Baixe O ladrão de raios- Percy Jackson e outras Exercícios em PDF para Português (Gramática - Literatura), somente na Docsity! PERCY JACKSON é OS OLIMPIANOS E Livro UM
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PERCY JACKSON 5 OS OLIMPIANOS
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Para Haley, que ouviu a história primeiro SUMÁRIO UM SEM QUERER, TRANSFORMO EM PÓ MINHA PROFESSORA DE INICIAÇÃO À ÁLGEBRA DOIS TRÊS VELHAS SENHORAS TRICOTAM AS MEIAS DA MORTE TRÊS GROVER DE REPENTE PERDE AS CALÇAS QUATRO MINHA MÃE ME ENSINA A TOUREAR CINCO EU JOGO PINOCHLE COM UM CAVALO SEIS MINHA TRANSFORMAÇÃO EM SENHOR SUPREMO DO BANHEIRO SETE MEU JANTAR SE ESVAI EM FUMAÇA OITO NÓS CAPTURAMOS UMA BANDEIRA NOVE OFERECEM-ME UMA MISSÃO DEZ EU DESTRUO UM ÔNIBUS ONZE NOSSA VISITA AO EMPÓRIO DE ANÕES DE JARDIM DOZE UM POODLE É O NOSSO CONSELHEIRO TREZE MEU MERGULHO PARA A MORTE CATORZE EU ME TORNO UM FUGITIVO CONHECIDO QUINZE UM DEUS COMPRA CHEESEBURGERS PARA NÓS DEZESSEIS A IDA DE UMA ZEBRA PARA LAS VEGAS DEZESSETE VAMOS COMPRAR CAMAS-D’ÁGUA DEZOITO ANNABETH USA A AULA DE ADESTRAMENTO DEZENOVE DE CERTA FORMA, DESCOBRIMOS A VERDADE VINTE A LUTA CONTRA O MEU PARENTE IMBECIL VINTE E UM MEU ACERTO DE CONTAS VINTE E DOIS A PROFECIA SE CUMPRE meia-noite, disse a Grover que achava que a sra. Dodds não era gente. Ele olhou para mim, muito sério, e disse: — Você está certíssimo. O sr. Brunner continuou falando sobre arte funerária grega. Finalmente, Nancy Bobofit, abafando o riso, falou algo sobre o sujeito pelado na estela, e eu me virei e disse: — Quer calar a boca? Saiu mais alto do que eu pretendia. O grupo inteiro deu risada. O sr. Brunner interrompeu sua história. — Sr. Jackson — disse ele —, fez algum comentário? Meu rosto estava completamente vermelho. Eu disse: — Não, senhor. O sr. Brunner apontou para uma das figuras na estela. — Talvez possa nos dizer o que esta figura representa. Olhei para a imagem entalhada e senti uma onda de alívio, porque de fato a reconhecera. — É Cronos comendo os filhos, certo? — Sim — disse o sr. Brunner, e obviamente não estava satisfeito. — E ele fez isso porque... — Bem... — eu quebrei a cabeça para me lembrar. — Cronos era o deus-rei e... — Rei? — perguntou o sr. Brunner. — Titã — eu me corrigi. — E... ele não confiava nos filhos, que eram os deuses. Então, hum, Cronos os comeu, certo? Mas sua esposa escondeu o bebê Zeus e deu a Cronos uma pedra para comer no lugar dele. E depois, quando Zeus cresceu, ele enganou o pai, Cronos, e o fez vomitar seus irmãos e irmãs... — Eca! — disse uma das meninas atrás de mim. — ...e então houve aquela grande briga entre os deuses e os titãs — continuei —, e os deuses venceram. Algumas risadinhas do grupo. Atrás de mim, Nancy Bobofit murmurou para uma amiga: — Como se fôssemos usar isso na vida real. Como se fossem falar nas nossas entrevistas de emprego: “Por favor explique por que Cronos comeu seus filhos.” — E por que, sr. Jackson — disse sr. Brunner —, parafraseando a excelente pergunta da srta. Bobofit, isso importa na vida real? — Se ferrou — murmurou Grover. — Cale a boca — chiou Nancy, a cara ainda mais vermelha que seu cabelo. Pelo menos Nancy também foi enquadrada. O sr. Brunner era o único que a pegava dizendo algo de errado. Tinha ouvidos de radar. Pensei na pergunta dele, e encolhi os ombros. — Não sei, senhor. — Entendo. — O sr. Brunner pareceu desapontado. — Bem, meio ponto, sr. Jackson. Zeus, na verdade, deu a Cronos uma mistura de mostarda e vinho, o que o fez vomitar as outras cinco crianças, que, é claro, sendo deuses imortais, estavam vivendo e crescendo sem serem digeridas no estômago do titã. Os deuses derrotaram o pai deles, cortaram-no em pedaços com sua própria foice e espalharam os restos no Tártaro, a parte mais escura do Mundo Inferior. E com esse alegre comentário, é hora do almoço. Sra. Dodds, quer nos levar de volta para fora? A turma foi retirada, as meninas segurando a barriga, os garotos empurrando uns aos outros e agindo como bobões. Grover e eu estávamos prestes a segui-los quando o sr. Brunner disse: — Sr. Jackson. Eu sabia o que vinha a seguir. Disse a Grover para ir andando. Então me voltei para o professor. — Senhor? O sr. Brunner tinha aquele olhar que não deixa a gente ir embora — olhos castanhos intensos que poderiam ter mil anos de idade e já ter visto de tudo. — Você precisa aprender a responder à minha pergunta — disse ele. — Sobre os titãs? — Sobre a vida real. E como seus estudos se aplicam a ela. — Ah. — O que você aprende comigo — disse ele — é de uma importância vital. Espero que trate o assunto como tal. De você, aceitarei apenas o melhor, Percy Jackson. Eu queria ficar zangado, aquele sujeito me pressionava demais. Quer dizer, claro, era legal em dias de torneio, quando ele vestia uma armadura romana, bradava “Olé!” e nos desafiava, ponta de espada contra giz, a correr para o quadro-negro e citar pelo nome cada pessoa grega ou romana que já viveu, o nome de sua mãe e que deuses cultuavam. Mas o sr. Brunner esperava que eu fosse tão bom quanto todos os outros a despeito do fato de que tenho dislexia e transtorno do déficit de atenção, e de que nunca na vida tirei uma nota acima de C-. Não — ele não esperava que eu fosse tão bom quanto; ele esperava que eu fosse melhor. E eu simplesmente não podia aprender todos aqueles nomes e fatos, e muito menos escrevê- los direito. Murmurei alguma coisa sobre me esforçar mais, enquanto o sr. Brunner lançava um olhar longo e triste para a estela, como se tivesse estado no funeral daquela menina. Ele me disse para sair e comer meu lanche. A turma se reuniu nos degraus da frente do museu, de onde podíamos assistir ao trânsito de pedestres pela Quinta Avenida. Acima de nós, uma imensa tempestade estava se formando, com as nuvens mais escuras que eu já tinha visto sobre a cidade. Imaginei que talvez fosse o aquecimento global ou qualquer coisa assim, porque o tempo em todo o estado de Nova York estava esquisito desde o Natal. Tivemos nevascas pesadas, inundações, incêndios nas florestas causados por raios. Eu não teria ficado surpreso se fosse um furacão chegando. Ninguém mais pareceu notar. Alguns dos garotos estavam jogando biscoitos para os pombos. Nancy Bobofit tentava afanar alguma coisa da bolsa de uma senhora e, é claro, a sra. Dodds não via nada. Grover e eu nos sentamos na beirada do chafariz, longe dos outros. Pensamos que, se fizéssemos isso, talvez ninguém descobrisse que éramos daquela escola — a escola para esquisitões lesados que não davam certo em nenhum outro lugar. — Detenção? — perguntou Grover. — Não — disse eu. — Não do Brunner. Eu só gostaria que ele às vezes me desse um tempo. Quer dizer, não sou um gênio. Grover não disse nada por algum tempo. Então, quando achei que ele ia me brindar com algum comentário filosófico profundo para me fazer sentir melhor, ele disse: — Posso comer sua maçã? Eu não estava com muito apetite, então a entreguei a ele. Observei os táxis que passavam descendo a Quinta Avenida e pensei no apartamento de minha mãe, na área residencial próxima ao lugar onde estávamos sentados. Eu não a via desde o Natal. Tive muita vontade de pular em um táxi e ir para casa. Ela me abraçaria e ficaria contente de me ver, mas também ficaria desapontada. Imediatamente me mandaria de volta para Yancy e me lembraria de que preciso me esforçar mais, ainda que aquela fosse minha sexta escola em seis anos e que, provavelmente, eu seria chutado para fora de novo. Não conseguiria suportar o olhar triste que ela me lançaria. O sr. Brunner estacionou a cadeira de rodas na base da rampa para deficientes. Comia aipo enquanto lia um romance. Um guarda-chuva vermelho estava enfiado nas costas da cadeira, fazendo-a parecer uma mesa de café motorizada. Eu estava prestes a desembrulhar meu sanduíche quando Nancy Bobofit apareceu diante de mim com as amigas feiosas — imagino que tivesse se cansado de roubar aos turistas — e deixou seu lanche, já comido pela metade, cair no colo de Grover. — Oops. — Ela arreganhou um sorriso para mim, com os dentes tortos. As sardas eram alaranjadas, como se alguém tivesse pintado o rosto dela com um spray de Cheetos líquido. Tentei ficar calmo. O orientador da escola me dissera um milhão de vezes: “Conte até dez, controle seu gênio.” Mas estava tão furioso que me deu um branco. Uma onda rugia nos meus ouvidos. Não me lembro de ter tocado nela, mas quando dei por mim Nancy estava sentada com o traseiro no chafariz, berrando: — Percy me empurrou! A sra. Dodds se materializou ao nosso lado. Algumas das crianças estavam sussurrando: — Você viu... — ...a água... — ...parece que a agarrou... Eu não sabia do que elas estavam falando. Tudo o que sabia era que estava encrencado outra vez. Assim que se certificou de que a pobre Nancy estava bem, prometendo dar-lhe uma blusa nova na loja de presentes do museu etc. e tal, a sra. Dodds se voltou para mim. Havia um fogo triunfante em seus olhos, como se eu tivesse feito algo pelo qual ela esperara o semestre inteiro: — Agora, meu bem... — Eu sei — resmunguei. — Um mês apagando livros de exercícios. Não foi a coisa certa para dizer. — Venha comigo — disse a sra. Dodds. — Espere! — guinchou Grover. — Fui eu. Eu a empurrei. Olhei para ele perplexo. Não podia acreditar que estivesse tentando me proteger. Ele morria de medo da sra. Dodds. Ela lançou um olhar tão furioso que fez o queixo penugento dele tremer. — Acho que não, sr. Underwood — disse ela. — Mas... — Você... vai... ficar... aqui. Grover me olhou desesperadamente. — Tudo bem, cara — disse a ele. — Obrigado por tentar. — Meu bem — latiu a sra. Dodds para mim. — Agora. Nancy Bobofit deu um sorriso falso. Um trovão estourou no alto. Vi o sr. Brunner sentado embaixo do guarda-chuva vermelho, lendo seu livro, como se nunca tivesse se mexido. Fui até ele. Ele ergueu os olhos, um pouco distraído. — Ah, é a minha caneta. Por favor, traga seu próprio instrumento de escrita no futuro, sr. Jackson. Entreguei a caneta ao sr. Brunner. Não tinha notado que ainda a estava segurando. — Senhor — disse eu —, onde está a sra. Dodds? Ele olhou para mim com a expressão vazia. — Quem? — A outra professora que nos acompanhava. A sra. Dodds. Professora de iniciação à álgebra. Ele franziu a testa e se inclinou para a frente, parecendo ligeiramente preocupado. — Percy, não há nenhuma sra. Dodds nesta excursão. Até onde sei, nunca houve uma sra. Dodds na Academia Yancy. Está se sentindo bem? DOIS Três velhas senhoras tricotam as meias da morte Eu estava acostumado a uma ou outra experiência esquisita, mas normalmente elas passavam depressa. Aquela alucinação vinte e quatro horas por dia e sete dias por semana era mais do que eu podia encarar. Durante o resto do ano escolar o campus inteiro parecia estar me pregando algum tipo de peça. Os alunos agiam como se estivessem completa e totalmente convencidos de que a sra. Kerr — uma loira alegre que eu nunca tinha visto na vida até o momento em que ela entrou no nosso ônibus no fim da excursão — era nossa professora de iniciação à álgebra desde o Natal. De vez em quando eu soltava uma referência à sra. Dodds para cima de alguém, só para ver se conseguia fazê-los titubear, mas eles me olhavam como se eu fosse louco. Acabei quase acreditando neles: a sra. Dodds nunca tinha existido. Quase. Mas Grover não conseguiu me enganar. Quando eu mencionava o nome Dodds ele hesitava, depois alegava que ela não existia. Mas eu sabia que ele estava mentindo. Alguma coisa estava acontecendo. Alguma coisa havia acontecido no museu. Eu não tinha muito tempo para pensar no assunto durante o dia, mas, à noite, visões da sra. Dodds com garras e asas de couro me faziam acordar suando frio. O tempo maluco continuou, o que não ajudava meu humor. Certa noite, uma tempestade de raios arrebentou a janela do meu dormitório. Alguns dias depois, o maior tornado jamais visto no vale do Hudson tocou o chão a apenas trinta quilômetros da Academia Yancy. Um dos eventos correntes que aprendemos na aula de estudos sociais era o número inusitado de pequenos aviões que caíram em súbitos vendavais no Atlântico naquele ano. Comecei a me sentir mal-humorado e irritado a maior parte do tempo. Minhas notas caíram de D para F. Entrei em mais atritos com Nancy Bobofit e suas amigas. Era posto para fora da sala e tinha de ficar no corredor em quase todas as aulas. Finalmente, quando nosso professor de inglês, o sr. Nicoll, me perguntou pela milionésima vez por que eu tinha tanta preguiça de estudar para as provas de ortografia, eu explodi. Chamei-o de velho dipsomaníaco. Não sabia direito o que aquilo queria dizer, mas soou bem. O diretor mandou uma carta para a minha mãe na semana seguinte, tornando oficial: eu não seria convidado a voltar para a Academia Yancy no ano seguinte. Ótimo, disse a mim mesmo. Simplesmente ótimo. Eu estava com saudades de casa. Queria ficar com minha mãe no nosso pequeno apartamento no Upper East Side, mesmo que tivesse de frequentar uma escola pública e aturar meu padrasto detestável e seus jogos de pôquer estúpidos. E no entanto... havia coisas em Yancy de que eu sentiria falta. A vista da minha janela para os bosques, o rio Hudson a distância, o cheiro dos pinheiros. Sentiria falta de Grover, que tinha sido um bom amigo, mesmo com seu jeito meio estranho. Fiquei pensando como ele iria sobreviver ao próximo ano sem mim. Também sentiria falta da aula de latim — os dias malucos de torneio do sr. Brunner e sua confiança em que eu poderia me sair bem. Quando a semana de exames foi se aproximando, latim era a única prova para a qual eu estudava. Não tinha me esquecido do que o sr. Brunner falara, sobre essa matéria ser questão de vida ou morte para mim. Não sabia muito bem por quê, mas começara a acreditar nele. Na noite anterior ao meu exame final, fiquei tão frustrado que joguei o Guia Cambridge de mitologia grega do outro lado do dormitório. As palavras tinham começado a flutuar para fora da página, dando voltas na minha cabeça, as letras fazendo manobras radicais como se estivessem andando de skate. Não havia jeito de eu me lembrar da diferença entre Quíron e Caronte, ou Polidectes e Polideuces. E conjugar aqueles verbos latinos? Nem pensar. Fiquei indo de um lado para outro no quarto, com a sensação de que havia formigas andando por dentro da minha camisa. Lembrei a expressão séria do sr. Brunner, de seus olhos de mil anos. De você, aceitarei apenas o melhor, Percy Jackson. Respirei fundo. Peguei o livro de mitologia. Eu nunca havia pedido ajuda a um professor antes. Se falasse com o sr. Brunner, quem sabe ele me daria algumas dicas. Poderia, pelo menos, pedir desculpas pelo grande F que ia tirar na prova. Não queria sair da Academia Yancy deixando-o pensar que eu não tinha me esforçado. Desci a escada para os gabinetes dos professores. A maioria estava vazia e escura, mas a porta do sr. Brunner estava entreaberta e a luz que vinha da sua janela se estendia ao longo do piso do corredor. Eu estava a três passos da maçaneta da porta quando ouvi vozes dentro da sala. O sr. Brunner tinha feito uma pergunta. Uma voz que, sem sombra de dúvida, era a de Grover disse: “...preocupado com Percy, senhor.” Eu gelei. Normalmente não sou bisbilhoteiro, mas desafio alguém a não tentar ouvir quando seu melhor amigo está falando sobre você com um adulto. Cheguei um pouquinho mais perto. — ...sozinho nesse verão — Grover estava dizendo. — Quer dizer, uma Benevolente na escola! Agora que sabemos com certeza, e eles também sabem... — Só vamos piorar as coisas se o apressarmos — disse o sr. Brunner. — Precisamos que o menino amadureça mais. — Mas ele pode não ter tempo. O prazo final do solstício de verão... — Terá de ser resolvido sem ele, Grover. Deixe-o desfrutar sua ignorância enquanto ainda pode. — Senhor, ele a viu... — Imaginação dele — insistiu o sr. Brunner. — A Névoa sobre os alunos e a equipe será suficiente para convencê-lo disso. — Senhor, eu... eu não posso fracassar nas minhas tarefas de novo. — A voz de Grover estava embargada de emoção. — Sabe o que isso significaria. — Você não fracassou, Grover — disse o sr. Brunner gentilmente. — Eu deveria tê-la visto como ela era. Agora vamos apenas nos preocupar em manter Percy vivo até o próximo outono... O livro de mitologia caiu da minha mão e bateu no chão com um ruído surdo. O sr. Brunner silenciou. Com o coração disparado, peguei o livro e voltei pelo corredor. Uma sombra deslizou pelo vidro iluminado da porta da sala de Brunner, a sombra de algo muito mais alto do que meu professor de cadeira de rodas, segurando alguma coisa suspeitamente parecida com o arco de um Guardião Colina Meio-Sangue Long Island, Nova York (800) 009-0009 — O que é Colina Meio... — Não fale alto! — ganiu. — É meu, ah... endereço de verão. Meu coração desabou. Grover tinha uma casa de veraneio. Eu nunca imaginara que a família dele poderia ser tão rica quanto as dos outros em Yancy. — Certo — falei, mal-humorado. — Tá, se eu quiser fazer uma visita à sua mansão. Ele assentiu. — Ou... ou se você precisar de mim. — Por que iria precisar de você? Saiu mais rude do que eu pretendia. Grover ficou com a cara toda vermelha. — Olhe, Percy, a verdade é que eu... eu tenho, de certo modo, que proteger você. Olhei fixamente para ele. Durante o ano inteiro me meti em brigas para manter os valentões longe dele. Perdi o sono temendo que, sem mim, ele fosse apanhar no ano que vem. E ali estava Grover agindo como se fosse ele a me defender. — Grover — disse eu —, do que exatamente você está me protegendo? Houve um tremendo barulho de algo sendo triturado embaixo dos nossos pés. Uma fumaça preta saiu do painel e o ônibus inteiro foi tomado por um cheiro de ovo podre. O motorista praguejou e levou o Greyhound com dificuldade até o acostamento. Depois de alguns minutos fazendo alguns sons metálicos no compartimento do motor, o motorista anunciou que teríamos de descer. Grover e eu saímos em fila com todos os outros. Estávamos em um trecho de estrada rural — um lugar que a gente nem notaria se não tivesse enguiçado lá. Do nosso lado da estrada não havia nada além de bordos e lixo jogado pelos carros que passavam. Do outro lado, depois de atravessar quatro pistas de asfalto que refletiam uma claridade trêmula com o calor da tarde, havia uma banca de frutas como as de antigamente. As coisas à venda pareciam realmente boas: caixas transbordando de cerejas e maçãs vermelhas como sangue, nozes e damascos, jarros de sidra dentro de uma tina com pés em forma de patas, cheia de gelo. Não havia fregueses, só três velhas senhoras sentadas em cadeiras de balanço à sombra de um bordo, tricotando o maior par de meias que eu já tinha visto. Quer dizer, aquelas meias eram do tamanho de suéteres, mas, obviamente, eram meias. A senhora da direita tricotava uma delas. A da esquerda tricotava a outra. A do meio segurava uma enorme cesta de lã azul brilhante. As três mulheres pareciam muito velhas, com o rosto pálido e enrugado como fruta seca, cabelo prateado preso atrás com lenço branco, braços ossudos espetados para fora de vestidos de algodão pálido. A coisa mais esquisita era que elas pareciam olhar diretamente para mim. Encarei Grover para comentar isso e vi que seu rosto tinha ficado branco. O nariz tremia. — Grover? — disse eu. — Ei, cara... — Diga que elas não estão olhando para você. Estão, não é? — Estão. Esquisito, não? Você acha que aquelas meias serviriam em mim? — Não tem graça, Percy. Não tem graça nenhuma. A velha do meio pegou uma tesoura imensa — dourada e prateada, de lâminas longas, como uma tosquiadeira. Ouvi Grover tomar fôlego. — Vamos entrar no ônibus — ele me disse. — Venha. — O quê? — disse eu. — Lá dentro está fazendo quinhentos graus. — Venha! — Ele forçou a porta e subiu, mas eu fiquei embaixo. Do outro lado da estrada, as velhas ainda olhavam para mim. A do meio cortou o fio de lã, e posso jurar que ouvi aquele ruído cruzar as quatro pistas de trânsito. As duas amigas dela enrolaram as meias azuis e me fizeram imaginar para quem seria aquilo — o Pé Grande ou o Godzilla. Na traseira do ônibus, o motorista arrancou um grande pedaço de metal fumegante do compartimento do motor. O ônibus estremeceu e o motor voltou à vida, roncando. Os passageiros aplaudiram. — Tudo em ordem! — gritou o motorista. Ele bateu no ônibus com o chapéu. — Todo o mundo para dentro! Quando já estávamos a caminho, comecei a me sentir febril, como se tivesse pego uma gripe. Grover não parecia muito melhor. Estava tremendo e batendo os dentes. — Grover? — Sim? — O que me diz? Ele enxugou a testa com a manga da camisa. — Percy, o que você viu lá atrás, na banca de frutas? — Você quer dizer, aquelas velhas? O que há com elas, cara? Elas não são como... a sra. Dodds, são? A expressão dele era difícil interpretar, mas tive a sensação de que as velhas da banca de frutas eram algo muito, muito pior do que a sra. Dodds. Grover disse: — Só me diga o que você viu. — A do meio pegou a tesoura e cortou o fio. Ele fechou os olhos e fez um gesto com os dedos parecido com o sinal da cruz, mas não era isso. Era outra coisa, algo um tanto... mais antigo. Ele disse: — Você a viu cortar o fio. — Sim. E daí? — Mas mesmo enquanto dizia isso, já sabia que era algo importante. — Isso não está acontecendo — murmurou Grover. Ele começou a morder o dedão. — Não quero que seja como na última vez. — Que última vez? — Sempre o sétimo ano. Eles nunca passam do sétimo. — Grover — disse eu, porque ele estava realmente começando a me assustar —, do que você está falando? — Deixe que eu vá com você da estação do ônibus até sua casa. Prometa. Aquele me pareceu um pedido estranho, mas prometi. — É uma superstição ou coisa assim? — perguntei. Nenhuma resposta. — Grover... aquele corte no fio. Significa que alguém vai morrer? Ele olhou para mim com tristeza, como se já estivesse escolhendo o tipo de flores que eu gostaria mais de ter em meu caixão. TRÊS Grover de repente perde as calças Hora da confissão: descartei Grover assim que chegamos ao terminal rodoviário. Eu sei, eu sei. Foi rude. Mas Grover estava me deixando fora de mim, me olhando como se eu fosse um homem morto, murmurando: “Por que sempre tem de ser no sétimo ano?” Sempre que Grover ficava nervoso, sua bexiga entrava em ação, portanto não fiquei surpreso quando, assim que descemos do ônibus, ele me fez prometer que o esperaria e foi direto para o banheiro. Em vez de esperar, peguei minha mala, saí discretamente e tomei o primeiro táxi saindo do Centro. — Cento e quatro Leste com Primeira Avenida — disse ao motorista. Uma palavra sobre a minha mãe, antes que você a conheça. Seu nome é Sally Jackson e ela é a melhor pessoa do mundo, o que apenas prova minha teoria de que as melhores pessoas são as mais azaradas. Os pais morreram em um desastre de avião quando ela estava com cinco anos, e então foi criada por um tio que não lhe dava muita bola. Queria ser escritora, assim passou o curso de ensino médio trabalhando e economizando dinheiro para pagar uma faculdade com um bom programa de oficinas literárias. Então o tio teve câncer e ela precisou abandonar a escola no último ano para cuidar dele. Depois que ele morreu, ela ficou sem dinheiro nenhum, sem família e sem diploma. A única coisa boa que lhe aconteceu foi conhecer meu pai. Não tenho nenhuma lembrança dele, apenas essa espécie de sensação calorosa, talvez o mais leve resquício de seu sorriso. Minha mãe não gosta de falar sobre ele porque isso a deixa triste. Ela não tem fotografias. Veja bem, eles não eram casados. Ela me contou que ele era rico e influente, e o relacionamento deles era um segredo. Então um dia ele zarpou pelo Atlântico em alguma jornada importante, e nunca mais voltou. Perdido no mar, minha mãe me contou. Não morto. Perdido no mar. Ela vivia de trabalhos esporádicos, estudava à noite para tirar o diploma de ensino médio e me criou sozinha. Nunca se queixava ou ficava zangada. Nem uma só vez. Mas eu sabia que não era uma criança fácil. Acabou se casando com Gabe Ugliano, que foi simpático nos primeiros trinta segundos em que o conhecemos e depois mostrou quem realmente era, um imbecil de marca maior. Quando eu era pequeno apelidei-o de Gabe Cheiroso. Sinto muito, mas é a verdade. O cara fedia a pizza de alho embolorada enrolada num calção de ginástica. Em nosso fogo cruzado, tornávamos a vida da minha mãe bem difícil. O modo como Gabe Cheiroso a tratava, o jeito como ele e eu nos relacionávamos... bem, um bom exemplo é minha chegada em casa. Entrei em nosso pequeno apartamento, esperando que minha mãe já tivesse voltado do trabalho. Em vez disso, Gabe Cheiroso estava na sala de estar, jogando pôquer com seus cupinchas. Na televisão, o canal de esportes estava no volume máximo. Havia batatinhas e latas de cerveja espalhadas pelo tapete. Mal erguendo os olhos, ele disse com o cigarro na boca: — Então você está em casa. — Onde está a minha mãe? — Trabalhando — disse ele. — Você tem alguma grana? — É claro que vai — disse minha mãe calmamente. — Seu padrasto só está preocupado com o dinheiro. É tudo. Além disso — acrescentou —, Gabriel não terá de se contentar com pasta de feijão. Vou fazer para ele uma pasta de sete camadas suficiente para todo o fim de semana. Guacamole. Creme azedo. Serviço completo. Gabe amaciou um pouco. — Então esse dinheiro para a viagem... vai sair do seu orçamento para roupas, certo? — Sim, meu bem — disse minha mãe. — E você não vai com meu carro para lugar nenhum, só vai usar na ida e na volta. — Seremos muito cuidadosos. Gabe coçou seu queixo duplo. — Talvez se você andar logo com essa pasta de sete camadas... E talvez se o garoto pedir desculpas por interromper meu jogo de pôquer... Talvez se eu chutar você no seu ponto sensível, pensei. E fizer você cantar com voz de soprano por uma semana. Mas os olhos da minha mãe me advertiram para não deixá-lo zangado. Por que ela aturava aquele cara? Eu quis gritar. Por que ela se importava com o que ele pensava? — Desculpe — murmurei. — Sinto muito ter interrompido seu importantíssimo jogo de pôquer. Por favor, volte a ele agora mesmo. Os olhos de Gabe se estreitaram. O cérebro minúsculo provavelmente estava tentando detectar o sarcasmo na minha frase. — Está bem, seja lá o que for — convenceu-se. E voltou para o jogo. — Obrigada, Percy — disse minha mãe. — Depois que chegarmos a Montauk, vamos conversar mais sobre... o que quer que você tenha se esquecido de me contar, certo? Por um momento, pensei ter visto ansiedade nos olhos dela — o mesmo medo que vira em Grover na viagem de ônibus —, como se minha mãe também estivesse sentindo um estranho calafrio no ar. Mas então o sorriso dela voltou e concluí que devia estar enganado. Ela despenteou meu cabelo e foi fazer a pasta de sete camadas para Gabe. Uma hora depois estávamos prontos para partir. Gabe interrompeu o jogo de pôquer por tempo suficiente para me observar arrastando as malas da minha mãe para o carro. Ficou se queixando e se lamentando por ficar sem a comida dela — e mais importante, sem seu Camaro 78 — durante todo o fim de semana. — Nem um arranhão nesse carro, geninho — advertiu-me quando eu estava carregando a última mala. — Nem um arranhãozinho. Como se eu fosse dirigir aos doze anos. Mas isso não importava para Gabe. Se alguma gaivota fizesse cocô na pintura, ele arranjaria um jeito de me culpar. Observando-o voltar em seu passo desajeitado para o prédio, fiquei tão zangado que fiz uma coisa que não consigo explicar. Quando Gabe chegou à porta de entrada, fiz um gesto com a mão que tinha visto Grover fazer no ônibus, uma espécie de gesto para afastar o mal, a mão em garra sobre o coração e depois um movimento de empurrar na direção de Gabe. A porta de tela bateu tão forte que o acertou no traseiro e o mandou voando até a escada, como se tivesse sido disparado por um canhão. Talvez tenha sido apenas o vento, ou algum acidente maluco com as dobradiças, mas não fiquei lá tempo suficiente para descobrir. Entrei no Camaro e disse para a minha mãe pisar fundo. Nosso chalé alugado ficava na margem sul, lá na ponta de Long Island. Era uma pequena cabana de cor clara com cortinas desbotadas, quase enterrada nas dunas. Havia sempre areia nos lençóis e aranhas nos armários, e na maior parte do tempo o mar estava gelado demais para nadar. Eu adorava o lugar. Íamos para lá desde que eu era bebê. Minha mãe ia ainda havia mais tempo. Ela nunca disse exatamente, mas eu sabia por que a praia era especial. Era o lugar onde conhecera meu pai. À medida que nos aproximávamos de Montauk, ela parecia ir ficando mais jovem, os anos de preocupação e trabalho desaparecendo do rosto. Os olhos ficavam da cor do mar. Chegamos lá ao pôr do sol, abrimos todas as janelas do chalé e passamos por nossa rotina de limpeza. Caminhamos pela praia, demos salgadinhos de milho às gaivotas e mascamos jujubas azuis, caramelos azuis e todas as outras amostras grátis que minha mãe levara do trabalho. Acho que eu devia explicar a comida azul. Veja bem, Gabe uma vez disse à minha mãe que isso não existia. Eles tiveram uma discussão, que pareceu uma coisinha de nada na época. Mas, desde então, minha mãe fez tudo o que era possível comer em azul. Ela assava bolos de aniversário azuis. Batia vitaminas com mirtilos azuis. Comprava tortilhas de milho azul e levava para casa balas azuis da loja. Isso — junto com o fato de conservar o nome de solteira, Jackson, em vez de se chamar sra. Ugliano — era prova de que ela não tinha sido totalmente domada por Gabe. Tinha uma inclinação para a rebeldia, como eu. Quando escureceu, acendemos uma fogueira. Assamos cachorro-quente e marshmallows. Minha mãe contou histórias sobre quando ela era criança, antes de os pais morrerem no acidente de avião. Contou-me sobre os livros que queria escrever um dia, quando tivesse dinheiro suficiente para largar a doceria. Finalmente, reuni coragem para perguntar sobre o que sempre me vinha à cabeça quando íamos para Montauk — meu pai. Os olhos dela ficaram cheios d’água. Imaginei que iria me contar as mesmas coisas de sempre, mas nunca me cansava de ouvi-las. — Ele era gentil, Percy — disse ela. — Alto, bonito e forte. Mas gentil também. Você tem o cabelo preto dele, você sabe, e os olhos verdes. Mamãe pescou uma jujuba azul do saco de doces. — Gostaria que ele pudesse vê-lo, Percy. Ficaria muito orgulhoso. Eu me perguntei como ela podia dizer aquilo. O que havia de tão bom a meu respeito? Um menino disléxico, hiperativo, com um boletim D+, expulso da escola pela sexta vez em seis anos. — Que idade eu tinha? — perguntei. — Quer dizer... quando ele se foi? Ela olhou para as chamas. — Ele só ficou comigo por um verão, Percy. Bem aqui nesta praia. Neste chalé. — Mas... ele me conheceu quando eu era bebê. — Não, meu bem. Ele sabia que eu estava esperando um bebê, mas nunca o viu. Teve de partir antes de você nascer. Tentei conciliar isso com o fato de que eu parecia me lembrar de... alguma coisa sobre o meu pai. Uma sensação calorosa. Um sorriso. Sempre presumira que ele havia me visto quando bebê. Minha mãe nunca dissera exatamente isso, mas ainda assim eu achava que tinha acontecido. Saber agora que ele nunca me viu... Fiquei com raiva de meu pai. Talvez fosse uma bobagem, mas eu me ressenti por ele ter partido naquela viagem oceânica, por não ter tido coragem para se casar com minha mãe. Ele nos deixara e agora estávamos presos ao Gabe Cheiroso. — Você vai me mandar embora de novo? — perguntei a ela. — Para outro internato? Ela puxou um marshmallow do fogo. — Eu não sei, meu bem. — Sua voz soou muito séria. — Acho... acho que teremos de fazer alguma coisa. — Por que você não quer me ver por perto? — Eu me arrependi das palavras assim que elas saíram. Os olhos da minha mãe ficaram marejados. Ela pegou minha mão e apertou com força. — Ah, Percy, não. Eu... eu preciso, meu bem. Para seu próprio bem. Eu tenho de mandar você para longe. Suas palavras me lembraram o que o sr. Brunner tinha dito — que era melhor para mim deixar Yancy. — Porque eu não sou normal? — disse eu. — Você diz isso como se fosse uma coisa ruim, Percy. Mas não se dá conta do quanto você é importante. Pensei que Yancy seria bastante longe. Pensei que você finalmente estaria em segurança. — Em segurança por quê? Os olhos dela encontraram os meus, e me veio uma enxurrada de lembranças — todas as coisas esquisitas, assustadoras que sempre me aconteciam, algumas que eu tentara esquecer. No quarto ano, um homem de capa de chuva preta me seguiu no recreio. Quando os professores ameaçaram chamar a polícia, ele foi embora resmungando, mas ninguém acreditou em mim quando contei que, embaixo do chapéu de aba larga, o homem tinha um olho só, bem no meio da cabeça. Antes disso — uma lembrança realmente antiga. Eu estava na pré-escola, e uma professora acidentalmente me pôs para dormir em um berço para dentro do qual uma cobra se arrastara. Minha mãe gritou quando foi me buscar e me encontrou brincando com uma cobra flácida cheia de escamas, que eu de algum modo conseguira estrangular até a morte com as minhas mãos gorduchas de bebê. Em cada uma das escolas, algo de horripilante acontecera, algo perigoso, e fui forçado a sair. Eu sabia que devia contar à minha mãe sobre as velhas na banca de frutas e a sra. Dodds no museu de arte, sobre a estranha alucinação em que eu havia transformado a professora de matemática em pó com uma espada. Mas não consegui me forçar a contar. Tinha a sensação esquisita de que a notícia iria acabar com nossa viagem a Montauk, e isso eu não queria. — Tentei manter você tão perto de mim quanto pude — falou minha mãe. — Eles me disseram que isso era um erro. Mas só havia uma outra opção, Percy... o lugar para onde seu pai queria mandá-lo. E eu simplesmente... simplesmente não poderia aguentar ter de fazer isso. — Meu pai queria que eu fosse para uma escola especial? — Não uma escola — disse ela suavemente. — Um acampamento de verão. Minha cabeça estava girando. Por que meu pai — que nem sequer ficara por perto tempo suficiente para me ver nascer — teria falado com minha mãe sobre um acampamento de verão? E, se isso era tão importante, por que ela nunca mencionara antes? — Desculpe, Percy — continuou ela ao ver a expressão em meus olhos. — Mas não posso falar sobre isso. Eu... eu não podia mandar você para aquele lugar. Significaria dizer adeus a você para sempre. — Para sempre? Mas se é apenas um acampamento de verão... Ela se voltou para o fogo, e eu percebi pela sua expressão que, se fizesse mais perguntas, ela começaria a chorar. Naquela noite eu tive um sonho muito real. Havia uma tempestade na praia, e dois belos animais, um cavalo branco e uma águia dourada, estavam que estivesse nos perseguindo ainda estava na nossa cola. — Percy — disse minha mãe —, há muito a explicar e não temos tempo suficiente. Precisamos pôr você em segurança. — Em segurança como? Quem está atrás de mim? — Ah, nada demais — disse Grover, obviamente ainda ofendido com o comentário sobre o burro. — Apenas o Senhor dos Mortos e alguns dos seus asseclas mais sedentos de sangue. — Grover! — Desculpe, sra. Jackson. Poderia dirigir mais depressa, por favor? Tentei envolver minha mente no que estava acontecendo, mas não consegui. Sabia que aquilo não era um sonho. Eu não tinha imaginação. Jamais poderia sonhar algo tão estranho. Minha mãe fez uma curva fechada para a esquerda. Desviamos para uma estrada mais estreita, passando com velocidade por casas de fazenda às escuras, colinas cobertas de árvores e placas que diziam “COLHA SEUS PRÓPRIOS MORANGOS” sobre cercas brancas. — Aonde estamos indo? — perguntei. — Para o acampamento de verão de que falei. — A voz de minha mãe estava tensa; por mim, ela estava tentando não parecer assustada. — O lugar para onde seu pai queria mandá-lo. — O lugar para onde você não queria que eu fosse. — Por favor, querido — implorou ela. — Isso já é bem difícil. Tente entender. Você está em perigo. — Porque umas velhas senhoras cortaram um fio de lã. — Aquilo não eram velhas senhoras — disse Grover. — Eram as Parcas. Você sabe o que isso significa... o fato de elas aparecerem na sua frente? Elas só fazem isso quando você está prestes a... quando alguém está prestes a morrer. — Epa! Você disse “você”. — Não, eu não disse. Eu disse “alguém”. — Você quis dizer “você”. Ou seja, eu. — Eu quis dizer você como quem diz “alguém”. Não você, Percy, mas você, qualquer um. — Meninos! — disse minha mãe. Ela puxou o volante com força para a direita e eu tive um vislumbre de um vulto do qual ela se desviara — uma forma escura e ondulada, agora perdida na tempestade atrás de nós. — O que foi aquilo? — perguntei. — Estamos quase lá — disse minha mãe ignorando a pergunta. — Mais um quilômetro e meio. Por favor. Por favor. Por favor. Eu não sabia onde era lá, porém me vi inclinando-me para a frente na expectativa, querendo que chegássemos logo. Do lado de fora, nada além de chuva e escuridão — o tipo de campos vazios que a gente vê quando vai para o extremo de Long Island. Pensei na sra. Dodds e no momento em que ela se transformou naquela coisa com dentes pontiagudos e asas de couro. Meus membros ficaram amortecidos de choque retardado. Ela realmente não era humana. E pretendia me matar. Então pensei no sr. Brunner... e na espada que ele jogara para mim. Antes que eu pudesse perguntar a Grover sobre aquilo, os cabelos da minha nuca se arrepiaram. Houve um clarão ofuscante, um Bum! de fazer bater o queixo, e o carro explodiu. Lembro-me de ter me sentido sem peso, como se estivesse sendo esmagado, frito e lavado com uma mangueira, tudo ao mesmo tempo. Descolei minha testa do encosto do assento do motorista e disse: — Ai. — Percy! — gritou minha mãe. — Estou bem... Tentei sair do estupor. Eu não estava morto. O carro não explodira de verdade. Tínhamos caído em uma vala. As portas do lado do motorista estavam enfiadas na lama. O teto se abrira como uma casca de ovo e a chuva se derramava para dentro. Relâmpago. Era a única explicação. Tínhamos voado pelos ares, para fora da estrada. Ao meu lado no assento traseiro havia uma grande massa informe e imóvel. — Grover! Ele estava caído de lado, com sangue escorrendo do canto da boca. Sacudi seu quadril peludo, pensando: Não! Mesmo que você seja metade animal de quintal, ainda é meu melhor amigo, e não quero que morra! Então ele gemeu: — Comida — e eu soube que havia esperança. — Percy — disse minha mãe —, temos de... — Ela titubeou. Olhei para trás. Num clarão de relâmpago, através do para-brisa traseiro salpicado de lama, vi um vulto andando pesadamente na nossa direção no acostamento da estrada. Aquela visão fez minha pele formigar. Era a silhueta escura de um sujeito enorme, como um jogador de futebol americano. Parecia estar segurando uma manta por cima da cabeça. A metade superior dele era volumosa e indistinta. As mãos erguidas davam a impressão de que ele tinha chifres. Engoli em seco. — Quem é... — Percy — disse minha mãe, extremamente séria. — Saia do carro. Ela se jogou contra a porta do lado do motorista. Estava emperrada na lama. Tentei a minha. Emperrada também. Desesperado, ergui os olhos para o buraco no teto. Poderia ser uma saída, mas as bordas estavam chiando e fumegando. — Saia pelo lado do passageiro! — disse minha mãe. — Percy, você tem de correr. Está vendo aquela árvore grande? — O quê? Outro clarão de relâmpago e pelo buraco fumegante no teto eu vi a árvore a que ela se referia: um enorme pinheiro, do tamanho de uma árvore de Natal da Casa Branca, no topo da colina mais próxima. — Aquele é o limite da propriedade — disse minha mãe. — Passe daquela colina e verá uma grande casa de fazenda no fundo do vale. Corra e não olhe para trás. Grite por ajuda. Não pare enquanto não chegar à porta. — Mamãe, você também vem. O rosto dela estava pálido, os olhos tristes como quando ela olhava para o oceano. — Não! — gritei. — Você vem comigo. Ajude-me a carregar o Grover. — Comida! — gemeu Grover, um pouco mais alto. O homem com a manta na cabeça continuou indo em nossa direção, grunhindo e bufando. Quando ele chegou mais perto, percebi que não podia estar segurando uma manta acima da cabeça porque as mãos — enormes e carnudas — balançavam ao seu lado. Não havia manta nenhuma. O que queria dizer que a massa volumosa e indistinta que era grande demais para ser sua cabeça... era sua cabeça. E as pontas que pareciam chifres... — Ele não nos quer — disse minha mãe. — Ele quer você. Além disso, não posso ultrapassar o limite da propriedade. — Mas... — Não temos tempo, Percy. Vá. Por favor. Então fiquei zangado — zangado com a minha mãe, com Grover, o bode, com a coisa chifruda que se movia pesadamente em nossa direção, de modo lento e calculado como... como um touro. Passei por cima de Grover e empurrei a porta, que se abriu para a chuva. — Nós vamos juntos. Venha, mãe. — Eu já disse que... — Mamãe! Eu não vou abandonar você. Ajude aqui com Grover. Não esperei pela resposta dela. Eu me arrastei para fora do carro, puxando Grover comigo. Ele era surpreendentemente leve, mas eu não poderia tê-lo carregado para muito longe se minha mãe não tivesse ido me ajudar. Juntos, pusemos os braços de Grover em nossos ombros e começamos a subir a colina aos tropeções, com o capim molhado na altura da cintura. Ao olhar de relance para trás, tive minha primeira visão clara do monstro. Tinha, fácil, mais de dois metros, e os braços e pernas pareciam algo saído da capa da revista Músculos — bíceps e tríceps saltados e mais um monte de outros ceps, todos estufados como bolas de beisebol embaixo de uma pele cheia de veias. Ele não usava roupas, a não ser cuecas — branquíssimas, da marca Fruit of the Loom —, o que teria sido engraçado não fosse o fato de a parte superior de seu corpo ser tão assustadora. Pelos marrons e grossos começavam na altura do umbigo e iam ficando mais espessos à medida que chegavam aos ombros. Seu pescoço era uma massa de músculos e pelos que levavam à enorme cabeça, que tinha um focinho tão comprido quanto meu braço, narinas ranhentas com um reluzente anel de bronze, olhos pretos cruéis e chifres — enormes chifres preto e branco com pontas que você não conseguiria fazer nem num apontador elétrico. Reconheci o monstro muito bem. Tinha sido uma das primeiras histórias que o sr. Brunner nos contara. Mas ele não podia ser real. Pisquei os olhos para desviar a chuva. — Aquele é... — O filho de Pasífae — disse minha mãe. — Gostaria de ter sabido antes o quanto desejam matar você. — Mas ele é o Min... — Não pronuncie o nome — advertiu ela. — Os nomes têm poder. O pinheiro ainda estava longe demais — pelo menos cem metros colina acima. Dei outra olhada para trás. O homem-touro se curvou por cima do nosso carro, olhando pelas janelas — ou não exatamente olhando. Era mais como farejar, fuçar. Eu não sabia muito bem por que ele se dava a esse trabalho, já que estávamos a apenas quinze metros de distância. — Comida? — gemeu Grover. — Shhh — fiz eu. — Mamãe, o que ele está fazendo? Não está nos vendo? — Sua visão e sua audição são péssimas — disse ela. — Ele se orienta pelo cheiro. Mas vai perceber onde estamos logo, logo. Como que na deixa, o homem-touro bramiu de raiva. Ele agarrou o Camaro de Gabe pela capota rasgada, o chassis rangia e gemia. Ergueu o carro acima da cabeça e atirou-o na estrada. Aquilo se chocou contra o asfalto molhado e deslizou em meio a um chuveiro de fagulhas por cerca de quinhentos metros antes de parar. ajuda, portanto consegui erguê-lo e descer cambaleando para o vale em direção às luzes da casa. Eu estava chorando, chamando minha mãe, mas me agarrei a Grover — eu não ia deixá-lo partir. Minha última lembrança é ter desmaiado numa varanda de madeira, olhando para um ventilador de teto que girava acima de mim, mariposas voando em volta de uma luz amarela, e as expressões austeras e familiares de um homem barbudo e uma menina bonita, com cabelos loiros encaracolados como os de uma princesa. Os dois olharam para mim e a menina disse: — É ele. Tem de ser. — Silêncio, Annabeth — disse o homem. — Ele ainda está consciente. Traga-o para dentro. CINCO Eu jogo pinochle com um cavalo Tive sonhos estranhos, cheios de animais de estábulo. A maioria queria me matar. O restante queria comida. Devo ter acordado várias vezes, mas o que ouvi e vi não fazia sentido, então adormecia de novo. Lembro- me de estar deitado em uma cama macia, sendo alimentado com colheradas de alguma coisa que tinha gosto de pipoca com manteiga, só que era pudim. A menina com o cabelo loiro encaracolado pairava acima de mim com um sorriso afetado enquanto limpava as gotas de meu queixo com a colher. Quando ela viu meus olhos abertos, perguntou: — O que vai acontecer no solstício de verão? Eu consegui resmungar: — O quê? Ela olhou em volta, como se estivesse com medo de que alguém ouvisse. — O que está acontecendo? O que foi roubado? Nós só temos algumas semanas! — Desculpe — murmurei. — Eu não... Alguém bateu à porta, e a menina rapidamente encheu minha boca de pudim. Quando acordei novamente, a menina tinha ido embora. Um sujeito loiro e forte, como um surfista, estava no canto do quarto me vigiando. Tinha olhos azuis — pelo menos uma dúzia deles — nas bochechas, na testa, nas costas das mãos. Quando finalmente voltei a mim de vez, não havia nada de estranho com o lugar ao meu redor, a não ser que era mais agradável do que eu estava acostumado. Estava sentado numa espreguiçadeira em uma enorme varanda, olhando ao longo de uma campina para colinas verdejantes a distância. A brisa tinha cheiro de morangos. Havia uma manta sobre as minhas pernas, um travesseiro atrás do pescoço. Tudo isso era ótimo, mas minha boca me dava a sensação de ter sido usada como ninho por um escorpião. A língua estava seca e pegajosa, e todos os dentes doíam. Sobre a mesa ao lado havia bebida num copo alto. Parecia suco de maçã gelado, com um canudinho verde e um guarda-chuva de papel enfiado em uma cereja. Minha mão estava tão fraca que quase derrubei o copo quando passei os dedos em volta dele. — Cuidado — disse uma voz familiar. Grover estava apoiado no gradil da varanda, e parecia não dormir havia uma semana. Embaixo de um braço, segurava uma caixa de sapatos. Estava usando jeans, tênis Converse de cano alto e uma camiseta laranja- claro com os dizeres ACAMPAMENTO MEIO-SANGUE. Apenas o velho Grover. Não o menino-bode. Quem sabe não tive um pesadelo? Talvez minha mãe estivesse bem. Ainda estávamos de férias e tínhamos parado ali naquela grande casa por alguma razão. E... — Você salvou minha vida — disse Grover. — Eu... bem, o mínimo que eu podia fazer... voltei na colina. Achei que você poderia querer isto. Reverentemente, ele colocou a caixa de sapatos em meu colo. Dentro havia um chifre de touro branco e preto, a base irregular por ter sido quebrada, a ponta salpicada de sangue seco. Não tinha sido um pesadelo. — O Minotauro — disse eu. — Ahn, Percy, não é uma boa ideia... — É assim que o chamam nos mitos gregos, não é? — perguntei. — O Minotauro. Meio homem, meio touro. Grover mudou de posição, pouco à vontade. — Você ficou desacordado por dois dias. Do que se lembra? — Minha mãe. Ela está mesmo... Ele abaixou os olhos. Olhei ao longo da campina. Havia pequenos bosques, um riacho sinuoso, campos de morangos espalhados embaixo do céu azul. O vale era cercado por colinas ondulantes, e a mais alta, bem na nossa frente, era a que tinha o grande pinheiro no topo. Mesmo isso parecia bonito à luz do sol. Minha mãe se fora. O mundo inteiro deveria estar escuro e frio. Nada devia parecer bonito. — Desculpe — fungou Grover. — Eu sou um fracasso. Eu... eu sou o pior sátiro do mundo. Ele gemeu, batendo o pé com tanta força que ele saiu, quer dizer, o tênis Converse saiu. Dentro, estava recheado de isopor, a não ser por um buraco em forma de casco. — Oh, Estige! — murmurou ele. Um trovão ecoou no céu claro. Enquanto ele lutava para pôr o casco de volta no falso pé, pensei: Bem, isso resolve as coisas. Grover era um sátiro. Podia apostar que, se raspasse o cabelo castanho cacheado, encontraria pequenos chifres em sua cabeça. Mas eu me sentia infeliz demais para me importar com a existência de sátiros ou mesmo minotauros. O importante era que minha mãe realmente tinha sido espremida para o nada, dissolvida em luz amarela. Eu estava sozinho. Um órfão. E teria de viver com... Gabe Cheiroso? Não. Isso jamais iria acontecer. Preferia viver nas ruas. Fingiria ter dezessete anos e me alistaria no exército. Faria alguma coisa. Grover ainda estava fungando. O pobre garoto — pobre bode, ou sátiro, ou o que for — parecia estar esperando levar um murro. — Não foi sua culpa — disse eu. — Foi, sim. Eu devia protegê-lo. — Minha mãe pediu para você me proteger? — Não. Mas é isso que faço. Sou um guardião. Pelo menos... eu era. — Mas por que... De repente senti uma vertigem, minha visão rodando. — Não se esforce demais — disse Grover. — Aqui. Ele me ajudou a segurar o copo e eu levei o canudinho aos lábios. Recuei com o gosto, porque estava esperando suco de maçã. Não tinha nada a ver com isso. Era gosto de biscoito com pedacinhos de chocolate. Biscoito líquido. E não qualquer biscoito — os biscoitos azuis da minha mãe com pedacinhos de chocolate, amanteigados e quentes, o chocolate ainda derretendo. Ao beber aquilo, meu corpo inteiro se sentiu bem, aquecido e cheio de energia. Minha tristeza não foi embora, mas era como se minha mãe tivesse acabado de acariciar minha bochecha e me dar um biscoito, como costumava fazer quando eu era pequeno, e tivesse dito que tudo ia ficar bem. Antes de me dar conta, já tinha esvaziado o copo inteiro. Olhei para dentro dele e, com certeza, não era uma bebida quente, pois os cubos de gelo não tinham nem derretido. — Estava bom? — perguntou Grover. Fiz que sim com a cabeça. Quíron assentiu. — Honestamente, de início eu não tinha muita certeza a seu respeito. Contatamos sua mãe, informamos que estávamos de olho em você, para o caso de estar pronto para o Acampamento Meio-Sangue. Mas você ainda tinha muito a aprender. Não obstante, chegou aqui vivo, e esse é sempre o primeiro teste. — Grover — disse o sr. D com impaciência —, vai jogar ou não? — Sim, senhor! — Grover tremeu quando se sentou na quarta cadeira, embora eu não soubesse por que ele deveria ter tanto medo de um homenzinho gorducho de camisa havaiana com estampa de tigre. — Você sabe jogar pinochle? — indagou o sr. D olhando para mim com desconfiança. — Infelizmente não — disse eu. — Infelizmente não, senhor. — disse ele. — Senhor — repeti. Estava gostando cada vez menos do diretor do acampamento. — Bem — ele me disse —, este é, juntamente com as lutas de gladiadores e o Pac-Man, um dos melhores jogos já inventados pelos seres humanos. Imaginava que todos os jovens civilizados conhecessem as regras. — Estou certo de que o menino pode aprender — disse Quíron. — Por favor — disse eu —, o que é este lugar? O que estou fazendo aqui? Sr. Brun... Quíron, por que iria à Academia Yancy só para me ensinar? O sr. D bufou. — Fiz a mesma pergunta. O diretor do acampamento deu as cartas. Grover se encolhia a cada vez que uma caía na sua pilha. Quíron sorriu para mim de um modo compreensivo, como costumava fazer na aula de latim, como para me dizer que qualquer que fosse minha nota, eu era seu aluno mais importante. Ele esperava que eu tivesse a resposta certa. — Percy — disse ele —, sua mãe não lhe contou nada? — Ela disse... — Lembrei-me dos seus olhos tristes, olhando para o mar. — Ela me contou que tinha medo de me mandar para cá, embora meu pai quisesse que ela fizesse isso. Disse que, uma vez aqui, provavelmente não poderia sair. Queria me manter perto dela. — Típico — disse o sr. D. — É assim que eles normalmente são mortos. Rapazinho, você vai fazer um lance ou não vai? — O quê? — perguntei. Ele explicou, impacientemente, como se faz um lance em pinochle, e eu fiz. — Lamento, mas há coisas demais a contar — disse Quíron. — Receio que nosso filme de orientação não seja suficiente. — Filme de orientação? — perguntei. — Não — concluiu Quíron. — Bem, Percy. Você sabe que seu amigo Grover é um sátiro. Você sabe — ele apontou para o chifre na caixa de sapatos — que você matou o Minotauro. E não é um pequeno feito, rapaz. O que você pode não saber é que grandes forças estão em ação na sua vida. Os deuses, as forças que você chama de deuses gregos, estão muito vivos. Olhei para os outros em volta da mesa. Aguardei que alguém gritasse, Não! Mas tudo o que ouvi foi o sr. D gritando: — Oh, um casamento real. Truco! Truco! — Ele gargalhou enquanto contava os pontos. — Sr. D — perguntou Grover timidamente —, se não for comê-la, posso ficar com sua lata de Diet Coke? — Hein? Ah, está bem. Grover mordeu um grande pedaço da lata de alumínio vazia e mastigou tristemente. — Espere — eu disse a Quíron —, está me dizendo que existe algo como Deus. — Bem, vamos lá — disse Quíron. — Deus, com D maiúsculo: Deus. Isso é outro assunto. Não vamos lidar com o metafísico. — Metafísico? Mas você estava falando sobre... — Ah, deuses, no plural, grandes seres que controlam as forças da natureza e os empreendimentos humanos: os deuses imortais do Olimpo. Essa é uma questão menor. — Menor? — Sim, muito. Os deuses que discutimos na aula de latim. — Zeus — disse eu. — Hera. Apolo. Você quer dizer, esses. E, de novo, uma trovoada distante em um dia sem nuvens. — Rapazinho — disse o sr. D —, se eu fosse você, seria menos negligente quanto a ficar soltando esses nomes por aí. — Mas são histórias — disse eu. — São... mitos, para explicar os relâmpagos, as estações e tudo o mais. Era nisso que as pessoas acreditavam antes de surgir a ciência. — Ciência! — zombou o sr. D. — E diga-me, Perseu Jackson — eu me encolhi quando ele disse meu nome verdadeiro, que nunca contara a ninguém —, o que as pessoas pensarão da sua “ciência” daqui a milhares de anos? Humm? Irão chamá-la de baboseiras primitivas. É isso o que irão pensar. Ah, eu adoro os mortais... eles não têm a menor noção de perspectiva. Acham que já chegaram tãããão longe. E chegaram, Quíron? Olhe para esse menino e diga-me. Eu não estava gostando muito do sr. D, mas havia algo no modo como ele me chamou de mortal, como se... se ele não fosse. Foi o bastante para me dar um nó na garganta, para sugerir por que Grover estava zelosamente atento às suas cartas, mascando sua lata de refrigerante e mantendo a boca fechada. — Percy — disse Quíron —, você pode escolher entre acreditar ou não, mas o fato é que imortal significa imortal. Pode imaginar isso por um momento, não morrer nunca? Existir, assim como você é, para toda a eternidade? Eu estava prestes a responder, assim sem pensar, que parecia um negócio muito bom, mas o tom de voz de Quíron me fez hesitar. — Você quer dizer, quer as pessoas acreditem em você ou não — disse eu. — Exatamente — concordou Quíron. — Se você fosse um deus, gostaria de ser chamado de mito, de uma velha história para explicar os relâmpagos? E se eu contasse a você, Perseu Jackson, que um dia as pessoas vão chamar você de mito, criado apenas para explicar como menininhos podem sobreviver à perda de suas mães? Meu coração disparou. Ele estava tentando me deixar zangado por alguma razão, mas eu não ia permitir que o fizesse. Eu disse: — Eu não gostaria disso. Mas não acredito em deuses. — Oh, é melhor mesmo — murmurou o sr. D. — Antes que um deles o incinere. Grover disse: — P-por favor, senhor. Ele acaba de perder a mãe. Está em estado de choque. — Uma sorte, também — resmungou o sr. D, jogando uma carta. — Ruim mesmo é estar confinado a esse trabalho deprimente, com meninos que nem mesmo têm fé! Ele acenou e uma taça apareceu sobre a mesa, como se a luz do sol tivesse momentaneamente se encurvado e transformado o ar em vidro. A taça se encheu de vinho tinto. Meu queixo caiu, mas Quíron mal ergueu os olhos. — Senhor D — advertiu —, as suas restrições. O sr. D olhou para o vinho e fingiu surpresa. — Ora vejam. — Ele olhou para o céu e gritou: — Velhos hábitos! Desculpe! Mais trovões. O sr. D acenou outra vez e a taça de vinho se transformou em uma nova lata de Diet Coke. Ele suspirou, infeliz, abriu a lata e voltou ao seu jogo de cartas. Quíron piscou para mim. — O sr. D irritou o pai dele tempos atrás, sentiu-se atraído por uma ninfa dos bosques que tinha sido declarada inacessível. — Uma ninfa dos bosques — repeti, ainda olhando para a Diet Coke como se tivesse vindo do cosmos. — Sim — confessou o sr. D. — O pai adora me castigar. Na primeira vez, Proibição. Horrível! Dez anos absolutamente terríveis! Na segunda vez... bem, ela era mesmo linda, não consegui ficar longe... na segunda vez, ele me mandou para cá. Colina Meio-Sangue. Acampamento de verão para moleques como você. “Seja uma influência melhor”, ele me disse. “Trabalhe com os jovens em vez de arrasar com eles.” Ah! Que injustiça. O sr. D parecia ter seis anos de idade, como uma criancinha fazendo pirraça. — E... — gaguejei — o seu pai é... — Di immortales, Quíron — disse o sr. D. — Pensei que você tinha ensinado o básico a este menino. Meu pai é Zeus, é claro. Repassei os nomes começados em D da mitologia grega. Vinho. A pele de um tigre. Os sátiros que pareciam estar todos trabalhando aqui. O modo como Grover se encolhia de medo, como se o sr. D fosse seu senhor. — Você é Dioniso — disse eu. — O deus do vinho. O sr. D revirou os olhos. — Como eles dizem hoje em dia, Grover? As crianças dizem, “fala sério”? — S-sim, sr. D. — Então, fala sério, Percy Jackson. Achou o quê; que eu fosse Afrodite? — Você é um deus. — Sim, criança. — Um deus. Você. Ele se virou para olhar diretamente para mim, e vi uma espécie de fogo arroxeado nos seus olhos, um indício de que aquele homenzinho reclamão e gorducho só estava me mostrando uma minúscula parte da sua verdadeira natureza. Tive visões de vinhas estrangulando descrentes até a morte, guerreiros bêbados insanos com o entusiasmo da batalha, marinheiros gritando enquanto suas mãos se transformavam em nadadeiras, os rostos se alongando em focinhos de golfinho. Eu sabia que, se o pressionasse, o sr. D iria me mostrar coisas piores. Iria plantar uma doença no meu cérebro que me levaria a usar camisa de força pelo resto da vida. — Gostaria de me testar, criança? — disse em voz baixa. — Não. Não, senhor. O fogo diminuiu um pouco. Ele voltou ao jogo de cartas. — Acho que ganhei. — Não exatamente, sr. D — disse Quíron. Ele baixou uma sequência, contou os pontos e disse: — O jogo é meu. Achei que o sr. D fosse transformar Quíron em pó em sua cadeira de rodas, mas ele apenas suspirou pelo nariz, como se estivesse acostumado a ser batido pelo professor de latim. Pôs-se de pé, e Grover levantou-se também. SEIS Minha transformação em Senhor Supremo do Banheiro Depois que assimilei o fato de meu professor de latim ser um cavalo, fizemos um passeio agradável, embora tivesse tido o cuidado de não andar atrás dele. Havia participado algumas vezes das rondas com pazinhas para recolher cocô de cachorro na Parada do Dia de Ação de Graças da loja Macy’s e, lamento dizer, não confiava na parte de trás de Quíron tanto quanto confiava na da frente. Passamos pela quadra de vôlei. Diversos campistas se cutucaram. Um deles apontou para o chifre de minotauro que eu carregava. Um outro disse: — É ele. A maioria dos campistas era mais velha que eu. Seus amigos sátiros eram maiores que Grover, todos trotando de um lado para outro de camisetas cor de laranja do ACAMPAMENTO MEIO-SANGUE, sem nada para cobrir os traseiros peludos à mostra. Eu normalmente não era tímido, mas o modo como olhavam para mim me deixou pouco à vontade. Era como se esperassem que eu desse um salto mortal ou coisa assim. Olhei para a casa da fazenda atrás de mim. Era muito maior do que eu pensara — quatro andares, azul- céu com acabamento em branco, como um hotel de veraneio de primeira classe à beira-mar. Eu estava conferindo o cata-vento de latão em forma de águia no topo quando algo me chamou a atenção, uma sombra na janela mais alta do sótão. Alguma coisa havia mexido na cortina, só por um segundo, e tive a nítida impressão de que estava sendo observado. — O que há lá em cima? — perguntei a Quíron. Ele olhou para onde eu estava apontando e seu sorriso desapareceu: — Apenas o sótão. — Mora alguém lá? — Não — disse em tom definitivo. — Nem uma única coisa viva. Tive a sensação de que ele falava a verdade. Mas também tinha certeza de que algo havia mexido naquela cortina. — Venha, Percy — disse Quíron, o tom despreocupado agora um pouco forçado. — Há muito para ver. Caminhamos pelos campos de morangos, onde campistas colhiam alqueires de morangos enquanto um sátiro tocava uma melodia numa flauta de bambu. Quíron me contou que o acampamento cultivava uma bela safra para exportar para os restaurantes de Nova York e para o Monte Olimpo. — Paga as nossas despesas — explicou. — E os morangos não exigem esforço quase nenhum. Ele disse que o sr. D produzia esse efeito sobre plantas frutíferas: elas simplesmente enlouqueciam quando ele estava por perto. Funcionava melhor com as vinhas, mas o sr. D estava proibido de cultivá-las, portanto, em vez delas eles plantavam morangos. Observei o sátiro tocando a flauta. A música fazia com que filas de insetos saíssem dos canteiros de morangos em todas as direções, como se fugissem de um incêndio. Imaginei se Grover podia fazer esse tipo de mágica com música. Imaginei se ainda estava dentro da casa, levando broncas do sr. D. — Grover não vai ter muitos problemas, vai? — perguntei a Quíron. — Quer dizer... ele foi um bom protetor. Sem dúvida. Quíron suspirou. Tirou o casaco de tweed e jogou-o por cima de seu lombo de cavalo, como uma sela. — Grover sonha alto, Percy. Talvez mais alto do que seria razoável. Para atingir seu objetivo, ele precisa primeiro demonstrar uma grande coragem tendo sucesso como guardião, encontrando um novo campista e trazendo-o em segurança à Colina Meio-Sangue. — Mas ele fez isso! — Eu poderia concordar com você — disse Quíron. — Mas não cabe a mim julgar. Dioniso e o Conselho dos Anciãos de Casco Fendido devem decidir. Receio que possam não ver essa missão como um sucesso. Afinal, Grover perdeu você em Nova York. Depois, há o desventurado... ahn... destino da sua mãe. E o fato de que Grover estava inconsciente quando você o arrastou até os limites da propriedade. O conselho pode questionar se isso demonstra alguma coragem da parte de Grover. Eu quis protestar. Nada do que acontecera havia sido por culpa de Grover. Também me sentia muito, muito culpado. Se não tivesse escapado de Grover na estação de ônibus, ele poderia não ter se envolvido em encrenca. — Ele vai ter uma segunda chance, não vai? Quíron retraiu-se. — Infelizmente aquela era a segunda chance de Grover, Percy. Além disso, o conselho não estava muito ansioso em lhe dar outra oportunidade depois do que aconteceu na primeira vez, cinco anos atrás. O Olimpo sabe, eu o aconselhei a esperar mais tempo antes de tentar de novo. Ele ainda é muito pequeno para a sua idade... — Que idade ele tem? — Ah, vinte e oito. — O quê! E ainda está no sétimo ano? — Os sátiros amadurecem no dobro do tempo dos seres humanos, Percy. Grover teve idade equivalente à de um aluno de escola secundária nos últimos seis anos. — Que coisa horrível. — De fato — concordou Quíron. — De qualquer modo, Grover está atrasado, mesmo pelos padrões de sátiro, e ainda não avançou muito em magia dos bosques. O pobre estava ansioso por perseguir o seu sonho. Talvez agora encontre alguma outra carreira... — Isso não é justo! — disse eu. — O que aconteceu na primeira vez? Foi mesmo assim tão ruim? Quíron desviou os olhos depressa. — Vamos andando? Mas eu ainda não estava pronto para mudar de assunto. Uma coisa me ocorrera quando Quíron falou sobre o destino de minha mãe, como se estivesse intencionalmente evitando a palavra morte. O princípio de uma ideia — uma pequenina e esperançosa chama — começou a se formar em minha cabeça. — Quíron — disse eu. — Se os deuses, o Olimpo e tudo isso são reais... — Sim, criança? — Isso significa que o Mundo Inferior também é real? A expressão de Quíron se fechou. — Sim, criança. — Ele fez uma pausa, como se estivesse escolhendo as palavras cuidadosamente. — Há um lugar para onde vão os espíritos após a morte. Mas por ora... até que saibamos mais... eu recomendaria que tirasse isso de sua cabeça. — O que quer dizer com “até que saibamos mais”? — Venha, Percy. Vamos ver os bosques. Quando nos aproximamos, me dei conta de como a floresta era enorme. Tomava pelo menos um quarto do vale, com árvores tão altas e largas que a impressão era de que ninguém entrara lá desde os nativos americanos. Quíron disse: — Os bosques têm provisões, se você quiser tentar a sorte, mas vá armado. — Provisões de quê? — perguntei. — Armado com o quê? — Você verá. O jogo Capture a Bandeira é na sexta-feira à noite. Você tem a sua própria espada e escudo? — Minha própria...? — Não — disse Quíron. — Não creio que tenha. Acho que o tamanho cinco vai servir. Mais tarde vou visitar o arsenal. Quis perguntar que tipo de acampamento de verão tem um arsenal, mas havia muito mais a pensar, portanto o passeio continuou. Vimos a linha de tiro com arco e flecha, o lago de canoagem, os estábulos (dos quais Quíron parecia não gostar muito), a linha de lançamento de dardo, o anfiteatro para cantoria e a arena onde Quíron disse que eles realizavam lutas de espadas e lanças. — Lutas de espadas e lanças? — perguntei. — Desafios entre chalés e coisas assim — explicou ele. — Não são letais. Normalmente. Ah, sim, e há também o refeitório. Quíron apontou para um pavilhão ao ar livre emoldurado por colunas gregas brancas sobre uma colina que dava para o mar. Havia uma dúzia de mesas de piquenique de pedra. Sem telhado. Sem paredes. — O que vocês fazem quando chove? — perguntei. Quíron me olhou como se eu tivesse ficado meio maluco: — Ainda assim temos de comer, não temos? Resolvi deixar para lá. Finalmente, ele me mostrou os chalés. Havia doze deles aninhados no bosque junto ao lago. Estavam dispostos em U, dois na frente e cinco enfileirados de cada lado. E eram, sem dúvida, o mais estranho conjunto de construções que já vi. A não ser pelo fato de cada um ter um grande número de latão acima da porta (ímpares do lado esquerdo, pares do direito), eram totalmente diferentes um do outro. O número 9 tinha chaminés, como uma minúscula fábrica. O número 4 tinha tomateiros nas paredes e uma cobertura feita de grama de verdade. O 7 parecia feito de um ouro sólido que reluzia tanto à luz do sol que era quase impossível de se olhar. Todos davam para uma área comum mais ou menos do tamanho de um campo de futebol, pontilhada de estátuas gregas, fontes, canteiros de flores e um par de cestos de basquete (o que era mais a minha praia). No centro do campo havia uma enorme área de pedras com uma fogueira. Muito embora fosse uma tarde quente, o fogo ardia de modo lento. Uma menina com cerca de nove anos estava cuidando das chamas, cutucando os carvões com uma vara. O par de chalés à cabeceira do campo, números 1 e 2, pareciam mausoléus casadinhos, grandes caixas de mármore branco com colunas pesadas na frente. O chalé 1 era o maior e mais magnífico dos doze. As portas de bronze polido cintilavam como um holograma, de tal modo que, vistas de ângulos diferentes, raios pareciam atravessá-las. O chalé 2 era de certo modo mais gracioso, com colunas mais finas encimadas com romãs e flores. As paredes eram entalhadas com imagens de pavões. — Zeus e Hera? — adivinhei. faca. — Este é Luke — disse Annabeth, e sua voz pareceu mudar um pouco. Dei uma olhada nela e poderia ter jurado que estava ficando vermelha. Ela me viu olhando e sua expressão endureceu de novo. — Ele é seu conselheiro por enquanto. — Por enquanto? — perguntei. — Você é indeterminado — explicou Luke pacientemente. — Eles não sabem em que chalé acomodá-lo, então você está aqui. O chalé 11 recebe todos os recém-chegados, todos os visitantes. Naturalmente. Hermes, o nosso patrono, é o deus dos viajantes. Olhei para o minúsculo espaço de chão que eles me deram. Eu não tinha nada para pôr ali e marcá-lo como meu, nenhuma bagagem, nenhuma roupa, nenhum saco de dormir. Apenas o chifre do Minotauro. Pensei em colocá-lo ali, mas então lembrei que Hermes era também o deus dos ladrões. Corri os olhos pelos rostos dos campistas, alguns mal-humorados e desconfiados, outros com um sorriso idiota, alguns me olhando como se esperassem uma oportunidade de limpar os meus bolsos. — Quanto tempo vou ficar aqui? — perguntei. — Boa pergunta — disse Luke. — Até você ser determinado. — Quanto tempo isso vai levar? Todos os campistas riram. — Venha — disse Annabeth. — Vou lhe mostrar o pátio de vôlei. — Eu já vi. — Venha. Ela agarrou meu pulso e me arrastou para fora. Pude ouvir o pessoal do chalé dando risadas atrás de mim. Quando estávamos a poucos metros de distância, Annabeth disse: — Jackson, você precisa fazer melhor do que isso. — O quê? Ela revirou os olhos e murmurou baixinho: — Não posso acreditar que achei que você fosse o cara. — Qual é o seu problema? — Eu agora estava ficando zangado. — Tudo o que sei é que matei um sujeito-touro... — Não fale assim! — disse Annabeth. — Você sabe quantos neste acampamento gostariam de ter tido a sua chance? — De ser mortos? — De enfrentar o Minotauro! Para que você acha que nós treinamos? Eu sacudi a cabeça. — Olhe, se a coisa contra a qual eu lutei era realmente o Minotauro, o mesmo das histórias... — Sim. — Então só existe um. — Sim. — E ele morreu, tipo um zilhão de anos atrás, certo? Teseu o matou no labirinto. Portanto... — Monstros não morrem, Percy. Eles podem ser mortos. Mas eles não morrem. — Ah, obrigado. Agora entendi tudo. — Eles não têm alma, como você e eu. Você pode bani-los por algum tempo, talvez até por toda uma vida, se tiver sorte. Mas eles são forças primitivas. Quíron os chama de arquétipos. No fim, eles se reconstituem. Pensei na sra. Dodds. — Você quer dizer que se eu matei um, acidentalmente, com uma espada... — A Fúr... Quer dizer, a sua professora de matemática. Está certo. Ela ainda está lá fora. Você apenas a deixou muito, muito zangada. — Como você sabe da sra. Dodds? — Você fala dormindo. — Você quase a chamou de alguma coisa. Uma Fúria? Elas são torturadoras do Hades, certo? Annabeth olhou nervosamente para o chão, como se esperasse que ele se abrisse e a engolisse. — Você não deve chamá-las pelo nome, mesmo aqui. Se acabamos tendo de falar nelas, nós as chamamos de as Benevolentes. — Puxa, existe alguma coisa que se possa dizer sem que haja trovões? — Eu soei reclamão, até para mim mesmo, mas naquele momento não me importei. — Por que tenho de ficar no chalé 11, afinal? Por que fica todo mundo tão amontoado? Há uma porção de beliches vazios logo ali. Apontei para os primeiros chalés e Annabeth empalideceu. — A gente não escolhe simplesmente um chalé, Percy. Depende de quem são seus progenitores. Ou... o seu progenitor. Ela olhou fixamente para mim, esperando que eu entendesse. — Minha mãe é Sally Jackson — disse eu. — Trabalha na doceria da Grande Estação Central. Pelo menos trabalhava. — Sinto muito por sua mãe, Percy. Mas não é isso que eu quis dizer. Estou falando sobre seu outro progenitor. Seu pai. — Ele está morto. Não cheguei a conhecê-lo. Annabeth suspirou. Era claro que já tivera aquela conversa com outras crianças: — Seu pai não está morto, Percy. — Como pode dizer isso? Você o conhece? — Não, é claro que não. — Então como você pode dizer... — Porque eu conheço você. Você não estaria aqui se não fosse um de nós. — Você não sabe nada a meu respeito. — Não? — Ela ergueu uma sobrancelha. — Aposto que você ficou passando de escola em escola. Aposto que foi expulso de uma porção delas. — Como... — Teve diagnóstico de dislexia. Provavelmente transtorno do déficit de atenção também. Tentei engolir meu constrangimento. — O que isso tem a ver? — Tudo junto, é quase um sinal certo. As letras flutuam para fora da página quando você lê, certo? Isso é porque a sua mente está fisicamente programada para o grego antigo. E o transtorno do déficit de atenção... você é impulsivo, não consegue ficar quieto na classe. Isso são os seus reflexos de campo de batalha. Numa luta real, eles o manterão vivo. Quanto aos problemas de atenção, isso é porque enxerga demais, Percy, e não de menos. Seus sentidos são mais aprimorados que os de um mortal comum. É claro que os professores querem que você seja medicado. Eles são em maioria monstros. Não querem que você os veja como são. — Você parece... você passou pelas mesmas coisas? — A maioria das crianças daqui passou. Se você não fosse um de nós, não poderia ter sobrevivido ao Minotauro, e muito menos à ambrosia e ao néctar. — Ambrosia e néctar. — A comida e a bebida que estávamos dando a você para curá-lo. Aquilo teria matado um garoto normal. Teria transformado seu sangue em fogo e seus ossos em areia e você estaria morto. Encare os fatos. Você é um meio-sangue. Um meio-sangue. Minha cabeça estava girando com tantas perguntas que eu não sabia por onde começar. Então uma voz rouca gritou: — Ora, ora! Um novato! Eu dei uma olhada. A menina grandalhona do chalé feio e vermelho vinha andando lentamente em nossa direção. Havia três outras meninas atrás dela, todas grandes, feias e de aparência malvada como ela, todas usando casacos camuflados. — Clarisse — suspirou Annabeth —, por que você não vai polir sua lança ou coisa assim? — Claro, srta. Princesa — disse a grandalhona. — Para poder atravessar você com ela na sexta-feira à noite. — Erre es korakas! — disse Annabeth, o que eu de algum modo entendi que era “Vá para os corvos!” em grego, embora tivesse a sensação de que devia ser uma praga pior do que parecia. — Você não tem chance. — Vamos transformá-la em pó — disse Clarisse, mas seu olho se crispou. Talvez ela não tivesse certeza de poder cumprir a ameaça. Voltou-se para mim. — Quem é esse nanico? — Percy Jackson — disse Annabeth —, esta é Clarisse, filha de Ares. Eu pisquei. — Tipo... o deus da guerra? Clarisse sorriu desdenhosa. — Você tem algum problema com isso? — Não — disse eu, recobrando minha presença de espírito. — Isso explica o mau cheiro. Clarisse rosnou. — Nós temos uma cerimônia de iniciação para novatos, Persiana. — Percy. — Seja o que for. Venha, vou lhe mostrar. — Clarisse... — Annabeth tentou dizer. — Fique fora disso, espertinha. Annabeth pareceu ofendida, mas ficou de fora, e eu realmente não queria a ajuda dela. Eu era o novato. Tinha de construir minha própria reputação. Entreguei a Annabeth meu chifre de minotauro e me preparei para a luta, mas antes que eu percebesse Clarisse tinha me segurado pelo pescoço e me arrastava na direção de um edifício de blocos de concreto que percebi imediatamente que era o banheiro. Eu chutava e dava murros no ar. Já tinha estado em muitas brigas antes, mas aquela Clarisse grandalhona tinha mãos de ferro. Arrastou-me para dentro do banheiro das meninas. Havia uma fileira de vasos sanitários de um lado e uma fileira de chuveiros do outro. Cheirava como qualquer banheiro público, e eu estava pensando — tanto quanto podia pensar com Clarisse me arrancando os cabelos — que se aquele lugar pertencia aos deuses, eles deviam poder comprar privadas melhores. As amigas de Clarisse estavam todas rindo, e eu tentava encontrar a força que usara para enfrentar o Annabeth assentiu. — Seu pai não está morto, Percy. Ele é um dos olimpianos. — Isso é... loucura. — Será? Qual é a coisa mais comum que os deuses faziam nas velhas histórias? Eles andavam por aí se apaixonando por seres humanos e tendo filhos com eles. Você pensa que eles mudaram os hábitos nos últimos poucos milênios? — Mas isso são apenas... — Eu quase disse mitos de novo. Então me lembrei do aviso de Quíron de que daqui a dois mil anos eu poderia ser considerado um mito. — Mas se todos aqui são meio deuses... — Semideuses — disse Annabeth. — Esse é o termo oficial. Ou meio-sangues. — Então quem é seu pai? As mãos dela se apertaram em volta da balaustrada do píer. Tive a sensação de que acabara de tocar em um assunto delicado. — Meu pai é um professor em West Point — disse ela. — Não o vejo desde que era muito pequena. Ele ensina história americana. — Ele é humano. — O quê? Está pensando que tem de ser um deus homem encontrando uma mulher humana atraente, e não o contrário? Sabe que isso é machismo? — Então quem é sua mãe? — Chalé 6. — O que significa? Annabeth endireitou o corpo. — Atena. Deusa da sabedoria e da guerra. Certo, pensei. Por que não? — E meu pai? — Indeterminado — disse Annabeth —, como eu lhe contei antes. Ninguém sabe. — A não ser minha mãe. Ela sabia. — Talvez não, Percy. Os deuses nem sempre revelam sua identidade. — Meu pai teria revelado. Ele a amava. Annabeth me deu uma olhada cautelosa. Ela não queria acabar com as minhas ilusões. —Talvez você esteja certo. Talvez ele vá enviar um sinal. Esse é o único modo de saber com certeza: seu pai tem de mandar a você um sinal reclamando você como filho. Às vezes isso acontece. — Quer dizer que às vezes não acontece? Annabeth correu a palma da mão pela balaustrada. — Os deuses são atarefados. Eles têm uma porção de filhos, e nem sempre... Bem, às vezes eles não se importam conosco, Percy. Eles nos ignoram. Pensei em algumas das crianças que tinha visto no chalé de Hermes, adolescentes que pareciam mal- humorados e deprimidos, como se estivessem esperando por um chamado que nunca viria. Conhecera crianças assim na Academia Yancy, descartadas para internatos por pais ricos que não tinham tempo para lidar com elas. Mas os deuses deviam se comportar melhor. — Então eu estou encalhado aqui — disse eu. — É isso? Pelo resto da minha vida? — Depende — disse Annabeth. — Alguns campistas só ficam no verão. Se você é filho de Afrodite ou Deméter, provavelmente não é uma força realmente poderosa. Os monstros podem ignorá-lo, e então você pode se arranjar com alguns meses de treinamento de verão e viver no mundo mortal pelo resto do ano. Mas, para alguns de nós, sair é perigoso demais. Temos de ficar o ano inteiro. No mundo mortal, atraímos monstros. Eles percebem nossa presença. Vêm nos desafiar. Na maioria das vezes eles nos ignoram até termos idade suficiente para causar problemas, cerca de dez ou onze anos, mas depois disso muitos dos semideuses vêm para cá ou são mortos. Alguns conseguem sobreviver no mundo exterior e se tornam famosos. Acredite, se eu lhe contasse os nomes você os conheceria. Alguns nem sequer se dão conta de que são semideuses. Mas poucos, muito poucos são assim. — Então os monstros não podem entrar aqui? Annabeth sacudiu a cabeça. — Não, a não ser que sejam intencionalmente mantidos nos bosques ou convocados por alguém de dentro. — Por que alguém ia querer convocar um monstro? — Para a prática de lutas. Para pregar peças. — Pregar peças? — A questão é que as fronteiras são fechadas para manter os mortais e os monstros de fora. Do lado de fora, os mortais olham para o vale e não veem nada de inusitado, apenas plantações de morangos. — Então... você é uma campista de ano inteiro? Annabeth assentiu. De dentro da gola da camiseta ela puxou um colar de couro com cinco contas de argila de cores diferentes. Era exatamente como o de Luke, só que o de Annabeth também tinha um grande anel de ouro enfiado, como um anel de faculdade. — Estou aqui desde que tinha sete anos — disse ela. — Todo mês de agosto, no último dia da sessão de verão, a gente ganha uma conta por sobreviver mais um ano. Estou aqui há mais tempo que a maioria dos conselheiros, e eles estão todos na faculdade. — Por que veio tão jovem? Ela girou o anel no colar. — Não é da sua conta. — Ah. — Fiquei ali por um minuto em um silêncio constrangedor. — Então... Eu poderia simplesmente sair andando daqui agora mesmo, se quisesse? — Seria suicídio, mas você poderia, com a permissão do sr. D ou de Quíron. Mas eles não dariam permissão até o final da sessão de verão, a não ser... — A não ser? — Que lhe seja concedida uma missão. Mas isso dificilmente acontece. Na última vez... A voz dela foi sumindo. Pude perceber pelo seu tom de voz que a última vez não tinha ido muito bem. — Antes, quando estava doente no quarto — disse eu —, quando você me dava de comer aquela coisa... — Ambrosia. — É. Você me perguntou algo sobre o solstício de verão. Os ombros de Annabeth se contraíram. — Então você sabe alguma coisa? — Bem... não. Na minha antiga escola, ouvi por acaso Grover e Quíron conversando sobre isso. Grover mencionou o solstício de verão. Ele disse algo como não termos muito tempo, por causa do prazo final. O que isso queria dizer? Ela apertou os punhos. — Eu gostaria de saber. Quíron e os sátiros, eles sabem, mas não contam para mim. Algo está errado no Olimpo, algo muito importante. Na última vez em que estive lá, parecia tudo tão normal. — Você esteve no Olimpo? — Alguns de nós, campistas de ano inteiro... Luke, Clarisse, eu e poucos outros... fizemos uma excursão durante o solstício de inverno. É quando os deuses fazem sua grande assembleia anual. — Mas... como chegou lá? — Pela Ferrovia de Long Island, é claro. Você desce na Estação Penn. Empire State, seiscentésimo andar. — Ela me olhou como quem tinha certeza de que eu já sabia disso. — Você é nova-iorquino, certo? — Ah, com certeza. — Até onde eu sabia, havia apenas cento e dois andares no Empire State, mas decidi não comentar isso. — Logo depois da visita — continuou Annabeth —, o tempo ficou esquisito, como se os deuses tivessem começado a brigar. Uma ou duas vezes desde então, ouvi sátiros conversando. O máximo que posso deduzir é que algo importante foi roubado. E, se não for devolvido até o solstício de verão, vai haver problemas. Quando você veio, eu estava esperando... quer dizer... Atena pode se entender com quase qualquer um, a não ser Ares. E, é claro, ela tem uma rivalidade com Poseidon. Mas, quer dizer, fora isso, pensei que poderíamos trabalhar juntos. Pensei que você pudesse saber alguma coisa. Sacudi a cabeça. Gostaria de poder ajudá-la, mas estava com fome, cansado e mentalmente sobrecarregado demais para fazer mais perguntas. — Preciso conseguir uma missão — murmurou Annabeth consigo mesma. — Eu não sou jovem demais. Se eles ao menos me contassem qual é o problema... Senti cheiro de churrasco vindo de algum lugar por perto. Annabeth deve ter ouvido meu estômago roncar. Disse-me para ir em frente, que me alcançaria depois. Eu a deixei no píer, correndo o dedo pela balaustrada como se estivesse desenhando um plano de batalha. De volta ao chalé 11, todo mundo estava falando e se divertindo, esperando o jantar. Pela primeira vez, notei que muitos campistas tinham feições parecidas: narizes pontudos, sobrancelhas arqueadas, sorrisos maliciosos. Eram o tipo de criança que os professores classificariam como encrenqueiros. Felizmente, ninguém prestou muita atenção em mim quando fui até meu lugar no chão e me deixei cair com o chifre de minotauro. O conselheiro, Luke, se aproximou. Ele também tinha a aparência familiar de Hermes. Estava desfigurada pela cicatriz na face direita, mas o sorriso estava intacto. — Arranjei um saco de dormir para você — disse ele. — E, aqui, furtei para você alguns artigos de toalete da loja do acampamento. Não deu para saber se ele estava brincando quanto àquela parte de furtar. Eu disse: — Obrigado. — Sem problemas. — Luke sentou-se ao meu lado, descansando as costas contra a parede. — Primeiro dia difícil? — Meu lugar não é aqui — disse eu. — Nem mesmo acredito em deuses. — É — disse ele. — Foi assim que todos nós começamos. E depois que você começa a acreditar neles? Não fica nem um pouco mais fácil. A amargura em sua voz me surpreendeu, porque Luke parecia ser o tipo de cara despreocupado. Parecia capaz de lidar com qualquer coisa. — Então seu pai é Hermes? — perguntei. Ele puxou um canivete de mola do bolso de trás e, por um segundo, pensei que fosse me destripar, mas ele apenas raspou o barro da sola da sandália. — É, Hermes. Eu era o próximo. Eu gostaria de saber o nome de qual deus devia dizer. Acabei fazendo um pedido silencioso. Quem quer que seja, conte-me. Por favor. Empurrei uma grande fatia de peito para as chamas. Quando inalei um pouco da fumaça, não engasguei. Não parecia nem um pouco cheiro de comida queimada. Cheirava a chocolate quente e brownies recém- assados, hambúrgueres grelhados e flores silvestres, e uma centena de outras coisas boas que não deviam combinar, mas combinavam. Dava até para acreditar que os deuses podiam viver daquela fumaça. Depois que todos voltaram aos lugares e terminaram de comer, Quíron bateu novamente o casco para chamar nossa atenção. O sr. D levantou-se com um enorme suspiro. — Sim, suponho que deva dizer olá a todos vocês, moleques. Bem, olá. Nosso diretor de atividades, Quíron, diz que a próxima captura da bandeira será na sexta-feira. Atualmente, o chalé 5 detém os lauréis. Um monte de aplausos disformes se ergueu da mesa de Ares. — Pessoalmente — continuou o sr. D —, não me importo nem um pouco, mas congratulações. Também devo lhes dizer que temos um novo campista hoje. Peter Johnson. Quíron murmurou alguma coisa. — Ahn, Percy Jackson — corrigiu o sr. D. — Está certo. Viva, e tudo o mais. Agora vão correndo para a sua fogueira boba. Andem. Todos aplaudiram. Dirigimo-nos para o anfiteatro, onde o chalé de Apolo liderou a cantoria. Cantamos canções de acampamento sobre os deuses, comemos besteiras e nos divertimos, e o engraçado foi que não senti ninguém mais olhando para mim. Era como estar em casa. Mais à noite, quando as fagulhas da fogueira se enroscavam em um céu estrelado, a trombeta de caramujo soou de novo, e todos nós formamos filas para voltar aos nossos chalés. Não me dei conta de como estava exausto até desmoronar em meu saco de dormir emprestado. Meus dedos se fecharam em volta do chifre do Minotauro. Pensei em minha mãe, mas tive bons pensamentos: o sorriso dela, as histórias que lia para mim antes de dormir quando eu era pequeno, o jeito como me dizia para não deixar os percevejos me morderem. Quando fechei os olhos, adormeci instantaneamente. Assim foi meu primeiro dia no Acampamento Meio-Sangue. Queria de ter sabido antes que em tão pouco tempo passaria a gostar de meu novo lar. OITO Nós capturamos uma bandeira Em poucos dias me acomodei em uma rotina que parecia quase normal, se descontarmos o fato de que eu tinha aulas com sátiros, ninfas e um centauro. Todas as manhãs estudava grego antigo com Annabeth e conversávamos sobre deuses e deusas no presente, o que era um pouco estranho. Descobri que Annabeth estava certa a respeito da minha dislexia: o grego antigo não era tão difícil de ler. Pelo menos, não mais difícil que inglês. Depois de algumas manhãs eu já conseguia ler sem muita dor de cabeça algumas linhas de Homero, tropeçando aqui e ali. No resto do dia eu alternava atividades ao ar livre, procurando alguma coisa em que fosse bom. Quíron tentou me ensinar arco e flecha, mas descobrimos bem depressa que eu não dava para aquilo. Ele não reclamou nem mesmo quando teve de arrancar de suas ancas uma flecha perdida. Corrida? Eu também não era bom. As instrutoras, as ninfas do bosque, me faziam comer poeira. Disseram- me para não me preocupar com isso. Tiveram séculos de prática fugindo de deuses apaixonados. Mas ainda assim era meio humilhante ser mais lento que uma árvore. E as lutas? Esqueça. Toda vez que ia para a esteira, Clarisse acabava comigo. “E vem mais por aí, seu mané”, murmurava ao meu ouvido. A única coisa em que eu era mesmo excelente era canoagem, e esse não era o tipo de habilidade de herói que as pessoas esperavam do cara que venceu o Minotauro. Sabia que os campistas mais velhos e os conselheiros me observavam, tentando concluir quem era meu pai, mas não estava sendo fácil para eles. Eu não era tão forte quanto os garotos de Ares, nem tão bom em arco e flecha quanto os garotos de Apolo. Não tinha a perícia de Hefesto com metais ou — os deuses me livrem — o jeito de Dioniso com as vinhas. Luke me disse que eu podia ser filho de Hermes, uma espécie de pau para toda obra, mestre nada. Mas eu tinha a sensação de que ele só estava tentando me fazer sentir melhor. Na verdade, também não sabia o que fazer comigo. A despeito disso tudo, eu gostava do acampamento. Eu me acostumei com a neblina matinal sobre a praia, com o cheiro dos campos de morangos à tarde e até com os ruídos esquisitos dos monstros nos bosques à noite. Eu jantava com o chalé 11, empurrava parte da minha refeição para o fogo e tentava sentir alguma conexão com meu verdadeiro pai. Não vinha nada. Apenas aquela sensação morna que eu sempre tive, a lembrança do seu sorriso. Tentei não pensar demais na minha mãe, mas ficava matutando: se deuses e monstros eram reais, se todas aquelas coisas mágicas eram possíveis, certamente haveria algum jeito de salvá-la, de trazê-la de volta... Comecei a entender o ressentimento de Luke e como ele parecia magoado com o pai, Hermes. Certo, talvez os deuses tivessem tarefas importantes a fazer. Mas não poderiam fazer uma visita de vez em quando, trovejar ou alguma coisa? Dioniso podia fazer Diet Coke aparecer do nada. Por que meu pai, quem quer que fosse, não podia fazer aparecer um telefone? Quinta-feira à tarde, três dias depois de chegar ao Acampamento Meio-Sangue, tive minha primeira aula de esgrima. Todos do chalé 11 se reuniram na grande arena circular, onde Luke seria nosso instrutor. Começamos com estocadas e cutiladas básicas, usando bonecos recheados de palha com armaduras gregas. Acho que fui bem. Pelo menos entendi o que devia fazer e meus reflexos foram bons. O problema era que eu não conseguia encontrar uma lâmina que se adaptasse às minhas mãos. Eram pesadas demais, leves demais ou compridas demais. Luke fez o melhor que pôde para me ajudar, mas concordou que nenhuma das lâminas de prática parecia funcionar para mim. Passamos adiante, para duelo em duplas. Luke anunciou que seria meu parceiro, já que era a minha primeira vez. — Boa sorte — disse um dos campistas. — Luke é o melhor espadachim dos últimos trezentos anos. — Talvez ele pegue leve comigo — comentei. O campista riu, desdenhoso. Luke me mostrou as estocadas, paradas e defesas com escudo do jeito difícil. A cada golpe eu estava um pouco mais surrado e contundido. — Mantenha a guarda alta, Percy — dizia ele, e então me atingia com força nas costelas usando a parte chata da lâmina. — Não, não tanto assim! — Plaft! — Ataque! — Plaft! — Agora, recue! — Plaft! Quando ele pediu um tempo, eu estava empapado de suor. Todos correram para o isopor de bebidas. Luke despejou água gelada em cima da própria cabeça, o que me pareceu uma ótima ideia. Fiz a mesma coisa. Na mesma hora me senti melhor. A força percorreu novamente os meus braços. A espada não parecia mais tão difícil de manejar. — O.k., todo mundo em círculo! — ordenou Luke. — Se Percy não se importar, vou fazer uma pequena demonstração. Incrível, pensei. Vamos todos assistir enquanto Percy é triturado. Os garotos de Hermes se reuniram em volta. Estavam todos contendo o riso. Imaginei que já tinham passado por aquilo e mal podiam esperar para ver Luke me usar como saco de pancadas. Ele disse a todos que ia mostrar uma técnica para desarmar o oponente: como girar a lâmina do inimigo com a parte chata da própria espada para que ele não tenha alternativa a não ser deixar a arma cair. — Isso é difícil — enfatizou. — Já usaram contra mim. Não riam de Percy agora. A maioria dos espadachins precisa trabalhar anos para dominar essa técnica. Ele demonstrou o movimento para mim em câmara lenta. Como previsto, a espada pulou da minha mão. — Agora, em tempo real — disse ele depois que recuperei minha arma. — Vamos fazer o movimento até que um de nós tenha sucesso. Pronto, Percy? Eu assenti, e Luke veio para cima de mim. De algum modo, eu o impedi de golpear o cabo da minha espada. Meus sentidos se aguçaram. Vi seus ataques chegando. Eu rebati. Dei um passo à frente e tentei minha própria estocada. Luke a desviou facilmente, mas notei uma mudança em seu rosto. Seus olhos se estreitaram, e ele começou a me pressionar com mais força. A espada estava pesando em minha mão. Mal equilibrada. Eu sabia que era apenas uma questão de segundos antes que Luke me derrubasse, então decidi: Que se dane! Tentei a manobra para desarmar. Minha lâmina atingiu a base da de Luke e eu a girei, pondo todo o meu peso em um golpe para baixo. Plem! A espada de Luke retiniu contra as pedras. A ponta da minha lâmina estava a dois centímetros do seu peito desprotegido. Os outros campistas ficaram em silêncio. Baixei minha espada. — Ahn, sinto muito. Por um momento, Luke ficou perplexo demais para falar. A história me fez sentir oco, e também culpado. Uma menina da minha idade se sacrificara para salvar os amigos. Enfrentara todo um exército de monstros. Perto disso, minha vitória sobre o Minotauro não parecia grande coisa. Perguntei a mim mesmo se agindo diferente poderia ter salvado minha mãe. — Grover, os heróis realmente partiram em missões para o Mundo Inferior? — Algumas vezes — disse ele. — Orfeu. Hércules. Houdini. — E chegaram a trazer alguém de volta da morte? — Não. Nunca. Orfeu chegou perto... Percy, você não está pensando mesmo em... — Não — menti. — Estava só imaginando. Então... um sátiro é sempre designado para guardar um semideus? Grover me estudou cauteloso. Eu não o tinha convencido de que desistira da ideia do Mundo Inferior. — Nem sempre. Vamos disfarçados para uma porção de escolas. Tentamos farejar os meios-sangues que tenham atributos de grandes heróis. Se encontramos um com uma aura muito forte, como uma criança dos Três Grandes, alertamos Quíron. Ele tenta ficar de olho neles, já que podem causar problemas realmente enormes. — E você me encontrou. Quíron disse que você achava que eu poderia ser algo especial. Grover soou como se eu acabasse de atraí-lo para uma armadilha. — Eu não... Ora, escute, não pense assim. Se você fosse... você sabe... jamais lhe permitiriam uma missão, e eu jamais teria a minha licença. Você provavelmente é filho de Hermes. Ou talvez até de um dos deuses menores, como Nêmesis, a deusa da vingança. Não se preocupe, tá? Percebi que ele estava tentando tranquilizar mais a si mesmo que a mim. Naquela noite após o jantar havia muito mais agitação que de costume. Finalmente, era hora da captura da bandeira. Quando os pratos foram levados embora, a trombeta de caramujo soou e todos nos postamos junto às nossas mesas. Os campistas gritaram e aplaudiram quando Annabeth e dois de seus irmãos entraram correndo no pavilhão, carregando um estandarte de seda. Tinha cerca de três metros de comprimento, reluzindo em cinza, com a pintura de uma coruja em cima de uma oliveira. Do lado oposto do pavilhão, Clarisse e as amigas entraram correndo com outro estandarte, de tamanho idêntico, mas vermelho-berrante, com a pintura de uma lança sanguinolenta e uma cabeça de javali. Virei-me para Luke e gritei por cima do barulho: — Aquelas são as bandeiras? — Sim. — Ares e Atena sempre lideram as equipes? — Nem sempre — disse ele. — Mas frequentemente. — Então, se um outro chalé capturar uma delas, o que vocês fazem, pintam de novo a bandeira? Ele sorriu ironicamente. — Você vai ver. Primeiro temos de conseguir uma. — De que lado nós estamos? Ele me deu uma olhada astuta, como se soubesse algo que eu não sabia. A cicatriz em seu rosto o fazia parecer quase mau à luz das tochas. — Fizemos uma aliança temporária com Atena. Esta noite, tiraremos a bandeira de Ares. E você vai ajudar. As equipes foram anunciadas. Atena tinha feito uma aliança com Apolo e Hermes, os dois chalés maiores. Aparentemente, haviam sido trocados privilégios — horários de chuveiro, escala de deveres, as melhores posições nas atividades — a fim de ganhar apoio. Ares tinha se aliado a todos os outros: Dioniso, Deméter, Afrodite e Hefesto. Pelo que eu tinha visto, os campistas de Dioniso eram na verdade bons atletas, mas havia apenas dois deles. Os de Deméter tinham ligeira vantagem em habilidades na natureza e atividades ao ar livre, mas não eram muito agressivos. Com os filhos e filhas de Afrodite eu não estava muito preocupado. Eles, na maioria das vezes, esperavam sentados todas as atividades acabarem e iam conferir seus reflexos no lago, penteavam os cabelos e fofocavam. Os de Hefesto não eram bonitos, e havia apenas quatro deles, mas eram grandes e corpulentos de tanto trabalhar na oficina de metais o dia inteiro. Poderiam ser um problema. Com isso, é claro, restava o chalé de Ares: uma dúzia dos maiores, mais feios e mais perversos garotos e garotas de Long Island, ou de qualquer outro lugar no planeta. Quíron bateu o casco no mármore. — Heróis! — anunciou. — Vocês conhecem as regras. O riacho é o limite. A floresta inteira está valendo. Todos os itens mágicos são permitidos. A bandeira deve ser ostentada de modo destacado e não deve ter mais de dois guardas. Os prisioneiros podem ser desarmados, mas não podem ser amarrados ou amordaçados. Não é permitido matar nem aleijar. Servirei como juiz e médico do campo de batalha. Armem-se! Ele estendeu as mãos e as mesas subitamente se cobriram de equipamentos: capacetes, espadas de bronze, lanças, escudos de couro de boi recobertos de metal. — Uau! — falei. — Temos mesmo que usar isso? Luke olhou para mim como se eu estivesse louco. — A não ser que você queira ser espetado pelos seus amigos do chalé 5. Aqui... Quíron achou que estes devem lhe servir. Você ficará na patrulha da fronteira. Meu escudo era do tamanho de uma tabela de basquete da NBA, com um grande caduceu no meio. Pesava cerca de um milhão de quilos. Eu poderia muito bem usá-lo como prancha de snowboard, mas tinha esperanças de que ninguém tivesse expectativas reais de que eu corresse com aquilo. Meu capacete, como todos os capacetes do lado de Atena, tinha um penacho de crina azul no topo. Ares e seus aliados tinham penachos vermelhos. Annabeth gritou: — Equipe azul, para a frente! Aplaudimos e agitamos nossas espadas, e a seguimos para baixo pelo caminho para os bosques do sul. A equipe vermelha gritou nos provocando enquanto seguia em direção ao norte. Consegui alcançar Annabeth sem tropeçar em meu próprio equipamento. — Ei! Ela continuou marchando. — Então, qual é o plano? — perguntei. — Tem alguns itens mágicos para me emprestar? A mão dela se desviou para o bolso, como se estivesse com medo de que eu roubasse alguma coisa. — Só digo para ter cuidado com a lança de Clarisse. Você não vai querer que aquela coisa toque em você. Fora isso, não se preocupe. Vamos tomar a bandeira de Ares. Luke determinou sua tarefa? — Patrulha de fronteira, seja lá o que isso for. — É fácil. Fique junto ao riacho, mantenha os vermelhos longe. Deixe o resto comigo. Atena sempre tem um plano. Ela seguiu adiante, me deixando na poeira. — Certo — murmurei. — Fico contente por me querer na sua equipe. Era uma noite quente e úmida, grudenta. Os bosques estavam escuros, com vaga-lumes aparecendo e sumindo. Annabeth me designou para um pequeno regato que rumorejava por cima de algumas pedras, depois ela e o restante da equipe se espalharam entre as árvores. Ali sozinho, com meu grande capacete de penacho azul e meu enorme escudo, me senti um idiota. A espada de bronze, como todas as espadas que eu experimentara até então, parecia mal equilibrada. O cabo de couro pesava em minha mão como uma bola de boliche. Não havia como alguém me atacar de verdade, não é? Quer dizer, o Olimpo tinha de ter responsabilidade, certo? Longe, a trombeta de caramujo soou. Ouvi brados e gritos nos bosques, metais chocando-se, gente lutando. Um aliado de Apolo de penacho azul passou por mim correndo como um cervo, pulou o regato e desapareceu em território inimigo. Essa é boa, pensei. Vou ficar de fora da diversão, como sempre. Então ouvi um som que me deu um calafrio na espinha, um rosnado canino grave em algum lugar por perto. Ergui o escudo instintivamente; tinha a sensação de que alguma coisa estava me espreitando. Então o rosnado parou. Senti a presença recuando. Do outro lado do regato, a vegetação rasteira explodiu. Cinco guerreiros de Ares saíram gritando e berrando da escuridão. — Acabem com o mané! — berrou Clarisse. Seus olhos feios de porco faiscaram nas fendas do capacete. Ela brandiu uma lança de um metro e meio de comprimento, a ponta de metal farpado lançando chispas de luz vermelha. Seus irmãos só tinham espadas de bronze comuns — não que isso me fizesse sentir melhor. Eles atacaram cruzando o regato. Não havia ajuda à vista. Eu podia correr. Ou podia me defender contra metade do chalé de Ares. Consegui me esquivar do golpe do primeiro garoto, mas aqueles caras não eram estúpidos como o Minotauro. Eles me cercaram, e Clarisse investiu contra mim com sua lança. Meu escudo desviou a ponta, mas senti um formigamento doloroso em todo o corpo. Meus cabelos se eriçaram. O braço que segurava o escudo ficou dormente e o ar queimou. Eletricidade. Aquela lança estúpida era elétrica. Eu recuei. Outro cara de Ares me golpeou no peito com a parte mais grossa da espada e eu caí. Eles podiam ter me chutado até eu virar geleia, mas estavam muito ocupados rindo. — Façam um corte no cabelo dele — disse Clarisse. — Agarrem o cabelo dele. Consegui me pôr de pé. Ergui a espada, mas Clarisse a jogou violentamente para o lado com sua lança, e fagulhas voaram. Agora meus braços estavam dormentes. — Ah, uau! — disse Clarisse. — Estou com medo desse cara. Realmente apavorada. — A bandeira está para lá — disse a ela. Queria parecer zangado, mas acho que não consegui. — É — disse um dos irmãos dela. — Mas, veja bem, nós não nos importamos com a bandeira. A gente se importa com um cara que fez o pessoal do nosso chalé de idiota. — Vocês não precisam de mim para isso. — Provavelmente não foi a coisa mais esperta a dizer. Dois deles vieram para cima de mim. Recuei em direção ao regato, tentei erguer meu escudo, mas Clarisse era muito rápida. Sua lança me pegou bem nas costelas. Se eu não estivesse usando uma armadura blindada, teria virado churrasco no espeto. Do jeito que foi, a ponta elétrica quase fez meus dentes saltarem da boca com o choque. Um de seus colegas de chalé desferiu a espada contra o meu braço, fazendo um bom talho. Ver meu próprio sangue me deixou zonzo — quente e frio ao mesmo tempo. — Não, você não está — disse ela. — Quíron, veja isto. Eu estava cansado demais para discutir. Voltei para dentro do regato, o acampamento inteiro reunido à minha volta. No mesmo instante me senti melhor. Pude perceber os cortes em meu peito se fechando. Alguns dos campistas sufocaram um grito. — Olhem, eu... eu não sei por quê — falei, tentando me desculpar. — Sinto muito... Mas eles não estavam olhando minhas feridas cicatrizarem. Olhavam para algo acima da minha cabeça. — Percy — disse Annabeth apontando. — Ahn... Quando olhei para cima, o sinal já estava desaparecendo, mas ainda pude distinguir o holograma de luz verde, girando e cintilando. Uma lança de três pontas: um tridente. — Seu pai — murmurou Annabeth. — Isso realmente não é bom. — Está determinado — anunciou Quíron. Por toda a minha volta, os campistas começaram a se ajoelhar, até mesmo o chalé de Ares, embora não parecessem muito felizes com isso. — Meu pai? — perguntei, completamente perplexo. — Poseidon — disse Quíron. — Senhor dos Terremotos. Portador das Tempestades. Pai dos Cavalos. Salve, Perseu Jackson, Filho do Deus do Mar. NOVE Oferecem-me uma missão Na manhã seguinte, Quíron me mudou para o chalé 3. Não tive de compartilhá-lo com ninguém. Tinha espaço à vontade para todas as minhas coisas: o chifre do Minotauro, um conjunto de roupas de reserva e uma sacola de artigos de toalete. Ia me sentar à minha própria mesa de jantar, escolhia todas as minhas atividades, determinava o “apagar das luzes” sempre que tinha vontade e não ouvia a mais ninguém. E me sentia totalmente infeliz. Bem quando começava a me sentir aceito, a sentir que tinha um lar no chalé 11 e poderia ser um garoto normal — ou tão normal quanto é possível quando se é um meio-sangue —, fui separado como se tivesse alguma doença rara. Ninguém mencionou o cão infernal, mas tive a sensação de que estavam todos falando sobre isso pelas minhas costas. O ataque assustara todo mundo. Ele mandou duas mensagens: a primeira, que eu era filho do deus do mar; a segunda, que os monstros não mediriam esforços para me matar. Podiam até invadir um acampamento que sempre foi considerado seguro. Os outros campistas mantinham distância de mim na medida do possível. O chalé 11 estava agitado demais para receber aula de esgrima junto comigo depois do que eu fizera com o pessoal de Ares no bosque, e assim minhas aulas com Luke passaram a ser particulares. Ele me exigia mais do que nunca, e não tinha medo de me machucar. — Você vai precisar de todo o treinamento que puder obter — prometeu, enquanto trabalhávamos com tochas flamejantes e espadas. — Agora vamos tentar de novo aquele golpe de decapitar víboras. Mais cinquenta repetições. Annabeth ainda me ensinava grego pela manhã, mas parecia distraída. A cada vez que eu dizia alguma coisa, ela fechava a cara, como se eu tivesse acabado de lhe dar um soco. Depois das aulas, ela ia embora resmungando consigo mesma: — Missão... Poseidon?... Grande porcaria... Preciso de um plano... Até Clarisse mantinha distância, embora os olhares venenosos deixassem claro que queria me matar por ter quebrado sua lança mágica. Queria que ela simplesmente gritasse, me desse um soco ou coisa assim. Era melhor me meter em brigas todos os dias a ser ignorado. Soube que alguém no acampamento andava ressentido comigo, porque uma noite entrei no meu chalé e achei um jornal horrível jogado porta adentro, um exemplar do New York Daily News, aberto na página Metrópole. Levei quase uma hora para ler a matéria, porque quanto mais ficava zangado mais as palavras pareciam flutuar na página. MENINO E SUA MÃE AINDA DESAPARECIDOS DEPOIS DE ESTRANHO ACIDENTE DE CARRO POR EILEEN SMYTHE Sally Jackson e seu filho Percy ainda não foram encontrados uma semana depois de seu misterioso desaparecimento. O carro da família, um Camaro 1978, totalmente queimado, foi descoberto no último sábado em uma estrada ao norte de Long Island com o teto arrancado e o eixo dianteiro quebrado. O carro havia capotado e derrapado por várias centenas de metros antes de explodir. Mãe e filho tinham ido passar um fim de semana em Montauk, mas saíram às pressas, sob circunstâncias misteriosas. Pequenos sinais de sangue foram encontrados no carro e perto da cena do desastre, mas não havia outros indícios dos Jackson desaparecidos. Residentes da área rural declararam não ter visto nada de inusitado por volta da hora do acidente. O marido da sra. Jackson, Gabe Ugliano, alega que o enteado, Percy Jackson, é uma criança problemática que foi expulsa de inúmeros internatos e demonstrou tendências violentas no passado. A polícia não diz se o filho Percy é suspeito do desaparecimento da mãe, porém não descarta a hipótese de crime. Abaixo estão fotografias recentes de Sally Jackson e Percy. A polícia solicita a qualquer pessoa que tenha alguma informação que ligue gratuitamente para o disque-denúncia de crimes, a seguir. O número do telefone estava circulado com marcador preto. Amarrotei o jornal e joguei fora, depois me joguei em meu beliche no meio do chalé vazio. “Apagar das luzes”, disse para mim mesmo, arrasado. Naquela noite, tive meu pior pesadelo até então. Eu corria pela praia no meio de uma tempestade. Dessa vez, havia uma cidade atrás de mim. Não Nova York. O panorama era diferente: os edifícios eram mais afastados uns dos outros, havia palmeiras e colinas baixas a distância. Cem metros adiante, na arrebentação, dois homens estavam brigando. Pareciam lutadores da tevê, musculosos, com barbas e cabelos compridos. Ambos usavam túnicas gregas esvoaçantes, uma guarnecida de azul, a outra, de verde. Atracavam-se, lutavam, chutavam e davam cabeçadas — e, a cada vez que se tocavam, caíam raios, o céu escurecia e ventos sopravam. Eu precisava detê-los. Não sabia por quê. Mas, quanto mais eu corria, mais o vento me empurrava de volta, até eu correr sem sair do lugar, os calcanhares se enterrando inutilmente na areia. Por cima do rugido da tempestade, pude ouvir o de túnica azul gritando para o de túnica verde: Devolva! Devolva! Era como se uma criança de jardim de infância estivesse brigando por causa de um brinquedo. As ondas ficaram maiores, arrebentando na praia e me borrifando com sal. Eu gritei: Parem com isso! Parem de brigar! O chão estremeceu. Risadas vieram de algum lugar embaixo da terra, e uma voz profunda e maligna me gelou o sangue. Venha para baixo, pequeno herói, a voz sussurrou. Venha para baixo! A areia se abriu embaixo de mim numa fenda que ia direto ao centro da Terra. Meus pés escorregaram e as trevas me engoliram. Acordei, certo de que estava caindo. Ainda estava na cama, no chalé 3. Meu corpo me dizia que já era manhã, mas estava escuro lá fora e o trovão ribombava pelas colinas. Uma tempestade estava se formando. Isso eu não havia sonhado. Ouvi um som oco à porta, o som de um casco batendo na soleira. — Entre. Grover trotou para dentro, parecendo preocupado. — O sr. D quer vê-lo. — Por quê? — Ele quer matar... quer dizer, é melhor deixar que ele conte. Eu me vesti, agitado, e fui, certo de que estava em uma grande encrenca. contra os Titãs, que decepou o cume do Monte Etna e arremessou Cronos para fora do seu trono; o raio- mestre, que acumula potência suficiente para fazer as bombas de hidrogênio dos mortais parecerem fogos de artifício. — E ele desapareceu? — Roubaram — disse Quíron. — Quem roubaram? — Quem roubou — corrigiu Quíron. Uma vez professor, sempre professor. — Você. Meu queixo caiu. — Pelo menos — Quíron ergueu uma das mãos —, é isso que Zeus pensa. Durante o solstício de inverno, na última assembleia dos deuses, Zeus e Poseidon tiveram uma discussão. As tolices de sempre: “A Mãe Reia sempre gostou mais de você”, “Os desastres aéreos são mais espetaculares que os desastres marítimos” etc. Mais tarde, Zeus se deu conta de que o seu raio-mestre havia desaparecido, levado da sala do trono bem debaixo do seu nariz. No mesmo instante culpou Poseidon. Agora, um deus não pode usurpar diretamente o símbolo de poder de outro deus — isso é proibido pela mais antiga das leis divinas. Mas Zeus acredita que seu pai convenceu um herói humano a pegá-lo. — Mas eu não... — Paciência, e escute, criança — disse Quíron. — Zeus tem boas razões para suspeitar. As forjas dos Ciclopes ficam embaixo do oceano, o que dá a Poseidon alguma influência sobre os fabricantes dos raios do seu irmão. Zeus acredita que Poseidon pegou o raio-mestre e está agora mandando os Ciclopes construírem secretamente um arsenal de cópias ilegais, que poderiam ser usadas para derrubar Zeus do seu trono. A única coisa de que Zeus não tinha certeza era qual herói Poseidon usara para roubar o raio. Agora Poseidon declarou abertamente que você é filho dele. Você estava em Nova York nas férias de inverno. Poderia facilmente ter se infiltrado no Olimpo. Zeus acredita que encontrou o seu ladrão. — Mas eu nunca estive no Olimpo! Zeus está maluco! Quíron e Grover olharam nervosamente para o céu. As nuvens não pareciam estar se separando à nossa volta, como Grover prometera. Estavam vindo para cima do nosso vale, fechando-nos dentro dele como uma tampa de caixão. — Ahn, Percy...? — disse Grover. — Nós não usamos essa palavra que começa com m para descrever o Senhor do Céu. — Paranoico, quem sabe — sugeriu Quíron. — Mas, por outro lado, Poseidon já tentou derrubar Zeus antes. Acredito que essa foi a pergunta 38 da sua prova final... — Ele olhou para mim como quem realmente esperava que eu me lembrasse da pergunta 38. Como podia alguém me acusar de roubar a arma de um deus? Eu não conseguia nem furtar um pedaço de pizza da mesa de pôquer de Gabe sem ser pego. Quíron estava esperando por uma resposta. — Alguma coisa a ver com uma rede de ouro? — adivinhei. — Poseidon, e Hera, e alguns outros deuses... eles, tipo, prenderam Zeus numa armadilha e não o deixaram sair até ele prometer ser um soberano melhor, certo? — Correto — disse Quíron. — E Zeus nunca mais confiou em Poseidon desde então. Poseidon, é claro, nega ter roubado o raio-mestre. Ele se ofendeu com a acusação. Os dois vêm discutindo o tempo todo há meses, com ameaças de guerra. E agora você apareceu — a famosa gota d’água. — Mas eu sou apenas uma criança! — Percy — interveio Grover —, se você fosse Zeus, e já achasse que o seu irmão estava planejando derrubá-lo, e então o seu irmão subitamente admitisse que havia quebrado o juramento sagrado que fizera depois da Segunda Guerra Mundial e que era pai de um novo herói mortal que poderia ser usado como uma arma contra você... Isso não o deixaria com a pulga atrás da orelha? — Mas eu não fiz nada. Poseidon, meu pai, realmente não mandou roubar esse raio-mestre, mandou? Quíron suspirou. — A maioria dos observadores inteligentes concordaria que o roubo não faz o estilo de Poseidon. Mas o deus do mar é orgulhoso demais para tentar convencer Zeus disso. Zeus exigiu que Poseidon devolva o raio até o solstício de verão. Isso será em 21 de junho, dez dias a contar de agora. Poseidon quer um pedido de desculpas por ser chamado de ladrão até essa mesma data. Eu tinha esperanças de que a diplomacia prevalecesse, que Hera ou Deméter ou Héstia fariam os dois irmãos verem a razão. Mas a sua chegada inflamou o gênio de Zeus. Agora nenhum dos dois deuses quer recuar. A não ser que alguém intervenha, a não ser que o raio-mestre seja encontrado e devolvido a Zeus antes do solstício, haverá guerra. E você sabe como poderia ser uma guerra total, Percy? — Ruim? — adivinhei. — Imagine o mundo em caos. A natureza em guerra consigo mesma. Os olimpianos forçados a escolher lados entre Zeus e Poseidon. Destruição. Carnificina. Milhões de mortos. A civilização ocidental transformada em um campo de batalha tão grande que fará a Guerra de Troia parecer uma luta de balões d’água. — Ruim — repeti. — E você, Percy Jackson, será o primeiro a sentir a ira de Zeus. Começou a chover. Os jogadores de vôlei interromperam o jogo e olhavam em silêncio perplexo para o céu. Eu havia trazido a tempestade para a Colina Meio-Sangue. Zeus estava punindo o acampamento inteiro por minha causa. Eu estava furioso. — Então eu tenho de encontrar aquele raio estúpido — disse. — E devolvê-lo a Zeus. — Que melhor oferenda de paz — disse Quíron —, do que fazer o filho de Poseidon devolver o que é de Zeus? — Se não está com Poseidon, onde está essa coisa? — Eu creio que sei. — A expressão de Quíron era soturna. — Parte da profecia que recebi anos atrás... bem, algumas frases fazem sentido para mim, agora. Mas, antes que eu possa dizer mais, você precisa aceitar oficialmente a missão. Você precisa procurar o conselho do Oráculo. — Por que você não pode dizer de antemão onde está o raio? — Porque, se eu fizer isso, você ficará assustado demais para aceitar o desafio. Eu engoli em seco. — Boa razão. — Então você concorda? Olhei para Grover, que assentiu encorajadoramente. Fácil para ele. Era a mim que Zeus queria matar. — Está bem — disse eu. — É melhor do que ser transformado em um golfinho. — Então é hora de você consultar o Oráculo — disse Quíron. — Vá para cima, Percy Jackson, para o sótão. Quando descer de novo, presumindo que ainda esteja lúcido, conversaremos mais. Quatro lances acima, a escada terminava embaixo de um alçapão verde. Puxei o cordão. A porta se abriu e uma escada de madeira caiu ruidosamente no lugar. O ar morno que vinha de cima cheirava a mofo, madeira podre e mais alguma coisa... um cheiro que me lembrou a aula de biologia. Répteis. O cheiro de serpentes. Prendi a respiração e subi. O sótão estava atulhado de sucata de heróis gregos: suportes de armaduras cobertos de teias de aranha; escudos outrora brilhantes cheios de adesivos dizendo ÍTACA, ILHA DE CIRCE e TERRA DAS AMAZONAS. Sobre uma mesa comprida estavam amontoados potes de vidro cheios de coisas em conserva — garras peludas decepadas, enormes olhos amarelos e diversas outras partes de monstros. Um troféu empoeirado na parede parecia ser uma cabeça de serpente gigante, mas com chifres e uma arcada completa de dentes de tubarão. Uma placa dizia: CABEÇA N. 1 DA HIDRA, WOODSTOCK, N.Y., 1969. Junto à janela, sentado em uma banqueta de madeira com três pernas, estava o suvenir mais pavoroso de todos: uma múmia. Não do tipo enfaixada em panos, mas um corpo humano feminino, ressecado até ficar só a casca. Usava um vestido de verão estampado em batique, com uma porção de colares de contas e uma bandana por cima de longos cabelos pretos. A pele do rosto era fina e parecia couro por cima do crânio, e os olhos eram fendas brancas vítreas, como se os olhos de verdade tivessem sido substituídos por bolas de gude; devia estar morta fazia muito, muito tempo. Olhar para ela me deu arrepios nas costas. E isso foi antes de ela se endireitar na banqueta e abrir a boca. Uma névoa verde jorrou da garganta da múmia, serpenteando pelo chão em anéis grossos, sibilando como vinte mil cobras. Tropecei em mim mesmo tentando chegar até o alçapão, mas ele se fechou com uma batida. Dentro da minha cabeça, ouvi uma voz, deslizando por um ouvido e se enroscando por meu cérebro: Eu sou o espírito de Delfos, porta-voz das profecias de Febo Apolo, assassino da poderosa Píton. Aproxime-se, você que busca, e pergunte. Eu quis dizer: Não, obrigado, porta errada, só estava procurando o banheiro. Mas me forcei a respirar fundo. A múmia não estava viva. Era algum tipo de receptáculo horripilante para uma outra coisa, o poder que girava em espiral à minha volta na névoa verde. Mas sua presença não parecia maligna, como a da professora demoníaca de matemática, a sra. Dodds ou a do Minotauro. Era mais como as Três Parcas que eu tinha visto tricotando o fio de lã ao lado da banca de frutas da rodovia: antiga, poderosa e, sem dúvida, não humana. E também não parecia especialmente interessada em me matar. Reuni coragem para perguntar: — Qual é o meu destino? A névoa rodopiou, mais densa, juntando-se bem na minha frente e em volta da mesa com os potes que continham partes de monstros em conserva. De repente, havia quatro homens sentados à volta da mesa, jogando cartas. Os rostos ficaram mais nítidos. Era Gabe Cheiroso e seus cupinchas. Meus punhos se contraíram, embora eu soubesse que aquele jogo de pôquer não podia ser real. Era uma ilusão, feita de névoa. Gabe voltou-se para mim e falou na voz rouca do Oráculo: Você irá para o oeste, e irá enfrentar o deus que se tornou desleal. O cupincha da direita ergueu os olhos e disse com a mesma voz: Você irá encontrar o que foi roubado, e o verá devolvido em segurança. O da esquerda colocou três fichas na mesa, depois disse: Você será traído por aquele que o chama de amigo. Por fim Eddie, o zelador do nosso edifício, proferiu a pior sentença de todas: E, no fim, irá fracassar em salvar aquilo que mais importa. As figuras começaram a se dissolver. De início fiquei atordoado demais para dizer alguma coisa, mas quando a névoa recuou, enrolando-se como uma enorme serpente verde e deslizando de volta para dentro da boca da múmia, eu gritei: — Espere! O que quer dizer? Que amigo? O que não vou conseguir salvar? A cauda da serpente de névoa desapareceu na boca da múmia. Ela se reclinou de volta contra a parede. A — Você sabia o tempo todo que eu era filho de Poseidon, não é? — Tinha minhas suspeitas. Como eu disse... também falei com o Oráculo. Tive a sensação de que havia muita coisa que ele não estava me contando sobre sua profecia, mas percebi que não poderia me preocupar com aquilo naquela hora. Afinal, eu também estava sonegando informações. — Então, deixe-me entender direito — falei. — Preciso ir para o Mundo Inferior e confrontar o Senhor dos Mortos. — Confere — disse Quíron. — Para encontrar a arma mais poderosa do universo. — Confere. — E levá-la de volta ao Olimpo antes do solstício de verão, daqui a dez dias. — Isso mesmo. Olhei para Grover, que engoliu o ás de copas. — Cheguei a mencionar que o Maine é muito agradável nesta época do ano? — perguntou ele de um jeito cansado. — Você não precisa ir — disse a ele. — Não posso lhe exigir isso. — Ah... — Ele se balançou de um casco para outro. — Não... é só que os sátiros, e os lugares embaixo da terra... bem... Ele respirou fundo, depois se pôs de pé, sacudindo os pedaços de cartas e alumínio da camiseta. — Você salvou a minha vida, Percy. Se... se está falando sério em querer que eu vá junto, não vou deixá-lo na mão. Fiquei tão aliviado que tive vontade de chorar, embora não achasse isso muito heroico. Grover era o único amigo que já tivera por mais que alguns meses. Não sabia muito bem o que um sátiro poderia fazer contra as forças dos mortos, mas me senti melhor sabendo que ele estaria comigo. — Juntos até o fim, homem-bode. — Eu me virei para Quíron. — Então, para onde vamos? O Oráculo só disse para ir para oeste. — A entrada para o Mundo Inferior fica sempre no oeste. Muda de lugar de era em era, como o Olimpo. Atualmente, é claro, fica nos Estados Unidos. — Onde? Quíron pareceu surpreso. — Pensei que fosse óbvio. A entrada para o Mundo Inferior fica em Los Angeles. — Ah — falei. — Claro. Então é só pegar um avião... — Não! — gritou Grover. — Percy, o que está pensando? Alguma vez na vida já esteve em um avião? Sacudi a cabeça, sem graça. Minha mãe nunca me levara para lugar algum de avião. Ela sempre dizia que não tínhamos dinheiro para isso. Além disso, os pais dela tinham morrido em um desastre de avião. — Percy, pense — disse Quíron. — Você é filho do deus do mar. O rival mais rancoroso do seu pai é Zeus, Senhor do Céu. Sua mãe sabia muito bem que não podia confiar você a um avião. Você estaria nos domínios de Zeus. Jamais desceria com vida. Acima de nós, relâmpagos estalaram. O trovão ribombou. — Certo — disse eu, determinado a não olhar para a tempestade. — Então, viajarei por terra. — Certo — disse Quíron. — Dois parceiros poderão acompanhá-lo. Grover é um. O outro já se apresentou como voluntário, se você aceitar a ajuda dela. — Puxa — falei, fingindo surpresa. — Quem mais seria bastante estúpido para se apresentar para uma missão como essa? O ar tremulou atrás de Quíron. Annabeth se tornou visível, enfiando o boné dos Yankees no bolso de trás. — Eu estava esperando há muito tempo por uma missão, cabeça de alga — disse ela. — Atena não é fã de Poseidon, mas se você vai salvar o mundo, sou a melhor pessoa para impedir que estrague tudo. — Se é você quem diz. Tem algum plano, sabidinha? As bochechas dela coraram. — Você quer minha ajuda ou não? A verdade é que eu queria. Precisava de toda a ajuda que pudesse encontrar. — Um trio — disse eu. — Isso vai dar certo. — Excelente — disse Quíron. — Esta tarde podemos levar vocês no máximo até o terminal de ônibus em Manhattan. Depois disso, estarão por conta própria. Um relâmpago. A chuva desabou sobre as campinas que jamais deveriam ver um temporal violento. — Não há tempo a perder — disse Quíron. — Acho que todos vocês devem fazer as malas. DEZ Eu destruo um ônibus Não precisei de muito tempo para fazer as malas. Decidi deixar o chifre do Minotauro no meu chalé, então só restaram uma muda extra de roupas e uma escova de dentes para enfiar numa mochila que Grover encontrara para mim. A loja do acampamento me emprestou cem dólares em dinheiro mortal e vinte dracmas de ouro. Essas moedas eram grandes como um biscoito gigante, tinham imagens de diversos deuses gregos estampadas de um lado e o Edifício Empire State do outro. Os dracmas dos mortais antigos eram de prata, Quíron nos contou, mas os olimpianos nunca usavam nada menos que ouro puro. Quíron disse que as moedas poderiam vir a calhar para transações não mortais — o que quer que isso significasse. Ele deu a Annabeth e a mim um cantil de néctar e um saco hermético cheio de quadradinhos de ambrosia, para usar somente em emergências, se fôssemos gravemente feridos. Aquilo era o alimento dos deuses, Quíron lembrou. Iria nos curar de qualquer ferimento, mas era letal para mortais. Em excesso, poderia deixar um meio-sangue com muita, muita febre. Uma overdose nos faria pegar fogo, literalmente. Annabeth carregava seu boné mágico dos Yankees, que era, ela me contou, um presente da mãe pelo seu décimo segundo aniversário. Ela levou um livro sobre a famosa arquitetura clássica, escrito em grego antigo, para ler quando estivesse entediada, e carregava uma comprida faca de bronze escondida na manga da camisa. Eu tinha certeza de que a faca ia nos causar problemas na primeira vez em que passássemos por um detector de metais. Grover estava com seus pés falsos e calças para passar por humano. Usava uma touca verde estilo rastafári, porque, quando chovia, seu cabelo encaracolado se achatava, deixando aparecer a ponta dos chifres. Sua mochila berrante, alaranjada, estava cheia de sucata de metal e maçãs para o lanche. Em seu bolso havia um conjunto de flautas de bambu que o papai-bode esculpira para ele, muito embora ele só conhecesse duas músicas: o Concerto para Piano n. 12, de Mozart, e So Yesterday, de Hilary Duff, e ambas soassem muito mal em flautas de bambu. Acenamos em despedida para os outros campistas, demos uma última olhada para os campos de morangos, o oceano e a Casa Grande, depois subimos a Colina Meio-Sangue até o alto pinheiro que outrora fora Thalia, filha de Zeus. Quíron nos esperava em sua cadeira de rodas. Ao lado dele estava o surfista que eu tinha visto quando me recuperava no quarto de doente. De acordo com Grover, o cara era chefe de segurança do acampamento. Supostamente, tinha olhos espalhados pelo corpo inteiro para jamais ser pego de surpresa. Naquele dia, no entanto, usava uniforme de chofer, então só pude ver os olhos extras das mãos, do rosto e do pescoço. — Este é Argos — disse Quíron. — Vai levar vocês de carro até a cidade e, ahn, bem, ficar de olho em tudo. Ouvi passos atrás de nós. Luke veio correndo colina acima, carregando um par de tênis de basquete. — Ei! — ofegou ele. — Ainda bem que alcancei vocês. Annabeth corou, como sempre acontecia quando Luke estava por perto. — Só queria desejar boa sorte — disse ele para mim. — E pensei... ahn, quem sabe você poderia usar isso. — Sim. Leia a Ilíada. Está cheia de referências a isso. Sempre que elementos divinos ou monstruosos se misturam com o mundo mortal, eles geram a Névoa, que tolda a visão dos seres humanos. Você verá as coisas exatamente como são, sendo um meio-sangue, mas os seres humanos interpretarão tudo de modo muito diferente. É realmente incrível até que ponto os seres humanos podem ir para adaptar as situações à sua concepção de realidade. Pus Contracorrente de volta no bolso. Pela primeira vez, senti a missão como algo real. Eu estava de fato deixando a Colina Meio-Sangue. Estava indo para oeste sem nenhuma supervisão de adulto, sem um plano B, nem mesmo um telefone celular. (Quíron disse que os telefones podiam ser rastreados por monstros; se usasse um, seria pior do que lançar um foguete de sinalização.) Eu não tinha nenhuma arma mais poderosa do que uma espada para combater monstros e chegar à Terra dos Mortos. — Quíron... — falei. — Quando você diz que os deuses são imortais... quer dizer, havia um tempo antes deles, certo? — Quatro eras antes deles, na verdade. O Tempo dos Titãs foi a Quarta Era, às vezes chamada de Era de Ouro, o que sem dúvida é um nome impróprio. Esta época, a época da civilização ocidental e reinado de Zeus, é a Quinta Era. — Então como era... antes dos deuses? Quíron contraiu os lábios. — Nem mesmo eu sou bastante velho para me lembrar disso, criança, mas sei que era um tempo de trevas e selvageria para os mortais. Cronos, o Senhor dos Titãs, chamou seu reinado de Era de Ouro porque os homens viviam em inocência e livres de todo o conhecimento. Mas isso era mera propaganda. O rei Titã não se importava nada com sua espécie a não ser para servir de aperitivo, ou como fonte de entretenimento. Foi só no início do reinado do Senhor Zeus, quando Prometeu, o bom Titã, trouxe o fogo para a humanidade, que sua espécie começou a evoluir, e mesmo então Prometeu foi estigmatizado como pensador radical. Zeus o castigou severamente, como você deve lembrar. É claro, por fim os deuses se interessaram pelos seres humanos, e nasceu a civilização ocidental. — Mas agora os deuses não podem morrer, certo? Quero dizer, enquanto a civilização ocidental estiver viva, eles estarão vivos. Assim... mesmo se eu fracassar, nada pode acontecer de tão ruim a ponto de estragar tudo, certo? Quíron me deu um sorriso melancólico. — Ninguém sabe quanto tempo a Era do Ocidente irá durar, Percy. Os deuses são imortais, sim. Mas os Titãs também eram imortais. Eles ainda existem, trancados em suas várias prisões, forçados a suportar dores e castigos infinitos, com o poder reduzido, mas ainda muito vivos. Que as Parcas não permitam que os deuses sofram tal maldição, ou que retornemos às trevas e ao caos do passado. Tudo o que podemos fazer, criança, é seguir nosso destino. — Nosso destino... presumindo que saibamos qual é. — Relaxe — disse-me Quíron. — Mantenha as ideias no lugar. E lembre-se, você pode estar a ponto de evitar a maior guerra da história humana. — Relaxe — disse eu. — Estou muito relaxado. Quando cheguei ao pé da colina, olhei para trás. Sob o pinheiro que outrora era Thalia, filha de Zeus, Quíron estava em plena forma de homem-cavalo, segurando no alto seu arco em saudação. Uma típica despedida do acampamento de verão pelo seu típico centauro. Argos nos levou para fora da zona rural em direção ao oeste de Long Island. Era esquisito estar novamente em uma autoestrada, com Annabeth e Grover sentados ao meu lado como se fôssemos caronas normais. Depois de duas semanas na Colina Meio-Sangue, o mundo real parecia uma fantasia. Surpreendi-me olhando para cada McDonald’s, cada criança no banco traseiro do carro dos pais, cada cartaz e cada shopping center. — Até agora, tudo bem — disse a Annabeth. — Quinze quilômetros e nem um único monstro. Ela me lançou um olhar irritado. — Falar desse jeito traz má sorte, cabeça de alga. — Ajude-me a lembrar: por que você me odeia tanto? — Eu não odeio você. — Posso estar enganado. Ela dobrou o boné de invisibilidade. — Olhe... é só que não deveríamos nos dar bem, o.k.? Nossos pais são rivais. — Por quê? Ela suspirou. — Quantas razões você quer? Uma vez minha mãe pegou Poseidon com a namorada dele no templo de Atena, o que é superdesrespeitoso. Outra vez, Atena e Poseidon competiram para ser o deus patrono da cidade de Atenas. Seu pai criou uma estúpida fonte de água salgada como presente. Minha mãe criou a oliveira. As pessoas viram que o presente dela era melhor, portanto deram à cidade o nome dela. — Elas realmente devem gostar de azeitonas. — Ah, deixa pra lá. — Agora, se ela tivesse inventado a pizza... isso eu poderia entender. — Eu disse: deixa pra lá. No assento dianteiro, Argos sorriu. Ele não disse nada, mas um olho azul na sua nuca piscou para mim. O trânsito ficou lento no Queens. Quando nós chegamos a Manhattan já era pôr do sol e começava a chover. Argos nos largou na Estação Greyhound no Upper East Side, não longe do apartamento de minha mãe e Gabe. Em uma caixa de correio, preso com fita adesiva, havia um folheto encharcado com meu retrato: VOCÊ VIU ESTE MENINO? Eu o arranquei antes que Annabeth e Grover pudessem vê-lo. Argos descarregou nossas malas, certificou-se de que havíamos conseguido as passagens de ônibus e então foi embora, o olho nas costas de sua mão se abrindo para nos observar enquanto tirava o carro do estacionamento. Pensei em como estava perto do meu velho apartamento. Em um dia normal, minha mãe estaria chegando em casa da doceria mais ou menos naquela hora. Gabe Cheiroso provavelmente estava lá, jogando pôquer, sem nem sentir a falta dela. Grover pôs sua mochila nos ombros. Olhou rua abaixo, na direção em que eu estava olhando. — Quer saber por que ela se casou com ele, Percy? Olhei para ele. — Você está lendo a minha mente ou coisa assim? — Só as suas emoções. — Ele encolheu os ombros. — Acho que me esqueci de contar que os sátiros podem fazer isso. Você estava pensando na sua mãe e no seu padrasto, certo? Eu assenti, me perguntando o que mais Grover teria esquecido de contar. — Sua mãe se casou com Gabe por você — Grover me contou. — Você o chama de “Cheiroso”, mas não tem ideia. O cara tem essa aura... Eca, eu posso sentir o cheiro dele daqui. Posso sentir vestígios do cheiro dele em você, e já faz uma semana que você esteve perto dele. — Obrigado — falei. — Onde fica o chuveiro mais próximo? — Você devia ser grato, Percy. Seu padrasto tem um cheiro tão repulsivamente humano que pode mascarar a presença de qualquer semideus. Assim que inalei o ar dentro do seu Camaro, eu soube: Gabe esteve encobrindo seu cheiro por anos. Se você não tivesse morado com ele durante todos os verões, provavelmente teria sido encontrado por monstros muito tempo atrás. Sua mãe ficou com ele para proteger você. Era uma senhora esperta. Devia amar muito você para aturar aquele cara... se é que isso o faz se sentir melhor. Não fazia, mas me forcei para não demonstrar. Eu a verei de novo, pensei. Ela não se foi. Fiquei imaginando se Grover ainda podia ler as minhas emoções, confusas como estavam. Estava grato por ele e Annabeth estarem comigo, mas me sentia culpado porque não fora sincero com eles. Não lhes contara a verdadeira razão de ter dito sim para aquela missão maluca. A verdade era que eu não me importava em recuperar o relâmpago de Zeus, em salvar o mundo ou mesmo em ajudar meu pai a sair da encrenca. Quanto mais pensava nisso, mais me ressentia de Poseidon por nunca ter me visitado, nunca ter ajudado minha mãe, nunca ter sequer mandado uma droga de cheque de pensão alimentícia. Ele só me reconhecera porque tinha um serviço a ser feito. Eu só me preocupava com minha mãe. Hades a levara injustamente, e Hades iria devolvê-la. Você será traído por aquele que o chama de amigo, sussurrou o Oráculo em minha mente. E, no fim, irá fracassar em salvar aquilo que mais importa. Cale a boca, respondi. A chuva continuava caindo. Ficamos impacientes esperando o ônibus e decidimos brincar de footbag com uma das maçãs de Grover. Annabeth foi incrível. Ela era capaz de arremeter a maçã com o joelho, com o cotovelo, com o ombro, ou o que fosse. Eu mesmo não era de todo ruim. O jogo terminou quando arremessei a maçã para Grover e ela chegou perto demais da sua boca. Em uma megamordida de bode, nossa footbag desapareceu — miolo, pedúnculo e tudo. Grover enrubesceu. Ele tentou se desculpar, mas Annabeth e eu estávamos muito ocupados dando risada. Finalmente o ônibus chegou. Enquanto estávamos na fila para embarcar, Grover começou a olhar em volta, farejando o ar do jeito como farejava seu lanche favorito na cantina da escola — enchiladas. — O que foi? — perguntei. — Não sei — disse ele, tenso. — Talvez não seja nada. Mas eu podia perceber que era alguma coisa. Também comecei a olhar para trás por cima do ombro. Fiquei aliviado quando afinal embarcamos e encontramos lugar juntos na parte de trás do ônibus. Guardamos nossas mochilas. Annabeth batia nervosamente seu boné dos Yankees na coxa. Quando os últimos passageiros subiram, Annabeth apertou com força o meu joelho. “Percy.” Uma senhora acabava de embarcar no ônibus. Usava vestido de veludo amarrotado, luvas de renda e chapéu laranja, tricotado e disforme, que encobria seu rosto, e carregava uma grande bolsa de lã estampada. Quando ergueu a cabeça seus olhos pretos faiscaram, e meu coração deu um pulo. Era a sra. Dodds. Mais velha, mais enrugada, mas sem dúvida a mesma cara maligna. Eu me encolhi no assento. Atrás dela subiram mais duas senhoras: uma de chapéu verde, outra de chapéu roxo. A não ser por isso, eram parecidíssimas com a sra. Dodds — as mesmas mãos encarquilhadas, as mesmas bolsas de lã, os mesmos direção como dois lagartos enormes e asquerosos. — Perseu Jackson — disse a sra. Dodds com um sotaque que vinha de algum lugar mais distante do que o sul da Geórgia. — Você ofendeu os deuses. Você deve morrer. — Eu gostava mais de você como professora de matemática — falei. Ela rosnou. Annabeth e Grover se aproximavam com cautela por trás das Fúrias, procurando uma passagem. Tirei a esferográfica do bolso e a destampei. Contracorrente se alongou e virou uma reluzente espada de fio duplo. As Fúrias hesitaram. A sra. Dodds já havia sentido a lâmina de Contracorrente antes. Obviamente não gostou de vê-la de novo. — Renda-se agora — sibilou. — E não sofrerá o tormento eterno. — Boa tentativa — disse a ela. — Percy, cuidado! — gritou Annabeth. A sra. Dodds lançou seu chicote em volta da mão com a qual eu segurava a espada, enquanto as Fúrias em cada lado pularam em cima de mim. Era como se minha mão estivesse envolta em chumbo derretido, mas consegui não soltar Contracorrente. Atingi a Fúria da esquerda com o cabo e a mandei cambaleando de costas para a poltrona. Virei e fiz um corte na Fúria da direita. Assim que a lâmina entrou em contato com o pescoço dela, ela gritou e explodiu em pó. Annabeth agarrou a sra. Dodds em um golpe de luta e a atirou para trás, enquanto Grover arrancava o chicote de suas mãos. — Ai! — gritou ele. — Ai! Quente! Quente! A Fúria que eu havia atingido com o cabo da espada veio de novo para cima de mim, garras à mostra, mas desferi um golpe com Contracorrente e ela estourou como um saco cheio de bolinhas de isopor. A sra. Dodds estava tentando tirar Annabeth das costas. Ela esperneou, arranhou, sibilou e mordeu, mas Annabeth se agarrou firme enquanto Grover amarrava suas pernas com seu próprio chicote. Depois os dois a empurraram de costas para o corredor. A sra. Dodds tentou se erguer, mas não havia espaço para ela bater as asas de morcego, portanto continuou caindo. — Zeus o destruirá! — prometeu ela. — Hades terá a sua alma! — Braccas meas vescimini! — gritei. Eu não sabia muito bem de onde viera o latim. Acho que queria dizer: “Coma as minhas calças!” Um trovão sacudiu o ônibus. Os cabelos se eriçaram na minha nuca. — Fora! — gritou Annabeth para mim. — Agora! Não era necessário. Corremos para fora e encontramos os outros passageiros andando de um lado para o outro, atordoados, discutindo com o motorista ou correndo em círculos e gritando: “Nós vamos morrer!” Um turista de camisa com estampa havaiana e uma câmera bateu uma foto minha antes que eu pudesse pôr a tampa na minha espada. — Nossas malas! — Grover se deu conta. — Nós deixamos nossas... BUUUUUUUM! As janelas do ônibus explodiram enquanto os passageiros corriam para se abrigar. Um relâmpago rasgara uma enorme cratera no teto, mas um lamento furioso lá dentro me disse que a sra. Dodds ainda não estava morta. — Corram! — disse Annabeth. — Ela está chamando reforços! Temos de sair daqui! Mergulhamos para dentro dos bosques enquanto a chuva despencava torrencialmente, com o ônibus em chamas atrás de nós e nada à frente a não ser trevas. ONZE Nossa visita ao Empório de Anões de Jardim De certo modo, é bom saber que há deuses gregos lá fora, porque aí temos alguém para culpar quando as coisas dão errado. Por exemplo, quando você está se afastando a pé de um ônibus que acaba de ser atacado por bruxas monstruosas e explodido por um relâmpago, e ainda por cima está chovendo, a maioria das pessoas acha que na verdade isso é apenas muita falta de sorte — quando se é um meio-sangue, a gente sabe que alguma força divina está tentando estragar o nosso dia. Então lá estávamos nós, Annabeth, Grover e eu, andando pelos bosques ao longo da margem do rio, em New Jersey, as luzes de Nova York tornando o céu amarelo atrás de nós e o fedor do rio Hudson entrando por nosso nariz. Grover estava tremendo e balindo, e seus grandes olhos de bode, cujas pupilas haviam se transformado em fendas, estavam cheios de terror. — Três Benevolentes. As três de uma vez. Eu mesmo estava em estado de choque. A explosão das janelas do ônibus ainda ecoava em meus ouvidos. Mas Annabeth nos fazia seguir, dizendo: — Vamos! Quanto mais longe chegarmos, melhor. — Todo o nosso dinheiro ficou lá atrás — lembrei. — Nossa comida e nossas roupas. Tudo. — Bem, quem sabe se você não tivesse decidido entrar na briga... — O que queria que eu fizesse? Deixasse vocês serem mortos? — Você não precisava me proteger, Percy. Eu ia ficar bem. — Fatiada como pão de forma — interveio Grover —, mas bem. — Cale a boca, garoto-bode — disse Annabeth. Grover baliu, triste. — As latas... Uma sacola de latas perfeitamente boa. Nós chapinhamos pelas terras lamacentas, por entre horríveis árvores retorcidas que tinham um cheiro azedo de roupa suja. Depois de alguns minutos, Annabeth veio para o meu lado. — Olhe, eu... — sua voz vacilou. — Eu gostei de você ter voltado para nos defender, o.k.? Aquilo foi realmente corajoso. — Somos uma equipe, certo? Ela ficou em silêncio por mais alguns passos. — É só que, se você morresse... além do fato de que seria realmente uma droga para você, isso significaria o fim da missão. Esta pode ser minha única chance de ver o mundo real. A tempestade havia finalmente acalmado. As luzes da cidade diminuíram atrás de nós, deixando-nos em uma escuridão quase total. Não conseguia ver nada de Annabeth a não ser um reflexo de seu cabelo loiro. — Você não sai do Acampamento Meio-Sangue desde que tinha sete anos? — perguntei-lhe. — Não... apenas excursões rápidas. Meu pai... — O professor de história. — É. Não deu certo morar em casa. Quer dizer, o Acampamento Meio-Sangue é a minha casa. — Ela um balcão de sanduíches com uma grelha, uma máquina de refrigerantes, uma estufa de pretzels e uma máquina de queijo nacho. Tudo o que poderíamos querer, mais algumas mesas de piquenique de aço na frente. — Por favor, sentem-se — disse a tia Eme. — Fantástico — comentei. — Hum — disse Grover com relutância —, não temos nenhum dinheiro, senhora. Antes que eu pudesse dar uma cotovelada nas costelas dele, a tia Eme disse: — Não, não, crianças. Nada de dinheiro. Esse é um caso especial, certo? Para órfãos tão simpáticos, é por minha conta. — Obrigada, senhora — disse Annabeth. Tia Eme enrijeceu-se, como se Annabeth tivesse dito algo de errado, mas depois, com a mesma rapidez, relaxou. Portanto achei que estivesse imaginando coisas. — Não tem de quê, Annabeth. Você tem uns olhos cinzentos tão bonitos, criança. — Só depois me perguntei como ela sabia o nome de Annabeth, já que não tínhamos nos apresentado. Nossa anfitriã desapareceu atrás do balcão e começou a cozinhar. Antes que eu me desse conta, ela nos tinha trazido bandejas de plástico com cheeseburgers duplos, milk-shakes de baunilha e porções gigantes de batatas fritas. Eu já tinha comido metade do meu sanduíche quando me lembrei de respirar. Annabeth sorveu ruidosamente seu milk-shake. Grover beliscou as batatas fritas e olhou para o papel-toalha da bandeja como quem poderia experimentar aquilo, mas ainda parecia nervoso demais para comer. — O que é esse chiado? — perguntou ele. Prestei atenção, mas não ouvi nada. Annabeth sacudiu a cabeça. — Chiado? — perguntou tia Eme. — Talvez você esteja ouvindo o óleo de fritura. Você tem bons ouvidos, Grover. — Eu tomo vitaminas. Para os ouvidos. — Admirável — disse ela. — Mas, por favor, relaxe. Tia Eme não comeu nada. Ela não descobrira a cabeça nem para cozinhar, e agora estava sentada com os dedos entrelaçados, observando enquanto comíamos. Era um pouco incômodo ser observado por alguém cujo rosto eu não conseguia ver, mas me sentia satisfeito depois do sanduíche, e um pouco sonolento, e imaginei que o mínimo que podia fazer era puxar um pouco de conversa com nossa anfitriã. — Então, você vende anões — falei, tentando parecer interessado. — Ah, sim — disse tia Eme. — E animais. E pessoas. Tudo para o jardim. Sob encomenda. As estátuas são muito populares, sabe. — Muito movimento nesta estrada? — Não, nem tanto. Desde que a autoestrada foi construída... a maioria dos carros já não passa por este caminho. Preciso cuidar bem de cada cliente que recebo. Senti um formigamento na nuca, como se alguém estivesse me observando. Virei-me, mas era apenas a estátua de uma garotinha segurando uma cesta de Páscoa. Os detalhes eram incríveis, muito melhores que os vistos na maioria das estátuas de jardim. Mas havia algo de errado com seu rosto. Ela parecia assustada, até apavorada. — Ah! — disse tia Eme com tristeza. — Você pode notar que algumas das minhas criações não dão muito certo. Elas são defeituosas. Não vendem. O rosto é a parte mais difícil de sair perfeito. Sempre o rosto. — Você mesma faz estas estátuas? — perguntei. — Ah, sim. Já tive duas irmãs para me ajudar no negócio, mas elas faleceram, e a tia Eme ficou sozinha. Só tenho as minhas estátuas. É por isso que as faço, sabe? São minha companhia. — A tristeza na voz dela parecia tão profunda e tão real que não pude deixar de sentir pena. Annabeth tinha parado de comer. Ela se inclinou e disse: — Duas irmãs? — É uma história terrível — disse Tia Eme. — Não é para crianças, na verdade. Veja, Annabeth, uma mulher má estava com inveja de mim, muito tempo atrás, quando eu era jovem. Eu tinha um... um namorado, sabe, e essa mulher má estava determinada a nos separar. Ela provocou um acidente terrível. Minhas irmãs ficaram do meu lado. Compartilharam a minha má sorte enquanto foi possível, mas por fim morreram. Elas se esvaíram. Só eu sobrevivi, mas a um preço. Que preço. Não entendi muito bem o que ela queria dizer, mas senti pena. Minhas pálpebras estavam cada vez mais pesadas, o estômago cheio me deixara sonolento. Coitada da velha senhora. Quem ia querer fazer mal a alguém tão gentil? — Percy? — Annabeth me sacudia para chamar minha atenção. — Acho que devemos ir. Quer dizer, o mestre de cerimônias do circo deve estar esperando. A voz dela pareceu tensa. Eu não sabia muito bem por quê. Grover estava comendo o papel encerado da bandeja, mas se tia Eme estranhou aquilo, não disse nada. — Que olhos cinzentos bonitos — disse ela, outra vez, para Annabeth. — Ah, mas faz muito tempo que não vejo olhos cinzentos como esses. Ela estendeu o braço como se fosse acariciar o rosto de Annabeth, mas Annabeth se levantou abruptamente. — Precisamos mesmo ir. — Sim! — Grover engoliu o papel encerado e pôs-se de pé. — O mestre de cerimônias está esperando! Isso! Eu não queria ir. Estava satisfeito e contente. Tia Eme era muito gentil. Queria ficar um pouco com ela. — Por favor, queridos — implorou a tia Eme. — É tão raro eu estar com crianças... Antes de ir, não gostariam pelo menos de posar para uma foto? — Uma foto? — perguntou Annabeth com cautela. — Sim, uma fotografia. Vou usá-la como modelo para um novo conjunto de estátuas. Crianças são muito populares, sabem? Todo o mundo ama crianças. Annabeth se balançou de um pé para o outro. — Acho que não podemos, senhora. Vamos, Percy... — Claro que podemos — disse eu. Estava irritado com Annabeth por ser tão mandona, tão mal-educada com uma velha senhora que acabara de nos dar comida de graça. — É só uma foto, Annabeth. Qual é o problema? — Sim, Annabeth — a mulher murmurou. — Não há mal nenhum. Percebi que Annabeth não tinha gostado, mas deixou que tia Eme nos levasse para fora pela porta da frente, para o jardim de estátuas. Tia Eme nos conduziu até um banco de jardim perto do sátiro de pedra. — Agora — disse ela — vou posicionar vocês corretamente. A mocinha no meio, acho, e os dois jovens cavalheiros em cada lado. — Não há muita luz para uma foto — observei. — Ah, é o suficiente — disse tia Eme. — Suficiente para enxergarmos um ao outro, não é? — Onde está sua câmera? — perguntou Grover. Tia Eme deu um passo atrás, como que para admirar a foto. — Agora, o rosto é o mais difícil. Vocês podem sorrir para mim, por favor, todo mundo? Um grande sorriso? Grover deu uma olhada para o sátiro de cimento a seu lado e murmurou: — Parece mesmo com o tio Ferdinando. — Grover! — ralhou tia Eme. — Olhe para este lado, querido. Ela ainda não tinha nenhuma câmera nas mãos. — Percy... — disse Annabeth. Algum instinto me advertiu a dar ouvidos a Annabeth, mas eu estava lutando contra a sensação de sono, a agradável moleza induzida pela comida e pela voz da velha senhora. — Não vai demorar nem um segundo — disse tia Eme. — Sabe, não consigo vê-los muito bem por causa deste maldito véu... — Percy, alguma coisa está errada — insistiu Annabeth. — Errada? — disse tia Eme, erguendo as mãos para remover o véu em volta da cabeça. — De modo algum, querida. Estou em tão nobre companhia esta noite. O que poderia estar errado? — Aquele é o tio Ferdinando! — disse Grover, arfando. — Não olhem para ela! — gritou Annabeth. Num piscar de olhos, ela enfiou o boné dos Yankees na cabeça e desapareceu. Suas mãos invisíveis empurraram Grover e eu para fora do banco. Eu me vi caído no chão, olhando para as sandálias nos pés de tia Eme. Pude ouvir Grover correndo para um lado e Annabeth para outro. Mas eu estava aturdido demais para me mexer. Então ouvi um som estranho, um chiado, acima de mim. Meus olhos se ergueram para as mãos de tia Eme, que se tornaram enrugadas e cheias de verrugas, com afiadas garras de bronze no lugar das unhas. Quase olhei mais para o alto, mas em algum lugar à minha esquerda Annabeth gritou: — Não! Não olhe! Mais chiados — o som de pequenas serpentes, logo acima de mim, que vinham de... de onde deveria estar a cabeça da tia Eme. — Corra! — baliu Grover. Ouvi-o correndo pelos pedregulhos, gritando “Maia! ” para dar partida em seus tênis voadores. Eu não conseguia me mexer. Fiquei olhando fixamente para as garras encarquilhadas de tia Eme, e tentei lutar contra o transe entorpecedor em que a velha me pusera. — Que pena ter de destruir um jovem rosto tão bonito — disse-me em tom confortador. — Fique comigo, Percy. Tudo o que tem a fazer é olhar para cima. Combati o ímpeto de obedecer. Em vez disso, olhei para o lado e vi uma daquelas bolas de vidro que as pessoas põem nos jardins — uma esfera espelhada. Pude ver o reflexo escuro de tia Eme no vidro alaranjado; seu véu se fora, revelando o rosto como um círculo pálido tremeluzente. Os cabelos se mexiam, se contorcendo como serpentes. Tia Eme. Tia “M”. Como pude ser tão estúpido? Pense, disse a mim mesmo. Como foi que a Medusa morreu no mito? Mas eu não conseguia pensar. Algo me dizia que a Medusa do mito estava dormindo quando foi atacada por meu xará, Perseu. Agora, não estava nem um pouco sonolenta. Se quisesse, poderia usar aquelas garras ali