Baixe Olavo de Carvalho - História essencial da Filosofia 01 e outras Notas de aula em PDF para Filosofia, somente na Docsity! Coleção História Essencial da Filosofia História das Histórias da Filosofia - Aula 1 por Olavo de Carvalho Aula 1: A História das Histórias da Filosofia Nomes dos capítulos: • História x Essência • Estilos de Histórias da Filosofia • Modelo expositivo – visão aristotélica • Modelo filosófico – visão hegeliana • Narrativa histórica – Leopold von Ranke • Filosofia como expressão cultural • Crítica às estruturas de Karl Marx • Visão social • Metodologia de um novo modelo: o Projeto Filosófico • Os princípios deste novo modelo • As condições dos projetos humanos • Síntese dos métodos hegeliano e científico • Unidade problemática de um projeto • Crítica à expressão “um homem de seu tempo” • Causalidade mecânica de Isaac Newton • Indeterminações de Leibniz • Senso de eternidade e consciência histórica • Transformações do Projeto Filosófico (fatores endógenos e exógenos) • O projeto filosófico originário, tradições nacionais e doutrinas religiosas O título deste curso já é, de algum modo, o enunciado do problema que trataremos de resolver no curso das aulas. Este título contém duas expressões que enunciam pólos opostos de uma realidade. Quando falamos de História Essencial, por um lado nos referimos a algo que é história e, por outro, a algo que é essência. Essência, como se sabe, é aquilo que uma coisa é, conforme sua natureza ou sua constituição íntima, considerada desde o ponto de vista lógico e independentemente das transformações temporais que ela possa sofrer, e até de sua existência ou não. Pelo ponto de vista essencial, Napoleão Bonaparte já era Napoleão Bonaparte antes de nascer, continuou sendo enquanto viveu e é Napoleão Bonaparte até hoje; ou seja, sua morte não o transformou em outra pessoa. O ponto de vista da essência é, por excelência, supratemporal, portanto, supra-histórico. A palavra história, ao contrário, designa várias coisas. Designa desde logo a sucessão temporal dos acontecimentos, considerada materialmente. Designa, em segundo lugar, a ciência que estuda esta associação e também a própria dimensão temporal da vida humana. Designa, enfim, as obras, os livros escritos com a narrativa dos acontecimentos históricos. Em todos esses casos, é evidente a referência à ideia de que algo sucede no tempo e de que o suceder é necessariamente o aparecimento de fatores que não existiam antes e a desaparição de outros que existiam. É, portanto, uma dimensão de mutação estranha à esfera da essência à qual nos referimos na primeira expressão. Escolhi propositadamente a expressão "História Essencial" justamente para dar a ideia dessa tensão entre dois pólos, a tensão que nos mostra, de um lado, algo que permanece irredutivelmente igual ao que era no começo e que, de outro lado, muda de aparência, muda de figura. Quase que poderíamos dizer, com um pouco de exagero, que muda de identidade ao longo dos tempos. Essa tensão, a meu ver, é insolúvel; é uma das muitas tensões que definem polarmente a própria existência humana. Existem inúmeras dessas tensões, e veremos, no próprio curso da História da Filosofia, que muitas filosofias às vezes procuram resolvê-las mediante a amputação de um dos pólos, criando então uma visão um pouco artificial ou exagerada de uma faceta da existência. Todo nosso esforço será, ao contrário, para conservar todos os pólos opostos cuja tensão não possamos resolver, porque às vezes é essa tensão mesma que nos coloca de pé, nos faz ir para frente e, em última análise, marca toda a dignidade e a força da inteligência humana. Uma vez enunciado, explicado mais ou menos esse título, temos que ver que essa disciplina, a História da Filosofia, tem sido tratada de um certo número de maneiras. Há uma quantidade definida de estilos de História da Filosofia. Faremos uma breve resenha desses estilos para mostrar por que eles não nos satisfazem e, portanto, por que achei que deveria narrar a História da Filosofia de acordo com uma outra maneira, que não se enquadra em nenhuma das três modalidades costumeiras que vou passar a descrever. A primeira amostra de História da Filosofia que temos está nas obras de Aristóteles. Ele nunca escreveu uma obra chamada "História da Filosofia", mas cada terminando ou começando, porque esta afirmação exigiria uma previsão do término da própria existência humana - não da existência do indivíduo filósofo, mas da existência da espécie humana ou pelo menos do término da sua capacidade filosofante. O fato é que nenhum de nós tem essa capacidade. As lições sobre a História da Filosofia, de Hegel, terminam mais ou menos artificialmente nele próprio, considerado como término e coroamento do processo filosófico, devendo a Filosofia, logo em seguida, desaparecer ou ser transformada numa coisa totalmente diferente que não pudesse ter pontos de conexão com a sua origem primeira. O fato é que isso não aconteceu; continuou havendo atividade filosófica, algumas dentro da linha de transformação que Hegel havia previsto, outras completamente fora disso. A sobrevivência da História da Filosofia em relação ao tempo de Hegel é um simples fato que não temos como negar. Dizemos também aí que a idéia de contemplar o movimento temporal das idéias filosóficas como um movimento único, como uma dialética, uma lógica interna, essa idéia não é de todo má; continua sendo uma necessidade, pelo próprio instinto unificante que o ser humano tem. Nossa mente é rebelde à idéia de uma pluralidade caótica, e em tudo procuramos resumir e unificar, até por força dessa mesma exigência. A idéia de Hegel - de unificar num só movimento a totalidade do desenvolvimento das idéias ao longo do tempo - continua sendo um esforço necessário, embora de certa maneira já declarado de início como utópico e destinado a ter de ser refeito em novas bases a cada nova geração que ataque esse problema. Temos aí mais uma tensão. Por um lado, teríamos que buscar na História da Filosofia a unidade do movimento, ou seja, teríamos que pegar a massa de fatos registrados em livros e depoimentos ao longo de dois mil e tantos anos e tentar captar neles algum perfil, de modo que pelo menos a história pudesse ser contada - e contada como uma história única, pelo menos como uma mesma história ou como a história da mesma coisa, não como um simples ajuntamento de fatos dispersos e inconexos. Por outro lado, sabemos que essa tentativa de unificação só pode ter um sucesso parcial, porque qualquer linha unitária de desenvolvimento que tenhamos conseguido discernir até o ponto em que atamos - mesmo que tenha sido discernida da maneira mais correta, mais exata e mais real que se possa imaginar -, no instante seguinte o rumo das coisas pode tomar uma direção completamente diferente. Sua interpretação de conjunto irá por terra, embora até aquele momento deva ser considerada correta, quando tiver que ser integrada numa outra interpretação, que toma os fatos numa escala temporal maior. Tendo em vista as deficiências ou falhas desses dois modelos de História da Filosofia - o modelo expositivo e o modelo filosófico, dos quais o primeiro continua sendo usado em muitos manuais e obras introdutórias até hoje -, aconteceu que, ao mesmo tempo em que Hegel estava fazendo esse esforço de interpretação filosófica do arco percorrido pela Filosofia até o seu tempo, mais ou menos contemporaneamente estava se constituindo a História como ciência organizada tal como hoje nós a conhecemos. O grande responsável por isso foi Leopold von Ranke, que era uma espécie de contemporâneo e antagonista de Hegel. Ele não era antagonista no campo filosófico - Ranke não se metia em discussões filosóficas -, mas representava a alternativa oposta. A alternativa oposta consistia apenas em o historiador ter consciência de que sua função não era, em primeiro lugar, obter alguma interpretação de conjunto daquilo que está acontecendo, nem produzir uma narrativa unitária à força, mas simplesmente reconstituir, com base nos documentos, nas provas, aquilo que tinha acontecido, exatamente como tinha acontecido. Dizia ele: "A função da história é contar as coisas como efetivamente se passaram, quer essa reconstituição possa levar a uma interpretação, a uma compreensão de conjunto, quer, ao contrário, a narrativa dos fatos, justamente por ser exata, só leve a problemas e contradições". Entre uma narrativa que se compreende perfeitamente, que parece inteiramente lógica, mas que não reflete a realidade dos fatos conforme aparece nos documentos, e uma outra narrativa que, embora comprovada nos documentos e nos fatos, pareça no fim das contas incompreensível e enigmática, o historiador deverá preferir esta última. Ou seja, a missão da História não é filosofar, mas contar a História com o máximo de exatidão científica que se possa, tomando por base sobretudo o exame crítico dos testemunhos e dos documentos e a reconstituição exata das várias linhas de sucessão e contemporaneidade cronológica. Essa ciência, a ciência histórica, foi talvez a que mais progrediu nos últimos duzentos anos. Temos a idéia de que a ciência da natureza, sobretudo a Física e a Biologia, está sempre na vanguarda do conhecimento, e isso não é absolutamente verdade. A ciência histórica, em matéria não só de abrangência de volume de fatos, mas também de exatidão e de critério na sua triagem, vem alcançando vitória atrás de vitória há duzentos anos, e hoje se pode considerá-la talvez a mais confiável das ciências - não na linha do Hegel, da interpretação de conjunto, mas, ao contrário, na linha do velho Leopold von Ranke - e, de contar as coisas como elas efetivamente se passaram, embora disso não resulte às vezes nem uma compreensão filosófica adequada, apenas enigmas e problemas. A função do historiador seria, então, contar as coisas, narrá-las, e não explicá-las filosoficamente, não explicá-las pelas suas causas últimas. Seria apenas reconstituir os elos causais mais imediatos, mais materiais e mais comprováveis. As duas linhas de evolução possível, a inaugurada na Filosofia por Hegel e aquela inaugurada por Ranke, ambas progrediram ao mesmo tempo, e houve vários pontos de encontro e desencontro. Estes constituiriam por si matéria para todo um curso - as relações entre Filosofia e História nos últimos duzentos anos -, uma narrativa que se complicaria ainda mais e se tornaria muito mais interessante pelo fato de que, logo em seguida, aparece a idéia de uma ciência não narrativa, de uma ciência sistemática e explicativa da realidade social humana. Aí começa a se constituir o que hoje nós chamamos as Ciências Sociais, cuja função, evidentemente, não é apenas narrar, mas justo o contrário, tentar encontrar os nexos causais repetíveis constantes, etc. Não são, portanto, apenas duas linhas que se fundem, mas três: a de Hegel, com a idéia da História da Filosofia como manifestação unitária do espírito ao longo do tempo; a idéia de Ranke, da História Científica, que tem cada um dos seus elementos escorado em documentos e testemunhas; e a idéia das Ciências Sociais, que surge mais ou menos contemporaneamente com Durkheim, Comte, Karl Marx, com o objetivo, jamais alcançado, de conseguir captar os fatores estruturais e permanentes que explicariam a sociedade humana e sua história. Temos aí um campo enormemente complexo. O que resultou desse triplo conflito é um terceiro tipo de História da Filosofia, considerada como uma ciência social, por sua vez. Se o primeiro tipo apenas colocava as doutrinas umas ao lado das outras para que as pudéssemos comparar no seu conteúdo lógico, e se o segundo tipo, hegeliano, as emendava umas às outras como se fossem etapas de um único raciocínio, de uma única dialética ao longo do tempo, agora surge um tipo de História da Filosofia que busca explicar de algum modo o surgimento temporal das várias filosofias com base nos elementos culturais, sociais, econômicos, jurídicos, psicológicos e religiosos do ambiente no qual elas nasceram. Isso quer dizer que as filosofias são aí consideradas expressões da cultura tomada no seu sentido mais amplo, variando, evidentemente, a noção que cada autor tem a respeito do que vem a ser "cultura": uns acreditam que aí predominam os fatores de ordem intelectual-espiritual; outros, os fatores econômicos; outros, os fatores militares, e assim por diante. Qualquer que seja a visão que o indivíduo tenha da estrutura e da dinâmica da cultura, ele encarará as idéias filosóficas como manifestações ou expressões desta mesma máquina cultural, considerada nas transformações que ela sofre ao longo do tempo. É claro que a variedade de interpretações também é muito grande, mas, grosso modo, a idéia é essa: a Filosofia surge como uma das muitas expressões de um outro fenômeno chamado "cultura". E claro que esse modelo também produz inúmeros resultados, muito brilhantes; porém, após algumas décadas de prática, podemos ver também as limitações que existem nesse terceiro modelo, que vamos chamar provisoriamente de Histórias Científicas da Filosofia. Não que sejam científicas, mas têm a pretensão de sê-lo, na medida em procuram explicar o surgimento das ideias filosóficas como explicariam, por exemplo, o surgimento de um novo estilo artístico, de um movimento religioso- político, de um novo estilo de vestuário, de um novo estilo arquitetônico e assim por diante. Ou seja, pega-se a cultura como um todo, e cada uma das suas expressões particulares é vista como uma expressão, manifestação ou efeito de fatores causais que o transcendem. O grande problema com esta terceira modalidade é que ela só pode ser praticada se dermos por resolvidos alguns dos problemas filosóficos fundamentais - que justamente não estão resolvidos - e se, de certo modo, "desproblematizarmos" o Se decidi contar a História da Filosofia com um outro padrão, segundo um outro modelo, é por ter constatado que realmente existem esses problemas, e de maneira alguma esse esforço de conquistar um patamar a mais nega o valor ou a importância atual de cada um desses três modelos. Cada um, no instante em que foi descoberto, praticado, representa naquele momento o máximo de conhecimento que se podia obter a respeito. Mas chega um ponto em que aquela linha de investi- gações atinge seu limite, quer dizer, começa a dar problemas, então é preciso inventar algo novo. Acho que as chamadas Histórias Científicas da Filosofia de fato chegaram ao seu limite e estão se perdendo. Está na hora de inventarmos alguma coisa que possa tampar esses buracos e permitir que o navio da História da Filosofia continue a sua viagem. Ora, se os dois modelos, o de Hegel e o científico acadêmico atual, partem de uma crítica dos anteriores, o fato é que essa crítica nunca foi empreendida de maneira sistemática e muito profunda. Foi mais ou menos casual, suscitada pela simples constatação de um estado de fato; quer dizer, havia certos problemas que o modelo anterior não conseguia explicar, não conseguia dar conta, e era necessário fazer alguma coisa. Mas, quando o terceiro desses modelos começa a se tornar tão problemático, quando começa a revelar o que ele mesmo tem de deficiente e de encrencado, aí a coisa se torna grave demais para que consigamos dar mais um passo decisivo apenas constatando por alto os seus defeitos. Uma nova modalidade de História da Filosofia teria que se escorar num exame crítico muito sério e muito aprofundado, em busca de pontos de apoio que oferecessem um grau de certeza suficiente. Teríamos que contar a história com base em princípios que, uma vez fixados, não pudessem mais ser questionados, por serem auto-evidentes demais. Esses princípios delimitariam o campo da ciência e as possibilidades do seu envolvimento futuro. É também necessário dizer que tudo aquilo que forma o princípio fundante de uma ciência não faz parte dela. O desenvolvimento posterior da ciência não mudará esses princípios, ela evoluirá sobre uma linha coerente enquanto esses princípios §r mostrarem, por um lado, auto-sustentáveis e, por outro, suficientes para dar conta do campo. Isso quer dizer que o princípio jamais pode ser impugnado, pode continuar sendo admitido como verdadeiro, mas, a partir de um certo ponto, o campo do fenômeno estudado, ou seja, o campo das idéias filosóficas pode transcendê-lo, de maneira que ele não sirva mais como princípio explicativo. Dizia Husserl que, no começo das investigações científicas, a maior preocupação que devemos ter é de delimitar muito corretamente o campo, o grupo, o conjunto dos fenômenos que vamos estudar, para que ali não se metam de contrabando fenômenos de ordem especificamente diferente, sobre os quais projetaremos explicações tiradas de outros fenômenos que não servem para ele. No curso da história de qualquer ciência, o número dessas mesclas indevidas é enorme, e, a cada vez que isso acontece, às vezes temos dois, três, quatro séculos de investigações infrutíferas ou de conclusões medonhamente erradas. Isso acontece com freqüência. Husserl dizia também que é necessário termos uma idéia muito clara de onde uma investigação científica pretende chegar, isto é, qual o tipo de resposta que se pretende dar e qual o nível de validade que se pretende atribuir a essa resposta. No entanto, essas considerações geralmente são negligenciadas em inúmeras investigações científicas, pelo simples fato de que existe uma rotina do trabalho científico. O indivíduo retoma o trabalho de onde um outro parou ou, então, limita-se a seguir as pautas, os protocolos do método científico tal qual está sendo habitualmente praticado naquele campo, de modo que, se houver alguma absurdidade inicial, algum erro de princípio no fundamento, o número de desvios e erros vai proliferar muito. Nunca podemos esquecer que a ciência, por um lado, é um certo ideal de conhecimento e pretende ter uma validade - que é definida por certas exigências lógicas internas mas, por outro lado, também é uma profissão, é um modo de vida para muita gente. Então, entre os fatores internos, que constituem a ciência, e os fatores externos, que permitem a sua existência como prática, existe também uma tensão permanente. Por exemplo, se existe um erro metodológico embutido numa investigação há cinqüenta anos, e se muitas carreiras científicas já se fizeram com base nesse erro, é muito difícil voltar atrás. É difícil não por causa de alguma dificuldade lógica inerente ao problema, mas pelo fator humano e social - em torno das idéias e dos projetos científicos se formam grupos humanos, aglomerados de interesses, de expectativas e de poderes. Há nisso até a interferência de um fator financeiro, que é a disputa pelas verbas de pesquisa. Isto quer dizer que, se a hipótese, a critica metodológica e a nova proposta criarem problemas a um certo grupo científico importante naquele momento, simplesmente não se terá verbas para trabalhar naquela linha e jamais se poderá saber quem tinha razão. A interferência desses fatores puramente extracientíficos - e na verdade, até irracionais - dentro do campo científico é uma realidade, nunca podemos escapar disso. Claro que, dependendo da ciência com que se está lidando, a pesquisa custa muito barato ou muito caro. A História da Filosofia é daquelas cuja pesquisa custa mais barato porque todo o seu material é constituído de papel. Não são precisos reatores atômicos, um laboratório montado, tudo custa mais barato Para um indivíduo, é relativamente caro, mas para um certo grupo de pessoas não o é. Mas se a pesquisa fosse numa área zoológica, geológica ou física - não sendo física teórica, que também só envolve papel -, a simples possibilidade de se averiguar qual a linha mais frutífera de investigação já poderia ser bloqueada logo de início. Vejamos o caso do estatístico dinamarquês Lomborg. Ele lançou um livro, O ambientalista cético1, no qual, juntando todos os dados probabilísticos 1 Bjorn LOMBORG, O ambientalista cético. Rio de Janeiro: Elsevier, 2002. oficiais dos vários países, mostra que a "crise ecológica" não está acontecendo, ou pelo menos não é tão grave quanto dizem; que as reservas naturais do planeta não estão se esgotando de maneira alguma; que, de modo geral, a sociedade industrial tem se encaixado bem ao ambiente e, ao contrário, tem criado meios suficientes para resolver todos os problemas ecológicos que aparecem; enfim, que não há motivo para se acreditar que o planeta Terra está acabando. Ele tem razão ou não tem? Não sei! Mas não vai dar para saber. Por quê? Porque, a esta altura, todos os cientistas interessados neste negócio já arrumaram emprego em alguma ONG ecológica. E a ONG ecológica, como arruma dinheiro para pesquisa? Chegando nos políticos e empresários e traçando-lhes um panorama alarmista, dizendo: "Olha, se vocês não me derem dinheiro para pesquisar esse negócio, o mundo vai acabar!". De repente, chega um sujeito e diz que o mundo não está acabando. É um perigo temível. Houve uma mobilização mundial de cientistas para tapar a boca do sujeito, mas não sei se ele tem razão ou não. Sei que a possibilidade de uma investigação científica sobre a hipótese que ele lançou já está muito difícil de se realizar. A investigação passou do domínio científico para o domínio político. O domínio político é aquele no qual não interessa saber quem tem razão, mas saber quem tem mais adeptos. Como dizia Carl Schmidt, você vai somar os amigos contra os inimigos. Se os amigos forem mais que os inimigos, você ganhou; se não forem, você perdeu. E é exatamente assim que está a questão do Ambientalista cético, assim como milhares de outras questões científicas. Felizmente, em História da Filosofia, não dependemos tanto de verbas, porque o nosso material de estudo, embora caro na escala do indivíduo, já não é assim tão inacessível, tanto que eu pude realizar toda esta pesquisa e posso estar dando este curso sem nenhuma verba de departamento - não tive que pedir verba para nenhum chefe, não tem chefe não dependendo de universidade alguma; simplesmente agora já fiz, agora não podem impedir de fazer porque já está feito. Minha ideia foi partir de certas realidades básicas que não fazem parte da História da Filosofia, mas que determinam a simples possibilidade de existir uma Filosofia. Quais são as condições objetivas, de reais até materiais, que estão dadas no início do surgimento da Filosofia e sem as quais ela não seria possível? Esta pergunta tem que ser respondida de uma maneira não apenas empírica - não vamos investigar cientificamente esses fatos para demonstrar que eles aconteceram -, mas de uma maneira puramente teórica e apodíctica, quer dizer, absolutamente irrefutável no seu próprio enunciado. A primeira das regras que formulam meu método pode ser enunciada assim: 1ª - Se existe uma História da Filosofia, é porque a Filosofia não nasceu pronta. realização tomasse várias gerações? Mesmo dentro do campo arquitetônico, existem algumas igrejas muito antigas, cuja construção atravessou várias gerações, que possuem um pedaço construído num estilo completamente diferente do anterior. Por exemplo, algumas igrejas góticas possuem duas torres completamente diferentes uma da outra. Por quê? É porque alguém veio depois e achou que devia fazer uma coisa diferente ou não conseguiu fazer exatamente igual. Ora, mas se isto é assim até mesmo dentro do campo arquitetônico, quanto mais não o será na idéia de um projeto complexo como o da História da Filosofia, como o da criação de uma filosofia! A partir do momento em que tivermos enunciado qual o conteúdo do projeto inicial filosófico - "a idéia inicial da Filosofia era esta" - isso quererá dizer que só existe uma maneira cientificamente válida de contar a História da Filosofia: é a história da sucessão das etapas da consecução de um projeto originário. Portanto, a história desse projeto terá que ser acompanhada não só nas tentativas de realizá-lo literalmente, mas também nas tentativas de impugná-lo, de modificá-lo ou de substituí-lo parcialmente ou no todo. Este método nos permite, ao mesmo tempo, atender à reivindicação hegeliana da busca da unidade do movimento como um todo, sem cair na falácia hegeliana de projetar uma unidade sobre acontecimentos que, às vezes, não têm unidade nem conexão alguma. Permite atender também à demanda da escola histórica de se ater aos fatos como eles realmente aconteceram, mesmo quando a sucessão real dos fatos, longe de nos sugerir uma unidade lógica, nos sugere apenas a unidade de um problema, a unidade de uma confusão ou a unidade de um enigma. Ao longo da História da Filosofia, veremos que o projeto filosófico, sofreu uma multidão de alterações, mas que não se pode dizer que ele foi abandonado totalmente pelo simples fato de que as pessoas que introduziram essas modificações continuam a acreditar que estão fazendo um negócio chamado "filosofia" e que, deste modo, elas de alguma maneira vinculam a sua atividade atual ao projeto originário, mesmo que ele seja o contrário dela. Ou seja, se o indivíduo acha que o projeto filosófico originário é totalmente inviável, contraproducente, absurdo, e que ele deve trocá-lo por alguma outra coisa, veremos que, em alguns casos, esta "alguma outra coisa" se apresentava como uma não-filosofia, como uma alternativa à Filosofia, ou seja, como algo que deveria suprimir a prática filosófica. Em outros casos, essa objeção se apresenta como a verdadeira e autêntica filosofia, ou seja, como uma substituição crítica do projeto originário por um outro projeto que teoricamente expressaria melhor a natureza da própria Filosofia do que o projeto originário. Portanto, mesmo as impugnações não são de maneira alguma uniformes. Além do mais, existem impugnações totais e parciais. Em certos casos, não se trata de impugnações, trata-se de uma sutil e quase imperceptível mudança de assunto. Começa-se tentando fazer algo que está bem dentro da linha do projeto filosófico originário, mas, por algum fator interveniente, mudou-se de rumo, acaba-se fazendo uma coisa completamente diferente. Podemos desde já saber que a História da Filosofia, se ela tem alguma unidade, só pode ser a unidade problemática de um projeto que, no tempo, continua, pára, se altera, se modifica, retoma o ponto originário num outro plano, e que, enfim, não apenas luta para se realizar, mas luta para saber se deve se realizar; e luta para descobrir os modos de se realizar e, às vezes, para ser cancelado e substituído por outra coisa. Estamos longe da idéia de que a evolução do pensamento filosófico segue uma dialética interna totalmente coerente, como em Hegel. Mas também estamos muito longe de tentar explicar as idéias filosóficas pelas condições da cultura do tempo, porque, quaisquer que sejam as condições da cultura do tempo, o fato é que a simples presença do projeto filosófico originário, que o novo filósofo conhece, exerce sobre ele uma influência que não vem do seu tempo, mas de um tempo muito remoto. Por exemplo, o indivíduo que, hoje em dia, passa uma boa parte da sua existência tentando assimilar as idéias de Leibniz, de São Tomás de Aquino ou de Aristóteles, está recebendo uma influência que não é de maneira alguma do seu tempo, mas de um tempo remoto. Como existe na Filosofia uma espécie de uma tradição, ou seja, uma contínua referência ao passado filosófico, absolutamente todos os filósofos sempre se reportam a alguma coisa dos anteriores, seja para endossá-los, seja para contestá-los, seja para discutir com eles. Como existe uma tradição, é absolutamente necessário que entendamos que ela tem um peso específico próprio, que não depende de forma alguma da cultura do seu tempo. Essa tradição é acumulativa, vai entrando mais material, mais material, mais material, e o material acumulado que você recebe (...) é tão avassalador que ela se superpõe à influência da cultura do tempo em que o sujeito está vivendo. Se estudarmos, por exemplo, as obras de Franz Brentano (Franz Brentano é um grande filósofo do século passado, que passou a vida inteira resolvendo problemas aristotélicos), poderemos descobrir alguns elementos da presença da cultura do seu tempo por sinais indiretos, mas a presença aristotélica estará por toda parte: Aristóteles é onipresente. É claro que esta influência, que veio de 2200 anos antes, predomina sobre a influência da cultura do seu tempo. Essa história de dizer que "o sujeito é um homem do seu tempo" é uma grandessíssima bobagem; ninguém pode ser exclusivamente "homem do seu tempo". Se cada um fosse homem "do seu tempo", simplesmente não teríamos História. Só podemos ter uma dimensão histórica justamente porque transcendemos o nosso tempo e, de alguma maneira, nos conecta- mos com outros tempos, passados e futuros. Se os elementos presentes em nosso meio cultural e social - de criação atual -, que estão sendo manipulados agora, delimitassem o nosso universo a ponto de sermos criaturas do nosso tempo, jamais poderíamos, por nós mesmos, buscar elementos em outros tempos e introduzi-los na corrente contemporânea, às vezes modificando totalmente o rumo das coisas. Quando, por exemplo, vemos que nos últimos trinta ou quarenta anos existe um interesse retroativo cada vez maior dos biólogos pela física aristotélica - que na verdade não é uma física, mas uma metodologia da ciência - e que, se pensarmos bem, a grande novidade em biologia nos últimos trinta anos se chama "Aristóteles", veremos que esta possibilidade de buscar num outro tempo um elemento esquecido e de modificar o panorama contemporâneo realmente acontece de quando em quando. Mais ainda, no século XVIII, a Europa estava em plena época de glória da física de Newton, quer dizer, a física mecanicista, a física que acreditava que, partindo de três ou quatro princípios auto-evidentes (os princípios são leis da natureza), praticamente todo o restante da fenomenalidade cósmica poderia ser conhecida quase que por pura dedução lógica ou matemática, ou seja, que se chegaria a descrever tão bem a mecânica natural que praticamente nenhum fato escaparia da malha dos princípios newtonianos. Isto no século XVIII. Ao mesmo tempo, tinha um sujeito chamado Leibniz que dizia que não era nada assim, que haveria, no campo da natureza, um certo coeficiente de indeterminação que, longe de ser uma margem de erro apenas, era um dos elementos fundamentais, um dos pilares na natureza. Ou seja, a natureza, longe de obedecer a uma causalidade mecânica inteiramente lógica, tinha em si mesma, na sua própria constituição, algo de essencialmente incerto e essencialmente imprevisível. Ora, quando Leibniz disse isso, ninguém prestou a menor atenção e a física continuou, e não só a física, mas todas as ciências da natureza continuaram raciocinando dentro da linha da mecânica de Newton, com um sucesso tão grande que, no final do século XIX, um outro sujeito disse que a ciência já tinha descoberto praticamente tudo e que, no século seguinte, só restaria calcular alguns decimais faltantes (já existia a formula geral, faltava só acertar as frações). De repente, chega um sujeito chamado Einstein, outro chamado Max Planck, e viraram tudo isso de cabeça para baixo. A conclusão é que o elemento indeterminístico, que tinha sido ressaltado por Leibniz, revela-se realmente decisivo, a ponto de que hoje ninguém teria coragem de negá-lo. Dentro de uma época cultural totalmente impregnada do mecanicismo newtoniano, alguém volta lá atrás, pega um elemento esquecido, um elemento morto do passado filosófico e científico - que seria o indeterminismo leibniziano -, o reenxerta na corrente dos acontecimentos e muda de repente todo o panorama científico-filosófico-cultural do “seu tempo”. Se os homens fossem "filhos do seu tempo", eles nunca poderiam ir para fora dele, nem sondar possibilidades que já não fazem parte do repertório do seu tempo, muito menos modificar a história do seu tempo a partir de elementos colhidos em outros tempos. Quando um homem é totalmente "filho do seu tempo", isso significa que ele não enxerga um centímetro para além do horizonte de visão da cultura do seu tempo, que tudo aquilo que não está no repertório atual não existe para ele. Podemos dizer que, nesse sentido, todo sujeito inculto e inconsciente é um filho do seu tempo, quer dizer que qualquer idéia de historicismo absoluto - de se dissolver todas as dimensões da vida humana exclusivamente na dimensão histórica anula a própria possibilidade da História. É como se disséssemos: "Se só existe História, então não existe nem História". É porque algumas coisas têm história e outras não têm que podemos contar a História! (SOOU ESTRANHO, CONFERIR) Por exemplo, os triângulos não têm história; se considerados geometricamente, eles não têm história. Fazem a mesma coisa desde que o mundo é mundo; aliás, antes de o mundo existir eles também já faziam a mesma coisa. Antes de o mundo existir, a soma dos quadrados dos catetos já dava o quadrado da hipotenusa, embora ninguém tivesse percebido isso. E depois que o mundo acabar, vai continuar a mesma coisa. Um mais um dava dois; dois mais dois dava quatro, e depois de acabar o mundo também. Se não existissem essas realidades trans-históricas ou meta-históricas, não existiria também a dimensão histórica - ou pelo menos nós seriamos incapazes de percebê-la, assim como uma gota d'água não percebe que está dissolvida num montão de água. A História seria apenas um fluxo inconsciente de átomos anônimos dissolvidos na unidade maior do movimento que eles próprios desconhecem. Como é possível que um sujeito que pretende fazer História, ou pretende até filosofar sobre a História, comece por enunciar uma impossibilidade deste tamanho sem perceber que ele está serrando o próprio galho no qual está sentado, está cortando os próprios pés para andar melhor ou, como se diz, está arrancando os próprios olhos para poder observá-los melhor? A história do pensamento infelizmente está cheia desses curtos-circuitos, que fazem parte do que vamos chamar de "a teratologia intelectual". O que é teratologia intelectual? São as alterações falhadas do projeto. Alterações falhadas não por uma coincidência, porque muitas vezes o sujeito tem uma boa idéia, mas não consegue executar; são alterações falhadas porque o próprio enunciado da alteração já enunciava alguma coisa impossível de se fazer, que o sujeito não percebeu que era impossível. Aí estão as famosas "penas de amor perdidas": o sujeito passa a vida tentando fazer um negócio e há um enunciado que já disse que ele não ia fazer. A História da Filosofia é uma história de um projeto humano realizado por seres humanos, então vamos sempre ter que contar com a distração humana, com a burrice humana, com a teimosia humana, com o esquecimento humano, com tudo isso que na nossa própria vida pessoal nos induz freqüentemente ao fracasso e ao erro, e que por certo levou ao fracasso e ao erro uma multidão de filósofos. Podemos sempre voltar a levantar como hipótese alguma coisa que já foi demonstrada como perfeitamente inviável, absurda, mas que não sabemos que é inviável, absurda, ou seja, não fomos avisados disso ou, mesmo avisados, não compreendemos direito. Espero, por exemplo, que este meu projeto "História da Filosofia", contada como projeto humano, não seja inviável. A experiência que já tive, a de lecionar quatro vezes este curso e de escrever uma boa parte dele, não me parece ter levado a nenhuma contradição, a nenhuma absurdidade, pelo menos intrínseca. Acredito que este método permite que se tenha uma visão muito mais realista do que foi o desenvolvimento da história das idéias filosóficas do que os outros métodos existentes até agora. [Aluno: Partindo do pressuposto de ato e potência - porque você colocou, pela sua exposição, que Aristóteles seria o primeiro grande filósofo (...), ou melhor, o primeiro historiador da Filosofia -, eu me lembrei depois da relação de Aristóteles e Tomás de Aquino. Pelo que você colocou, dá para entender que (...) eu posso concluir daí que há alguma espécie de alternância entre a maior obediência da Filosofia ou da religião?] Não sei. Se houvesse essa alternância... Se conseguíssemos, no conjunto da História da Filosofia, descobrir uma alternância, teríamos descoberto uma lei geral e, portanto, cairíamos numa espécie de módulo hegeliano: "Nós já temos a fórmula". O fato é que não descobrimos essa fórmula até agora - e acho que a idéia mesma de descobrir uma "fórmula" do desenvolvimento das idéias filosóficas é autocontraditória com a própria definição da Filosofia. Se entendemos que ela é um projeto, a execução de um projeto, mesmo dentro da continuidade da mesma vida do sujeito que teve a idéia ela já passa por muitas alterações. Ao transmiti-la para outras gerações, ela passa por mais alterações ainda. Em princípio, então, não deve haver nenhum módulo constante e repetível, mas uma multidão de transformações possíveis, que continuarão depois da gente ir embora desse planeta. Nunca serão totalmente ilógicas, porque estão vinculadas à própria discussão de um projeto originário - elas se referem a ele. Nunca vão ser completamente heterogêneas, embora às vezes aconteça a intromissão de um fator heterogêneo, ou seja, um fator que não tem nada a ver com a História da Filosofia - e muito menos com a própria Filosofia -, mas que suscita nos homens de uma determinada época um certo interesse de saber determinadas coisas que escapam completamente das possibilidades da Filosofia existente até então. Esses fatos podem ser, por exemplo, de ordem religiosa. Surge uma nova religião, essa religião vem com um monte de doutrinas que não foram desenvolvidas dentro da linha de continuidade do pensamento filosófico. Tiveram, por assim dizer, uma outra origem, mas interferem na discussão filosófica. A narrativa das relações entre cristianismo e Filosofia já é, por exemplo, um capítulo especial da História da Filosofia. Às vezes, o fator que intervém não é sequer de ordem doutrinal. Porque uma religião se parece com uma filosofia pelo menos sob este aspecto, é uma doutrina; distingue-se por milhões de características, mas que é uma doutrina é - pelo menos esse ponto elas têm em comum. Às vezes, o rumo da História da Filosofia é totalmente alterado por intervenção de fatores que não são doutrinas, são fatos puros e simples, como uma guerra, ou até fatos da ordem natural. Por exemplo, no século XVIII, o famoso terremoto de Lisboa, em que morreram umas 120 mil pessoas, era um negócio absurdo para a época! Matar 120 mil pessoas hoje é "aceitável", mesmo que não seja a natureza quem matou... Mas, naquela época, o choque dessa catástrofe natural suscitou imediatamente, em toda Europa, a discussão de um problema filosófico que fazia séculos ninguém estava muito interessado: o da Teodicéia, ou justificação de Deus, baseada na pergunta: "Como é que Deus permite algo assim?". Ninguém vai dizer que um terremoto é uma doutrina filosófica. É um fato de ordem totalmente heterogênea, que, no entanto, repentinamente, modifica o repertório das discussões filosóficas. Hoje, quando acontece, por exemplo, esse problema ecológico (a crise ecológica, quer exista, quer não exista, ela não é uma doutrina filosófica, é um fato da natureza, é um fato que existe ou que alguém pensou que existe), instantaneamente isso suscita uma multidão de discussões que interferem no curso da Filosofia. Por exemplo, a descoberta da possibilidade de produzir clones. Qual é o estatuto antropológico do clone? O estatuto sociológico? O estatuto familiar? O que é essa criatura? Nós de fato não sabemos! Então, naturalmente, o indivíduo que estava investigando isso não estava nem um pouco preocupado em Filosofia, mas apenas preocupado em descobrir uma técnica que pudesse ser patenteada e que lhe desse um montão de dinheiro, e ele fez isto. Só que agora está feito, é um fato consumado. Esse é, então, um fato que veio de uma origem totalmente estranha às discussões filosóficas e que muda o panorama. A história dessas intervenções externas é importante, porque são modificações externas do projeto filosófico. Nesse sentido, o cristianismo é um fator externo, assim como o terremoto de Lisboa, ou seja, é uma modificação que não surge diretamente do confronto entre as doutrinas, do diálogo filosófico. Modificações internas são as que surgem dentro do debate filosófico; quer dizer, um filósofo, analisando uma coisa que o outro disse, descobre uma possibilidade de atuar de uma maneira diferente e enuncia uma outra hipótese. Esta é uma modificação interna, endógena, mas há aquelas que são exógenas. O enunciado da filosofia de Hegel - quando ele diz que o conteúdo da Filosofia é constituído pela própria História da Filosofia, o que ninguém tinha pensado antes - é uma modificação endógena. Até aquele momento, contar a História da Filosofia não era considerado como uma tarefa especificamente filosófica ou essencialmente filosófica, mas apenas acidentalmente filosófica. Se Hegel tem razão, a principal atividade filosófica é contar a História da Filosofia, então, modifica-se o projeto, modifica-se desde dentro. [Aluno: O senhor coloca a História da Filosofia como a sucessão das vicissitudes de um projeto humano. (...) É possível pensar nas diversas filosofias existentes (...) não digo articuladas nem coerentes, mas pelo menos com qualidades em comum?] A resposta é: às vezes sim, às vezes não! Isso depende não de uma teoria geral ou de uma interpretação geral que nós vamos fazer a posteriori, mas dos próprios personagens envolvidos terem se reportado consciente e voluntariamente a um projeto originário ou não. podemos fazer isso. Não quer dizer que nós o façamos sempre, tampouco que a sociedade que não tem registro escrito não seja constituída de gente. Eles não o têm, mas têm a capacidade de ter! Eles apenas não a efetivaram, não a atualizaram. Por exemplo, as tartarugas, ou as minhocas, essas não têm essa possibilidade, então jamais notarão, as futuras tartaruguinhas ou minhoquinhas, a história dos seus antepassados. De geração em geração, a história do passado é anulada; só são conservados os fatores estruturais de ordem biológica. Os bichos causam dó porque são vítimas inermes do acontecer. Nunca sabem para onde estão indo. Se você extinguir uma espécie animal, o último a saber vai ser o membro da espécie animal. O último leão, ele não sabe que é o último! Então quer dizer que esse negócio de idealizar os animais, e até os primitivos, dizendo: "Não! Eles é que são felizes", só quem nunca viu o sofrimento animal é que diz uma coisa dessas. O animal que sofre, ele sofre duplamente, porque no sofrimento animal existe, além de tudo, o terror. Ele não sabe o que está acontecendo, está totalmente na mão de fatores externos. Graças a Deus, se você for o dono do animal, você é um desses fatores, e é um fator atenuante. Qualquer veterinário lhe dirá que, para curar um animal doente, um fator fundamental é a atenção e o carinho do dono. Agora, e quando você fica doente? Se não tiver ninguém para lhe dar atenção e carinho? Você pode, você mesmo, depois você reza enquanto se levanta. Isso aí para o animal está completamente fora. Esta dimensão histórica é uma maravilha da vida humana. É isso aí que lhe dá um privilégio especial, e sem você ter consciência deste privilégio toda sua visão da realidade é totalmente deformada e desproporcional. Hoje, por exemplo, existe uma tendência muito forte, mas muito forte, de enfatizar a tal ponto a semelhança do homem com certas espécies animais que as diferenças acabam desaparecendo. Qualquer geneticista lhe dirá: "Não, a diferença entre o homem e o macaco da espécie tal é de apenas 3%". Bom, 3% geneticamente; ou seja, a ciência genética, com seus métodos, com a delimitação do seu campo, não tem senão condição de enxergar 3%. Isso não quer dizer que toda diferença possa ser reduzida a esse percentual. Isso é uma limitação, não do homem, nem do macaco, mas da genética, evidentemente. Essa limitação de uma ciência em particular às vezes é extrapolada como se ela mesma tivesse um poder explicativo sobre o restante do fenômeno. Mas, por exemplo, quando qualquer indivíduo quiser argumentar sobre os 3%, tem algo que se pode responder imediatamente. Existe uma constante da História humana (que não é tão constante assim, mas é cíclica ou repetida ao longo do tempo): desde que apareceu o homem na Terra, ele nunca parou, nem uma vez, de chamar à sua responsabilidade, ao seu comando, a gerência e o direcionamento de processos naturais que antes eram totalmente espontâneos. Ele nunca parou de fazer isso. Sempre quer fazer mais, e rnais, e mais... Isto torna o homem não apenas "um pouco" diferente de todos os outros animais: é uma diferença de dimensão. Não existe nenhuma espécie animal que possa fazer isso! Quando você vê as pessoas discutindo crise ecológica e fazendo planos para alterar processos naturais de escala imensa, lembre-se de que isso começou desde a primeira vez que um sujeito plantou alguma coisa, da primeira vez que ele procurou orientar, dirigir o processo natural, de maneira que lhe fosse conveniente. Isso não quer dizer que antes não houvesse sementes, que as sementes não germinassem e que nada nascesse. Não, nascia, só que nascia como a natureza queria. O homem chama a si a gerência desse processo natural e... vamos ter que explicar tudo com 3%? Eu digo: "Olha, este é um problema gravíssimo para a genética", porque essa é uma ciência excepcionalmente burra. Ela pega um fenômeno desse tamanho e disso ela só consegue enxergar 3%! Agora, se o geneticista entende que esse fator genético está imbricado no meio de uma malha de outros fatores, ele dirá: "Olha, o que a genética tem a dizer a respeito é muito pouco, porque nós só sabemos dos 3%"... Mas o sujeito não vai dizer isso nunca; ele vai dizer que nós é que estamos limitados pelos 3%, não a ciência dele. Se ele faz isso, está demonstrando que não sabe o que é ciência. E vejam: nenhuma ciência estuda um objeto real, concreto, ela estuda sempre um recorte abstrativo que faz do seu próprio jeito. Esse recorte abstrativo pode corresponder a alguma diferença real existente no campo dos objetos, mas isso pode às vezes não acontecer. Pode ser que o território de uma ciência seja todo ele fictício. Por exemplo, se se descobrir que tudo aquilo que se chama de genética pode ter uma explicação química, acabou a genética, ela não existe como um recorte correspondente a uma diferença objetiva. As ciências são a toda hora absorvidas por outras. Isso prova que elas estavam estudando irrealidades e que, quando despertam do seu sonho, são imediatamente engolidas por uma estrutura científica maior. Isso também pode acontecer com a própria disciplina que nós estamos estudando. Mas, por enquanto, parece-me que a História da Filosofia, pelo menos tal como eu a estou delineando aqui, tem um campo específico que não pode ser abrangido nem explicado por nenhuma outra ciência existente, embora possa surgir uma outra amanhã que venha a absorvê-la. A História da Filosofia - como a história das tentativas de realizar, alterar, impugnar ou substituir um projeto originário - só existe por quê? Porque as sucessivas gerações de personagens se reportam explicitamente a esse projeto originário. Ou seja, ou se declaram seus herdeiros, seus continuadores, ou se voltam contra ele, ou o criticam, ou procuram até desmoralizá-lo. O que faz Nietzsche? Nietzsche tenta desmoralizar o projeto filosófico inteiro. Por isso mesmo, faz parte da história do projeto. Aí se cria uma situação ambígua. [Aluno: Mas, nesse caso, não seria uma tentativa de realizar o projeto?] Não, mas este fato, da impugnação, faz parte da história do projeto. Claro que faz, porque estamos contando a história real, não apenas a história interna. [Aluno: Então, para ser filosofia, bastaria simplesmente que o filósofo manifestasse a consciência de que existe esse projeto?] Não! Não! É necessário que ele faça parte objetivamente da história do projeto - e objetivamente significa também conscientemente, é claro! Pode ser uma participação inconsciente... Não, eu não excluo essa hipótese, mas eu nunca vi nenhum exemplo disto. Existem participações apenas semiconscientes. Por exemplo, quando chegamos no século XX, o mundo anglo-saxônico é em grande parte dominado por uma certa escola de pensamento, a Escola Analítica. Ela restringe muitíssimo o campo do projeto filosófico. Automatica- mente, questões que sempre foram consideradas filosóficas passam a ser tratadas por estudiosos de outro campo, especificamente na crítica literária. Isso quer dizer que, para se estudar a História da Filosofia anglo-saxônica, tem-se que dar uma olhada no departamento de Letras, porque muitas vezes o crítico literário está prosseguindo o diálogo com o projeto filosófico de uma maneira até mais explícita do que faz o filósofo profissional. Ele o faz conscientemente, mas com a devida interferência dos fatores burocráticos, funcionais etc. (...) Tudo aquilo já faz parte da História da Filosofia, porque é um diálogo com a tradição filosófica. Mas o sujeito não poderia chegar e dizer: "Eu sou filósofo, portanto, vou entrar no seu departamento e tomar o seu lugar". Existe uma espécie de deferência para com a organização burocrática do trabalho intelectual que fará que distinções meramente convencionais entre certas disciplinas sejam aceitas como se fossem reais, embora todo mundo saiba que não são. É um problema de educação, um problema de polidez, mas que para nós não vem ao caso. Temos que contar a história como ela realmente aconteceu. Isso quer dizer que, no mundo anglo-saxônico, encontraremos uma massa imensa de Filosofia que não ousa dizer o seu nome, embora saiba que é Filosofia. . Esse fator da distinção entre tradições nacionais entra na História da Filosofia a partir do século XIX, com uma força cada vez maior, a ponto de, quando se compara a filosofia do bloco anglo-saxônico com o que eles chamam de bloco continental - e se compara com o terceiro bloco, que seria o bloco soviético -, vai-se ver que na simples expressão do projeto filosófico eles já não se entendem absolutamente. Vamos estudar, mais tarde, um breve texto de um excelente historiador chamado Wolfgang Stegmüller, em que ele dá um breve panorama da fragmentação da noção de Filosofia no século XX. Veremos como isso é um capítulo dramático, um capítulo fascinante da história do projeto, porque as pessoas começam a fazer coisas desencontradas que levam mais ou menos o mesmo nome, e, às vezes, não há sequer a condição de um compreender o que o outro está fazendo. Creio que, hoje em dia, neste ano 2002, nós já estamos saindo dessa situação descrita por ele por volta de 1960 a 1970. existe uma doutrina estabelecida que desde o primeiro dia já não é mais para se questionar, só se pode questionar a interpretação daquilo. Veja que o mesmo não acontece no mundo cristão. Para chegar a um texto mais ou menos estabilizado já foi um problema, então o texto mesmo já é objeto de discussão. No mundo islâmico, não tem isso. Por causa disso, então, forma-se desde o início - e com a maior facilidade – uma moral islâmica e um direito, uma jurisprudência islâmica, mediante a aplicação direta da letra do Corão. No mundo cristão, para aparecer uma moral cristã e um direito cristão, foram séculos, séculos e séculos. Para você ter idéia, a primeira formulação sistemática da moral cristã ocorre no século XVIII, com Santo Afonso de Ligório. Esse Santo Afonso era um bispo, era confessor dos padres, e daí ele descobriu que cada padre estava ensinando uma moral completamente diferente, isto no século XVIII. Esse problema no mundo islâmico nunca existiu, porque tudo já vem organizado dentro do princípio. Como existiu esse fenômeno do direito islâmico unificado desde o princípio, as sociedades islâmicas se organizam desde o primeiro dia com base numa grande coesão moral e jurídica; portanto, trata-se de uma ortodoxia muito rígida. Isto quer dizer que a possibilidade da livre investigação intelectual era problemática nesse contexto. Qual foi a solução que eles encontraram? A solução foi considerar os grupos de investigadores, seja de ordem mística, seja de ordem filosófica, como tipos humanos especiais que conduzem sua atividade dentro do seu grêmio, de tal maneira que isso não deva interferir em nada na ordem das coisas. Isso quer dizer que a atividade de discussão mais profunda era considerada um assunto para um círculo especializado e que o restante da sociedade não tinha nem que entender. Com isso, formam-se certas ordens quase que de tipo monástico, que de geração em geração vão discutindo aquelas mesmas coisas para seu proveito próprio e sem nenhuma tendência de influenciar a sociedade maior. Esse direito lhes é assegurado, contanto que não se mude o direito, a moral, porque tudo já está afixado. Isso quer dizer que, em muitos países islâmicos, toda esta tradição mística ou filosófica é totalmente ignorada pela população, e em muitos casos todo o seu material, sua discussão interna, passou de geração em geração, durante séculos, como simples registro manuscrito que ninguém pensava em copiar, editar para fora. É como se fosse cada um uma maçonaria. Quando chega na década de 1930, já no século XX, por uma coincidência providencial, o embaixador francês no Irã, Henry Corbin, interessou-se em começar a traduzir tudo isso, então muito desse material saiu primeiro em francês e - ele era embaixador na Pérsia - só depois em língua persa. Mais ainda, quando se deu a revolução persa, a revolução iraniana, os aiatolás mandaram parar tudo isso. Quando vemos toda essa tradição que se desenvolve a margem da filosofia ocidental, todas elas têm alguma referência a Aristóteles, Platão e Sócrates. É uma tentativa marginal (marginal em relação a nós, para eles nós é que somos marginais) de realizar o mesmo processo, o mesmo projeto, dentro de um contexto completamente diferente, e que para nós, aqui, torna-se quase difícil de imaginar. Pior ainda, quando você abre a caixa, você descobre que a Pérsia sozinha teve quase que mais filósofos que a Europa inteira, então isso aí complica formidavelmente a missão de contar a história, mas a torna mais interessante ainda. Essa possibilidade de tradições que se ignoram completamente, mas que de algum modo têm uma referência, isso acontece. Existe a possibilidade de uma tradição que não tenha referência histórica, isso é, as pessoas não sabem que estão fazendo a mesma coisa, mas que tenha uma analogia substantiva? Existe. Na China se encontra isso. Para quem nunca soube que existiu, na China, na índia existe. Por exemplo, quando se pega a tradição de comentários védicos ou, dentro do contexto budista, as discussões interpretativas dos discursos do Buda, esse pessoal, tentando explicar o texto sacro, é levado às vezes a enfrentar certos problemas de ordem, em primeiro lugar, lógica, que os fazem arquitetar sistemas lógicos inteiros sem nunca ter ouvido falar de Sócrates, nem de Aristóteles. Uns sem saber dos outros chegam a problemas parecidos, o que mostra que a Filosofia como problema e como projeto é uma dimensão possível da existência humana, e que ela pode reaparecer sem conexão histórica. Os requintes, por exemplo, da lógica vedantina ou da lógica budista - para quem estudou o desenvolvimento da lógica na clave ocidental e só depois descobre isso - ficam parecendo uma maravilha. No fundo, é exatamente a mesma coisa, mas descoberto por uma via completamente diferente que nunca se imaginou que fosse possível. Por exemplo, aqui, na tradição aristotélica, a disciplina chamado Lógica sempre trabalhou na ideia linear da identidade, quer dizer, se é sim, é sim; se é não, é não. Existe um confronto de sim com não na esfera dialética, mas isso se desenvolveu pouco. A ciência da dialética se desenvolve muito pouco em comparação com a ciência da lógica. Em outros contextos, se chama de Lógica o estudo conjunto do que nós chamamos de identidade e de três das suas negações possíveis. Então, o princípio de identidade é o seguinte: se é, é; se não é, não é. Se é e não é, ao mesmo tempo, esse é um problema dialético, a confrontação de contrários. Confrontação de contrários não faz parte da ciência da Lógica, que aprimora apenas o raciocínio na linha de identidade. Mas no mundo budista se chama isso de Lógica também. O budista admite quatro possibilidades: tem o que é; tem o que não é; tem o que é e não é; e tem o que nem é, nem não é. Isso agrupa todo o mundo da confrontação dialética dentro da ciência da Lógica, que é uma ideia que só foi ocorrer no Ocidente muito tempo depois - que não a contradiz de maneira alguma, mas ninguém tinha pensado em fazer isso. Essas coisas, então, tornam o campo da História da Filosofia imensamente maior do que geralmente os manuais abordam, e uma das vantagens que eu creio poder ostentar com meu método é o fato de que ele integra facilmente, na História da Filosofia, essas outras tradições que realmente são consideradas estranhas. Dito de outro modo: considero que a maior parte das histórias da Filosofia que existem, se não todas elas, partem de um conceito demasiado limitativo do que seja a Filosofia, porque, não tendo conseguido alcançar um conceito geral suficientemente abrangente de modo que abarcasse todas as variações possíveis, eles fazem um conceito provisório de ordem puramente empírica, que chama de Filosofia certas coisas que certas pessoas têm feito. Quando botaram esta definição aqui no quadro - "Filosofia é a unidade do conhecimento na unidade da consciência, e vice-versa" -, esta é a definição que eu encontrei, e creio que ela é suficientemente universal para abranger todas as manifestações possíveis. Partindo de uma definição mais ampla, e do conceito da Filosofia como projeto, para nós tanto faz se isso veio da China, veio da índia, veio de outra tradição completamente diferente. Nós podemos abarcar aqui o que se chama a filosofia-cosmovisão do "homem primitivo" (para mim não existe homem primitivo). Tudo isso se encaixa de algum modo dentro da História da Filosofia, sem forçar uma unidade e sem se perder numa multiplicidade caótica. Por quê? Porque não estamos narrando a história de uma continuidade linear, estamos narrando um drama humano no qual o imprevisto, o descontínuo entram exatamente como entram na vida de qualquer um de nós. Este é o projeto que será desenvolvido. Quando, por uma limitação de tempo das nossas aulas, tivermos que saltar alguns pedaços, esses pedaços jamais serão considerados desprezíveis, como geralmente acontece nas histórias da Filosofia, que desprezam certos tópicos: "Ah! Escapa do nosso âmbito". Eu falo: "Não, esses pedaços que nós teremos que deixar de lado fazem parte do nosso projeto, sim, nós estamos deixando-os de lado apenas provisoriamente, por motivos práticos". Muitas histórias da Filosofia excluem, por exemplo, capítulos inteiros da Filosofia Oriental, dizendo que não são "pertinentes" ao desenvolvimento daquilo. Para mim, no meu ponto de vista, são pertinentes, sim! Quer dizer que a História da Filosofia, tal como eu a entendo, é uma disciplina enormemente mais complexa, mas baseada em princípios mais simples.