Viúva, com pouco mais de vinte anos, ficaram a seu cargo a filha, com dois, e a mãe, cansada de trabalhar. Tinha de sus- tentar a três pessoas. Fazia doces, que era o seu ofício, mas cosia também, de dia e de noite, com afinco, para três ou quatro lojas e ensinava algumas crianças do bairro, a dez tostões por mês. Com isto iam-se passando os anos, não, não a beleza, por- que não a tivera nunca. Apareceram-lhe alguns namoros, pro- postas, seduções, a que resistia. - Se eu pudesse encontrar outro marido, disse-me ela, creia que me teria casado; mas ninguém queria casar comigo. Um dos pretendentes conseguiu fazer-se aceito; não sen- do, porém, mais delicado que os outros, Dona Plácida despe- diu-o do mesmo modo, e, depois de o despedir, chorou mui- to. Continuou a coser para fora e a escumar os tachos. A mãe tinha a rabugem do temperamento, dos anos e da necessida- de: mortificava a filha para que tomasse um dos maridos de empréstimo e de ocasião que lixa pediam. E bradava: - Queres ser melhor do que eu? Não sei donde te vem essas fidúcias de pessoa rica. Minha camarada, a vida não se arranja à toa; não se come vento. Ora esta! Moços tão bons como o Policarpo da venda, coitado... Esperas algum fidalgo, não é? Dona Plácida jurou-me que não esperava fidalgo nenhum. Era gênio. Queria ser casada. Sabia muito bem que a mãe o não fora, e conhecia algumas que tinham só o seu moço de- las; mas era gênio e queria ser casada. Não queria também que a filha fosse outra coisa. Trabalhava muito, queimando os dedos ao fogão, e os olhos ao candeeiro, para comer e não cair. Emagreceu, adoeceu, perdeu a mãe, enterrou-a por subs- crição, e continuou a trabalhar. A filha estava com quatorze anos; mas era muito fraquinha, e não fazia nada, a não ser namorar os capadócios que lhe rondavam a rótula. Dona Plá- cida vivia com imensos cuidados, levando-a consigo, quando tinha de ir entregar costuras, e a gente das lojas arregalava e piscava os olhos, convencida de que ela a levava para colher marido ou outra coisa. Alguns diziam graçolas, faziam cum- primentos; a mãe chegou a receber propostas de dinheiro... Interrompeu-se um instante, e continuou logo: - Minha filha fugiu-me; foi com um sujeito, nem quero saber... Deixou-me só, mas tão triste, tão triste, que pensei morrer. Não tinha ninguém mais no mundo e estava quase velha e doente. Foi por esse tempo que conheci a família de Iaiá: boa gente, que me deu que fazer, e até chegou a me dar casa. Estive lá muitos meses, um ano, mais de um ano, agre- gada, costurando. Saí quando Iaiá casou. Depois vivi como Deus foi servido. Olhe os meus dedos, olhe estas mãos... E mostrou-me as mãos grossas e gretadas, as pontas dos dedos picadas da agulha. - Não se cria isto à toa, meu senhor; Deus sabe como é que isto se cria... Felizmente, Iaiá me protegeu, e o senhor doutor também... Eu tinha um medo de acabar na rua, pedindo esmola... Ao soltar a última frase, Dona Plácida teve um calafrio. Depois, como se tomasse a si, pareceu atentar na inconve- niência daquela confissão ao amante de uma mulher casa- da, e começou a rir, a desdizer-se, a chamar-se tola, "cheia de fidúcias", como lhe dizia a mãe; enfim, cansada do meu E foi tirar o chapéu, lépida, jovial, como a menina que torna do colégio; depois veio a mim, que estava sentado, deu- me pancadinhas na testa, com um só dedo, a repetir: - Isto, isto; - e eu não tive remédio senão rir também, e tudo aca- bou em galhofa. Era claro que me enganara. CAPÍTULO 78 A Presidência Certo dia, meses depois, entrou Lobo Neves em casa, dizendo que iria talvez ocupar uma presidência de província. Olhei para Virgília, que empalideceu; ele, que a viu empali- decer, perguntou-lhe: - A modo que não gostaste, Virgília? Virgília abanou a cabeça. - Não me agrada muito, foi a sua resposta. Não se disse mais nada; mas de noite o Lobo Neves insis- tiu no projeto, um pouco mais resolutamente do que de tar- de; e dois dias depois declarou à mulher que a presidência era coisa definitiva. Virgília não pôde dissimular a repugnância que isto lhe causava. O marido respondia a tudo com as ne- cessidades políticas. E acrescentava: - Não posso recusar o que me pedem; é até conveniên- cia nossa, do nosso futuro, dos teus brasões, meu amor, por- que eu prometi que serias marquesa, e nem baronesa estás. Dirás que sou ambicioso? Sou-o deveras, mas é preciso que me não ponhas um peso nas asas da ambição. Virgília ficou desorientada. No dia seguinte achei-a tris- te, na casa da Gamboa, à minha espera; tinha dito tudo a Dona Plácida, que buscava consolá-la como podia. Não fiquei me- nos abatido. - Você há de ir conosco, disse-me Virgília. - Está doida? Seria uma insensatez. - Mas então...? - Então, é preciso desfazer o projeto. - É impossível. - Já aceitou? - Parece que sim. Levantei-me, atirei o chapéu a uma cadeira, e entrei a passear de um lado para outro, sem saber o que faria. Cogitei largamente, e não achei nada. Enfim, cheguei-me a Virgília, que estava sentada, e travei-lhe da mão; Dona Plácida foi à janela. - Nesta pequenina mão está toda a minha existência, disse eu; você é responsável por ela; faça o que lhe parecer. Virgília teve um gesto aflitivo; eu fui encostar-me ao con- solo fronteiro. Decorreram alguns instantes de silêncio; ouví- amos somente o latir de um cão, e não sei se o rumor da água que morria na praia. Vendo que não falava, olhei para ela. Virgília tinha os olhos no chão, parados, sem luz, as mãos deixadas sobre os joelhos, com os dedos cruzados, na atitude de suprema desesperança. Noutra ocasião, por diferente mo- tivo, é certo que eu me lançaria aos pés dela, e a ampararia com a minha razão e a minha ternura; agora, porém, era pre- ciso compeli-la ao esforço de si mesma, ao sacrifício à res- ponsabilidade da nossa vida comum, e conseguintemente desampará-la, deixá-la, e sair; foi o que fiz. - Repito, a minha felicidade está nas tuas mãos, dis- se eu. Virgília quis agarrar-me, mas eu já estava fora da porta. Cheguei a ouvir um prorromper de lágrimas, e digo-lhes que estive a ponto de voltar, para as enxugar com um beijo; mas subjuguei-me e saí. CAPÍTULO 79 Compromisso de gato Não acabaria se houvesse de contar pelo miúdo o que padeci nas primeiras horas. Vacilava entre um querer e um não querer, entre a piedade que me empuxava à casa de Virgília e outro sentimento, - egoísmo, suponhamos, - que me di- zia: - Fica; deixa-a a sós com o problema, deixa-a que ela o resolverá no sentido do amor. Creio que essas duas forças ti- nham igual intensidade, investiam e resistiam ao mesmo tem- po, com ardor, com tenacidade, e nenhuma cedia definitiva- mente. As vezes sentia um dentezinho de remorso; parecia- me que abusava da fraqueza de uma mulher amante e culpa- da, sem nada sacrificar nem arriscar de mim próprio; e, quan- do ia capitular, vinha outra vez o amor, e me repetia o conse- lho egoísta, e eu ficava irresoluto e inquieto, desejoso de a ver, e receoso de que a vista me levasse a compartir a responsabi- lidade da solução. Por fim interveio um compromisso entre o egoísmo e a piedade; eu iria vê-la em casa, e só em casa, em presença do marido, para lhe não dizer nada, à espera do efeito da minha intimação. Deste modo poderia conciliar as duas forças. Agora, que isto escrevo, quer-me parecer que o compromisso era uma burla, que essa piedade era ainda uma forma de egoísmo, e que a resolução de ir consolar Virgília não passava de uma sugestão de meu próprio padecimento. Ocorre-me a este pro- pósito um naturalista, - não me lembra qual, - mas era um naturalista, - em que li esta observação curiosa: "O gato não nos afaga, afaga-se em nós." Vejo que eu fazia um compro- misso de gato. CAPÍTULO 80 De Secretário Na noite seguinte fui efetivamente à casa do Lobo Ne- ves; estavam ambos, Virgília muito triste, ele muito jovial. juro que ela sentiu certo alívio quando os nossos olhos se encon- traram, cheios de curiosidade e ternura; e não direi o que senti, porque isso já ficou expresso no capítulo anterior, in fine. O Lobo Neves contou-me os planos que levava para a presidên- cia, as dificuldades locais, as esperanças, as resoluções; estava tão contente! tão esperançado! Virgília, ao pé da mesa, fingia ler um livro, mas por cima da página olhava-me de quando em quando, interrogativa e ansiosa. - O pior, disse-me de repente o Lobo Neves, é que ain- da não achei secretário. - Não? - Não, e tenho uma idéia. -Ah! - Uma idéia... Quer você dar um passeio ao Norte? Não sei o que lhe disse. - Você é rico, continuou ele, não precisa de um ma- gro ordenado; mas se quisesse obsequiar-me, ia de secretá- rio comigo. Meu espírito deu um salto para trás, como se descobrisse uma serpente diante de si. Encarei o Lobo Neves, fixamente, imperiosamente, a ver se lhe apanhava algum pensamento oculto... Nem sombra disso; o olhar vinha direito e franco, a placidez do rosto era natural, não violenta, uma placidez salpicada de alegria. Respirei, e não tive ânimo de olhar para Virgília; senti por cima da página o olhar dela, que me pedia também a mesma coisa, e disse que sim, que iria. Na verdade, um presidente, uma presidenta, um secretário, era resolver as coisas de um modo administrativo. CAPÍTULO 81 A Reconciliação E contudo, ao sair de lá, tive umas sombras de dúvida; cogitei se não ia expor insanamente a reputação de Virgília, se não haveria outro meio razoável de combinar o Estado e a Gamboa. Não achei nada. No dia seguinte, ao levantar-me da cama, trazia o espírito feito e resoluto a aceitar a nomeação. Ao meio-dia, veio o criado dizer-me que estava na sala uma senhora, coberta com um véu. Corro; era minha irmã Sabina. - Isto não pode continuar assim, disse ela; é preciso que, de uma vez por todas, façamos as pazes. Nossa família está acabando; não havemos de ficar como dois inimigos. - Mas se eu não te peço outra coisa, mana! bradei eu estendendo-lhe os braços. Sentei-a ao pé de mim, e falei-lhe do marido, da filha, dos negócios, de tudo. Tudo ia bem; a filha estava linda como os amores. O marido viria mostrar-ma, se eu consentisse. - Ora essa! irei eu mesmo vê-la. ma alusão aos nossos amores; mas palavra de honra! sentia cá dentro uma impressão suave e lisonjeira. Uma vez, porém, aconteceu-me sorrir, e continuei a fazê-lo das outras vezes. Não sei se há aí algum Hobbes ou Spinosa que explique o fe- nômeno. Eu explico-o assim: a princípio, o contentamento, sendo interior, era por assim dizer o mesmo sorriso, mas abotoa- do; andando o tempo, desabotoou-se em flor, e apareceu aos olhos do próximo. Simples questão de botânica. CAPÍTULO 83 13 O Cotrim tirou-me daquele gozo, levando-me à janela. - Você quer que lhe diga uma coisa? perguntou ele; - não faça essa viagem; é insensata, é perigosa. - Porquê? - Você bem sabe porque, tomou ele: é, sobretudo, peri- gosa, muito perigosa. Aqui na corte, um caso desses perde-se na multidão da gente e dos interesses; mas na província muda de figura; e tratando-se de personagens políticos, é realmen- te insensatez. As gazetas de oposição, logo que farejarem o negócio, passam a imprimi-lo com todas as letras, e aí virão as chufas, os remoques, as alcunhas... - Mas não entendo... - Entende, entende; e na verdade, seria bem pouco amigo nosso, se me negasse o que toda a gente sabe. Eu sei disso há longos meses. Repito, não faça semelhante viagem; suporte a ausência, que é melhor, e evite algum grande es- cândalo e maior desgosto... Disse isto, e foi para dentro. Eu deixei-me estar com os olhos no lampião da esquina, - um antigo lampião de azeite, - triste, obscuro e recurvado, como um ponto de interrogação. Que me cumpria fazer? Era o caso de Hamlet: ou dobrar-me à fortuna, ou lutar com ela e subjugá-la. Por outros termos: embarcar ou não embarcar. Esta era a questão. O lampião não me dizia nada. As palavras do Cotrim ressoavam-me aos ouvidos da memória, de um modo mui diverso do das palavras do Garcez. Talvez o Cotrim tivesse razão; mas podia eu separar-me de Virgília? Sabina veio ter comigo, e perguntou-me em que estava pensando. Respondi que em coisa nenhuma, que tinha sono e ia para casa. Sabina esteve um instante calada. - O que você precisa, sei eu; é uma noiva. Deixe, que eu ainda arran- jo uma noiva para você. Saí de lá opresso, desorientado. Tudo pronto para embarcar, - espírito e coração, - e eis aí me surge esse porteiro das conveniências, que me pede o cartão de ingresso. Dei ao diabo as conveniências, e com elas a cons- tituição, o corpo legislativo, o ministério, tudo. No dia seguinte, abro uma folha política e leio a notícia de que, por decreto de 13, tínhamos sido nomeados presidente e secretário da província de *** o Lobo Neves e eu. Escrevi ime- diatamente a Virgília, e segui duas horas depois para a Gamboa. Coitada de Dona Plácida! Estava cada vez mais aflita; pergun- tou-me se esqueceríamos a nossa velha, se a ausência era gran- de e se a província ficava longe. Consolei-a; mas eu próprio precisava de consolações; a objeção do Cotrim afligia-me pro- fundamente. Virgília chegou daí a pouco, lépida como uma andorinha; mas, ao ver-me triste, ficou muito séria. - Que aconteceu? - Vacilo, disse eu; não sei se devo aceitar... Virgília deixou-se cair, no canapé, a rir. - Por quê? disse ela. - Não é conveniente, dá muito na vista... - Mas nós já não vamos. - Como assim? Contou-me que o marido ia recusar a nomeação, e por motivo que só lhe disse, a ela, pedindo-lhe o maior segredo; não podia confessá-lo a ninguém mais. - É pueril, observou ele, é ridículo; mas em suma, é um motivo poderoso para mim. E referiu-lhe que o decreto trazia a data de 13, e que esse nú- mero significava para ele uma recordação fúnebre. O pai mor- reu num dia 13, treze dias depois de um jantar em que havia treze pessoas. A casa em que morrera a mãe tinha o n 13. Et caetera. Era um algarismo fatídico. Não podia alegar semelhan- te coisa ao ministro; dir-lhe-ia que tinha razões particulares para não aceitar. Eu fiquei como há de estar o leitor, - um pouco assombrado com esse sacrifício a um número; mas sendo ele ambicioso, o sacrifício devia ser sincero... E ficávamos. Para alguma coisa há de servir a superstição dos homens. CAPÍTULO 84 O Conflito Número fatídico, lembras-te que te abençoei muitas ve- zes? Assim também as virgens ruivas de Tebas deviam aben- çoar a égua, de ruiva crina, que as substituiu no sacrifício de Pelópidas, - uma donosa égua, que lá morreu, coberta de flo- res, sem que ninguém lhe desse nunca uma palavra de sauda- de. Pois dou-ta eu, égua piedosa, não só pela morte havida, como porque, entre as donzelas escapas, não é impossível que figurasse uma avó dos Cubas... Número fatídico, tu foste a nossa salvação. Não me confessou o marido a causa de recu- sa; disse-me também que eram negócios particulares, e o ros- to sério, convencido, com que eu o escutei, fez honra à dissi- mulação humana. Ele é que mal podia encobrir a tristeza pro- funda que o minava; falava pouco, absorvia-se, metia-se em casa, a ler. Outras vezes recebia, e então conversava e ria muito, com estrépito e afetação. Oprimiam-no duas coisas, - a ambição, que um escrúpulo desazara, e logo depois a dúvida, e talvez o arrependimento, - mas um arrependimen- to, que viria outra vez, se se repetisse a hipótese, porque o fundo supersticioso existia. Duvidava da superstição, sem chegar a rejeitá-la. Essa persistência de um sentimento, que repugna ao mesmo indivíduo, era um fenômeno digno de al- guma atenção. Mas eu preferia a pura ingenuidade de Dona Plácida, quando confessava não poder ver um sapato voltado para o ar. - Que tem isso? perguntava-lhe eu. - Faz mal, era a sua resposta. Isto somente, esta única resposta, que valia para ela o li- vro dos sete selos. Faz mal. Disseram-lhe isso em criança, sem outra explicação, e ela contentava-se com a certeza do mal. Já não acontecia a mesma coisa quando se falava de apontar uma estrela com o dedo; aí sabia perfeitamente que era caso de criar uma verruga. Ou verruga ou outra coisa, que valia isso, para quem não perde uma presidência de província? Tolera-se uma supersti- ção gratuita ou barata; é insuportável a que leva uma parte da vida. Este era o caso do Lobo Neves com o acréscimo da dúvida e do terror de haver sido ridículo. E mais este outro acréscimo, que o ministro não acreditou nos motivos parti- culares; atribuiu a recusa do Lobo Neves a manejos políticos, ilusão complicada de algumas aparências; tratou-o mal, co- municou a desconfiança aos colegas; sobrevieram incidentes; enfim, com o tempo, o presidente resignatário foi para a opo- sição. CAPÍTULO 85 O Cimo da Montanha Quem escapa a um perigo ama a vida com outra inten- sidade. E entrei a amar Virgília com muito mais ardor, de- pois que estive a pique de a perder, e a mesma coisa lhe acon- teceu a ela. Assim, a presidência não fez mais do que avivar a afeição primitiva; foi a droga de Malabar, com que toma- mos mais saboroso o nosso amor, e mais prezado também. Nos primeiros dias, depois daquele incidente, folgávamos de imaginar a dor da separação, se houvesse separação, a tris- teza de um e de outro, à proporção que o mar, como uma toalha elástica, se fosse dilatando entre nós; e, semelhantes às crianças, que se achegam ao regaço das mães, para fugir a uma simples careta, fugíamos do suposto perigo, apertando- nos com abraços. - Minha boa Virgília! - Meu amor! - Tu és minha, não? - Tua, tua... E assim reatamos o fio da aventura, como a sultana Scheherazade o dos seus contos. Esse foi, cuido eu, o ponto máximo do nosso amor, o cimo da montanha, donde por al- gum tempo divisamos os vales de leste e de oeste, e por cima de nós o céu tranqüilo e azul. Repousado esse tempo, come- çamos a descer a encosta, com as mãos presas ou soltas, mas - Então? hoje está mais fortezinho... - Qual! Passei mal a noite; o diabo da asma não me deixa. E bufava o homem, repousando a pouco e pouco do can- saço da entrada e da subida, não do caminho, porque ia sem- pre de sege. Ao lado, um pouco mais para a frente, sentava- se Virgília, numa banquinha, com as mãos nos joelhos do enfermo. Entretanto, o nhonhô chegava à sala, sem os pu- los do costume, mas discreto, meigo, sério. Viegas gostava muito dele. - Vem cá, nhonhô, dizia-lhe; e a custo introduzia a mão na ampla algibeira, tirava uma caixinha de pastilhas, metia uma na boca e dava outra ao pequeno. Pastilhas antiasmáticas. O pequeno dizia que eram muito boas. Repetia-se isto, com variantes. Como o Viegas gostasse de jogar damas, Virgília cumpria-lhe o desejo, aturando-o por largo tempo, a mover as pedras com a mão frouxa e tarda. Outras vezes, desciam a passear na chácara, dando-lhe ela o braço, que ele nem sempre aceitava, por dizer-se rijo e capaz de andar uma légua. Iam, sentavam-se, tornavam a ir, a falar de coisas várias, ora de um negócio de família, ora de uma bisbilhotice de alcova, ora enfim de uma casa que ele medita- va construir, para residência própria, casa de feitio moderno, porque a dele era das antigas, contemporânea de el-rei Dom João VI, à maneira de algumas que ainda hoje (creio eu) se podem ver no bairro de São Cristóvão, com as suas grossas colunas na frente. Parecia-lhe que o casarão em que morava podia ser substituído, e já tinha encomendado o risco a um pedreiro de fama. Ah! então sim, então é que Virgília chega- ria a ver o que era um velho de gosto. Falava, como se pode supor, lentamente e a custo, inter- valado de uma arfagem incômoda para ele e para os outros. De quando em quando, vinha um acesso de tosse; curvo, ge- mendo, levava o lenço à boca, e investigava-o; passado o aces- so, tornava ao plano da casa, que devia ter tais e tais quartos, um terraço, cocheira, um primor. CAPÍTULO 89 "In Extremis" - A.manhã vou passar o dia em casa do Viegas, disse- me ela uma vez. Coitado! não tem ninguém... Viegas cafra na cama, definitivamente; a filha, casada, adoe- cera justamente agora, e não podia fazer-lhe companhia. Virgília ia lá de quando em quando. Eu aproveitei a circunstância para passar todo aquele dia ao pé dela. Eram duas horas da tarde quando cheguei. O Viegas tossia com tal força que me fazia arder o peito; no intervalo dos acessos debatia o preço de uma casa, com um sujeito magro. O sujeito oferecia trinta contos, o Viegas exigia quarenta. O comprador instava como quem receia per- der o trem da estrada de ferro, mas Viegas não cedia; recusou primeiramente os trinta contos, depois mais dois, depois mais três; enfim teve um forte acesso, que lhe tolheu a fala durante quinze minutos. O comprador acarinhou-o muito, arranjou-lhe os travesseiros, ofereceu-lhe trinta e seis contos. - Nunca! gemeu o enfermo. Mandou buscar um maço de papéis à escrivaninha; não tendo forças para tirar a fita de borracha que prendia os pa- péis, pediu-me que os deslaçasse: fi-lo. Eram as contas das despesas com a construção da casa: contas de pedreiro, de carpinteiro, de pintor; contas do papel da sala de visitas, da sala de jantar, das alcovas, dos gabinetes; contas das ferragens; custo do terreno. Ele abria-as, uma por uma, com a mão trê- mula, e pedia-me que as lesse, e eu lia-as. - Veja; mil e duzentos, papel de mil e duzentos a peça. Dobradiças francesas... Veja, é de graça, concluiu ele depois de lida a última conta. - Pois bem... mas... - Quarenta contos; não lhe dou por menos. Só os ju- ros... faça a conta dos juros... Vinham tossidas estas palavras, às golfadas, às sílabas, como se fossem migalhas de um pulmão desfeito. Nas órbitas fundas rolavam os olhos lampejantes, que me faziam lembrar a lamparina da madrugada. Sob o lençol desenhava-se a es- trutura óssea do corpo, pontudo em dois lugares, nos joelhos e nos pés; a pele amarelada, bamba, rugosa, revestia apenas a caveira de um rosto sem expressão; uma carapuça de algodão branco cobria-lhe o crânio rapado pelo tempo. - Então? disse o sujeito magro. Fiz-lhe sinal para que não insistisse, e ele calou-se por al- guns instantes. O doente ficou a olhar para o teto, calado, a arfar muito: Virgília empalideceu, levantou-se, foi até à jane- la. Suspeitara a morte e tinha medo. Eu procurei falar de ou- tras coisas. O sujeito magro contou uma anedota, e tomou a tratar da casa, alteando a proposta. - Trinta e oito contos, disse ele. - Am?... gemeu o enfermo. O sujeito magro aproximou-se da cama, pegou-lhe na mão, e sentiu-a fria. Eu acheguei-me ao doente, perguntei-lhe se sentia alguma coisa, se queria tomar um cálice de vinho. - Não... não... quar... quaren... quar... quar... Teve um acesso de tosse, e foi o último; daí a pouco expi- rava ele, com grande consternação do sujeito magro, que me confessou depois a disposição em que estava de oferecer os quarenta contos; mas era tarde. CAPÍTULO 90 O Velho Colóquio de Adão e Caim E nada. Nenhuma lembrança testamentária, uma pasti- lha que fosse, com que do todo em todo não parecesse ingra- to ou esquecido. Nada. Virgília tragou raivosa esse malogro, e disse-mo com certa cautela, não pela coisa em si, senão por- que entendia com o filho, de quem sabia que eu não gostava muito, nem pouco. Insinuei-lhe que não devia pensar mais em semelhante negócio. O melhor de tudo era esquecer o defunto, um lorpa, um cainho sem nome, e tratar de coisas alegres; o nosso filho por exemplo... Lá me escapou a decifração do mistério, esse doce misté- rio de algumas semanas antes, quando Virgília me pareceu um pouco diferente do que era. Um filho! Um ser tirado do meu ser! Esta era a minha preocupação exclusiva daquele tempo. Olhos do mundo, zelos do marido, morte do Viegas, nada me interessava por então, nem conflitos políticos, nem revolu- ções, nem terromotos, nem nada. Eu só pensava naquele embrião anônimo, de obscura paternidade, e uma voz secreta me dizia: é teu filho. Meu filho! E repetia estas duas palavras, com certa voluptuosidade indefinível, e não sei que assomos de orgulho. Sentia-me homem. O melhor é que conversávamos os dois, o embrião e eu, falávamos de coisas presentes e futuras. O maroto amava-me, era um pelintra gracioso, dava-me pancadinhas na cara com as mãozinhas gordas, ou então traçava a beca de bacharel, porque ele havia de ser bacharel, e fazia um discurso na Câ- mara dos Deputados. E o pai a ouvi-lo de uma tribuna, com os olhos rasos de lágrimas. De bacharel passava outra vez à escola, pequenino, lousa e livros debaixo do braço, ou então caia no berço para tornar a erguer-se homem. Em vão busca- va fixar no espírito uma idade, uma atitude: esse embrião ti- nha a meus olhos todos os tamanhos e gestos: ele mamava, ele escrevia, ele valsava, ele era o interminável nos limites de um quarto de hora, -baby e deputado, colegial e pintalegrete. As vezes, ao pé de Virgília, esquecia-me dela e de tudo; Virgília sacudia-me, reprochava-me o silêncio; dizia que eu já lhe não queria nada. A verdade é que estava em diálogo com o em- brião; era o velho colóquio de Adão e Caim, uma conversa sem palavras entre a vida e a vida, o mistério e o mistério. CAPÍTULO 91 Uma Carta Extraordinária Por esse tempo recebi uma carta extraordinária, acompa- nhada de um objeto não menos extraordinário. Eis o que a carta dizia: "Meu caro Brás Cubas, "Há tempos, no Passeio Público, tomei-lhe de empréstimo um relógio. Tenho a satisfação de restituir-lho com esta carta. A diferença é que não é o mesmo, porém outro, não digo supe- rior, mas igual ao primeiro. Que voulez-vous, monseigneur - como dizia Figaro, - c'est la misère. Muitas coisas se deram