Baixe MORTE E DECOMPOSIÇÃO BIOGRÁFICA EM MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS por Augusto Rodrigues da Silva Junior e outras Teses (TCC) em PDF para Literatura Brasileira, somente na Docsity! UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS DOUTORADO EM LITERATURA COMPARADA MORTE E DECOMPOSIÇÃO BIOGRÁFICA EM MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS Augusto Rodrigues da Silva Junior NITERÓI, 2008 Livros Grátis
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3 MORTE E DECOMPOSIÇÃO BIOGRÁFICA EM MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Doutor em Literatura Comparada. BANCA EXAMINADORA __________________________________________________ Prof. Livre Docente Paulo Azevedo Bezerra – Orientador Universidade Federal Fluminense __________________________________________________ Profª. Drª. Lúcia Helena Universidade Federal Fluminense __________________________________________________ Prof. Dr. José Antônio Andrade de Araújo Universidade Federal Fluminense __________________________________________________ Profª. Drª. Marta Ribeiro Rocha e Silva de Senna Fundação Casa de Rui Barbosa __________________________________________________ Profª. Drª. Denise Brasil Alvarenga Aguiar Universidade Estadual do Rio de Janeiro __________________________________________________ Prof. Dr. Luís Martins Monteiro (Suplente) Universidade Federal Fluminense __________________________________________________ Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte (Suplente) Universidade Federal de Minas Gerais 4 Poetas e Coveiros de todo o mundo, uni-vos! 5 AGRADECIMENTOS Agradecer é uma tarefa inglória, porque implica suprimir o nome de muitas pessoas. O agradecimento é também um ato autobiográfico do meu percurso como leitor e do percurso desse texto que se protege a si mesmo, na medida exata de suas desmedidas e limitações. Reconheço que cada palavra da tese, por mais ínfima que seja, é devedora do cuidado e apreço de cada pessoa do meu caminho e não reflete a amplitude de minha dívida. Isto posto, agradeço a Brás Cubas, Quincas Borba e Joseph Knecht, pelos anos de companhia e fidelidade, defuntos tão caros desse percurso que já dura vinte anos. Agradeço, sem ordem hierárquica, a Dom Quixote e Sancho Pança, Panurge e Frei Jean, Hamlet, MacBeth e Mercúcio por tudo o que eles me ensinaram e por tudo aquilo que eles negam e afirmam. Agradeço a três mulheres, das quais sou devoto e eterno cavaleiro andante. Com amor, Medéia, Lady MacBeth e Hedda Gabler. Um agradecimento especial a Godot, o ser mais presente nos últimos anos e certamente o mais parecido com Brás e Quincas. Meu mentor e meu “Super-Id” nesse eterno caminhar. Outras pessoas também são importantes: Dom Casmurro, Conselheiro Aires; Marco Polo e Kublai Khan, Marcovaldo e Palomar; Baleia e Fabiano; Riobaldo e “Meu Tio Iauaretê”; Mattia Pascal; Vladimir e Estragon; Tomas Sabina e Tereza; Os irmãos Karamazov e Raskolnikov e tantos habitantes de meu Hades daimoniano. Agradeço a todos os autores que contribuíram para minha parca formação: Cecília Meireles, Ziraldo, Vinícius, Machado, Lima Barreto, Drummond (meu avô espiritual), Bandeira, João Cabral e Murilo Mendes. Agradeço também a J. Godoy Garcia, Ruy Espinheira Filho, Pessoa, Montale, Rilke, Else Lasker, T. S. Elliot e tantos outros que omito nesse cemitério canônico. Nessa caminhada específica, como leitor, muitas pessoas estiveram ao meu lado, e muitas delas o destino enterrou – no sentido espiritual e no sentido funéreo. Agradeço: A Patrícia “Knecht” Arruda, minha melhor amiga e leitora. Uma grande mulher e socióloga e companheira infinita no infinito de depois. Aos meus sobrinhos Matheus, Pedro, Yasmim e Amanda, a amizade e os sorrisos de cada dia. Às minhas avós Lola e Terezinha o ensino da leitura da existência e o apreço aos livros. Aos tios, pelas lições de humanidade que tanto preservo. Principalmente, Tia Fia, Tia Nen, Tio Gilson, Tio Lívio e Tia Márcia e Tio Paulo. Agradeço aos meus irmãos Áttila, Aline, Fernando e Flávio e aos primos Juliano, Ricardo, Thaís, Nicolau. De todos obtive apoio moral, paciência e o amor contínuo (que importa mais). A meus pais: leitores gauches de um admirável mundo novo. Agradeço à “Tia” Adelina (minha professora da 4ª série), até hoje amiga, confidente e professora, tão dedicada, tão sábia, e que me dará uma estrelinha pelo doutorado. Agradeço aos amigos Eduardo, Helena (Samuel e Ju), Flávia, Bruna, Letícia, Família Cavalcante, Regina Bento, Michelle e Heverson. Agradeço a todos os amigos fiéis de minha “Cidade Natal”, o Itatiaia. Agradeço ao Dr. Luís Inácio pela amizade e cultivo, acima de tudo, da verdade e da justiça. Agradeço aos professores Maria Zaíra Turchi, Ofir Bergemann, Vera Tietzmann, Luiz Mauricio Rios, Zênia de Faria, Laércio N. Bacelar, Custódia Selma Sena, Fernando C. Gil, Maria Luíza Bretas e a todos que me ensinaram a ser um professor leitor. Agradeço às pessoas que ainda habitam minha galeria afetiva in memorian: meu avô-morto José Lívio, meu avô-morto Paulo Rodrigues, meu tio-morto e artista Jorge Maia, minha Tia- Freira Zairinha e meu melhor amigo Francis Braga (o maior conhecedor da minha verdade!). Agradeço às pessoas de meu cemitério espiritual na memória respondível do silêncio: Nilson “Noslin” Carvalho, Família Couto de Brito, Manoel Souza e Silva e Jorge Avelino. 8 RESUMO O fato mais notável na vida de Brás Cubas é a sua morte. Tal peculiaridade ilustra a criação de um modelo por Machado de Assis: um defunto autor. A análise do Ao leitor discute os sentimentos e razões daquele que escreve para os vivos e verifica em que medida a autoconsciência contribuiu na construção oblíqua e dissimulada da obra, uma autobiografia que apresenta o ser em transformação e que permite avaliar a importância de outros personagens (o Pai, Virgília e Quincas Borba) na formação do biografado. Por fim, a análise de um conjunto de defuntos falantes, comprova a unidade orgânica dessa tradição, mapeia diferentes percepções carnavalescas e a expressão da liberdade discursiva. A morte romanceada dialoga com a catábasis homérica, com a sátira menipéica, com o banquete nos velórios medievais, com a alegria abundante em Rabelais, com manifestações da modernidade, incluindo o conto Bobók, de Dostoiévski (XIX). A fusão da gargalhada desfigurante com uma negatividade cética, discute o que há de mais significativo para o homem: a existênc ia. Fundindo liminarmente fantasia e realidade, as Memórias póstumas de Brás Cubas rompem com os limites do romance usual e anunciam uma linguagem galhofeira e melancólica que decompõe as eternas contradições humanas. Palavras-chave: morte, romance, narrativa autoconsciente, autobiografia, cinismo, discursos dos mortos. 9 ABSTRACT The most remarkable fact in Brás Cubas’ life is his death. Such peculiarity illustrates the creation of a peculiar method used by Machado de Assis: the deceased author. The author’s analysis of “To The Reader” debates the feelings and reasons of the one who writes to alive people and verifies how much the Self-conscience Genre contributed in the oblique and concealing construction of the work; an autobiography that presents someone in transformation and that allows people to evaluate the importance of the biographer’s formation on the other characters (e.g. The father, Virgília, and Quincas Borba). Finally, a talking deceased group of people analysis proves the organic unit of that tradition, maps out different carnival perceptions, and the discursive freedom expression. The authorial death dialogues with: epic catabasis, the menipeica satire, the feast during the medieval funerals, the abundant happiness in Rabelais, and manifestations of modernity, including the tale Bobók written by Dostojévski (XIX). The fusion of the disfigured laughing with the septic negativity, discusses what is the most significant for a human being: its existence. Converging out set fantasy and reality, “Memórias Póstumas de Bras Cubas” breaks the usual romance limits and announces the ironic and melancholic language that decomposes the eternal human contradictions. Keywords: death, novel, Self-concious Genre, autobiography, cynicism, discours of deceaseds. 10 RESUMÉ Le fait plus remarquable dans la vie de Brás Cubas a été sa mort. Cette particuliérite illustre la création d'un modèle particulier par Machado de Assis: un défunt auteur. L'analyse du prologue (Au lecteur) est en train de discuter les sentiments et les raisons de celui dont écrit pour les vivants et vérifie dans quelle mesure la conscience de ce qui se passe autour de soi (la technique de la narration différée) a contribué dans la construction oblique et dissimulée de l'œuvre, une autobiographie qui présente l'être en transformation et qui permet d'évaluer l'importance d'autres personnages (le Père, Virgília et Quincas Borba). À la fin, l'analyse de l´ensemble de défunts parlants, il montre de manière claire et évidente l'unité organique de cette tradition, il démontre les différentes perceptions et l'expression de la liberté du discours. La mort romanesque dialogue avec la catabasis homérique, avec la satire cynique chez Luciano, avec le banquet dans les veillées médiévales, avec la joie abondante chez Rabelais, avec des manifestations de la modernité, et en train de inclure le récit Bobók, de Dostoiévski (XIX). Le fusion de l'éclat de rire que défigure avec une négativité sceptique, discute ce qu´il y a de plus significatif pour l'homme: l'existence. En convergeant d´une façon préliminaire fantaisie et réalité,l'œuvre rompt avec les limites des romans usuelles et annoncent une langue moqueur, enjouée et mélancolique qui décompose les éternelles contradictions humaines. Mots clés: mort, roman, narration différée, autobiographie, cynisme, discours des morts. 13 Os estudos sobre morte fazem parte de questões muito atuais no campo das ciências humanas e da literatura. No campo da “literatura comparada”, a análise de um conjunto de obras que representam mortos falando traz uma novidade fundamental: permite perceber uma unidade orgânica, uma percepção carnavalesca do mundo e a expressão contínua de uma liberdade artística que difunde arte, discurso e finamento no mesmo espaço. Tais peculiaridades demonstram que Machado de Assis criou um modelo artístico novo nesse conjunto, pelo fato de escrever um romance em que o próprio defunto é o autor. Essa morte tagarela dialoga com a catábasis homérica, com a sátira menipéica, com o banquete alegre dos velórios medievais, com o decesso ambivalente e abundante em Rabelais e com as mais diversas manifestações na modernidade. No campo da prosa romanesca do século XIX, o conto Bobók (Dostoiévski) funciona como contraponto para a análise desse livro na periferia da existência. O trespasse acompanhado do riso e da melancolia renova o espaço de estranhamento: quando hipocondríaca adverte que tudo perece; se galhofeira, anuncia uma segunda existência no reino utópico da libertinagem transfiguradora do mundo. Em confluência, elas apontam para a efemeridade humana e confrontam o silêncio que resta depois do fim. Machado de Assis, um gênio na periferia da literatura ocidental, criou um defunto autor “que se pintou a si e a outros, conforme lhe pareceu melhor e mais certo” (ASSIS, 1992, vol. I, p. 512)1. Essa decomposição assistida de um defunto autor começou no ano de 1997, quando nos propusemos, ainda na graduação, a estudar o processo de construção de Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba sob o viés paradoxal da razão e da loucura. Para isso, mapeamos o amadurecimento progressivo de Machado de Assis e a “presença” do Humanitismo nos escritos anteriores a 1880. Trabalho limitado pelas características monográficas e imaturidade, ao menos serviu de parâmetro para a definição do objeto da tese: debruçar-se sobre o livro sepulcral em busca de seus despropósitos e senões. Por outro lado, ainda nesse percurso, estudar Italo Calvino (no mestrado) foi importante por dois motivos: o afastamento institucional do autor brasileiro e a reflexão sobre idéias e ansiedades de nosso tempo. A partir da leitura de um autor (europeu) cosmopolita, também considerado “moralista” e que preserva características autoconscientes e dialógicas, pudemos reavaliar a atualidade machadiana. O livro Palomar, de cunho biográfico, que trata da questão de “como aprender a estar morto” ecoa de forma subterrânea nessas páginas. 1 Prólogo da terceira edição. 14 Outro dado relevante para esse trabalho é a constatação de que a fragmentação dos livros machadianos passa a ser repensada a partir da década de 1970. Mais especificamente no caso de Memórias póstumas de Brás Cubas, o livro de Alfredo Bosi Brás Cubas em três versões (2006) incide nessa questão: o fato de o romance sepulcral englobar várias vertentes e organizá- las pelo viés de um defunto. Embora sejam trabalhos diferentes, sua interpretação mostra a presença da decomposição autoconsciente, biográfica e sepulcral de um personagem à roda de si mesmo, da literatura e da vida. Tentando aproximar o movimento crítico do objeto, essa tese também é multifacetada e o fio que liga os capítulos é o mesmo que liga os homens: a morte. Essa imagem do ser que sabe que morre e que continua discursando é a realização de um fato inusitado: a experienciação da ausência de si mesmo no mundo. Neste trabalho, uma memória do gênero mostra que Memórias póstumas de Brás Cubas pertence a uma tradição muito maior: a tradição cultural e literária de discursos dos mortos – uma archaica longeva da qual a sátira menipéia é uma das principais manifestações. No universo difuso e rabugento o olhar cemiterial retrata a existência passada e a existência no reino desconhecido do nada, fundindo realidade e fantasia. Com isso, mescla a gargalhada desfigurante e a negatividade cética com o que há de mais significativo: viver. Existir enquanto recordação, na lembrança dos outros e na memória coletiva, na condição autoral e humana de quem conta uma história. 15 I – ÚLTIMO 1.1 – Interações dialógicas no prólogo Definindo um caminho para a leitura das Memórias póstumas de Brás Cubas como um romance autobiográfico começaremos pelo Ao leitor. Introdução e último capítulo é um texto fronteiriço entre o ser rememorado e o defunto autor. O instante em que uma poética prenuncia-se e difunde as relações dialógicas entre Machado de Assis e sua obra. Nomes e trejeitos pertencentes à prosa ocidental anunciando uma forma que movimenta traços humorísticos e melancólicos, procedimentos e gêneros. A partir desse processo estilístico na abertura do livro e fechamento do caixão o todo é antevisto e revisto. No prólogo estão delineados os modos de angariar e enganar o leitor, as reflexões sobre a criação literária pelo autor de carne e osso e pelo Brás Cubas escritor. Os elementos da narrativa que objetivam a interação dialógica com outros escritores e destinatários hipotéticos antecipam réplicas e conjugam o cruzamento de vozes. Essa estratégia literária infiltra-se nos interstícios dos outros discursos e prevê sua inserção no cânone. Da posição que se fala há sempre um olhar crítico e movente, desdobrado da visão do outro com seus inúmeros valores articulados. Assim, a autoconsciência narrativa faz do prefácio um microcosmo que revela o macrocosmo. Na relação material e editorial sua presença justifica expectativas, filiações e negações. Os prefácios assinados pelos escritores, bem como aqueles assinados e estilizados por projeções de autor, marcaram a história dessa prática introdutória. Apresentando 18 re-significam esse pré-texto: invocação, pródromo, prolegômeno, preâmbulo, advertência etc. Sua aparente função de apêndice amalgama-se de tal maneira com o restante do livro, que, muitas vezes, impossibilita enxergar sua condição dúplice de autonomia e interatividade. Poucos textos tratam diretamente do assunto. Escolhemos O artigo sobre os prefácios de Carpeaux (1976) e o outro, um Prólogo dos prólogos de Borges (1985). A despeito da generalidade com que tratam do tema, vejamos considerações convergentes. De outra maneira, a interpretação de Bakhtin (2002a) dos intróitos de Gargântua e Pantagruel no capítulo “O vocabulário da praça pública na obra de Rabelais” mostra a importância dessa forma estilizada para iluminar a análise. Segundo o pensador russo, as idéias que constituem o interior dos livros estão prenunciadas nas suas aberturas. Além disso, mostra como concepções de mundo confrontadas com “alusões e ecos da atualidade política e ideológica” (2002a, p. 169) habitam a totalidade material. Seu caráter liminar acentua-se em grandes escritores e ilustra traços importantes na formação e concepção de gênero. Os termos prefácio e prólogo, para Carpeaux e Borges, estão mais ligados à língua que utilizam, do que ao tipo de realização que definem. Para os dois, os traços estilísticos e estruturais estão integrados organicamente ao texto e ambos constatam a dificuldade de encontrar discussões sobre o assunto justamente pelo seu caráter marginal: Verifiquei que se trata de assunto totalmente inédito. Verifiquei que não existe no mundo livro nenhum sobre esse tema. Não há fontes nem referências. Os prefácios nem sequer têm verbete nas enciclopédias de termos literários. Como vou escrever sobre isso? [...] Só a [enciclopédia] espanhola, a Espasa-Calpe, tem várias páginas (CARPEAUX, 1976, p. 25). - Que eu saiba, ninguém formulou até agora uma teoria do prólogo. A omissão não nos deve afligir, já que todos sabemos do que se trata (BORGES, 1985, p. 08). Isso demonstra que durante muito tempo o prólogo foi considerado acessório e que somente a partir do século XX ele passa a ser percebido de forma consciente como índice das contingências históricas e dos valores estéticos. No romance, eles são espaços formais de construção e tiveram muita importância na história do gênero, pois eram “um fórum público e coletivo de debate à procura dos modos de formalização estética de aspectos constitutivos de uma sociedade em mudança” (VASCONCELOS, 2007, p. 21). Na prosa, sob a máscara autoral, ou na condição de simples contador de histórias, Carpeaux o vê como uma forma de aproximação com o público e os classifica de acordo com as intenções: prefácios-justificativas, pedidos de desculpas, desafios, manifestos, sentenças etc. (diríamos que o de Brás Cubas é um prefácio-elo, que liga vida e morte). Percebe na poesia que o eu poético faz o mesmo movimento para buscar os pares literários. Sejam eles, 19 as (antigas) musas inspiradoras ou os leitores modernos que seguram seus volumes impressos: “O verdadeiro prefácio das Fleurs du mal é aquele que o próprio Baudelaire escreveu no interior do poema: Hypocrite lecteur, mon sembable, mon frère...” Essa idéia de familiaridade, também apontada por Bakhtin ao caracterizar o intróito como uma evocação do leitor faz dele um documento que conclama a autoridade: autor, pseudônimo, projeção de autor etc. Outro destaque é o texto de Samuel Jonson (1755 apud CARPEAUX, 1976) no seu Dicionário da língua inglesa. Ao invés de bajular um “mecenas” ele descreve sua condição e os seus sofrimentos para publicar. O crítico vê no relato um marco literário: o começo da era burguesa na prosa. Ao invés dos grandes senhores, o grande público. Sterne (contemporâneo de Jonson) leva às últimas conseqüências esse conflito editorial ao fazer dedicatórias irônicas e paródicas. Nos dois autores a era burguesa é representada (na Inglaterra2) e a autonomia implica a necessidade de um comprador. Isso se estende gradativamente para outros países à medida que os públicos se formavam e o livro se firmava como mercadoria e diversão. Essa necessidade de inserir “coisas antes”, desde as epopéias, passando pelo teatro grego até os gêneros medievais, sempre funcionou como artefato estilístico. Tradição parodiada no prólogo (do vol. I) das Aventuras do engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha, romance liminar entre a Idade Média e a Modernidade, o exercício da introdução ganha ares conflitantes e divertidos. Esse instrumento de devoção a algum credo ou ideologia, demonstração de respeito a algum “mecenas” ou estadista, é também um resumo do texto, uma evocação dos deuses e espaço para mostrar erudição, confrontá-la ou dissimulá- la. Borges, por sua vez, introduz uma compilação (feita por um editor) de prólogos escritos ao longo de sua carreira. É um autor canonizado que define esse exercício metalingüístico como um prólogo “elevado à segunda potência”. Mais condensado, pela própria natureza, o escritor argentino chega a conclusões semelhantes às de Carpeaux e Bakhtin e constata que nas primeiras linhas dos grandes textos o leitor mergulha em uma atmosfera verbal e estilística que se estende ao longo da leitura. Uma atmosfera que prescinde, literalmente, da atenção do outro. O primeiro exemplo, o prefácio de Wordsworth para a segunda edição de suas Baladas líricas seria uma verdadeira poética das concepções temáticas e das imagens perceptíveis ao longo da obra. Para ele, quando o texto é essencialmente literário, o prefácio torna-se uma espécie de autocrítica e ficcionalização. Desde a abertura de As mil e uma noites aos Ensaios de Montaigne ele percebe o caráter 2 Marta de Senna mostra o mesmo jogo em Tom Jones de Fielding e Viagem sentimental de Sterne. Vide “Fielding, Sterne e Machado: uma linhagem” (1998, p. 23-34). 20 liminar: separado, enquanto parte autônoma e tipográfica, mas fundida ao discurso como parte integrante do todo. Na análise de Gargântua e Pantagruel (2002a), Bakhtin mostra que desde as primeiras linhas o leitor é arrebatado por um clima verbal específico. Ele reconhece a presença da voz do autor e da “consciência polifônica” em diálogo com outros sujeitos- consciências. Destaca a constância dos gêneros orais no seu interior e como eles se estendem pelos volumes. O narrador conclama a tradição (negada ou afirmada) como um imperativo e congrega elementos da propaganda e dos pregões populares. Em todos os âmbitos, a voz atrai a atenção dos fregueses. Na galeria de introduções analisadas neste trabalho sempre ocorre essa intenção de angariar os leitores: o modo de ver os acontecimentos da trama, a imagem dos personagens, a própria imagem é um deslocamento autocrítico, aditamentos em que o sujeito que enuncia tenta fazê- lo a partir da ótica do outro. Isso quebra qualquer rigidez clássica: o escrito e o oral surgem como forças ambivalentes. No caso do intróito assinado por autores imaginários, a potencialidade dialógica amplia-se e as partes constituintes distendem sua capacidade semântica. Documento notório da publicação, o prólogo insiste que a obra é filha do mundo e um mundo concomitantemente. No caso de Brás Cubas, há uma re-significação, pois o espaço introdutório subverte as relações “normais” de uma publicação porque também é uma fronteira entre a morte e a vida. Um defunto casmurro e dissimulado escreve para leitores vivos. Motivado por essa originalidade, afirmando sua incapacidade de ter sido “um grande homem” enforma a narrativa. O caráter fúnebre (irreal) provoca o leitor (real) e move a ânsia de escrever. O estilo difuso, a conversa com o expectador, o monólogo interior e a farsa autoconsciente se inserem na prática introdutória da prosa humorística. Esse exercício milenar de preparar e induzir o leitor e de justificar algo antes do espetáculo começar, fa z desse espaço uma arena para embates ideológicos, estilísticos e ontológicos. Quando “[...] ele se questiona enquanto gênero que representa o real, questiona ao mesmo tempo o real representado” e a humanidade é posta em discussão (SENNA, 1998, p. 26). A própria condição sepulcral já é uma paródia dos intróitos. Ora repudiando, ora se aproximando, renova a intimidade e uma repulsa fingida e paradoxal demonstra o desejo de ter os cem leitores. A vontade de ser lido (coisa de vivo) e o desprezo (coisa de morto) aparente promovem a tentativa de dobrar o público à sua “tirania” burlesca e desafiadora. Por isso, em Memórias póstumas de Brás Cubas, há traços das discussões literárias travadas no País e polemizadas por Machado no artigo Instinto de nacionalidade em 1873 (ASSIS, 1992, 23 pseudônimo (baixo-corpóreo) de Alcofribas Nasier4 e Machado, com uma “máscara mortuária”, se apresentam como “fazedores” de uma literatura inovadora e zombeteira. Na sua “estréia na vida”, Brás Cubas não esconde seus anseios. Para isso, as mais diversas classes orbitam. Ele conjuga a situação nacional com filosofias e questões científico- ideológicas por meio do discurso sepulcral. Atendendo leitores especializados e ignaros, tanto o homem erudito quanto o ingênuo fazem parte da sua expectativa de recepção. Não por acaso, o livro sai primeiramente em folhetim e tem uma considerável aceitação para os padrões da época5. Mas essa recepção não impediu que Machado forjasse um prólogo 6. Essa multiplicidade de destinatários diverte e perscruta questões profundas da modernidade. Por mais que sua capacidade de revelar o enredo seja um atributo de qualidade, sua sobrevivência para as futuras gerações depende dessa proximidade prosaica e ontológica. É por meio dessa capacidade artística e não por sua fidelidade aos fatos que Brás Cubas vende sua autobiografia. As especificidades, as filiações, o estilo único no mundo e a grandeza de sua composição convidam um leitor/cliente (nem grave, nem frívolo) a percorrer suas páginas. O caráter embusteiro oferece uma resposta-paródia ruminada durante a publicação em folhetim e manda recados aos críticos do romance usual brasileiro. Lembrada nos prólogos de Rabelais, de Cervantes e do defunto, essa rede tanto pode ser boa quanto má vendedora7 de livros e o cuidado com ela é sempre necessário. No prólogo de seu Livro IV, Alcofribas Nasier “conversa” com o leitor companheiro: “Notai bem tudo. O que aconteceu boa gente? [...] convidais-me para continuar a história pantagruélica, alegando utilidades e os frutos colhidos na leitura, entre todas as pessoas de bem” (RABELAIS, 1991, vol. 2, p. 16). Por outro lado, tece comentários ácidos aos críticos (caluniadores): [...] diabos vestidos de saia; vendo todo mundo em fervente apetite de ver e ler os meus escritos, pelos livros precedentes, escarraram dentro do prato, quer dizer, censuraram-nos, desacreditaram-nos e caluniaram-nos, com a intenção de que ninguém não os visse, nem os lesse, fora suas poltronices. [...] advirto a esses caluniadores diabólicos que tratem de se enforcar no último pedaço daquela lua; eu lhes fornecerei os cabrestos (RABELAIS, 1991, vol. 2; p. 18-20). O prefácio fala com aqueles que deseja agradar e polemiza com os possíveis caluniadores da obra – que já está no seu quarto volume! O frontispício é uma resposta antes da proposição. Discurso que antevê possíveis reações discursivas, não por acaso recebe o epíteto de “ao leitor”, dando um tom de camaradagem. Movimentos prenunciados na 4 Nasier seria um nome advindo de nariz (nez) que, na cultura popular, liga-se ao pênis. 5 Vide estudo sobre o tema em Ribeiro (1996) e Guimarães (2004). 6 Conforme noticiado em um “plebiscito literário” (COSIMO, 1883), o livro teria uma posição privilegiada entre os mais vendidos, ficando atrás de Os Maias e o Primo Basílio de Eça de Queirós. 7 Vide Ribeiro: Mulheres de papel: um estudo do imaginário em José de Alencar e Machado de Assis (1996). 24 transposição da Idade Média para a Modernidade que ganham configurações à medida que o gênero se afirma no Ocidente. Nos confins literários do Undiscovered Country, Brás Cubas deseja alcançar o maior número de leitores e utiliza um interessante artifício: a citação. Traz nomes conhecidos pelo público brasileiro, como Stendhal e seu sentimento esboçado na estréia de Armance. Evoca Sterne, um representante formal do que virá nas páginas seguintes. O espírito introspectivo e irônico de Xavier de Maistre (autor de livros hoje esquecidos, mas que tiveram boa recepção na França e no Brasil da época). Essas referências na abertura indicam uma chave capciosa de leitura e mostram o sujeito de sua própria consciência afirmando sua autoria e disputando espaço com a voz de Machado. Tenta convencer, em poucas linhas, a qualidade do estilo difuso8 e a capacidade de equiparar-se e superar os avôs literários: as cabriolas sternianas, os solilóquios ambivalentes de Xavier de Maistre e o realismo caro a Stendhal. A consciência que sustenta o romance multiforme de Rabelais e Cervantes ganha nuances na periferia da história do gênero. O desrespeito despoja e aproxima. Longe da sisudez do narrador tradicional diminui a distância entre ele e o leitor e estabelece um clima de familiaridade em que os dois disputam os níveis interpretativos e axiológicos da interpretação. A carnavalização, portanto, funciona como uma crítica ética da literatura brasileira vigente e instaura uma forma paródica de representar diferentes individualidades sem um nacionalismo instintivo ou a visada monológica. Brás Cubas utiliza a fórmula anunciada criticamente por Machado de Assis na década de 1870: “O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço” (ASSIS, 1992, vol. III, p. 804). Contando a vida em sua totalidade, incluindo sua imagem de defunto tagarela, ele se torna o grande representante universal de todos os tempos e reinventa uma narrativa dos mortos nos trópicos. O intróito, como discurso liminar, aprofunda as questões contemporâneas e as carrega de passado, antevendo, em germe, o futuro. Brás Cubas vendeu também sua imagem: aristocrata e biógrafo – condições de um “homem-de-palavra” que, após a vida, “compartilha” (no plano da imaginação) com Machado de Assis, um lugar entre os grandes nomes da literatura ocidental como defunto e romancista9. 8 O estilo é zombeteiro e movimenta o enredo: “Um salto” (1992, p. 531), Bacharelo-me (1992, p. 5442), Triste, mas curto (1992, p. 544); Curto, mas alegre (1992, p. 545); “. . . . . ” (1992, p. 569), “O velho colóquio de Adão e Caim” (1992, p. 598), “Vá de intermédio” (1992, p. 620), “De como não fui ministro D’Estado” (1992, p. 627). 9 [...] uma opinião, que tenho por errônea: é a que só reconhece espírito nacional nas obras que tratam de assunto local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito os cabedais da nossa literatura (ASSIS, 1992, vol. III, p. 803). 25 Como Dostoiévski (outro autor periférico), o brasileiro não limita suas personagens ao pitoresco. Utilizando uma passagem da introdução de Problemas da poética de Dostoiévski, poderíamos dizer que ele: [...] não conclui suas personagens porque estas são inconclusíveis enquanto indivíduos imunes ao efeito redutor e modelador das leis da existência imediata. Esta se fecha em dado momento, ao passo que o homem avança sempre e está sempre aberto a mudanças decorrentes da sua condição de estar no mundo enquanto agente, enquanto sujeito. E como homem-personagem é produto do discurso, aberto como falante em diálogo com outros falantes e com seu criador (BEZERRA, 2002a, p. VIII). A autobiografia póstuma tem a natureza inconclusa e ambivalente do homem ressuscitado. Hibridizando certas tradições discursivas movimenta-se na carnavalização da prosa brasileira do século XIX. A linguagem estilizada das confissões, em que o sério-cômico é um motor desde as primeiras manifestações, rompe o curso normal da narrativa biográfica construída com “elementos basilares e típicos de toda trajetória vital: nascimento, infância, anos de aprendizagem, casamento, construção do destino, trabalho e afazeres, morte etc.” (BAKHTIN, 2003, p. 213). A carcaça roída pelos vermes e pela memória, instaura no intróito, o fim de uma vida e o fim de um livro. Mas, como todo fim carnavalizado preconiza um início, ele anuncia uma tradição de questionamento do senso de privacidade da palavra por meio da criação de categorias autônomas. O defunto autor relativiza a prática do direito de fala, cultivada em Cervantes, risível em Sterne, irônica em de Maistre. Difunde nessa genealogia humorística um inacabamento que redunda em um movimento estilístico, paródico e irônico que nunca se fecha em si mesmo. Existe uma peculiaridade nessa análise comparativa: pelo menos uma figura é consciente da sua existência em livro. Quixote e Sancho, na condição de personagens, e os outros “autores” Tristram Shandy e o Xavier de Maistre narrador fundam uma genealogia do romance difuso percebida por Machado. Não temos apenas o homem vivendo aventuras e uma voz contando uma biografia: nessa linhagem, coexistem discursivamente a parte material da publicação e a parte humana. Quixote (no plano realista) parte para o mundo (volume I) para que suas aventuras sejam contadas. No tomo II ele já é um ser de papel e sai novamente para estimular novas narrativas. Nessa ruptura entre o homem e a persona (que viria) e que já existe (no tempo da existência material da leitura) ele dedica suas aventuras à “restauração da cavalaria”. Posteriormente, suas ações relacionam-se com as do primeiro e fazem delas uma única história. Se antes, Sancho queria apenas dinheiro e uma ilha, passa a querer figurar na memória do mundo como personagem. Antes, as pessoas que os encontravam fingiam e 28 A referência a um escritor real equipara os anseios das estréias: “Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna” (ASSIS, 1992, vol. I, p. 513). Ao falar da expectativa deste escritor no prólogo de Armance, parodicamente, fica consternado e admirado. Brincando com a emoção do primeiro livro equipara sua publicação à de um homem de sua época (1783-1842) e a hesitação é recíproca: “O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez? Talvez cinco” (ASSIS, 1992, vol. I, p. 513). O defunto deseja ter muitos leitores e por isso recorda um prefácio que discute a sensação de publicar. Em 1827, o francês Henry Bayle, utilizando um pseudônimo, também vacila diante do público (nessa data, Brás perambulava pela Europa): Falando de nosso século, chegamos a esboçar dois dos principais caracteres da Novela que se segue. Talvez ela não tenha vinte páginas que se aproximem do perigo de parecerem satíricas; mas o autor segue uma outra estrada; mas o século é triste, é caprichoso, e é preciso tomar algumas precauções contra ele, até mesmo ao publicar uma brochura que, como já disse o autor, será esquecida no máximo em seis meses, como se dá com as melhores de sua espécie (STENDHAL, 2003, p. 23). Prólogo fingidor, Stendhal o assina e atribui o que vai ser lido a um “amável autor”. De forma dialógica, discute a história do romance e se posiciona categórica e contrariamente – eximindo-se do discurso do outro. O moribundo faz sua estréia sem intervenções e assume sua posição discursiva. A consciência material da totalidade da obra está implícita e seu sucesso advém do fato de já ter sido publicada em folhetim (1880). Assim, o intróito sepulcral ainda traz rastos da primeira recepção, da revisão machadiana 11 e do riso rabugento. Rompendo com a concepção cartesiana da produção literária brasileira, reticentes às mudanças bruscas de estilo, ele sabe que despertará um olhar agudo e curioso para si mesmo. Por isso, autores estrangeiros: uma estratégia para convencer a elite pensante que imitava os europeus e um possível atrativo a mais para as leitoras de novelas românticas. A consciência autônoma do defunto esboça seu grãozinho de vaidade e polemiza cinicamente com questões importantes para sua época. Depois, ele explica seu estilo [e não os seus métodos!]: “Trata-se na verdade de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado” (ASSIS, 1992, vol. I, p. 513). Lendo a si mesmo, cria uma representação fingidora, arraigada às contradições humanas discute a forma e justifica a novidade pela 11 Dentre as correções, a mais sintomática é a epígrafe melancólica da versão da Revista Brasileira (15 de janeiro a 15 de dezembro de 1880) “As you like it: I will chide no breather in the world but myself; against whom I know most faults” (“Não é meu intento criticar nenhum fôlego vivo, mas a mim mesmo, em quem descubro senões”). 29 grandeza dos outros. Imagens e formas de contar histórias que confirmam o constante devir. Atento para a representação da complexidade da mente humana, Machado percebeu o estilo Sterne e Xavier de Maistre e convocou esse espírito. Sua personalidade dividida, tema importante para o romantismo e reinventada por eles será uma das tônicas dos seus escritos. Para Frye (1957, p. 298), apesar da “negligente desconsideração com os valores da estória” os leitores da época certamente consideraram Tristram Shandy um romance. As diversas introduções e essa tentativa psicológica de divisão do ser estendem o caráter fragmentário à forma e à condição editorial do lançamento progressivo. Esse jogo entre unidades que se dispersam e se interligam nasce das linhas prosaicas de O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la mancha e de Gargântua e Pantagruel. Para Bakhtin, a experiência dessa representação humorística foi percebida por Sterne e fez dele o grande expoente de uma deformação discursiva do gênero levada ao extremo. Esse paradigma fragmentário complica as linguagens literárias e as idéias do momento e implica um exercício constante de metapoética. Do sepulcro, o autor compara a forma adotada com a de outros e conclama sua originalidade. A filiação estilística e os acréscimos ideológicos e literários demonstram a consciência do novo método e executa um apagamento da voz autoral machadiana. Essa possível superioridade e confusão do defunto autor confirmam-se pelo prólogo-réplica de Machado que estende a genealogia com os nomes de Diderot e Garret. Ao chamá-lo de meu Brás Cubas ele compara o morto, faz citação dele e insiste nas rabugens de pessimismo como fonte de seu “vinho de outros lavores”. O caráter ambivalente do autobiográfico irrompe no embate entre as consciências que assinam a obra. Um ser polemiza com o homem real. No discurso do morto, posto que não haja mais corpo – ele pretende pertencer a um sistema literário. Anuncia-se uma questão sobre o que estará em jogo no decorrer do livro: Machado, silenciado unilateralmente; e Brás Cubas, personagem, defunto e autor. Dom Quixote, em sua incessante busca de aventuras, deseja consertar um mundo desconcertado. Sua biblioteca confronta uma ordem antiga com uma nova ordem. Um homem comum, um Cavaleiro da Triste Figura, aventurando-se entre a razão de uma vida louca e a loucura de estar vivo constrói uma imagem de si mesmo nas suas andanças com seu fiel escudeiro-filósofo Sancho Pança. Tristram, o mais disperso e ousado, passa boa parte da narrativa isolado, fazendo uma anatomia melancólica da humanidade por meio do riso ambivalente. Sua figura triste e opiniática se deixa conduzir pela memória romanceada da própria vida. O homem Xavier de Maistre experimentou o cárcere e decidiu fazer da prisão uma “viagem narrativa”. O autor francês fundiu uma situação real (do autor de carne e osso) com outras imaginárias (do autor criado). Para aliviar a “melancolia da vida”, ele escreve 30 simbolicamente com a pena do escárnio e as tintas da ironia. Ápice e queda do Romantismo são representados na novela que, por sua vez, parodia e dialoga com um outro livro de Sterne – Viagem sentimental à França e à Itália. Enfim, formas e temas aproximam-se naquilo que disfarçam: ser e não ser personagens autônomos, ou meros homens de papel. O riso e o sério caracterizam essa linhagem autoconsciente. Com esses caracteres, o defunto explica o seu estilo: “Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio.” Ao enunciar sua poética ele condiciona ardilosamente o leitor. A peculiaridade é essa constante renovação do estilo. Convocando o leitor e evocando diálogos, trocam e dissimulam fontes, emendam para superá- las, citam como se fosse “de memória”, parodiam-nas no andamento das ações. Muitas cabriolas surgem nos movimentos das entreglosas e dispersões cínicas. Nos autores, o caráter destronante das emendas é incisivamente discutido. Apesar de o defunto autor ter trazido os nomes de Sterne e de Maistre como seus avôs formais, a consciência criadora reivindica a originalidade sob a máscara mortuária. Enquanto escrevem o “último capítulo”, os seres autoconscientes utilizam elementos críticos sobre suas obras e sobre o cânone que elegem ou negam. A recepção é aliciada desde o início. Depois da filiação a uma memória universal, o conúbio paradoxal entre o riso e melancolia, a auto-afirmação da condição que faria dele “um autor particular” na conversa objetiva com os vivos: “Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei- lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião”. O defunto autor pensa o estilo e a sua recepção, acrescenta um novo paradoxo e cria categorias de críticos e posturas diante da inovação. O finado, ao trazer escritores, remete à construção polifônica. Ao evocar imagens equivalentes, traz as idéias de um outro em quem ele se vê. Neste cartão de visitas, apresenta-se e convida o público a entrar “nos meandros da narrativa e a ler da perspectiva da interação das vozes” (BEZERRA, 2005b, p. 197). Enunciados plenos e distantes no tempo e no espaço possibilitando personagens- indivíduos que não se deixam modelar pela realidade. Extrapolando o realismo, infundindo grandeza nos atos e a autoconsciência nas malhas da fantasia geram estilo entrecortado por parâmetros em estado constante de litígio. No segundo parágrafo, o defunto discute uma poética do Ao leitor: “Mas eu ainda espero angariar a simpatia da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo” (ASSIS, 1992, vol. I, p. 513). A receita se estenderá: capítulos curtos que se ligam por quebras volúveis, comentários serio-cômicos e “coisas que se dizem melhor calando”. Ele 33 A articulação promocional alcança seu ápice: o nome aparece no título figura entre outros escritores reconhecidos e, no final, fulgura como marca de pacholice. Insiste também na repetição desse nome no título, na capa, na dedicatória e no interior do prólogo. Caso o leitor esteja relendo o prefácio, se lembrará do desejo que o personagem teve antes de morrer: inventar um “emplasto” que estampasse publicamente o seu nome. O emplasto, um influxo da vontade de existir e símbolo de seu caráter pachola e inútil. Se morrer é silenciar-se, ele convida o leitor a tirar suas próprias conclusões e a aceitar a originalidade dessa voz sepulcral – por mais absurda que seja. Cabe ao outro aceitar o pacto, ou sujeitar-se às leis da razão. Machado funde formas ant igas e modernas de fantasia e realismo deixando que o defunto exponha sua posição difusa: no primeiro parágrafo fala do que vai ser lido; no segundo, basicamente refere-se ao prólogo – e começa naturalmente. Depois, no primeiro capítulo, Óbito do autor (ASSIS, 1992, vol. I, p. 513) retoma a idéia anunciada no título, complementa o assunto do Ao leitor e insiste no fato de as memórias serem póstumas. Evoca novos nomes e obras: Moisés (e o Pentateuco), Hamlet (e o Undiscovered Country – monólogo do terceiro ato). Depois, em capítulos caóticos (menos para a releitura) narra seu enterro, seus últimos momentos (conscientes e delirantes), tudo isso para mostrar para o leitor a grandeza de sua façanha e a originalidade da obra. Ao longo do livro, fará o exercício de rir de si e dos outros mesmo, constatando a miséria humana, suas ilusões e o apego à vida. Feitas algumas considerações sobre a natureza do prólogo e sobre o Ao leitor de Brás Cubas, vejamos as diferentes formas da genealogia difusa. Seguiremos de Machado de Assis a Miguel de Cervantes, passando por Xavier de Maistre e Laurence Sterne. Efetivaremos uma viagem à roda dos prefácios, que parte do final do século XIX à transição dos oitocentos (com o francês). Depois, do século XVIII, em pleno curso (com Sterne), para chegar, finalmente, ao século de Cervantes (XVII). Partindo do seu discurso sepulcral à gênese do romance moderno confirmaremos o fato de o prólogo não ser apenas um discurso sobre si mesmo, mas um revelador dos elementos do romance, dos atores envolvidos, do gênero e de pensamentos sobre o mundo. Nas obras comparadas, o homem está em conflito com a realidade e consigo mesmo. No âmbito literário, na conjugação do desapego e do passional, temos personagens que querem ser autores e seres de livros – levando a condição de inacabamento ao extremo. O que faz deles pertencentes à mesma linhagem é o humor dialogando com a melancolia. Neles, a polifonia das opiniões e dos sentimentos, sempre em contradição, diverte não só pelo riso, mas pela miséria humana. 34 1.2.2 O homem à roda de si mesmo: viagem sem sair do lugar O livro de Xavier de Maistre conta a história de um homem que passou 42 dias preso em um quarto. Dividindo com o leitor a falta do que fazer, de forma imaginativa inventa uma viagem. Faz de cada dia um capítulo e em cada capítulo descreve os movimentos de um homem e seus devaneios diante da impossibilidade de sair. Com memórias de um passado recente, em contato com um serviçal e uma cadelinha, desenvolve teorias para rir da sua situação e atacar a sociedade do seu tempo e a mediocridade da alma humana, ambígua e peculiar. Ao se referir à sua capacidade narrativa, o personagem-narrador de Viagem à roda do meu quarto diz nas primeiras linhas do livro: “Como é glorioso abrir uma nova carreira e aparecer de repente no mundo sábio, um livro de descobertas na mão, como um cometa inesperado que cintila no espaço!” (DE MAISTRE, 1989, p. 05). Sua novela não tem um prefácio separado do todo. Mas sua maneira peculiar e seus arroubos introdutórios ecoam pelas páginas posteriores: o humor, a ironia, o tédio e a autoconsciência são matérias recorrentes. No conjunto, nunca sabemos, ao certo, onde reside a ironia ou a melancolia – elas se equivalem na viagem-literária. O humor e os volteios autoconscientes são construídos com paradoxos. A mania de grandeza e o caráter encomiástico se fundem à menção metalingüística de sua “estréia”: “Não, não conservarei mais o meu livro in petto; aqui o tendes, senhores, lede” (DE MAISTRE, 1989, p. 05). Note-se, criação e publicação registradas no início serão intervenções no interior da obra. O auto-elogio congrega o riso do feirante e a valorização do que foi escrito. Mas o aviltamento nunca vem sozinho. A hesitação enforma a consciência do autor e as implicações do instante de publicação. Isso dá um caráter de atualidade ao texto e reafirma que a língua dos prefácios é tipicamente humanizada. A perplexidade leva ao riso, dinamiza a relação verbal com uma audiência e disfarça a persuasão. As primeiras linhas tornam-se um recurso liminar porque parodiam e mascaram os fundamentos do pensamento sério e colocam em xeque o senso privado da palavra. Dialogando com as verdades, com os caminhos para estabelecê- las (ideológicas e literárias) introduz-se de forma ousada, livre e alegre, em um campo diametralmente oposto à hierarquia (BAKHTIN, 2002a p. 144-145). As imagens controversas e o tom divertido de oralidade (familiar) na Viagem nos remetem ao tom das Memórias que já no seu início apresenta seu escrito “mais galante e mais novo” pela condição sepulcral. A “novidade” é uma marca (registrada) do que se vai ler, 35 espécie de estímulo àquele que seguirá as próximas páginas e idéia fixa dos autores que sonham com a originalidade. A emoção esboçada e irônica de dar o volume ao público é um favor à humanidade. Essa consciência da qualidade cínica e encomiástica do produto, assimilada pelo defunto, dialoga com o sonho do emplasto. Ao longo do livro, o narrador de Xavier de Maistre aponta seu livro como panacéia para aliviar o tédio da humanidade. Nos dois ela transparece como uma herança de Sterne: “As observações que fiz e o prazer contínuo que experimentei ao longo do caminho davam-me o desejo de torná- la pública; a certeza de ser útil me convenceu a fazê- lo” (DE MAISTRE, 1989, p. 05). Diante da condição de enfado prolongado, os proscritos escrevem saudosos de humanidade. A suposta apreensão, anterior à decisão de publicar (o que temos em mãos!), teria sido estimulada tão somente pela capacidade de divertir e “curar”: Há tantas pessoas curiosas no mundo! Estou convencido de que gostariam de saber por que a minha viagem à roda do meu quarto durou quarenta e dois dias em vez de quarenta e três, ou de qualquer outro espaço de tempo. Mas como hei de explicá-lo ao leitor, se eu próprio ignoro? Tudo o que posso assegurar é que, se a obra é por demais comprida para o seu gosto, não dependeu de mim torná-la mais breve; pondo de lado toda vaidade de viajante, ter-me-ia contentado com um capítulo (DE MAISTRE, 1989, p. 08). A publicação demarca sua posição única no mundo e reinventa o período e o espaço da viagem-escrita. A certeza irônica das especificidades do estilo e o caráter paradoxal do homem levam o narrador a mostrar como pensamentos tristes e alegres condensam “o teatro variável onde o gênero humano representa alternadamente dramas interessantes, farsas risíveis e tragédias apavorantes” (DE MAISTRE, 1989, p.12). Falando “a uma alma sensível” o defunto evoca a mesma imagem: “meu cérebro foi um tablado em que se deram peças de todo gênero, o drama sacro, o austero, o piegas, a comédia louçã, a desgrenhada farsa, os autos, as bufonerias, um pandemônio, alma sensível, uma barafunda de coisas e pessoas” (ASSIS, 1992, vol. I, p. 555). Ambos, criando um horizonte de expectativas, brincam com as mentes ávidas pela mistura de situações “terríveis e deliciosas”. Essa consciência da personalidade dividida preconizada por Pascal será latente nas Memórias póstumas: Quando Machado fala em "maneira livre", está pensando em algo praticado por de Maistre: narrativa caprichosa, digressiva, que vai e vem, sai da estrada para tomar atalhos, cultiva o a-propósito, apaga a linha reta, suprime conexões. Ela é facilitada pelo capítulo curto, aparentemente arbitrário, que desmancha a continuidade e permite saltar de uma coisa a outra. Em vez de coordenar a variedade por meio de divisões extensas, o autor prefere ressaltar a autonomia das partes em unidades breves, que ao facilitarem o modo "difuso" enriquecem o efeito do todo com o encanto insinuante da informação suspensa, própria do fragmento (CANDIDO, 1996). 38 (refiro -me aos que moram nos quartos) que possa, depois de ter lido este livro, recusar sua aprovação à nova maneira de viajar que introduzo no mundo (DE MAISTRE, 1989, p. 06). A figura do narrador solitário (afastado da humanidade) que analisa consigo mesmo a natureza do homem e a redefine, enquanto descreve a sua viagem (na vida) e dialoga com o leitor, retrata a família autoconsciente da prosa moderna. Desde que o ser “subterrâneo” tenha um reduto para se isolar, seja uma cela, um quarto ou um túmulo, o sistema da viagem solitária é acessível a todos. Na solidão, a memória cria artifícios para uma dinamicidade espaço-temporal sem nunca perder a respondibilidade pública. Discursos ecoam na mente e a viagem-escrita é imaginada com as palavras do outro (como diria Borges). A “imensa família dos homens” renova as formas de lidar com a realidade e isso aumentou, no século XIX, o peso da melancolia. Livre das exigências clássicas dos salões e sob os auspícios da prosa, o “desocupado” mescla as ilusões que irrompiam no teatro social com a privação da platéia. Condição ambígua que gera um ranço sarcástico e um orgulho cínico: o desrespeito à ordem burguesa está condicionado pela impossibilidade de participar dela. Ambos atacam todas as dimensões da vida, como nas Memórias do subsolo de Dostoiévski (2000), e distribuem conotações de inconseqüência e marginalidade – mesmo com o passado ligado aos anseios da sociedade em que viviam. O desacato é a diversão do narrador que se volta até contra si mesmo. A saudade do cotidiano é recalque. A dualidade do homem e da besta cria um monstro satírico que sonha sair da condição de isolamento. O defunto consegue escapar do silenciamento mortal. Nos interstícios da saudade de tudo que poderia ter sido e que não foi é latente a revisão dos acontecimentos e uma versão estilizada de si mesmo – daquele que desejo que o outro veja. Mas a confissão e a pausa conotam conflitos com a realidade lembrada: “meus senhores, diverti-vos tanto quanto outrora no baile e na comédia? – pela minha parte, confesso, há algum tempo que todas as assembléias numerosas me inspiram um certo terror” (DE MAISTRE, 1989, p. 50). Quem diz isso é o “Xavier” preso. Nas recordações do liberto, vemos o retrato de um libertino, dado a salões e duelos. Para os narradores autoconscientes os “sistemas filosofantes” forjam elementos para a crítica social, para a melancolia e para o riso paródico. Abandonados e apegados à condição de isolamento, longe “da pequenez e perfídia dos homens”, engendram suas aventuras convocando seus iguais a segui- los por caminhos imaginários. O leitor projetado é energia criadora discursiva e companhia para os momentos de solidão. Nos solilóquios inspirados, na biblioteca espiritual selecionada, os seres inquietos enriquecem ainda mais a obliqüidade 39 humana: “seguiremos por pequenas jornadas, rindo, ao longo do caminho, dos viajantes que viram Roma e Paris” (DE MAISTRE, 1989, p. 07). Além do dialogismo com Viagem sentimental de Sterne, o convite para as “aventuras” e “opiniões” por uma nova maneira de segui- las: uma narrativa descosturada, um texto que esconde o enredo e a postura (estética) fora do padrão elevado e realista. Fugindo dos anseios do gênero, as inovações também promovem um olhar diferente para o teatro social (suas regras) e questionam valores. O eu rompante provoca e convida para momentos e movimentos saborosos (SENNA, 2002, p. 5-8). Na filiação à Sterne, o escritor francês evoca a possibilidade de empreender essa mesma divertida meta-viagem literária. Na história de Yorick, anunciada e só em parte realizada, o viajante não passa dos arredores de Paris. Em de Maistre, não há andanças no sentido literal; tudo é passado. O transporte se dá pela pena: Farei ziguezagues, e percorrerei todas as linhas possíveis em geometria, se a necessidade o exigir. [...] A minha alma é de tal modo aberta a toda sorte de idéias, de gostos e de sentimentos; recebe tão avidamente tudo o que se apresenta!... E por que haveria ela de recusar os gozos que estão dispersos pelo difícil caminho da vida? [...] Não há nenhum mais atraente, no meu entender, do que o de seguir a pista das próprias idéias (DE MAISTRE, 1989, p. 10). Guiados pelo “destino fatal” que mitifica essas figuras tristes e alegres, configura-se uma imensa família autoconsciente. Antonio Candido coloca isso da seguinte maneira: Parece claro, portanto, que houve impregnações de Xavier de Maistre na virada narrativa de Machado de Assis, como este sugere na citada nota ao leitor. Talento de envergadura infinitamente superior, ele percebeu que na modesta e encantadora Viagem a teoria do "outro" era um recurso ameno para ilustrar sem pedantismo a complexidade e as contradições do comportamento e da mente. Na sua obra, o automatismo, aqui e noutros lugares, se engrena com um tratamento muito mais rico e expressivo das divisões do ser, mas nem por isso é menor a dívida em relação ao oficial escritor que hoje poucos consideram e alguns chegam a desprezar, como André Gide em certo trecho do Diário, onde (como se estivesse pensando com acrimônia em Machado de Assis) escreve que nada o irritava mais do que certo espírito convencional "gênero Sterne e Xavier de Maistre" (CANDIDO, 1996). Infiltrações de “comportamento e da mente” compartilhadas. Ambivalências internas latentes nos discursos e nas questões estilísticas ligadas à existência. De Maistre, retoma as andanças quixotescas “sem sair da biblioteca”. Opções espirituais e estilísticas revelam o estilo e o personagem. O voltar-se para si, diferente do Quixote que necessitava de palco e platéia para suas aventuras, se realiza num espaço de reclusão em que o idílio é trazido à baila. No pequeno espaço de onde se enuncia a limitação se auto-realiza a viagem que serve ao romance opiniático e sentimental. A memória do proscrito alcança o mundo em sua extensão e trabalha, pelo discurso, no plano das formas e transcende uma psicologia 40 individual. Das contingências, brotam a visão de mundo e a forma literária – que dá uma impressão de verdade por sua coerência interna intimamente arraigada ao todo da obra. Em Sterne, de Maistre e Machado a visão divertida e rabugenta do mundo, se não é permitida na concepção desolada do individualismo, ocorre nas projeções imaginativas de homens que viajam sem sair do lugar. Segundo Bakhtin, o tempo biográfico, em Rousseau, dialoga com o tempo cíclico e, nesse conjunto, o tempo da historicidade real dilui-se (sem desaparecer) na humanização e objetivação do espaço (2003). Na novela francesa, o ser afastado analisa a sociedade com os olhos de quem já não sonha em ser herói. Na busca da grandeza autoral coexiste toda uma gama de mediocridade, ilusão e auto-reconhecimento. Por isso o riso é sempre amargo. O otimismo está sempre nos escombros do escárnio e nasce da contradição de quem é cético e que não deixa de emitir suas opiniões. Brás Cubas ainda aqui será mais radical com a imagem do subterrâneo. A solidão do “quarto” e fragilidade sterniana, ou o incapaz de estar entre os homens em de Maistre, com arroubos racionais e sentimentais, aproximam-se das imagens de loucura em Cervantes e da morte em Machado. Nesse caso, o idílio renova-se no fim do século XIX. Escrevendo em um país de constituição idílica, em que o urbano quase cabe numa casca de noz, a solidão é levada ao extremo: do vinho anterior, à reclusão do undiscovered country surge uma possibilidade de ser fazer ouvido. O homem comum, burguês-aristocrata que teve lá seus onze ou dez amigos, um número considerável de ligações (sociais e afetivas) e grau de conhecimento (desdenhado e louvado), vê-se, de repente, “sendo nada”. Como se “as gentes” tivessem esquecido o seu nome – que é o fim dos fins, ele abstém-se da nomeada e movimenta a natureza contraditória. Ser um, quando solitário, e ser outro, diante da sociedade levaram esses autores imaginários, na limitação do isolamento (espaço infinito de recordação) a ouvirem os ecos (do mundo) do lado de fora (de seu espírito): Encantador país da imaginação, tu que o Ser benfazejo por excelência entregou aos homens para os consolar da realidade, é preciso deixar-te ? é hoje que certas pessoas de quem dependo pretendem restituir-me à liberdade. Como se a tivessem tirado! Como se estivesse no seu poder arrebatá-la de mim um só instante, e impedir-me de percorrer à minha vontade o vasto espaço sempre aberto diante de mim! ? Proibiram-me de percorrer uma cidade, um ponto; mas deixaram-me o universo inteiro: a imensidade e a eternidade estão às minhas ordens (DE MAISTRE, 1989, p. 77). No elogio da solidão, da força discursiva do subterrâneo imaginário, restam póstumas memórias do apego à vida. Mesmo o mais pessimista dos seres, quando se põe a contar uma história, contraditória e desgraçadamente humana, deseja ser visto e ouvido, crente de que o autor, em si mesmo, é tudo. 43 As artimanhas, extensivas a outros personagens, discutem o direito à voz na literatura. Evocando a cumplicidade do leitor desde as primeiras linhas, sacrifica a narrativa linear pela vontade de conversar. O embate de vozes (Pai, Tio e Trimm) prepondera sobre o que seria o tema principal: a história do cavaleiro. Assim, no intróito, o significado dos termos “vida e opiniões” constituem-se de forma litigiosa. No primeiro rasgo, os três capítulos objetivos são comentados e prenuncia-se o caráter que será dado ao todo – pensar enquanto escreve. A partir de sua experiência ordinária e única no mundo, Tristram deseja chocar e surpreende atribuindo o fato de tergiversar à curiosidade do leitor. Dissimula as próprias vontades que darão o tom da autobiografia e, antes que seu livro se transforme em uma novela de sala, “como o temia Montaigne em seus Ensaios” (escritos da experiência), anuncia a sistemática violação do tom progressivo. Prevê “shandianamente” os curiosos habituados a prosas de outra monta e a herança da sátira luciânica (REGO, 1989), o anseio de dominar o leitor (SENNA, 2003), a tirania enfática do narrador (ROUANET, 2007) e a manipulação das citações de forma profana, desprovida de qualquer solenidade (Idem, 2003), Tristram introduz marcas de fala. A vontade de monólogo (autoconsciente) convoca e se rende ao público: [...] estou deveras contente de ter começado a história de mim mesmo da maneira por que o fiz; e de poder continuar a rastrear cada particularidade dela ab ovo, conforme diz Horácio. Horácio, bem o sei, absolutamente não recomenda essa maneira de narrar. Mas o cavalheiro em questão falava tão-só de um poema épico ou de uma tragédia; (esqueci qual) – ademais, se assim não fosse, cumprir-me-ia pedir perdão ao senhor Horácio; pois, no escrever aquilo a que me dispus, não me confinarei nem às suas regras, nem às de qualquer homem que jamais vivesse (STERNE, 1998, p. 48). A negação do ideal clássico, também esboçada por Cervantes quando faz referências às poéticas e a Aristóteles, confirmam o embate entre o épico e o romance moderno nascente. O gênero aponta a força prosaica ambivalente e dialógica que o move. Presente em uma archaica, o estilo ébrio difunde sua poética. O nome de Horácio mostra que as “poéticas clássicas” de nada servem para a prosa moderna. Com isso, citações, negações e glosas compõem o movimento autoconsciente e abolem o predomínio de uma linguagem única (o discurso enobrecido da cultura oficial). Depois de aproximar seu livro com o de Montaigne (prosaístico e autobiográfico) na negação dos ideais clássicos, ouve e reconhece os ecos do passado, mas impõe, no presente do discurso, o princípio organizador da “sua originalidade”. Originalidade, como objeto de propaganda, evocada também por Brás Cubas. A cada linha, um nome comprova a consciência de uma longa genealogia de grandes nomes. 44 Corroborando ou negando o desejo de estar entre eles, os nomes se equivalem e o desafio da herança literária e do enobrecimento da fala (transformada em escrita) confirma o que Tristram Shandy explicita: negar o hábito lógico de ler, pensar e escrever sempre em linha reta. O direito à voz, como na vida, é muitas vezes retratado em ziguezague porque a própria realidade discursiva funciona assim. Os personagens, além de quererem ser parte de livro, querem ser únicos. Mais uma vez Machado será mestre não apenas citando fontes, mas fazendo relações inesperadas entre elas (SENNA, 2003). Nesse sentido, o “Bruxo do Cosme Velho” confrontou uma prática prosaica linear no Brasil (incluindo seus quatro livros anteriores). Até então, só havia romances dentro de um padrão (começo-meio-fim) de apresentação dos eventos. Mesmo que Brás Cubas, a partir do capítulo X, conte sua história a partir do nascimento, a autoconsciência faz da seqüência temporal um jogo: Este narrador caracterizado como fingidor cumpre a sublime função de transmissor credenciado de todos os sentidos culturalmente consentidos pelos diferentes estratos sociais de uma comunidade histórica. Não apresenta nenhuma ideologia em particular. Pelo contrário, representa a disputa das ideologias (SOUZA, 1998, p. 65). As interrupções movimentam o tempo lógico e cronológico da ordem linear, mas nunca impedem que os anos do biografado passem. A pausa para o comentário, para a conversa, para a elaboração de teorias, rompe com a estrutura tirânica do discurso monológico. A volubilidade é um engodo, pois o narrador deseja ter os “cem leitores de Stendhal”. Para isso escreve um romance que difunde “ideologias” e personalidades em luta. Logo, as fronteiras entre ficção e realidade se alargam, posto que as opiniões sobre o estilo polemizam com o que aparentemente seria mera reprodução de convenções reais. Os aparentes reflexos de uma ordem ganham novos sentidos: uma vida qualquer, de um homem qualquer, numa época e lugar qualquer. O estranhamento, a conjunção de citações e a expectativa de uma narrativa linear servem para divertir e distrair. Sterne seria o verdadeiro narrador volúvel, pois ele radicaliza as matérias vitais. Enquanto Brás conta sua vida e algo depois dela, Tristram Shandy não passa da infância: a matéria digressiva ocupa uns oitenta por cento do livro, ao passo que o biográfico reside em vinte por cento. A trajetória do cavalheiro e sua biografia transformam-se no que ele pensa enquanto escreve. A digressão passa a fazer parte do todo biográfico. Aquele todo que pode ser datado em uma lápide ganha uma faceta ambivalente ao ser uma vida narrada. Distensão psicológica e temporal de períodos curtos da existência. Nas fendas, são lançadas questões sobre o gênero, sobre possíveis leituras e, principalmente sobre o homem. De forma polêmica e irreverente as digressões miscelânicas estão ligadas à personalidade do digressionador (PAES, 1998, p. 31). 45 Entre filosofias e filosofices antigas e de suas respectivas épocas, os seres autoconscientes flutuam de trapézio em trapézio, ora dando os próprios salto, ora lançando os leitores no ar como esferas pascalianas. A citação shandiana conjuga vaidade e ironia. Ao trazer a referência, exibe a erudição. Ao dizer que esqueceu quem ele realmente citava (método utilizado por Machado14), desafia a autoridade do citado. A emenda situa-se no campo de atuação da memória oralizada característica da prosa. Utilizando a bivocalidade da palavra, assimila e transforma os mais variados estilos. Nos interstícios pensantes, elas ganham um caráter carnavalizado que deixa transparecer o discurso social comunicante e a especulação individual. Se aquele que cita deseja dar maior destaque às suas idéias, muitas vezes o discurso alheio funciona como objeto funcional da ficcionalidade. Tristram Shandy tem consciência da liberdade característica do gênero e não se prende às regras, substituindo-as pelo riso, pela libertinagem e suas vontades sentimentais. As opiniões, anunciadas no título, são prenúncios paródicos do romance sentimental. A fenda, no universo de papel, é abertura para as opiniões que participam de uma narrativa em moto- contínuo: o autor, o autor do discurso citado, o personagem que interfere no discurso do narrador e o leitor: todos com a mesma força discursiva: Àqueles, todavia, que preferem não remontar tão longe nestas particularidades, o melhor conselho que posso dar é pularem o restante deste capítulo, pois declaro antecipadamente tê-lo escrito apenas para os curiosos e os indiscretos. _______________________Feche-se a porta________________________ (STERNE, 1998, p. 48). O jogo estilístico de incitar a pular o capítulo e a categorização de tipos de leitores (“curiosos e indiscretos”) remete-nos diretamente às Memórias póstumas15. Esses recursos (utilizados por de Maistre) foram depois recriados por Machado que, inclusive, retoma o uso do recurso tipográfico que “abre janelas e fecha portas”. São piparotes que afastam e aproximam o leitor. Convida a seguir os capítulos, a voltar e reler, a intercalá- los: “Em que aparece a orelha de uma senhora; O delírio; Naquele dia; A uma alma sensível” etc. Essa artimanha shandiana de “pular o capítulo” no corpo do texto, como se o leitor o tivesse feito, o leva de volta ao “retilíneo”. Assim, retoma a relação contingente do pai com a mãe até a próxima digressão e configura o tom do livro. A brincadeira com as expectativas do outro desafia a atenção diante do enredo e a capacidade de acompanhar o ir e vir 14 Os importantes estudos de Marta de Senna (2003) sobre o trabalho da citação em Machado de Assis apontam e discutem o papel sofisticado dessa ferramenta: as alusões e zombarias nunca são detalhes periféricos da escrita. 15 O dialogismo com Sterne é profuso. Vide: E. Gomes (1949); Marta de Senna (2002); Sérgio Rouanet (2007). 48 lembrar que é um vendedor e indica seu editor para a negociação (inserindo-o no literário como energia enformadora): Milorde: Sustento ser isto uma dedicatória, não obstante sua singularidade em três grandes respeitos: matéria, forma e lugar; rogo-vos, portanto, aceitá-la como tal e permitir- me depô-la, com a mais respeitosa humildade, aos pés de Vossa Senhoria, -- quando sobre eles estiverdes – o que podereis fazer quando vos agrade; --- e quando, senhor, haja ocasião para tanto, e, acrescentarei, para o melhor dos propósitos também. Tenho a honra de ser, Milorde, De vossa Senhoria o mais obediente, O mais devotado E o mais humilde servo, TRISTRAM SHANDY (STERNE, 1998, p. 54) “Criatura irônica” faz com que se cumpra metalinguisticamente uma função contrária ao hábito: ela não é oferecida a alguém especificamente. O personagem autor assina sua meta- dedicatória, deturpa sua matéria, rompe com a forma e com o lugar tipográfico e usual dela. Reafirma seu nome, como os “egocêntricos” fazedores de autobiografia e utiliza a quebra do curso linear para discutir os hábitos literários de várias épocas. Aproveita o ensejo para escarnecer a longa casta de vaidosos “mecenas” que têm como hobby-horses a compra de coisas que estampem seus “doutos” nomes. Assim, as partes constitutivas enformam uma espécie de carnaval em que o indivíduo, na solidão do momento criativo, dialoga com o outro festivamente. Da consciência aguda do isolamento, como diz Bakhtin (2002a), ocorre a transformação do humor em jogo. Mas deixa de ser apenas alegre e ganha um caráter ontológico. A palavra “abre-se” em leilão para quem quiser comprá-la. Para “proteger a si mesmo” da calúnia, vende publicamente o “corpo do livro” e não às escondidas. Conclui a passagem com uma “dedicatória à Lua”, trazendo difusamente (learning run mad) vozes de “personagens rabelaisianos” de Voltaire: [...] e na próxima edição se cuidará que este capítulo seja expungido do livro, passando os títulos, distinções, armas e boas ações de milorde a figurarem no começo do capítulo anterior. [...] O restante dedico-o à Lua, que, diga-se de passagem, de todos os PATRONOS ou MATRONAS que me ocorrem, tem o maior poder de pôr meu livro a caminho e fazer o mundo correr feito doido atrás dele. Cara Deidade, Se não estais demasiado ocupada com os assuntos de Cândido e da senhorita Cunegunda, -- tomais Tristram Shandy também sob vossa proteção (STERNE, 1998, p. 56). Como vendedor, propõe ao comprador que negocie seu hobby-horse diretamente com seu editor e insere novamente as instâncias da publicação em todos os níveis: escrita, edição, compra e leitura. Além disso, filia-se ao mesmo gênero das novelas filosóficas de Voltaire, o 49 que reafirma as vozes francesas de Sterne e a atitude “benevolente” de permitir que troque o seu livro pela leitura dos assuntos de Candide e Cunegundes18. Demonstrando suas preferências e avôs literários, o jogo de autoria e publicação é levado ao extremo por Sterne. Segundo José Paulo Paes (1998b), ele tornou-se um ícone da literatura, oferecendo inúmeras possibilidades e libertinagens estéticas para o campo da prosa. Além dos autores comparados, Garret e Diderot, posteriormente tivemos Pirandello, James Joyce, Guimarães Rosa e Italo Calvino aproximando-se dessa vertente autoconsciente. Passemos ao prefácio que funciona como poética e dedicatória. Embora o comprador imaginário ceda lugar a uma figura real, não deixa de ser uma chave de interpretação: Ao ilustríssimo Sr. Pitt Senhor, Jamais pobre Criatura dedicante pôs menos esperanças em sua Dedicatória do que eu nesta; pois ela está sendo escrita num obscuro rincão do reino e numa erma casa com teto de colmo onde vivo, no constante empenho de resguardar-me dos achaques da má saúde e de outros males da vida, por via da alacridade; firmemente persuadido de que toda vez que um homem sorri, – mas muito mais quando ri, acrescenta-se algo a este Fragmento de Vida. Humildemente vos rogo, Senhor, que honreis este livro, tomando-o (não sob vossa Proteção, ele terá de proteger-se a si próprio, mas) para levá-lo convosco ao campo; e se jamais me disserem que ele vos fez sorrir, ou se eu puder imaginar que vos distraiu de um momento de desgosto considerar-me-ei tão ditoso quanto um ministro de Estado; quiçá muito mais ditoso do que quem quer que (com uma só exceção) eu conheça dele ter lido ou ouvido falar. Aqui fica, ilustre Senhor, (e o que mais é para Vossa Senhoria) aqui fica, bondoso Senhor, com os seus melhores Votos, vosso mais humilde Compatriota O AUTOR (STERNE, 1998, p. 43). Como discurso autoconsciente, ele parodia o ato nessa autodenominação de “Criatura dedicante”. As marcas biográficas do clérigo Laurence Sterne estão na sua simplicidade material, no registro de sua doença em todos os anos de trabalho e a consciência do seu sucesso. As marcas da venda e o novo lançamento confirmam-se pela negação de um possível pedido de proteção – função das dedicatórias. Nesse sentido, há o reconhecimento da autonomia, típica da literatura moderna, em que a obra “protege-se a si mesma” simplesmente sendo lida e confrontando-se com seus críticos: “ao deslocar o prefácio para uma posição arbitrariamente escolhida, o narrador chama a atenção para a arbitrariedade de toda a obra, 18 Do livro Candide , a frase célebre: “tudo está bem, no melhor dos mundos possíveis”. Otimismo panglossiano parafraseado por Machado e que marcará o caráter e a filosofia de Quincas Borba. 50 criação autoral de um artífice que constrói, que manufatura seu produto livremente, sem submissão a convenções literárias” (SENNA, 1998, p. 28)19. Nesse caso, o narrador não só manipula o constructo conforme lhe parece mais viável, mas procura manipular a recepção. Exercício divertido e imponderável, uma vez que é impossível domar a voz daqueles que passaram pela sua vida, que falam por meio de sua memória. Consciente desse trabalho ingrato transforma as partes constitutivas em artifícios. O autor inglês, ao voltar-se para realizações anteriores de outras paragens, bem diferentes dos livros em circulação em sua época e em seu país, ao exibir sua condição de artefato, sonda “a problemática relação entre o artifício que parece realidade e a realidade em si” (Idem, p. 25). A admiração do clérigo por Rabelais e Voltaire era explícita: desde o estilo, a linguagem do baixo corporal, os despropósitos carnavalizantes e as incursões ideológicas disseminadas dialogam com a grandeza de Dom Quixote, seu escudeiro Sancho Pança e o cavalo Rocinante (reverenciado no pangaré de Yorick). O dialogismo com a literatura inglesa ocorre com Shakespeare e a filosofia é veementemente confrontada pelo shandismo – do pai ideólogo. A instauração de um dialogismo com idéias de outros lugares é uma percepção polifônica do romance humorístico. Os seus autores abordam as diversas variantes da linguagem literária penetrando nas estratégias para depois enformarem a própria obra. Segundo Bakhtin, ocorre uma espécie de deformação do discurso externo e isso teria sido levada ao extremo por Sterne. Do nosso ponto de vista, de Maistre e Machado distenderam, ainda mais, essa realização. Para Bakhtin Cervantes supera Rabelais pela sua influência determinante sobre toda a prosa romanesca. “O romance humorístico inglês está profundamente penetrado pelo espírito de Cervantes. Não é por acaso que o mesmo Yorick cita as palavras de Sancho Pança no leito de morte”20 (BAKHTIN, 2002c, p.115). Isto foi exatamente o que ocorreu a Machado de Assis, ao trazer para o território de sua prosa autoconsciente uma outra linhagem formal ainda inédita no Brasil. Com isso, funda uma literatura universal capaz de conjugar ideologicamente questões nacionais. Brás Cubas detecta em Xavier de Maistre, leitor de Sterne, essa genealogia de romances não romanescos: De Cervantes, aprendeu Sterne a grande lição de como infundir grandeza humana ao cômico. No Dom Quixote, como se sabe, as figuras a princípio meramente caricatas do anacrônico e visionário cavaleiro andante e do seu improvisado e prosaico escudeiro vão ganhando densidade à medida que a narração avança, terminando por se converter em personagens ricos de sentido humano, capazes não apenas de provocar o riso mas também a empatia. [...] Graças a eles [os personagens] e às situações cômicas geradas pela interação de suas excêntricas mas amoráveis 19 A citação refere-se ao narrador de Viagem sentimental através da França e da Itália publicada em 1768, ano da morte do autor. Pelas evidências dialógicas com Tristram, a utilizamos na interpretação das “opiniões”. 20 Quincas revela sua poética-filosófica nas palavras finais: “Pangloss não era tão tolo como o pintou Voltaire”. 53 personificada e aparece discutindo a obra. Área “tradicional” para a venda, o anúncio é ardilosamente construído. A grandeza e o ineditismo e os elogios confrontam-se com a figura esquálida do personagem principal sofrendo para “introduzir” a obra pronta. Na multiplicidade potencial dessa introdução “adulterada”, o improvável se manifesta e, antes mesmo de adentrar as páginas, o leitor é arrebatado por uma aura de destemperanças, falcatruas e paradoxos. Construído como um labirinto de linguagens, não se pode afirmar se o prefácio é do escritor Miguel Saavedra que assina a capa, pois, se o for, quem seriam, no interior da narrativa, Cide Hamete Benengeli21 e o esse homem personificado na sala de casa lamentando a falta de intróitos. “Dentro e fora do enredo” os dois amigos são conclamados a ocuparem um lugar no mundo, no livro, na autoria. Se a voz de Cervantes tenta se impor na abertura, não sem fingimento, ela será diluída pelo fingimento: Mas eu, que, embora pareça o pai, sou padrasto de Dom Quixote, não quero deixar- me levar pela corrente do uso, nem suplicar-te, quase com lágrimas nos olhos, como o fazem outros, caríssimo leitor, que perdoes ou releves as faltas que vires neste meu livro, pois não és seu parente, nem amigo; tens tua própria alma em teu corpo, e teu livre arbítrio para julgar o que é mais razoável; e estás em tua casa, da qual és o senhor, tal como o é o rei de suas alcavalas – ademais, bem sabes o que comumente se diz: “debaixo do meu manto, ao rei mato”. E tudo isso te isenta e libera de qualquer respeito e obrigação para comigo; e assim podes dizer desta história o que bem te parecer, sem temor de ser caluniado pelo mal, ou premiado pelo bem que dela disseres. Só quisera dar-te limpa e desnuda, sem ornamentos de prólogo e do inumerável catálogo dos costumeiros sonetos, epigramas e elogios, que soem ser postos no começo dos livros. O que te sei dizer é que, embora me tenha custado algum trabalho compô-la, maior foi o de preparar este prefácio que ora lês (CERVANTES, 1997, p. 7-8). Negando arduamente a obrigatoriedade da abertura, os signos rompem a aliança entre o que é anunciado e o que se anuncia. Se o texto de Cervantes volta-se para si mesmo (o livro II retomando o primeiro), o prólogo lido depois do fim, aumenta ainda mais essas fronteiras. Nas máscaras de fala, os elementos dos prefácios que analisamos estão presentes desde sua fundação na modernidade: a presença personificada de um autor, como em Sterne; a hesitação diante da publicação, como em de Maistre; a abertura discursiva que enseja uma poética do Ao leitor, como nas Memórias póstumas. A autoconsciência, embora cínica, condiciona os procedimentos editoriais: a inserção “enciclopédica” de textos antes da história: epigramas, elogios, dedicatórias etc. brincam com a expectativa da opinião. Embrião paródico das inúmeras dedicatórias de Tristram, a idéia de que a obra protege-se a si mesma, antevendo a crítica literária desfavorável, já é antevista. Essa presença, outra vertente que movimenta a narrativa humorística, surge do confronto 21 Benengeli (‘Be en geli’), em árabe significa “filho de Cervo”, “Cervante”. 54 destronante do grito dos pregões. Desfazer-se do mau comprador é uma forma de convocar uma clientela fiel. O embate paródico dos componentes que autorizam um autor revela a ignorância dos “formadores da opinião” que, “não sendo pais, destratam os filhos” alheios. Num clima de litígio que antevê a resposta, a imagem da recepção é energia criadora e pilar de uma ponte semântica. A categorização dos tipos de leituras presentes nos predecessores é plural: 1) a paternal e sentimental relação com a obra, típica do criador. 2) o eventual leitor que tem um olhar “mais independente”. 3) e o crítico, caluniador, que exige o inumerável catálogo de sonetos, epigramas e elogios antes do livro propriamente dito. Compartilhando o reflexo editorial da época, o intróito quixotesco, lembra a humanidade do autor de carne e osso e, com humildade dissimulada, confessa que deseja agradar os leitores. Enquanto Cervantes despreza a tradição, o autor personificado sofre e titubeia. A “incapacidade” de inserir essa produção introdutória e subserviente desafia parodicamente a prática e lembra que a obra em si mesma se protege. Dramatizando a situação, insere um “amigo” – enquanto o livro começa naturalmente. Rindo da exigência intelectual de citar, alega que foi “mais fácil escrever o todo” do que inserir um rol de nomes e textos. Desvencilhando-se de qualquer opinião, transfere ao “outro” essa tarefa: Muitas vezes tomei da pena para redigi-lo e de novo a larguei, por não saber o que escrever. Certa feita, achava-me em suspenso com o papel diante de mim, a caneta na orelha, os cotovelos sobre a mesa e o rosto enfiado nas mãos, a pensar no que diria, quando entrou de súbito um amigo, espirituoso e entendido. Vendo-me este pensativo, perguntou-me a causa, que lhe não encobri: expliquei-lhe que ali estava a imaginar qual seria o prólogo para a história de Dom Quixote e que, na indecisão, não me alentava a escrevê-lo, nem, muito menos, a publicar as façanhas de tão nobre cavaleiro (CERVANTES, 1997, p. 8). As exigências adquirem um novo olhar porque o significado das novelas de cavalaria também foi adulterado. Essa personificação da figura autoral que assume a realidade da publicação e faz-se objeto da própria narrativa evita falar diretamente com o público. O desespero e a melancolia fingidos provocam o riso e conotam uma crise da incapacidade de glosar. As citações latinas, os seres canonizados, os sonetos gloriosos etc. para introduzir com erudição e eloqüência são subvertidos (e negados) em prol do enredo. Ao deixar o prefácio, os discursos posteriores dizem respeito aos personagens e ao contexto, frustrando a expectativa clássica e tradicional do poder “autorizante” e autoritário da introdução. Abolindo a prática, os discursos autoconsciente apontam para o romance. Isso afirma que a invenção, o estilo e a erudição encontram-se no interior da narrativa. A representação de vozes e linguagens da época faz das aventuras o berço da modernidade. Na desrazão e na imaginação polifônica os 55 interstícios do prólogo deixam que a realidade da publicação e a fantasia do enredo constituam uma nova experiência prosaica. Tudo nasce das negativas: da razão, do realismo, da cavalaria, do épico. No campo da autoria, o romance entesta a ordem vigente nos idos de 1600. No âmbito dos personagens, renova os caracteres da representação prosaica. Nessa fusão das negativas, a loucura da leitura de Quixote, a sapiência popular de Sancho e a fluidez das máscaras autorais desafiam a lógica racional e afirmam um arauto estilizado anunciando uma nova expressão. O tom cervantino funda-se na escrita de um romance sobre o romance. O intróito, por sua vez, discute o gênero, a natureza das introduções e o que elas movimentam nas esferas social, editorial e existencial. A comunhão de vozes prepara a recepção para o que irá ler e a metalinguagem discute a impressão de realismo de uma obra literária. Nessa arena discursiva, extensiva ao todo, a linhagem fundada por Rabelais e Cervantes se constituiu “quando foram criadas condições ideais para a interação e esclarecimento mútuo das linguagens” (BAKHTIN, 2002c, p. 204). O Ao leitor torna-se uma ponte entre o passado e o presente, entre o livro impresso e a impressão da leitura. Desafiando o floreio (intelectual e bajulador) dos intróitos, a prosa discute a dinâmica discur siva e desafia parodicamente os mundos literários anteriores. O prefácio dramático reside na materialidade da publicação e dá nova visada ao objeto da representação. Provoca sua época e as expectativas da recepção e realiza uma hibridização intencional romanesca. Funde linguagens e traz o enunciado vivo de uma língua viva: [...] o híbrido romanesco é um sistema de fusão de línguas literariamente organizado, um sistema que tem por objetivo esclarecer uma linguagem com a ajuda de uma outra, plasmar uma imagem viva de uma outra linguagem. [...] Exemplos clássicos são o Dom Quixote, o romance dos humoristas ingleses (Fielding, Smollet, Sterne) e o romance alemão romântico-humorístico (Hippel e Jean-Paul). Nestes casos, o próprio processo da escrita do romance e a imagem do romancista já [aparece], em arte, no Dom Quixote, (depois em Sterne, em Hippel e Jean-Paul geralmente se objetiviza) (BAKHTIN, 2002c, p. 159). O argumento do livro escrito para “superar” os romances de cavalaria, é uma “resposta” estilizada, uma “explicação” autoconsciente para si mesmo e para os outros sobre o que se lê. Reafirmando a liminaridade, o fingimento e a necessidade da releitura do intróito como último capítulo, enredo e idéias aproximam-se: Mal terminei, meu amigo desandou a rir e, batendo com a mão na testa, replicou: – Por Deus, irmão, que agora acabo de corrigir um erro em que laboro há muito tempo, desde que vos conheço. Sempre vos julguei, discreto e prudente em todas as ações; hoje vejo, porém, que estais tão longe disso como o céu da terra. Como é possível que coisas de tão pouco valor, tão facilmente remediáveis, possam ter força 58 como duplos, mas em dupla, realizam-se nas aventuras compartilhadas. Enquanto um acredita, é alto e magro, é leitor voraz e fantasista, o outro duvida, é baixote e gordo, um iletrado homem do povo e realista. Juntas, essas forças, aparentemente paradoxais, unem-se por meio do diálogo na representação de uma linguagem que se representa a si mesma. O romance humorístico-autoconsciente sabe que representa o mundo, mas se o mundo é absolutamente discurso, o romance desdobra-se em imagens. O enigma da vida, oculto sob o absurdo da existência pergunta como o livro funciona para responder como a vida funciona. Das leituras proibidas do personagem, das vozes dissimuladas do narrador, do tradutor, de Cide Hamete Benengeli e da visão mundana de Sancho, a enformação questiona a originalidade, a representação e o equacionamento da realidade pela literatura. O embate entre a cultura escrita e a oral, latente na postura e características culturais dos dois personagens é relativizada pelas transformações sofridas ao longo das narrativas. No segundo volume, por exemplo, temos um Sancho Pança dotado de uma linguagem mais culta e um Quixote mais desacreditado nas andanças. Às vezes justificando uma realidade, às vezes confrontando, a literatura humorística constrói-se dentro de um sistema em nome do novo (“vinhos de outros lavores”). A modernização se dá no desmantelamento de modelos anteriores em nome da fundação contínua de um futuro. O prólogo evoca o ato da criação e a crença na vida (e seus absurdos) evocam uma busca eterna da recriação. Por isso, essa redefinição autoconsciente: para existir como obra e como projeto que se pensa enquanto se escreve o prefácio cervantino permite o mapeamento da relação do romance com gêneros da cultura (literatura, história, filosofia) e gêneros da tradição oral (cantos épicos, lendas, provérbios), realizando com amplitude excepciona l possibilidades do discurso plurilíngüe. Evocando tradições, nos mais vastos campos intelectuais, abrange correlações e provoca alterações cronotópicas. Nega e assimila outros estilos e outros discursos para fundar- se originalmente em um processo paródico que aponta para a dialogia. Um discurso carnavalizado pleno de inversões, ambivalências e ironias, que aponta para as formas sincréticas do espetáculo do mundo. A invenção do humano se dá no gênero, a reflexão desse humano como obra, como invenção, ocorre no prólogo. Negando os modelos monológicos, um novo domínio literário surge. Complexo e livre, inquieto e dialógico, levando ao aborrecimento dos homens, as disparatadas histórias de homens e livros. 59 1.3 Último: fim e começo de uma história aberta Nesse capítulo, mostramos parte da genealogia do romance humorístico- autoconsciente e o que seus prólogos revelam como poética. Levando ao mundo a consciência dos novos aspectos da palavra publicada esses artistas escrevem discursos sobre discursos e fundam uma variedade do gênero – o estilo difuso. Enfim, homens de papel e estilos polifônicos que movimentam a autoconsciência narrativa, espécie de ponto de fuga a disputar lugar com o enredo. Nesse espaço de abertura e fechamento do livro, todas as vozes se encontram: autor, narrador, leitor, idéias, edição, editor etc. Partindo de uma posição a outra, o defunto cria “um sistema de janelas que abrem enquanto outras são fechadas” (BOSI, 2007, p. 25) para mostrar como o homem se decompõe e se recompõe em demasia. O caráter implacável da prosificação (por vezes paródica) de um estilo tem um longo caminho nas páginas que superam instintos de nacionalidade, de racionalidade e pleiteiam a universalidade numa cadeia de leituras criativas. A forma truncada viabilizou a Machado de Assis a universalidade (prenunciada no manifesto vanguardista contra o instinto de nacionalidade). Esse Brás Cubas póstumo que repassa suas memórias com a mesma ironia tomada de Cervantes e de Sterne, acrescida de um tom ácido e cortante digno dos “pós- românticos” Xavier de Maistre, Garret e Diderot, anuncia uma releitura criativa. A possibilidade de compará- lo com diversas tradições, todas facilmente apontadas nos livros machadianos, seja no sentido intertextual, como citação ou paráfrase, seja para comprovar que Machado leu determinado autor, comprovam essa capacidade. As fendas no interior deles permitem novas visadas. Essas fendas, como o prólogo, movimentam as déias dos personagens e dos homens do seu tempo com o futuro leitor e o leitor futuro. Tudo surge em um mesmo plano de autonomia discursiva e deixam aberturas para novas idéias e formas. Gênero propício ao diálogo, conclama co-criadores. No romance humorístico, o autor abdica de seus direitos “autoritários” e compartilha a imaginação. Essa linhagem que insere o trabalho e a reflexão sobre o ato ético da escrita faz com que ele já nasça com a disposição dialógica de equacionar a imagem do indivíduo na modernidade. Rabelais, Cervantes (ainda tributários do carnaval medieval da linguagem), Sterne Diderot, de Maistre e Garret e Machado, celebraram essa inventividade da autoconsciência. Os prólogos, além de refletirem metalinguisticamente a construção do enredo propriamente dito, ou seja, o universo habitado pelos seres de papel, “criam” argumentos e polêmicas a serem desdobradas ao longo dos anos. Idéias e imagens já conhecidas e lidas pelo autor são jogadas “distraidamente” e cabe ao leitor encontrar as significações paralelas. 60 Nesses livros, tudo está em dúvida, até mesmo a própria dúvida é romanceada e serve como chave de decifração. Cervantes “queima” vários livros de Cavalaria na seleção feita pelo Cura e pelo Barbeiro. Sterne também, em muitos momentos, não deixa de destacar seu ceticismo diante do racionalismo. De Maistre, em sua biblioteca, também se diverte ao selecionar em suas estantes apenas romances (e alguns poucos poetas). Brás Cubas, ao brincar com suas glosas e citações, instaura um diálogo com a tradição e instiga seus leitores a olhar de maneira diferente para sua obra (feita de emendas criativas). Capciosamente cada nome aparece citados para motivar ou impedir a busca de despropósitos. Aventuras e opiniões recriam o retrato satírico das sociedades de seu tempo em um excedente de visão propiciado pela obra. Fazem rir o melancólico e gargalhar o já risonho no encontro do humor com a melancolia derrubando as fronteiras entre o autor e o grande público. Condensando traços “da miséria humana” na pintura das contradições desmistificam a concepção de mundo do seu tempo. Entre os recursos para impor-se, a narrativa de Brás Cubas, desde o prólogo, utiliza um ritmo oscilante e dúplice, com sua privilegiada posição de “entre- lugar” (personagem- vivente, narrador-autobiográfico e defunto autor) que lhe permite instalar-se no “limiar entre a vida e a morte”. Entre o antigo e o moderno, no Brasil ou no Undiscovered Country, entre 1805 e 1869 (data da sua morte) escarnece de tudo e de todos em suas defuntas memórias. No seu prólogo difuso, o reconhecimento de outras vozes confronta a própria voz do escritor com padrões estéticos vigentes. Novas possibilidades de representação e de conjugação de “sistemas teóricos” (idéias de outros e de outros lugares) apontam os infinitos substratos de gêneros e estilizações que povoam essa criação. Brás Cubas, ao assinalar, no primeiro capítulo, a diferença entre “autor defunto” e “defunto autor” e inverter a narrativa principiando pelo fim, não faz mais do que alertar seu público para os limites tênues que separam e unem realidade e ficção (como o fizeram seus antecessores). Ainda que nas Memórias póstumas o influxo dos clássicos (Homero, Virgílio, Dante, Swift, Balzac, dentre outros) possa ser entrevisto de vários pontos de vista, é na soma de tradições que Machado busca a grande “inspiração” de sua literatura marginal. Narrando na periferia da literatura, ele conseguiu ser um escritor autêntico porque foi um inventor criativo e aberto. Convocando um morto, uma contravenção ética e estética, superou seus predecessores e se integrou a eles. Como demonstra Bakhtin (2002c), um conjunto de valores antigos ecoa de forma invisível a partir da cultura popular nela inserida. Em maior ou menor grau, ela reverbera e se transforma nos grandes romancistas. Machado de Assis filiado a uma genealogia do romance 63 Depois de vagar durante 64 anos, um ser descobre uma forma de lidar com a perda total de si mesmo e escreve suas Memórias póstumas. Essa acuidade desvenda traços amplos no campo da cultura: o retrato familiar – os agregados; a educação frouxa; a presença alegórica de Prudêncio; as primeiras namoradas; uma velha alcoviteira; o cunhado ambicioso, dentro dos preceitos da ética protestante; o político, Lobo Neves, em busca de prestígio, retrato do marido burguês-bovahista. Por outro lado, os pares de Brás revelam sua humanidade (e autocrítica velada): o pai, com as pacholices e idéias fixas; a doce Virgília de olhos imaculados e fidelidade alencariana à sociedade; e o “único amigo” Quincas Borba, que oscila entre a riqueza e a pobreza, entre a fecunda filosofia e a miserável doença da razão – a loucura. Nesse universo fluminense aportamos e deixando um pouco de lado “o espectro que atravessou a barreira do grande mistério” nos voltamos para o “simples solteirão de Catumbi” (MEYER, 1958a). Ressuscitemos Brás Cubas para analisá- lo. Ao percorrer o universo social em que a obra surge, depois de quase três décadas de formação do romance nacional, ora deslocado, ora peculiar, enxergamos o humano e o ínfimo sob os escombros do cotidiano. Aparentemente, os ideais liberais aportavam em palco inóspito no Brasil escravista. Com isso, nossa prosa transformou-se em algo atípico, porque o realismo europeu não condizia com essa situação. Isso provocou descompasso na representação, o que não impediu uma gama considerável de obras. Perspicácia engendrou genialidade e Machado percebeu que o mercantilismo alimentado pelo nosso escravismo fazia de nosso País parte integrante da ordem liberal. A livre iniciativa, a democracia e a concorrência confrontavam-se com as mazelas nacionais e os benefícios que elas geravam para poucos. A capitalização do indivíduo soava distorcida e impedia um enredo “autêntico” e, uma vez que não tivemos uma revolução burguesa, a saída encontrada era fazer um retrato satírico sem perder de vista o lado dramático das patologias sociais e da miséria humana que coexistiam – aqui e lá. Segundo Ribeiro (1996), o “individualismo” que o Brasil conviveu é muito diferente do que foi estudado por Weber, Lukács e Watt. O tropical não tem raízes econômicas, nem a sustentação religiosa de uma ética protestante. Desponta-se muito mais de uma geral anomia do que de valores éticos que defendam a primazia do sujeito frente à sociedade e ao Estado. Os conflitos íntimos de cá estavam ligados aos expedientes estratificados e imutáveis da colônia. Enquanto representante da elite pensante com os olhos voltados para a Baía de Guanabara, o aristocrata seria o personagem perfeito para fazer essa ligação entre axiomas tão díspares. Era ideal porque convivia com os preceitos de liberdade, igualdade e fraternidade (inclusos no pacote do bacharelismo prático) e desfrutava da comodidade da escravidão. Essa, 64 por sua vez, era o contrário do que pregavam as “revoluções européias” cujo lucro e ócio permitiram a ascensão da burguesia e o cultivo do romance. Por isso, nossa prosa era tão diferente e tão semelhante à européia. Distinta pelos fundamentos, próxima pela forma (externa). Não tivemos nobreza feudal e, em conseqüência, não formamos um proletariado no século XIX. Nossa “burguesia” nunca teve que enfrentar-se com a nobreza, nem disputar o poder com ela22. Sendo assim, o Brasil construiu-se a partir de conflitos muito diferentes. Lá, o indivíduo se constituía na luta diária contra as hierarquias e barreiras impostas pelos nobres contra qualquer direito dos de baixo. Aqui, os entraves eram diferentes e menos mascarados: crioulo e pobre eram excluídos de qualquer pretensão à igualdade. O povo, por sua vez, teve sua voz calada na prosa brasileira. Em um processo precário, a morte (idealizada) de Iracema e símbolo de fundação de uma nação, ou ainda, na genealogia dos Pataca (Almeida) alguma feição disso aparece. Com limitações literárias, Aluízio de Azevedo serviu-se da forma naturalista (seus entraves artísticos e pulsões) para discutir problemas reais. Daí a saída encontrada pelo Bruxo do Cosme Velho: um personagem que não comprasse o pão com o próprio suor (self made man) e membro de uma classe herdeira dos cabedais coloniais (estudado por vários críticos23). No plano literário, isso permitiu um observador que representasse algo oculto e mais geral sob uma aparência alienada e cínica. Assim, Machado desvendou nuanças culturais peculiares do Brasil e do sistema econômico ocidental. Pôde criticá-las sem que seus contemporâneos percebessem. Amarrando as duas pontas da história, com sua pena relativista, foi o primeiro a articular esse desconcerto sem utilizar pincéis românticos e tintas naturalistas. Nunca preso a um bairro ou classe, o aristocrata “passeou” pelas mais diversas instâncias. Isso não será diferente nos livros posteriores: a ascensão de Palha e Sofia (Quincas Borba) sobrepujando o interiorano ingênuo; os agregados (em Dom Casmurro) e seus anseios; O Morro do Castelo com as crenças e figuras do morro em Esaú e Jacó. A dinâmica relativista intercambia as relações: entre ricos (agregados) e miseráveis; cultura erudita e bacharelesca, convivendo com a popular – diluída nas relações cotidianas do Dr. Cubas. A linguagem, no entanto, permitia o acesso do leitor comum pertencente a outras camadas ledoras. O folhetim, as revistas femininas, as rodas de leitura abertas aos agregados 22 Faoro (1979; 1988) mostra a ligação da política com a máquina econômica e o fator ideológico ligado aos interesses de classe. Dialeticamente constata a dependência inversa: os ricos necessitando dos manipuladores do poder e estes, desfrutando dos excedentes, porque taxavam e controlavam, em nome do Estado, os produtores de bens. E conclui que capital e política conviveram amigavelmente e que nunca se separaram definitivamente. 23 Scarpelli (2001), Rego (1989), Cano (1998) demonstram que a linguagem carnavalesca do quinto romance machadiano satiriza as elites aristocráticas brasileiras, suas leis, seus valores morais e o amor (burguês). 65 (GUIMARÃES, 2004; GRANJA, 2006) corroboram a visão de que Machado não escrevia apenas para os intelectuais. Por isso, o fio biográfico e o enredo romanesco não deixam de figurar nas páginas das Memórias póstumas. Com isso, discutiu temas profundos da humanidade sem perder a faceta primordial da prosa: a diversão. Brás Cubas trai seu leitor para ser fiel à imagem que erige. Finge e estiliza as variantes “teatrais” que a existência oferece, nesse seu “último suspiro” e condensa as múltiplas faces da existência. Entre o ridículo e o grotesco, a comédia leve e risonha e o mais trágico dos cinismos, as cortinas para a encenação da modernidade na periferia da literatura são abertas: “E se o movimento é vida e a inércia, morte, podemos dizer que há nele uma letargia indefinível, a sonolência do homem trancado em si mesmo, incapaz de reagir contra o espetáculo da sua vontade paralisada, gozando até com lucidez a própria agonia” (MEYER, 1986, p. 195). As vaidades e ilusões estão integradas a uma cosmovisão em que o indivíduo se potencializa na relação com o outro. Os contatos do protagonista ilustram uma humanidade fluminense e conjuga fatores psicológicos do homem do século XIX com o movimento no interior do gênero que imita as coisas e as reproduz na ordem do dia. Brás, ao visualizar sua condição vital sob os escombros do caixão manipula as imagens e as metáforas, condicionando um eu projetado e personificado. Graças a essa traição metódica indaga a verdade e não espera uma resposta definitiva. Esse cérebro que foi um tablado “em que se deram peças de todo gênero, o drama sacro, o austero, o piegas, a comédia louçã, a desgrenhada farsa, os autos, as bufonerias, um pandemônio, alma sensível, uma barafunda de almas e pessoas” (ASSIS, 1992, vol. I, p. 555) também deixa espaço para ouvir as vozes dos outros personagens. Vozes a respeito deles e a respeito do homem antes do defunto autor. Por tratar-se de um romance autobiográfico utilizaremos o pensamento de Mikhail Bakhtin (2003, p. 205-224) e o apoio teórico de Ian Watt (1990) para vermos o gênero como uma ação formalizada que conta a vida de alguém, com seus vínculos (racionais e sentimentais) para um outro. Nesse caso, entendemos o romance como um gênero híbrido. Na conjunção dos detalhes à roda de um indivíduo, na conjunção de personagens secundários, objetos, lugares e épocas tudo se integra no interior do tempo histórico. Ao aproximar essas referências mapeamos as vertentes prosaicas dos romances de viagem, de provação, biográfico e autobiográfico sem determinar o marco de sua fundação. O realismo e o confessional, o autoral e a fantasia, levam à percepção de um individualismo literário e à variação da experiência nos trópicos. Muitas mudanças ocorreram ao longo dos séculos e destacam-se aquelas que mais interessam nessa análise. 68 A lógica é parodiada e o defunto inaugura um novo olhar. Uma espécie de thanatografia que se confronta com o olhar do vivo na condição de alguém que vê o próprio acabamento. Divide com o leitor esse movimento de olhar para esse ser personificado ao longo de sua existência. Nesse grande teatro do fingimento discute o gênero a partir do “disparate” da condição cemiterial. As cabriolas dos capítulos iniciais são, aos poucos, perfiladas por uma narração ordenada por caracteres romanescos. A linearidade é problematizada e composta com as quebras autoconscientes. Para despistar essa linha reta e convencer da genialidade do seu método distrai com movimentos volúveis. As pausas parabáticas, bem disfarçadas, muitas vezes aproximam-se de forma pertinente o enredo e a personificação como um “desempenho especificamente ficcional do narrador” (SOUZA, 1998b, p. 65). Isso beira o embuste porque sua vida tem uma lógica de romance realista. De modo geral, no plano biográfico vemos suas lutas diárias: como criança, estudante, amante, amigo, pensador, paternal, escritor, político e uma vontade de ter um lugar na história... Se ele permaneceu em uma classe e preso a posturas ideológicas é necessário perceber que ele sofre transformações ao longo de seu percurso vital e que elas são analisadas pelo olhar cadavérico (que também se transforma). Com uma visada negativa e contundente, forjando um pessimismo exacerbado que contamina as retinas do expectador astuciosamente disfarça as pacholices, “idéias fixas” e fraquezas. Daí depreende-se que a voz sepulcral enforma o vivo e que parte do sopro existencial (ilusões) o acompanhem do outro lado. Na conjunção de indivíduos famintos, abastados, apaixonados, iludidos, otimistas a voz do aristocrata defronta-se com inúmeras figuras. O filho de Bento Cubas e de Mãe melancólica-cristã (não nomeada) teve uma infância corriqueira no Rio de Janeiro. Em casa, além dos progenitores, ocupados com o futuro do pequeno, os tios agregados (sternianos e simbólicos) representam tipos sociais (o Militar e o Eclesiástico) e duas forças morais (o libertino e o devoto superficial). A irmã, importante em outros momentos não é mencionada nesse período. O amigo Quincas Borba, D. Eusébia e Prudêncio são outros seres que povoam de forma indiciária seus primeiros passos atrás de um chocalho. Em poucas linhas, porém divertidas, os supostos benefícios de Pandora são jogados na face do público: riqueza, paternalismo, poder. Amparado pelos exageros e liberdade, o amor paternal, a admiração dos familiares e vizinhos, os festejos característicos da época para celebrar a vinda do varão, os nomes dos padrinhos, desenham uma comunidade do Brasil colonial. As diabruras, imposição de uma classe sobre outras, trariam também aspectos de uma psicologia educacional que acentuava a diferença. Com isso, ele insiste em uma tese a ser 69 desenvolvida ao longo do livro: a linearidade confortável de sua existência. Tenta convencer o leitor de que o fato de o Destino nunca tê- lo desfavorecido materialmente nem o obrigado a trabalhar teria sido seu grande saldo positivo. Isso escrito em um País escravista soa irônico e revela um Machado profundamente consciente das mazelas nacionais. Capaz de retratar o disparate sem ofender a classe, principalmente porque ela era a parte da população que comprava livros e da qual, aos poucos, fazia parte. A máscara mortuária permitiu o engodo. Ressentimento e cinismo que se transformam em poder pela escrita cemiterial e pelo poder social do biografado. Na adolescência, entre festinhas com cortesãs, a iniciação sexual orientada pelo tio militar se dá com uma dama espanhola. O resultado disso é um disparate pecuniário e sentimental “resgatado” pelo pai e pelo tio cônego. Enviado para a Europa, utiliza várias páginas para descrever a ida, mas somente um capítulo para falar dos quase nove anos que passou no Velho Continente. Anos de aprendizagem ironicamente desprezados (pelo defunto), mas bem aproveitados pelo vivo. O título acadêmico desdenhado, mas nem por isso abandonado o ligam à genealogia bacharelesca do avô Luís Cubas. Título, renda e status garantidos, nunca exercera a advocacia e, segundo ele, “prolongaria a universidade” até o fim da vida. Mas a alegria duradoura, o apego às regalias e o medo confesso da responsabilidade, foram substituídos por um medo ainda maior: a perda de um ente querido. Na viagem, uma tísica defunta foi desprezada. No falecimento da mãe, a dimensão exata de um folgazão: considerou essa morte “obscura, incongruente, insana”. Depois disso, passou dias melancólicos em Catumbi. Melancolia maternal, facilmente trocada por um namorico. Os primeiros passos, as brincadeiras na escola, a participação nas festas populares, os anos na Europa e as andanças mostram o homem em sua forma mais singela na busca de realizações pessoais. Elementos volitivo-emocionais que fatalmente “determinaram” todo o futuro (principalmente quando se olha depois dele!). Os anos no exterior retratam a consciência das idéias de uma Europa tão próxima e tão distante da corte. A aposta nos estudos e a resignação posterior no amor (não no casamento) revelam o caráter de um ser nos âmbitos de sua mediocridade. Amante do ócio, uma característica pessoal se comparada com os personagens que trabalham, mesmo assim investiu nos sonhos do pai. E perdeu a carreira- casamento para Lobo Neves (ridicularizado pelo triângulo amoroso). Depois dos amores frustrados, dedicará seu tempo a uma relação duradoura com aquela que o desprezou. Brás Cubas gastará seu tempo ocioso com leituras, jantares, andanças pela cidade, pelos salões, encontros fortuitos com sua amada, escritos políticos e poéticos. Gastando a 70 herança que Damião angariou trabalhando, articula uma candidatura, faz filosofia e nunca é questionado por ninguém. Entrando na velhice, depois que sua amada se muda do Rio, reencontra o amigo de escola e é assaltado por ele. Uma herança os aproxima filosoficamente. Por ter um sistema que tanto serve para analisar a humanidade, a situação do País (com alegorias) e ainda, ser aplicado especificamente em uma vida ele é estilizado no romance. Mais uma vez, estimulado por alguém tentará realizar grandes feitos pessoais (públicos). Enfim, ele que sofria de “laborofobia”, era tão cruel: valsou, fez-se deputado, criou um jornal e integrou-se a uma Ordem de Caridade. Suas atividades não impediram que ele terminasse quase sozinho, enterrado sem pompas, na presença de pouquíssimos “amigos”. Temos então, o seu nascimento, suas ações no transcurso existencial e seu fim – no cemitério. Em linhas gerais, essa história constitui-se de pessoas lembradas e analisadas pelo olhar melancólico-humorístico de um defunto autor. Pensando nos seres mais influentes (como isso interfere na apresentação) optamos por definir três “fases”: “Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes” (ASSIS, 1992, vol. I, p. 549). Para pensar essa biografia- romanceada, fizemos a seguinte divisão: 1ª fase: o menino é o pai do homem (de 1805 até 1831 ou 1832 – morte de Bento Cubas). 2ª fase: Os amores difíceis (entre 1832-33 a 1842-45 – separação definitiva do triângulo; com reencontros fortuitos até 1855; no leito de morte em 1869; e na narrativa no tempo fantasiado da recepção!). 3ª fase: O Humanitismo não é um humanismo; infância escolar, reencontro com Quincas por volta de 1853-55 até mais ou menos 1866-1867. Mesmo que essas fases se interpenetrem, tentamos agrupar os eventos, relacionando- os com as pessoas importantes. Cronologicamente elas se aproximam, como é natural, mas se explicam, à medida que os feitos e as atitudes diante da existência se encaminham. A estação de formação, regida pela pacholice e a herança; a madura, regida pelo amor; e a velhice, filosófica e próxima do fim regida pelo Humanitismo. Dentre os personagens, três deles têm voz no romance. Os outros, aparecem nos entrechos das relações principais e, por iluminarem os sujeitos analisados, também serão trazidos quando necessário. 73 herança diluída pelos aristocratas do século XIX mostra como um humilde tanoeiro, lavrando e comercializando os produtos às custas da escravidão geradora de “honradas patacas” constrói uma família e um cabedal. Esse fundador, da primeira metade do século XVIII foi um homem de ação. Mas Damião engendrou Luís. Luís estudou, alcançou posição e prestígio na sociedade e fez amigos influentes. Gerações de herdeiros depois: o mesmo dinheiro gasto por Brás Cubas, será multiplicado por Cotrim – outro homem de ação. Enquanto o fundador trabalhou para enriquecer, o segundo alcançou uma posição social e fundou a tradição do bacharelismo na família. No século XIX: um sonhador e um preguiçoso. Daí chegamos à equação: homens de ação, homens de inação. O trabalho, no país escravista, servirá de método para denunciar uma situação social histórica e o caráter do personagem. Nos retratos da infância há algo de Tristram Shandy. Dizendo-se precoce, dotado de inteligência e muito saudável Brasinho andou cedo: “atraído pelo chocalho de lata, que minha mãe agitava diante de mim, lá ia para a frente, cai aqui, cai acolá; e andava, provavelmente mal, mas andava e fiquei andando” (ASSIS, 1992, vol. I, p. 526). Com liberdade total brincava e guinava pelo quintal e pelos salões. À roda dos tios, dos escravos e dos convivas recebeu a alcunha de “menino diabo” porque não havia aquele que ele não embaraçasse. O menino cambaleava vingativo e voluntarioso. Assim será seu estilo ébrio e rabugento. Pregava peças nas pessoas como o narrador o faz. Ambos são diabólicos: forçam os outros (inclua-se o leitor) a concentrarem em suas vontades e ziguezagues. O esforço de pintar o essencial de sua infância tem o objetivo de mostrar valores morais de uma “boa educação” e contraria o romance de formação tradicional. A moral e retidão são parodiadas por um começo libertino e brejeiro. Amparado pela superproteção do pai, pela orientação frouxa recebida da mãe, pelas benesses e subserviência dos agregados ele aprende que há aqueles que batem e aqueles que apanham. Como se fosse um romance de deformação, a narrativa não visa moralizar e apontar bons costumes – igual aos sistemas shandianos. Os anos iniciais demonstram a percepção das diferenças e que os benefícios decorrem da miséria de outros. Alguns, como ele, com o privilégio de terem a essência governada pelos “nervos e o sangue” pode fazer travessuras sem apanhar: “afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana, inclinei-me a atenuá- la, a explicá- la, a classificá- la por partes, a entendê-la, não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e lugares” (ASSIS, 1992, vol. I, p. 527). A imagem do homem em formação recebe um tratamento diferente na pena do defunto. Seus anos de aprendizagem o encaminham para um grau de imperfeição – totalmente contrário à tradição do Bildungsroman de Goethe. O protagonista destaca os seus defeitos, as 74 agruras dos indivíduos e oferece cenas e paisagens brasileiras. Reflete a maneira de pensar da elite, os costumes populares e o sistema escravista. O pessimismo e o escárnio sepulcral acentuam os defeitos infantis e Brás Cubas prepara o leitor para as correlações entre infância e mocidade, maturidade e velhice, morto e defunto autor. Cada pessoa simboliza uma vertente social e uma possível perspectiva moralista. Todos, em um naturalismo exacerbado e paródico teriam contribuído para sua deformação interior. Nesse ziguezague (formação-deformação) os dois tios se equivalem. No conjunto das permissividades e moralismos, o militar de natureza rabelaisiana-fluminense, anda à roda das escravas, fala palavras de baixo calão e conta piadas. Suas qualidades: ser um exímio mexeriqueiro e mulherengo. O outro, cônego, mais por vaidade do que vocação concentra-se nas partes materiais e sociais da Igreja. Opostos que complementam as pacholices de Bento. Agregados que adulam e sonham com cousas futuras. Antagonismo articulado que revela o ambiente privado e social: “Meu tio João, o antigo oficial de infantaria, achava-me um certo olhar de Bonaparte, coisa que meu pai não pôde ouvir sem náuseas; meu tio Ildefonso, então simples padre, farejava-me cônego” (ASSIS, 1992, vol. I, p. 525). Ambos, com características sternianas – Yorick (o cônego) e Tio Tobby (militar “aposentado”) aparecem em momentos “estratégicos”. Importantes nessa primeira fase e fundamentais para a “formação” de seu caráter, são fiéis da balança que polemizam com Bento Cubas. Suas presenças e visões apresentam valores diversos sobre os assuntos. Questões da história e da casa convivem e com eles, a criança apreendia possíveis caminhos: a cultura erudita da Igreja e a figura despojada (e ao mesmo tempo ligada ao poder) são “modelos deformados”. Ideólogos que compõem com Bento diferentes visões para a política, educação, modos de ser, sempre que estão juntos semelham-se aos diálogos (polifônicos) entre Shandy (o pai), Tio Tobby, Trimm e Yorick. No nascimento do menino, nas reuniões festivas e até mesmo no primeiro namorico: Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a coisa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição (ASSIS, 1992, vol. I, p. 515). Fragmentados, voltam-se para questões internacionais e compõem o ambiente singular de uma família fluminense. Beirando o tipo, são exímios pensadores no Brasil machadiano. No jantar em homenagem à queda de Napoleão, essas forças divergem, aproximam-se e mostram como os fatos da história eram vivenciados na Corte. Além da 75 menção à figura peculiar, nesse livro e no posterior (o napoleônico Rubião), temos o retrato das pessoas interagindo com a política Européia. O clima da casa é construído em volta da figura do biografado: os apupos paternais, os trejeitos genealógicos, as compotas de doce, os escravos maltratados, os convivas rechaçados, símbolos da formação desse herói sem caráter. Diante do disparate da comemoração, há uma guerra declarada pelo menino ao poeta “bocageano”. Embate que continuará por muitos anos... Mas nem tudo era alegria e/ou vitória. Dos agregados, uma tia teria exercido poder sobre ele. Apontada vagamente como pessoa diferente (uma agregada que não adulava e que o destino tratou de afastar) é ela quem o retira da mesa impedindo-o de comer doce. Note-se que Brás só enfatiza as imagens de liberdade e suprime capciosamente os eventos educacionais em que ele não tem proteção e exerce tirania: “Não digo nada de minha tia materna, Dona Emerenciana, e aliás era a pessoa que mais autoridade tinha sobre mim; essa diferençava-se grandemente dos outros; mas viveu pouco tempo em nossa companhia, uns dois anos” (ASSIS, 1992, vol. I, p. 526). Divertidamente, esse acontecimento internacional (Brás com 9 anos) é retratado no espaço privado. História e individualidade surgem nas opiniões e reações dos convivas e a literatura brasileira com poemas incansáveis e acepipes. O próprio ato de comemorar um acontecimento europeu “atolando Napoleão25 em um peru” aproximam realismo, autobiografia e humor. Os eventos perpassados pelas traquinagens, em meio aos utensílios e gestos, mostram tipos sociais e apresentam um Brasil a macaquear a cultura européia: Veio abaixo toda a velha prataria, herdada do meu avô Luís Cubas; vieram as toalhas de Flandres, as grandes jarras da Índia; matou-se um capado; encomendaram-se às madres de Ajuda as compotas e marmeladas; lavaram-se, arearam-se, poliram-se as salas, escadas, castiçais, arandelas, as vastas mangas de vidro, todos os aparelhos do luxo clássico (Idem, p. 529). Nesse palco, as posturas e o provincianismo enformam ideológica e psicologicamente o clima da casa. Mais uma vez a forte presença do pai e seus fumos de pacholice brindam a queda de um grande homem em terras alheias. Provincianismo e idéias aparentemente fora do lugar, iguarias e poemas recitados pelo (futuro) pai da Flor da moita: A senhora diz isso, retorquia modestamente o Vilaça, porque nunca ouviu o Bocage, como eu ouvi, no fim do século, em Lisboa. Aquilo sim! que facilidade! e que versos! Tivemos lutas de uma e duas horas, no botequim do Nicola, a glosarmos, no 25 A coerência do livro extrapola as fronteiras e projeta-se no livro posterior em que o “napoleonismo” francês (de Stendhal, Balzac etc.) terá seu capítulo em terras estrangeiras com o ignaro e louco Rubião. O brasileiro, no seu delírio, opta por Napoleão III – o que acentua ainda mais o efeito do riso paródico e da miséria humana. 78 todos nós; é preciso continuar o nosso nome, continuá-lo e ilustrá-lo ainda mais. Olha, estou com sessenta anos, mas se fosse necessário começar vida nova, começava sem hesitar um só minuto. Teme a obscuridade, Brás; foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens. Não estragues as vantagens da tua posição, os teus meios... E foi por diante o mágico, a agitar diante de mim um chocalho, como me faziam, em pequeno, para eu andar depressa, e a flor da hipocondria recolheu-se ao botão para deixar a outra flor menos amarela, e nada mórbida, – o amor da nomeada, o emplasto Brás Cubas (ASSIS, 1992, vol. I, p. 550). O que era método educacional tornou-se cálculo. Investindo no filho, investe em si mesmo para render o pecúlio genealógico dos Cubas na história da humanidade fluminense. Seus conselhos são para que ele fuja do que é ínfimo e aproveite as vantagens da sua posição e dos meios monetários para conseguir um lugar supremo na corte. Nos silêncios de Brás Cubas, os ensinamentos de um pai calculista estão implícitos: “o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum (ASSIS, 1992, vol. II p. 289)27. No episódio de Marcela, bem como nesse, a cobrança é a mesma: continuar o suposto brilho do nome e manter o cabedal. Tudo divertidamente narrado deixa transparecer o ranço de derrotado nos fazendo crer que o seu fracasso teria matado o pai de desgosto. O gênero confessional, como se escrevesse para purgar as próprias mazelas, permite rir da própria desgraça e fazer o leitor rir. Com isso utiliza a gargalhada como panacéia para o passado frustrante e estilização do romance rabugento. A triste figura paterna mostra que o caráter de um estava arraigado ao do outro: ambos têm mania de grandeza, preocupam-se com a opinião e sabem que não foram nada. Os convivas, os agregados, os trejeitos de 1814, os salões da regência, a carta de pêsames, a visita de um Ministro reforçam o status: “Dada a hora, achou-se reunida uma sociedade seleta, o juiz de fora, três ou quatro oficiais militares, alguns comerciantes e letrados, vários funcionários da administração, uns com suas mulheres e filhas, outros sem elas [...]” (ASSIS, 1992, vol. I, p. 529). Mas não diminuem a miséria de uma existência medíocre. Fugindo do que era ínfimo (uma coxa de nascença, por exemplo) Brás Cubas aceitou a proposta e investiu nos salões do Consellheiro Dutra. Mas perdeu Virgília para outro. Com isso, perdeu a chance de ser deputado e assim o brejeiro confessa sua própria incapacidade de buscar uma posição além da que herdou. Exagero e supervalorização da própria pessoa ao 27 Traço um paralelo com o conto “O medalhão” de Machado, em que um pai “ensina” ao filho as artes do bom relacionamento e de como tornar-se uma figura importante na sociedade (Vide “Teoria do medalhão”, OC, vol. II, p. 288-295). 79 transferir a doença física para um desgosto provocado por ele. Em simbiose sentimental relaciona intimamente as ações recordadas. Em dois capítulos que cheiram à tragicomédia narra os últimos passos de um sonhador dotado de uma “imaginação curiosa graduada em consciência” que sabia reconhecer sua mediocridade (XLIV e XLV; ASSIS, 1992, vol. I, p. 561-562). A fraqueza e o desespero do progenitor vendo as chances de um grande destino se frustrar: de um lado, o filho morrendo de amores (o defunto nega, mas os fatos afirmam); de outro, o pai morrendo de idéia fixa e pacholices perdidas. Os destinos e os caracteres se assemelham e, ao contrário da passagem da morte da mãe, de quem herdara a melancolia, erige todo um arcabouço para dizer que “matou” tragicomicamente o pai. A sua propensão à fatuidade transforma-se em um parricídio tupiniquim. Trágico, como parte de uma biografia; cômico, quando o defunto analisa a cena. O mais divertido é seu recalque diante da derrota compartilhada e a auto-afirmação insistente de que ele deveria ter alcançado a vitória (na comparação com Lobo Neves). De forma hilária o último “capítulo” do pai: “teve ainda meia-hora de alegria; foi quando um dos ministros o visitou. Vi- lhe – lembra-me bem – vi- lhe o grato sorriso de outro tempo, e nos olhos uma concentração de luz, que era, por assim dizer, o último lampejo da alma expirante” (ASSIS, 1992, vol. I, p. 561). O riso nasce da repetição. Do desgosto ao sepulcro em quatro meses, o velho repetia incessantemente durante os almoços e no leito de morte: “– Um Cubas!” Frase que sintetiza o caráter do progenitor e confirma as ilusões perdidas: Morreu alguns dias depois da visita do Ministro, uma manhã de Maio, entre os dois filhos, Sabina e eu, e mais o tio Ildefonso e meu cunhado. Morreu sem lhe poder valer a ciência dos médicos, nem o nosso amor, nem os cuidados que foram muitos, sem cousa nenhuma; tinha de morrer, morreu. – Um Cubas! (ASSIS, 1992, vol. I, p. 562). O livro, um longo necrológio, uma coleção de personas póstumas traz o fim paterno romanceado: o reumatismo e a tosse são substituídos por uma causa mortis peculiar – o desencanto. Essa primeira fase, gerida e influenciada pelo pai nos fornece dados para a análise desse herói sem caráter. Confrontando-se na memória com seu consangüíneo, presentifica os fatos e se despe de cuidados vaidosos. Desvelando o outro, desvela-se. Mantém a imaginação funcionando, essa força que leva a representar as vontades no mundo e deixa-se guiar pelos caminhos da avidez do espírito. Nas memórias póstumas, o ser humano está condenado às idéias fixas, às pacholices e aos vermes. Ao se voltar para o próprio espadim, o eu se coloca no centro do mundo e constrói sua percepção a partir de si mesmo. Se em confissões como as de Pascal (1999) e 80 Rousseau (1965;1995) existia a distinção entre o eu e o amor próprio, Brás Cubas abole essa fronteira. Se cada um só pode confessar o que sabe de si mesmo, a partir de si mesmo; o morto distorce o gênero. A auto-denúncia recalcada na relação protetora e paternalista é duramente permeada pelas visadas moralista e sepulcral. Não há período heróico desse lado do oceano. Nessa confissão irrompem semelhanças genealógicas: pessoas frágeis, amantes dos bons jantares, da ociosidade, do poder, do dinheiro... Enfim, amparados por uma herança, são respeitados pelos de menor posição e presos a um sistema capitalista que leva à dissolução moral: os Cubas não foram grandes homens. Pouco realizaram na “história da humanidade fluminense”. Ambos morrem conscientes dessa exigüidade. Um deles volta para purgar, e não fosse o romance, seus nomes ficariam relegados ao esquecimento da grande massa dos mortos anônimos. O retrato de uma aristocracia medíocre revela um conhecimento profundo não só das relações sociais, mas de uma detalhada apreciação da miséria humana. Os personagens nunca são simples figurantes. Ora exprimem componentes intrincadas da sociedade, ora figuras complexas e altivas interpretando papéis em suas tragicomédias. No âmbito do romance biográfico o enterro do pai desfecha o homem e o personagem no mesmo caixão. Lá, do reino da morte, a longa confissão biográfica de vivo e dissimulada de morto, mostram como são parecidos e lembra que ambos serviram de repasto aos vermes. Na última lembrança, já no plano estilizado e não no plano vital, o filho faz uma última reflexão afetiva sobre o ne to de Damião Cubas e deixa transparecer, singelamente, o amor de um pelo outro: Meu pai era homem de imaginação; escapou à tanoaria nas asas de um calembour. Era um bom caráter, meu pai, varão digno e leal como poucos. Tinha, é verdade, uns fumos de pacholice; mas quem não é um pouco pachola nesse mundo? (ASSIS, 1992, vol. I, p. 515-516). 83 realismo europeu e/ou de fundar uma literatura nacional ele alcança “algo mais vasto e intemporal, próprio da comicidade popularesca (ANDRADE, 1963, p. 26). Machado de Assis em 1883 profetizava a sobrevivência de José de Alencar no cânone: “o futuro nunca se engana” (ASSIS, 1992, vol. III, p. 1006-1007). Percebe o ajuste da matéria [indianista] ao jornal para granjear a atenção pública. No prefácio à uma edição de O Guarani (1877) temos a provável fonte (inconsciente?) de sistema literário utilizada por Candido (na Formação da Literatura Brasileira): Em verdade, Alencar não vinha conquistar uma ilha deserta. Quando se aparelhava para o combate e a produção literária, mais de um engenho vivia e dominava, além do próprio autor da Confederação, como Gonçalves Dias, Varhnagem, Macedo, Porto Alegre, Bernardo Guimarães; e entre esses, posto que já então finado, aquele cujo livro acabava de revelar ao Brasil um poeta genial: Álvares de Azevedo. Não importa; ele chegou, impaciente e ousado, criticou, inventou, compôs. As duas primeiras narrativas trouxeram logo a nota pessoal e nova; foram lidas como uma revelação. Era o bater das asas do espírito, que iria pouco depois arrojar vôo até às margens do Paquequer (ASSIS, 1992, vol. III, p. 923). Além de ressaltar o movimento da época e sua consciência de uma sedimentação literária no Brasil, mostra como Alencar se insere em um grupo maior de formadores peculiares dos Gênero. Louva Iracema e documenta os movimentos de sua recepção, aconselhando ao amigo que não esmorecesse diante da “indiferença pública” (ASSIS, 1992, vol. III, p. 848-852)28. Valorizando a linguagem, discute o fato de a poesia americana buscar uma maneira de representar o índio e sugere (ironicamente?) que ele teria encontrado uma forma deliciosa de fazê- lo. Em Senhora e Diva, não deixa de permear a moral e o caráter remissivo e o jogo entre a valorização do dinheiro em detrimento do indivíduo. Os personagens têm algo de puro e de luta idealizada pelos valores românticos. Flutuam entre o monologismo e a altivez dos valores do autor que atendem à “paternal solicitude, sem mesmo lhes ferir a susceptibilidade” (CANDIDO, 2003, p. 205). Sujeitos às idiossincrasias e fraquezas morais, a prostituta ou a índia são dotadas de valores puros e amorosos (Lucíola e Iracema) que as elevam acima do bem e do mal. As razões do coração asseguram dignidade (mesmo na relação por dinheiro, como em Senhora). O orgulho e o pundonor, a honra versus o dinheiro, o erro sentimental a ser reparado encontram equilíbrio nos desfechos. Entre o heroísmo do índio, as agruras do sertão e a moral urbana os seres não alcançam um individualismo áspero, mas espelham conflitos. Obra com desníveis, merece ser relida pelo exame das ambigüidades da trajetória monarquista na modernidade brasileira. Um 28 Halewell (1985) vê de forma positiva sua recepção baseada nos números das publicações. Candido destaca sua perspicácia para angariar leitores: “o Alencar dos rapazes, heróico, altissonante; o Alencar das mocinhas, gracioso, às vezes pelintra, outras, quase trágico” (2003, p. 201). 84 dos pilares de nossa história, numa rede de memória e esquecimento, buscou alternativas em que faz falar uma percepção fina de nossas contradições internas (HELENA, 2006). Machado de Assis, nos primeiros romances, teve o ângulo de visão diferenciado por uma ideologia reticente, cuidados de aprendiz e o foco em mulheres mais pobres. Algumas impecavelmente boas e outras balzaquianamente ambiciosas compõem retratos femininos de um artista ainda preso à razão nacional – sem ser nacionalista, e focado na vida de relação, sem se aprofundar. O mundo mais exterior que interior e o conflito moral com tipos sociais menos autônomos enformam seu amadurecimento progressivo. Consciente de uma literatura em formação, optou por uma forma diferente do simples romance de costumes. Com o esboço de situações e contrastes de caracteres deixava à recepção decidir se a obra correspondia ao “intuito, e sobretudo se o operário tinha jeito para ela (ASSIS, 1992, vol. I, p. 116). Sua grandeza residiu na construção de seres “naturais e verdadeiras” (Ibidem, p. 198). Na advertência madura de 1907 reconhece a fragilidade dos primeiros escritos: “se este não lhe daria agora a mesma feição, é certo que lhe deu outrora, e, ao cabo, tudo pode servir a definir a mesma pessoa”. Na reimpressão, o ovacionado e autor contundente “justifica-se”. Sobre Helena, ele diz: Não me culpeis pelo que achardes de romanesco. [...] ouço um eco remoto ao reler estas, eco de mocidade e fé ingênua. É claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra pertence ao seu tempo (ASSIS, 1992, vol. I, p. 272). Sua consciência da condição feminina, as fragilidades e os poderes o levaram a criar indivíduos humanos. Calculistas, perversas e cínicas (RIEDEL, 1990; STEIN, 1984; FREITAS, 2001), elas foram importantes no seu imaginário. Como mostra Ribeiro (1996), as “mulheres de papel” Virgília, Sofia e Capitu refinaram os traços das primeiras heroínas e compactuaram relacionamentos nada convencionais. Diante do conservadorismo, o retrato do poder privado, aparentemente submissas, mas profundamente vaidosas e ambiciosas. Em suma, seus primeiros romances29 já trazem marcas de Humanitismo embrionário e têm a capacidade de distrair o público de gazetilhas e ainda assim infundir questões filosóficas. O olhar do narrador, quando concentrado nessas figuras, enxerga os mecanismos de funcionamento da sociedade e como os fortes venciam e alcançavam seus objetivos e os “fracos” eram furiosamente derrotados. 29 Em Monografia defendida em 2000, comparamos os seis primeiros romances machadianos pela ótica do paradoxo filosofia/loucura e pudemos comprovar que há raízes humanitistas desde os primeiros escritos. 85 2.3.1 Mulheres Póstumas de Brás Cubas Brás Cubas adolescente apaixona-se por uma cortesã espanhola. A matéria para paga dos favores feminis era retirada da velha herança de Damião. De forma objetiva temos um jovem ignaro, capaz de loucuras românticas e pecuniárias para ter ao seu alcance as carícias e os privilégios de uma dama dos Cajueiros. Essa aventura iniciática, calcada na exploração e paixão, mostra que o dinheiro pode “tudo”. Essa desventura leva o defunto a rir de si mesmo e a resumir o suposto engodo com a máxima: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis (ASSIS, 1992, vol. I, p. 536). Como no episódio de 1814 vida e história coincidem capciosamente. Ao manipular as datas o defunto se diverte: “Vamos de um salto a 1822, data da nossa independência política, e do meu primeiro cativeiro pessoal” (ASSIS, 1992, vol. I, p. 532). Atrelando a juventude a uma estrangeira, a extrair- lhe a riqueza, erige uma alegoria (SUSSEKIND, 1985): Via-a, pela primeira vez, no Rossio Grande, na noite das luminárias, logo que constou a declaração da independência, uma festa de primavera, um amanhecer da alma pública. Éramos dois rapazes, o povo e eu; vínhamos da infância, com todos os arrebatamentos da juventude (ASSIS, 1992, vol. I, p. 533). Compondo sua imagem arraigada à novidade política, a crônica documental se constrói estilizada. Ao fundir o frescor da idade com a história e pautado pelo galanteio prenuncia fumos de desgosto pessoal e crítica ferina à pujança ilusória de uma independência: Tinha dezessete anos; pungia-me um buçozinho que eu forcejava por trazer a bigode. Os olhos, vivos e resolutos, eram a minha feição verdadeiramente máscula. Como ostentasse certa arrogância, não se distinguia bem se era uma criança com fumos de homem, se um homem com ares de menino. Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com eles nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixão, o transportou para os seus livros (ASSIS, 1992, vol. I, p. 532-533). Um brejeiro cheio de vontades entra pela porta dos fundos na sociedade. Na contramão do conservadorismo moral sua ventura anuncia desilusões. No plano biográfico, depois de apaixonar-se à primeira vista na data setembrina é levado por tio João a uma festa de “moças”. Um momento de descobertas, em ambiente espúrio e distinto dos salões corteses. O tio admirador das coisas do povo anuncia algo diferente do toucador. A louvação parodiada explicita-se nos adjetivos: lindo e audaz; os traços de classe: nas botas, esporas, chicote, sangue e jóias. O contexto usual é confrontado por uma voz ostensiva e chã que abole 88 sepulcral incidem no relato que justifica o “beijo na moita de 1814”. O beijo engendrou uma flor: Eugênia. A morte da mãe e do poeta Vilaça reaproximou os Destinos. O que parecia apenas uma divertida alegoria das traquinagens do pequeno libertino já trazia elementos do destino sintomático de uma coxa de nascença gerada fora do casamento (SCHWARZ, 1990, p. 81). Se Brasinho apanhou de Marcela, dessa vez ele se vinga duplamente na moreninha: o leitor rirá e a vingança estará completa. Nesse sentido, há uma opção ao contar os fatos alheios que pode ser mapeada. Consciente do que quer armar conjuga autoconsciência e enredo: impulsionando, freando, forja sentimentos e tensões no espírito do leitor. No caso de Marcela e Eugênia, constrói os eventos sem muitas digressões, com mais fluência cáustica e ardilosa. Nos dois outros casos, Virgília e Eulália, os volteios sternianos, substituem a volúpia, o desejo, as dores e as perdas. Objetivamente, nessa façanha dos arrabaldes, temos: Brás Cubas volta da Europa por causa da mãe. Ela falece e o filho refugia-se na Tijuca (com seu fiel escravo). Dona Eusébia era vizinha, pois herdara as terras do Dr. Vilaça e continuava amiga da família. Melancólico, pela primeira morte de um ente querido, o que denota um grãozinho de humanidade no coração do biografado ele passa uma temporada introspectiva: caçando, lendo, dormindo, deixando-se “atoar de idéia em idéia, de imaginação em imaginação, como uma borboleta vadia ou faminta” (ASSIS, 1992, vol. I, p. 546-547). Prudêncio, durante as caçadas, comenta sobre a vizinhança, sobre a vestimenta do cadáver materno, sobre a filha... Enfim, um escravo “com voz” movimenta os Destinos. A curiosidade o impinge a ver o que nasceu daquele estalo de vinho e volúpia. Curiosidade estendida ao leitor... faz uma visita antes de cumprir as obrigações paternais. Esse “atraso” define seu caráter. Os fatos romanescos, ardilosamente fisgam as lentes da leitora de gazetilhas e prenunciam um relacionamento verdadeiro e puro que o remiria do namoro espúrio (Marcela) e evitaria o casamento por “ambição” (Virgília). Um enlace entre a bastarda “com cabeça de ninfa” e um aristocrata: perfeitos para um final feliz e para a correção dos “erros imorais”. Puro disfarce. A conversa patusca confirma a sina do beijo fortuito e surge à porta uma “saia e uma voz: mamãe, mamãe”. Era uma “travessa” de 16 anos “admirada e acanhada” que “lentamente” se aproximou. Um dia pitoresco sugere ares casadoiros: a moça sorria “com olhos fúlgidos, como se lá dentro do cérebro lhe estivesse a voar uma borboletinha de asas de ouro e olhos de diamante...” (ASSIS, 1992, vol. I, p. 551). Já sabendo que era manca, cria um clima para a surpresa. Sugere ambição, mas antes disso, uma borboleta preta assusta a todos: [...] cá fora o que esvoaçou foi uma borboleta preta, que subitamente penetrou na varanda, e começou a bater as asas em derredor de Dona Eusébia. Dona Eusébia deu 89 um grito, levantou-se, praguejou umas palavras soltas: ? T'esconjuro!... sai, diabo!... Virgem Nossa Senhora! ? Não tenha medo, disse eu; e, tirando o lenço, expeli a borboleta. Dona Eusébia sentou-se outra vez, ofegante, um pouco envergonhada; a filha, pode ser que pálida de medo, dissimulava a impressão com muita força de vontade. Apertei-lhes a mão e sai, a rir comigo da superstição das duas mulheres, um rir filosófico, desinteressante, superior. De tarde, vi passar a cavalo a filha de Dona Eusébia, seguida de um pajem; fez-me um cumprimento com a ponta do chicote; e confesso que me lisonjeei com a idéia de que, alguns passos adiante, ela voltaria a cabeça para trás; mas não voltou (ASSIS, 1992, vol. I, p. 551). Fazendo pastiche de um namorico e contrariando o realismo enérgico europeu que vai direto ao assunto, ele borboleteia. Nessa cena, preconiza uma ética da superioridade. As agregadas, mulheres e sozinhas, se desdobram para agradá- lo. O defunto, por sua vez, ironiza a ascensão da moça pobre por meio do casamento! Ao mesmo tempo, utiliza essa imagem (presente nos romances anteriores) para atacar a ética burguesa consolidada na Europa. No Brasil, essa “crítica da razão prática” discute a liberdade individual, ou seja, o bacharel dá-se conta de que os agregados também sonham com alguma grandeza. Mas enquanto D. Eusébia pragueja, diante de um mau agouro, as memórias aristocratas “recordam” um conjunto de expedientes que mostram a impossibilidade disso. A saída triunfal, o riso filosófico do “Doutor Cubas, filho do Senhor Cubas; que veio da Europa” (ASSIS, 1992, vol. I, p. 551) afirmam uma razão que contrastava com o provincianismo das crenças tupiniquins. O ar desinteressado reafirma o poder de um estrato social inquestionável e inalienável. O discurso cadavérico depois de preparar um encadeamento de episódios naturalistas insere as borboletas da Tijuca (de Pandora?) para movimentar as cenas. A farsa se completa e a moça que não saiu do lugar (porque dissimulava?) passa a cavalo (escondendo o defeito e ressaltando a diferença entre ela e as moças casadoiras da corte que estariam ao piano...). “No dia seguinte” enquanto ele jura que descia outra borboleta preta aparece filosoficamente: ele a assassina com uma toalha. Novamente o cético filosofa: “Vejam como é bom ser superior às borboletas!” (ASSIS, 1992, vol. I, p. 552). Morte de um inseto, diferença (“darwinista”). Símbolo da desigualdade (humanitista): de um lado, o aristocrata rico, culto e homem; do outro: agregadas, desamparadas, supersticiosas e... mulheres! Ainda nesse dia (outro capítulo) um convite para jantar. Nas entrelinhas, mais uma vez, sugere que a velha pândega articulava algo: “? ela insistiu tanto, tanto, tanto para que ficasse”. Jura que preparava a mala; mas o teriam impedido: “Desço imediatamente; desço, ainda que algum leitor circunspecto me detenha para perguntar se o capítulo passado é apenas uma sensaboria ou se chega a empulhação...” Dissimulado, atribui a responsabilidade do encadeamento aos cálculos delas e à expectativa circunspecta, como se quisesse mesmo 90 cumprir as obrigações paternas. Brasinho encontra uma Eugênia desataviada, diferente da véspera. Descreve as feições simples e os lábios que lembravam os da mãe (riso ecoando de “1814”). O ato de desadornar-se prenuncia índices de revelação. O clima “bucólico” oferecia um belo capítulo e, não fosse um detalhe grotesco, o aristocrata e a moreninha passeariam pela pitoresca flora brasiliana e selariam a união romântica. Mas o que se tem, é uma das passagens mais ardilosas e perversas da literatura. Malevolência pintada com humor impassível, narrador e leitor compartilham o infortúnio “naturalista-determinista”: Saímos à varanda, dali à chácara, e foi então que notei uma circunstância. Eugênia coxeava um pouco, tão pouco, que eu cheguei a perguntar-lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a filha respondeu sem titubear: ? Não, senhor, sou coxa de nascença. Mandei-me a todos os diabos; chamei-me desastrado, grosseirão. (ASSIS, 1992, vol. I, p. 553). Da revelação, o narrador transporta-se para o passado redivivo e repete insistentemente a condição física: “Palavra que o olhar de Eugênia não era coxo, mas direito, perfeitamente são” (ASSIS, 1992, vol. I, p. 553). No capítulo seguinte anuncia a gargalhada: “Bem-aventurados os que nãos descem” (ASSIS, 1992, vol. I, p. 554). Continua a saga epifânica desencadeada pela constatação. Ele e o leitor enxergam a moça manquitolando (fábula Humanitista) e o objetivo daquele que conta uma história se explicita: “O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita?” (Idem, Ibidem). Brás Cubas não descia. Os antecedentes, o episódio da borboleta, o defeito físico indicam onde a história com traços de darwinismo social iria dar. Entre o compasso maldoso e a volúpia, ri e faz rir o leitor circunspecto: [...] lá embaixo a família a chamar-me, e a noiva, e o parlamento, e eu sem acudir a cois a nenhuma, enlevado ao pé da minha Vênus Manca. Enlevado é uma maneira de realçar o estilo; não havia enlevo, mas gosto, uma certa satisfação física e moral. Queria -lhe, é verdade; ao pé dessa criatura tão singela, filha espúria e coxa, feita de amor e desprezo, ao pé dela sentia-me bem, e ela creio que ainda se sentia melhor, ao pé de mim. E isto na Tijuca. Uma simples égloga. [...]Pobre Eugênia! Se tu soubesses que idéias me vagavam pela mente fora naquela ocasião! Tu, trêmula de comoção, com os braços nos meus ombros, a contemplar em mim o teu bem-vindo esposo, e eu com os olhos em 1814, na moita, no Vilaça, e a suspeitar que não podias mentir ao teu sangue, à tua origem... (ASSIS, 1992, vol. I, p. 554). A partir da revelação, Brás Cubas vivo e Brás Cubas defunto se sobrepõem e o tom muda. A perversidade convence o leitor de que a diferença econômica estava implícita durante os beijos, mas o defeito físico pesou inda mais na gargalhada macabra. A iniqüidade de Pandora e a maldade aristocrática sugerem que ela se sentia bem ao lado dele e que lhe 93 Mais uma vez o destino irônico e humanitista aproximam as pessoas nas Memórias póstumas. De forma divertida, utilizando perguntas e reticências para criar suspense, lança a imagem de Marcela expirando para que o leitor tenha a mesma surpresa que ele,: “feia, magra, decrépita...” E a “consola” no leito de morte. Além disso, a viu morrer no mesmo dia em que encontrou a orgulhosa Eugênia. Coxa do mesmo jeito e com a mesma altivez da miserabilidade que demarca certa “nobreza penosa do pobre” (BOSI, 1999, p. 62). Em um momento da narrativa em que ele enumera e compara sua vida com a dos outros, elaborando seus saldos finais confirma (o que já sabia) e que na narrativa beira a um determinismo da desventura alheia: o fim miserável delas. As outras mulheres (coadjuvantes) foram apenas mencionadas: as européias, dos anos de aprendizagem e aquelas que serviram apenas de conforto. As damas do Rialto e italianas, por exemplo, serviram de apoio (e supressões). Ou ainda, quando foi trocado por Lobo Neves, o defunto casmurro com uma falha de memória estilizada indica as iniciais de N. Z. e U.: sem cartas e nomes próprios. As iniciais servem para dizer que não ficou jogado e dão andamento à trama. Com essas letras, vários anos se passam e ele sugere sem contar. Brás Cubas, deixando-se levar, vagou entre teatros, amantes desprezíveis, ausência de idéias fixas e entregou-se à escrita e isolamento melancólico. Embora essa tristeza memorial seja um problema a discrepância entre fingimento e confissão se adensa nessas construções. O narrador diminui o personagem de si mesmo para criar uma imagem de auto- ironia cínica. Os amores continuam na narrativa-pendular: o tempo passa e cada vez que isso se dá, um amor diferente e paradoxal: 1) Amou e sofreu com Marcela; 2) amou e não sofreu pela Europa; 3) foi amado e fez sofrer – Eugênia; 4) amou e sofreu – primeira Virgília; 5) amou por amar – N. Z. U; – 6) amou e foi amado por Virgília... que o viu morrer; 7): AQUI JAZ D. EULÁLIA DAMASCENA DE BRITO MORTA AOS DEZENOVE ANOS DE IDADE ORAI POR ELA! Amou Nhã-Loló; Nhã-Loló morreu (ASSIS, 1992, vol. I, p. 621). O destino- machadiano a matou: uma noiva cadáver como último suspiro. Um epitáfio resume a agitação humanitista no seio do homem animado pelo casamento (cuidadosamente articulado por Cotrim) e a frustração arrebatadora ocasionada pelo falecimento repentino. Há situações em que epitáfios, pontilhados e vazios dizem mais que palavras. Assim, compartilha o sentimento e surpresa diante do óbito da noviça viçosa estilizando o gênero presente nas lápides em sua autobiografia lúgubre. O susto da abertura do livro em forma de dedicatória-epitáfio volta 94 sternianamente no relato da morte macabra e alheia. Uma vez que a febre amarela deixa o infectado em um estado deplorável com dor aguda nas costas e incapacidade de se alimentar e ingerir líquidos. No seu último estágio o infectado passa a ter hemorragias – que levam ao óbito. A indignação e a melancolia diante da gangorra do destino engendram riso e melancolia. O livro próximo do fim, a velhice dominada por Quincas, o afastamento de Virgília culminou na “reconciliação” com a irmã e o cunhado. Essa volta (desde a briga pelos bens) traz a presença de Eulália e a figura “popular e pobre” de Damasceno – o pai da noiva. A moça de origem simples receberia “os favores” do aristocrata: com argúcia, ele destila “os movimentos e investimentos balzaquianos” nas roupas, nas idas ao teatro e os cálculos do cunhado: o futuro sogro era seu parente – uma forma oficial e social capaz de unir cabedais ainda díspares. O casamento seria então um bom negócio. Aproveita o ensejo para confessar seu nó na garganta e sua ilusão: No fim de três meses, ia tudo à maravilha. O fluido, Sabina, os olhos da moça, os desejos do pai, eram outros tantos impulsos que me levavam ao matrimônio. A lembrança de Virgília aparecia de quando em quando, à porta, e com ela um diabo negro, que me metia à cara um espelho, no qual eu via ao longe Virgília desfeita em lágrimas; mas outro diabo vinha, cor-de-rosa, com outro espelho, em que se refletia a figura de Nhã-loló, terna, luminosa, angélica. (ASSIS, 1992, vol. I, p. 618). Com isso, somos levados a constatar que durante todo o livro Brás Cubas não foi capaz de uma conquista “linear”. Seus relacionamentos naufragaram. Para despistar isso, insiste no “riso maldoso de classe”. Depois dos beijos, os epitáfios. Confissões de um ser humano diante da morte sempre “absurda”. Entre a teoria humanitista, a galhofa classista, rastos de dor do homem demasiado humano: Vejam agora a que excessos pode levar uma inadvertência; doeu-me um pouco a cegueira da epidemia que, matando à direita e à esquerda, levou também uma jovem dama, que tinha de ser minha mulher; e não cheguei a entender a necessidade da epidemia, e menos ainda daquela morte. Creio até que esta me pareceu ainda mais absurda que todas as outras mortes. (ASSIS, 1992, vol. I, p. 621). Amores e amantes com seus fins. Viu morrer Marcela e Eulália. Desprezou as européias e as amantes N. Z. U. Para Eugênia, um fim antológico em um cortiço, mancando pelo resto da sua existência... É significativo em um romance sepulcral que as mulheres que passaram pela vida do narrador sejam devidamente enterradas. Mais interessante é pensar que Virgília permaneceu viva, assistiu seus últimos momentos e ainda seria sua póstuma leitora. Vamos a ela. 95 2.3.2 Virgília redescoberta De forma objetiva, sua vida com Virgília se deu da seguinte maneira: por intermédio do pai se conheceram, mas durante o período de conquista Lobo Neves a arrebatou com a permissão “política” do conselheiro Dutra. Humilhado e ofendido Brás afastou-se da sociedade. Ela se mudou e anos depois se reencontraram. O maganão virou amante e teve uma relação fiel e duradoura – incluindo amizade com o marido. Entre imprevistos melodramáticos, tédio burguês e fofocas de salão, eles instituíram o triângulo com o aluguel de uma casinha na Gamboa. Por questões políticas (do Lobo!) os amantes se separam. Anos depois ela reaparece na corte. No fim, reencontram-se no sepultamento do marido e ela o visita no leito de morte (capítulos iniciais). Sua presença não é mencionada no enterro. O mais instigante da biografia amorosa romanceada, pensando no âmbito do gênero e do discurso dos mortos, é o fato de Virgília surgir como leitora (viva) dele. Nessa relação, as ilusões perdidas e recuperadas, sofrimentos e a acomodação no triângulo. Infiltra-se nesse longo conúbio uma incidência considerável de autocrítica (e negação do Romantismo). A autoconsciência em eventos diretamente relacionados ao amor coordena a pausa digressiva, a confissão dissimulada e a superação do romanesco. Brás Cubas, anti-herói por natureza, viveu relações desvirtuadas. Parte de um casamento burguês- literário com rastos de realismo bovarista, uma dama balzaquiana sem pundonor que optou pelo status social sem deixar de se entregar aos eflúvios da carne e do ócio. Vejamos a recusa e os sofrimentos do jovem, o conúbio invertido em que aparece a orelha, o corpo e os olhos de uma senhora. Como vimos, por volta dos 29 anos, Brás investe nos sonhos do pai: conseguir um lugar na corte, casar com a filha de um conselheiro, encaminhar uma candidatura na câmara e assegurar o prestígio genealógico do licenciado Luís Cubas. Entre promessas e jantares, reuniões com personalidades e “piadas de salão” a trama romanesca se adensa: bonita, fresca, saída das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação. Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção, – devoção, ou talvez medo; creio que medo (ASSIS, 1992, vol. I, p. 549). O apático e moleirão não soube conquistar o ambicioso coração da dama. Embora ela tivesse seus dotes físicos e sociais, a voz ressentida do narrador mescla beleza com certas características morais de uma mulher da corte, nem altruísta, nem maviosa. A deformação começa pelos detalhes de uma natureza em que se “desfibra os farrapos da lama e da