Baixe pdf - pedagogia da autonomia - paulofreire e outras Notas de aula em PDF para Literatura, somente na Docsity! PEDAGOGIA DA AUTONOMIA Saberes Necessários à Prática Educativa PAULO FREIRE 1 Para ter acesso a outras obras livres acesse: WWW.SABOTAGEM.REVOLT.ORG Títul Ano d An Esta obra foi digitalizada, formatada e rev pode e deve ser reproduzida no todo ou e con Autor: Paulo Freire o: Pedagogia da Autonomia a Publicação Original: 1996 o da Digitalização: 2002 isada pelo Coletivo Sabotagem. Ela não possui direitos autorais m parte, além de ser liberada a sua distribuição, preservando seu teúdo e o nome do autor. 2 No âmbito dos saberes pedagógicos em crise, ao recolocar questões tão relevantes agora quanto foram na década de 60, Freire, como homem de seu tempo traduz, no modo lúcido e peculiar, aquilo que os estudos das ciências da educação vêm apontando nos últimos anos: a ampliação e a diversificação das fontes legítimas de saberes e a necessária coerência entre o "saber-fazer é o saber-ser-pedagógicos". Num momento de aviamento e de desvalorização do trabalho do professor em todos os níveis, a pedagogia da autonomia nos apresenta elementos constitutivos da compreensão da prática docente enquanto dimensão social da formação humana. Para além da redução ao aspecto estritamente pedagógico e marcado pela natureza política de seu pensamento, Freire, adverte-nos para a necessidade de assumirmos uma postura vigilante contra todas as práticas de desumanização. Para tal o saber-fazer da auto reflexão crítica e o saber-ser da sabedoria exercitados, permanentemente, podem nos ajudar a fazer a necessária leitura crítica das verdadeiras causas da degradação humana e da razão de ser do discurso fatalista da globalização. Nesse contexto em que o ideário neoliberal incorpora, dentre outras, a categoria da autonomia, é preciso também atentar para a força de seu discurso ideológico e para as inversões que pode operar no pensamento e na prática pedagógica ao estimular o individualismo e a competitividade. Como contraponto, denunciando o mal estar que vem sendo produzido pela ética do mercado, Freire, anuncia a solidariedade enquanto compromisso histórico de homens e mulheres, como uma das formas de luta capazes de promover e instaurar a "ética universal do ser humano". Essa dimensão utópica tem na pedagogia da autonomia uma de suas possibilidades. Finalmente, impossível não ressaltar a beleza produzida e traduzida nesta obra. A sensibilidade com que Freire problematiza e toca o educador aponta para a dimensão estética de sua prática que, por isso mesmo pode ser movida pelo desejo e vivida com alegria, sem abrir mão do sonho, do rigor, da seriedade e da simplicidade inerente ao saber-da-competência. Edina Castro de Oliveira1 1 Mestre em Educação pelo PPCF/DEFS, Professora do Depto de Fundamentos da Educação e Orientação Educacional. Vitória, novembro de 1996. 5 Primeiras Palavras A questão da formação docente ao lado da reflexão sobre a prática educativo- progressiva em favor da autonomia do ser dos educandos é a temática central em torno de que gira este texto. Temática a que se incorpora a análise de saberes fundamentais àquela prática e aos quais espero que o leitor crítico acrescente alguns que me tenham escapado ou cuja importância não tenha percebido. Devo esclarecer aos prováveis leitores e leitoras o seguinte: na medida mesma em que esta vem sendo uma temática sempre presente às minhas preocupações de educador, alguns dos aspectos aqui discutidos não têm sido estranhos a análises feitas em livros meus anteriores. Não creio, porém, que a retomada de problemas entre um livro e outro e no corpo de um mesmo livro enfade o leitor. Sobretudo quando a retomada do tema não é pura repetição do que já foi dito. No meu caso pessoal retomar um assunto ou tema tem que ver principalmente com a marca oral de minha escrita. Mas tem que ver também com a relevância que o tema de que falo e a que volto tem no conjunto de objetos a que direciono minha curiosidade. Tem que ver também com a relação que certa matéria tem com outras que vêm emergindo no desenvolvimento de minha reflexão. É neste sentido, por exemplo, que me aproximo de novo da questão da inconclusão do ser humano, de sua inserção num permanente movimento de procura, que rediscuto a curiosidade ingênua e a crítica, virando epistemológica. É nesse sentido que reinsisto em que formar é muito mais do que puramente treinar o educando no desempenho de destrezas, e por que não dizer também da quase obstinação com que falo de meu interesse por tudo o que diz respeito aos homens e às mulheres, assunto de que saio e a que volto com o gosto de quem a ele se dá pela primeira vez. Daí a crítica permanentemente presente em mim à malvadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa inflexível ao sonho e à utopia. Daí o tom de raiva, legítima raiva, que envolve o meu discurso quando me refiro às injustiças a que são submetidos os esfarrapados do mundo. Daí o meu nenhum interesse de, não importa que ordem, assumir um ar de observador imparcial, objetivo, seguro, dos fatos e dos acontecimentos. Em tempo algum pude ser um observador 6 "acinzentadamente" imparcial, o que, porém, jamais me afastou de uma posição rigorosamente ética. Quem observa o faz de um certo ponto de vista, o que não situa o observador em erro. O erro na verdade não é ter um certo ponto de vista, mas absolutizá-lo e desconhecer que, mesmo do acerto de seu ponto de vista é possível que a razão ética nem sempre esteja com ele. O meu ponto de vista é o dos "condenados da Terra", o dos excluídos. Não aceito, porem, em nome de nada, ações terroristas, pois que delas resultam a morte de inocentes e a insegurança de seres humanos. O terrorismo nega o que venho chamando de ética universal do ser humano. Estou com os árabes na luta por seus direitos mas não pude aceitar a malvadez do ato terrorista nas Olimpíadas de Munique. Gostaria, por outro lado, de sublinhar a nós mesmos, professores e professoras, a nossa responsabilidade ética no exercício de nossa tarefa docente. Sublinhar esta responsabilidade igualmente àquelas e àqueles que se acham em formação para exerce- la. Este pequeno livro se encontra cortado ou permeado em sua totalidade pelo sentido da necessária eticidade que conota expressivamente a natureza da pratica educativa, enquanto prática formadora. Educadores e educandos não podemos, na verdade, escapar à rigorosidade ética. Mas, é preciso deixar claro que a ética de que falo não é a ética menor, restrita, do mercado, que se curva obediente aos interesses do lucro. Em nível internacional começa a aparecer uma tendência em acertar os reflexos cruciais da "nova ordem mundial", como naturais e inevitáveis. Num encontro internacional de ONGs, um dos expositores afirmou estar ouvindo com certa freqüência em países do Primeiro Mundo a idéia de que crianças do Terceiro Mundo, acometidas por doenças como diarréia aguda, não deveriam ser salvas, pois tal recurso só prolongaria uma vida já destinada à miséria e ao sofrimento. Não falo, obviamente, desta ética. Falo, pelo contrário, da ética universal do ser humano. Da ética que condena o cinismo do discurso citado acima, que condena a exploração da força de trabalho do ser humano, que condena acusar por ouvir dizer, afirmar que alguém falou A sabendo que foi dito B, falsear a verdade, iludir o incauto, golpear o fraco e indefeso, soterrar o sonho e a utopia, prometer sabendo que não cumprirá a promessa, testemunhar mentirosamente, falar mal dos outros pelo gosto de falar mal. A ética de que falo é a que se sabe traída e negada nos comportamentos grosseiramente imorais como na perversão hipócrita da pureza em puritanismo. A ética de que falo é a que se sabe afrontada na manifestação 7 seres condicionados mas não determinados. Reconhecer que a História é tempo de possibilidade e não de determinismo, que o futuro, permita-se-me reiterar, é problemático e não inexorável. Devo enfatizar também que este é um livro esperançoso, um livro otimista, mas não ingenuamente construído de otimismo falso e de esperança vã. As pessoas, porém, inclusive de esquerda, para quem o futuro perdeu sua problematicidade - o futuro é um dado dado - dirão que ele é mais um devaneio de sonhador inveterado. Não tenho raiva de quem assim pensa. Lamento apenas sua posição: a de quem perdeu seu endereço na História. A ideologia fatalista, imobilizante, que anima o discurso neoliberal anda solta no mundo. Com ares de pós-modernidade, insiste em convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social que, de história e cultural, passa a ser ou a virar "quase natural". Frases como "a realidade é assim mesmo, que podemos fazer?" ou "o desemprego no mundo é uma fatalidade do fim do século" expressam bem o fatalismo desta ideologia e sua indiscutível vontade imobilizadora. Do ponto de vista de tal ideologia, só há uma saída para a prática educativa: adaptar o educando a esta realidade que não pode ser mudada. O de que se precisa, por isso mesmo, é o treino técnico indispensável à adaptação do educando, à sua sobrevivência. O livro com que volto aos leitores é um decisivo não a esta ideologia que nos nega e amesquinha como gente. De uma coisa, qualquer texto necessita: que o leitor ou leitora a ele se entregue de forma crítica, crescentemente curiosa. É isto o que este texto espera de você, que acabou de ler estas "Primeiras Palavras". Paulo Freire São Paulo - Setembro de 1996 10 Capítulo 1 Não há docência sem discência Devo deixar claro que, embora seja meu interesse central considerar neste texto saberes que me parecem indispensáveis à prática docente de educadoras ou educadores críticos, progressistas, alguns deles são igualmente necessários a educadores conservadores. São saberes demandados pela prática educativa em si mesma, qualquer que seja a opção política do educador ou educadora. Na continuidade da leitura vai cabendo ao leitor ou leitora o exercício de perceber se este ou aquele saber referido corresponde à natureza da prática progressista ou conservadora ou se, pelo contrário, é exigência da prática educativa mesma independentemente de sua cor política ou ideológica. Por outro lado, devo sublinhar que, de forma não-sistemática, tenho me referido a alguns desses saberes em trabalhos anteriores. Estou convencido, porém, é legítimo acrescentar, da importância de uma reflexão como esta quando penso a formação docente e a prática educativo-crítica. O ato de cozinhar, por exemplo, supõe alguns saberes concernentes ao uso do fogão, como acendê-lo, como equilibra par mais, para menos, a chama, como lidar com certos riscos mesmo remotos de incêndio, como harmonizar os diferentes temperos numa síntese gostosa e atraente. A prática de cozinhar vai preparando o novato, ratificando alguns daqueles saberes, retificando outros, e vai possibilitando que ele vire cozinheiro. A prática de velejar coloca a necessidade de saberes fundantes como o do domínio do barco, das partes que compõem e da função de cada uma delas, como o conhecimento dos ventos, de sua força, de sua direção, os ventos e as velas, a posição das velas, o papel do motor e da combinação entre motor e velas. Na prática de velejar se confirmam, se modificam ou se ampliam esses saberes. A reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação Teoria/Prática sem a qual a teoria pode ir virando blábláblá e a prática, ativismo. O que me interessa agora, repito, é alinhar e discutir alguns saberes fundamentais à prática educativo-crítica ou progressista e que, por isso mesmo, devem ser conteúdos obrigatórios à organização programática da formação docente. Conteúdos cuja 11 compreensão, tão clara e tão lúcida quanto possível, deve ser elaborada na prática formadora. É preciso, sobretudo, e aí já vai um destes saberes indispensáveis, que o formando, desde o principio mesmo de sua experiência formadora, assumindo-se com sujeito também da produção do saber, se convença definitivamente de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção. Se, na experiência de minha formação, que deve ser permanente, começo por aceitar que o formador é o sujeito em relação a quem me considero o objeto por ele formado, me considero como um paciente que recebe os conhecimentos-conteúdos-acumulados pelo sujeito que sabe e a são a mim transferidos. Nesta forma de compreender e de viver o processo formador, eu, objeto agora, terei a possibilidade, amanhã, de me tornar o falso sujeito da "formação" do futuro objeto de meu ato formador. É preciso que, pelo contrário, desde os começos do processo, vá ficando cada vez mais claro que, embora diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma- se e forma ao ser formado. É neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Quem ensina ensina alguma coisa a alguém. Por isso é que, do ponto de vista gramatical, o verbo ensinar é um verbo transitivo-relativo. Verbo que pede um objeto direto - alguma coisa - e um objeto indireto - a alguém. Do ponto de vista democrático em que me situo, mas também do ponto de vista da radicalidade metafísica em que me coloco e de que decorre minha compreensão do homem e da mulher como seres históricos e inacabados e sobre que se funda a minha inteligência do processo de conhecer, ensinar é algo mais que um verbo transitivo-relativo. Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente que, historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível ensinar. Foi assim, socialmente aprendendo, que ao longo dos tempos mulheres e homens perceberam que era possível - depois, preciso - trabalhar maneiras, caminhos, métodos de ensinar. Aprender precedeu ensinar ou, em outras palavras, ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender. Não temo dizer que inexiste validade do ensino de que não resulta um aprendizado em que o 12 dialética mas pensa mecanicistamente. Pensa errado. É como se os livros todos a cuja leitura dedica tempo parto nada devessem ter com realidade de seu mundo. A realidade com que eles têm que ver é a realidade idealizada de uma escola que vai virando cada vez mais um lado aí, desconectado do concreto. Não se lê criticamente como se fazê-lo fosse a mesma coisa que comprar mercadoria por atacado. Ler vinte livros, trinta livros. A leitura verdadeira me compromete de imediato com o texto que a mim se dá e a que me dou e cuja compreensão fundamental me vou tornando também sujeito. Ao ler não me acho no puro encalço da inteligência do texto como se fosse ela produção apenas de seu autor ou de sua autora. Esta forma viciada de ler não tem nada de ver, por isso mesmo, com o pensar certo e com o ensinar certo. Só, na verdade, quem pensa certo, mesmo que, às vezes, pensa errado, é quem pode ensinar a pensar certo. E uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas. Por isso é que o pensar certo, ao lado sempre da pureza e necessariamente distante do puritanismo, rigorosamente ético e gerador de boniteza, que me parece inconciliável com a desvergonha da arrogância de quem se acha cheia ou cheio de si mesmo. O professor que pensar certo deixa transparecer aos educandos que uma das bonitezas de nossa maneira de estar no mundo e com o mundo , como seres históricos, é a capacidade de, intervindo no mundo, conhecer o mundo. Mas, histórico como nós, o nosso conhecimento do mundo tem historicidade. Ao ser produzido, o conhecimento novo supera outro antes que foi novo e se fez velho e se "dispõe" a ser ultrapassado por outro amanhã. Daí que seja tão fundamental conhecer o conhecimento existente quanto saber que estamos abertos e aptos à produção do conhecimento ainda não existente. Ensinar, aprender e pesquisar lidam com esses dois momentos do ciclo gnosiológico: o em que se ensina e se aprende o conhecimento já existente e o em que se trabalha a produção do conhecimento ainda não existente. A "dodiscência" - docência-discência - e a pesquisa, indicotomizáveis, são assim práticas requeridas por estes momentos do ciclo gnosiológico. 15 1.2 - Ensinar exige pesquisa Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo, educo e me educo. Pesquiso para conhecer e o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade. Pensar certo, em termos críticos, é uma exigência que os momentos do ciclo gnosiológico vão pondo à curiosidade que, tornando-se mais e mais metodicamente rigorosa, transita da ingenuidade para o que venho chamando "curiosidade epistemológica". A curiosidade ingênua, de que resulta indiscutivelmente um certo saber, não importa que metodicamente desrigoroso, é a que caracteriza o senso comum. O saber de pura experiência feito. Pensar certo, do ponto de vista do professor, tanto implica o respeito ao senso comum no processo de sua necessária superação quanto o respeito e o estímulo à capacidade criadora do educando. Implica o compromisso da educadora com a consciência crítica do educando cuja "promoção" da ingenuidade não se faz automaticamente. 1.3 - Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os da classes populares, chegam a ela - saberes socialmente construídos na prática comunitária - mas também, como há mais de trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos. Porque não aproveitar a experiência que tem os alunos de viver em áreas da cidade descuidadas pelo poder público para discutir, por exemplo, a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem estar das populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde das gentes. Porque não há lixões no coração dos bairros rios e mesmo puramente remediados dos centros urbanos? Esta pergunta é considerada em si demagógica e 16 reveladora da má vontade de quem a faz. É pergunta de subversivo, dizem certos defensores da democracia. Porque não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Porque não estabelecer uma necessária "intimidade" entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos? Porque não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes elas áreas pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso? Porque, dirá um educador reacionariamente pragmático, a escola não tem nada que ver com isso. A escola não é partido. Ela tem que ensinar os conteúdos, transferí-los aos alunos. Aprendidos, estes operam por si mesmos. 1.4 - Ensinar exige criticidade Não há para mim, na diferença e na "distancia" entre a ingenuidade e a criticidade, entre o saber de pura experiência feito e o que resulta dos procedimentos metodicamente rigorosos, uma ruptura, mas uma superação. A superação e não a ruptura se dá na medida em que a curiosidade ingênua, sem deixar de ser curiosidade, pelo contrário, continuando a ser curiosidade, se criticiza. Ao criticizar-se, tornando-se então, permito- me repetir, curiosidade epistemológica, metodicamente "rigorizando-se" na sua aproximação ao objeto, conota-se seus achados de maior exatidão. Na verdade, a curiosidade ingênua que, "desarmada", esta associada ao saber do senso comum, é a mesma curiosidade que, criticizando-se, aproximando-se de forma cada vez mais metodicamente rigorosa do objeto cognoscível, se torna curiosidade epistemológica. Muda de qualidade mas não de essência. A curiosidade de camponeses com quem tenho dialogado ao longo de minha experiência político-pedagógica, fatalistas ou já rebeldes diante da violência das injustiças, é a mesma curiosidade, enquanto abertura mais ou menos espantada diante de "não-eus", com que cientistas ou filósofos acadêmicos, "admiram" o mundo. Os cientistas e filósofos superam, porém, a ingenuidade da curiosidade do camponês e se tornam epistemologicamente curiosos. 17 O clima de quem pensa certo é o de quem busca seriamente a segurança na argumentação, é o de quem, discordando do seu oponente não tem por que contra ele ou contra ela nutrir uma raiva desmedida, bem maior, as vezes, do que a razão mesma da discordância. Uma dessas pessoas desmedidamente raivosas proibiu certa vez estudante que trabalhava dissertação sobre alfabetização e cidadania que me lesse. "Já era", disse com ares de quem trata com rigor e neutralidade o objeto, que era eu. "Qualquer leitura que você faça deste senhor pode prejudicá-la". Não é assim que se pensa certo nem é a assim que se ensina certo. Faz parte do pensar certo o gosto da generosidade que, não negando à quem o tem o direito à raiva, a distingue da raivosidade irrefreada. 1.7 - Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação É próprio do pensar certo a disponibilidade ao risco, a aceitação do novo que não pode ser negado ou acolhido só porque é novo, assim como o critério de recusa ao velho não é apenas o cronológico. O velho que preserva sua validade ou que encarna uma tradição ou marca uma presença no tempo continua novo. Faz parte igualmente do pensar certo a rejeição mais decidida qualquer forma de discriminação. A prática reconceituosa de raça, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia. Quão longe dela nos achamos quando vivemos a impunidade dos que matam meninos nas ruas, dos que assassinam camponeses que lutam por seus direitos, dos que discriminam os negros, dos que inferiorizam as mulheres. Quão ausentes da democracia se acham os que queimam igrejas de negros porque, certamente, negros não tem alma. Negros não rezam. Com sua negritude os negros sujam a branquitude das orações... A mim me dá pena e não raiva, quando vejo a arrogância com que a branquitude de sociedade em que se faz isso em que se queimam igrejas de negros se apresenta ao mundo como pedagoga da democracia. Pensar e fazer errado, pelo visto, não têm mesmo nada que ver com a humildade que o pensar certo exige. Não têm nada que ver com o bom senso que regula nossos exageros e evita as nossas caminhadas até o ridículo e a insensatez. 20 Às vezes, temo que algum leitor ou leitora, mesmo que ainda não totalmente convertido ao "pragmatismo" neoliberal mas por ele já tocado, diga que, sonhador, continuo a falar de uma educação de anjos e não de mulheres e homens. O que tenho dito até agora, porém, diz respeito radicalmente à natureza de mulheres e de homens. Natureza entendida como social e historicamente constituindo-se e não como um "apriori" da História. O problema que se coloca para mim é que, compreendendo como compreendo a natureza humana, seria uma contradição grosseira não defender o que venho defendendo. Faz parte da exigência que a mim mesmo me faço de pensar certo, pensar como venho pensando enquanto escrevo este texto. Pensar, por exemplo, que o penar certo a ser ensinado concomitantemente com o ensino dos conteúdos não é um pensar formalmente anterior ao e desgarrado do fazer certo. Neste sentido é que ensinar a pensar não é uma experiência em que ele - o pensar certo - é tomado em si mesmo e dele se faz e que se vive enquanto dele se fala com a força do testemunho. Pensar certo implica a existência de sujeitos que pensam mediados por objeto ou objetos sobre que incide o próprio pensar dos sujeitos. Pensar certo não é que - fazer de quem se isola, de quem se "aconchega" a se mesmo na solidão, mas um ato comunicante. Não há por isso mesmo pensar sem entendimento e o entendimento, do ponto de vista do pensar certo, não é transferindo mas co-participando. Se, do ângulo da gramática, o verbo entender é transitivo no que concerne à "sintaxe" do pensar certo ele é um verbo cujo sujeito é sempre co-participe de outro. Todo entendimento, se não se acha "trabalhado" mecanicistamente, se não vem sendo submetido aos "cuidados" alienadores de um tipo especial e cada vez mais ameaçadoramente comum de mente que venho chamando "burocratizada", implica, necessariamente, comunicabilidade. Não há inteligência - a não ser quando o próprio processo de inteligir é distorcido - que não seja também comunicação do inteligido. A grande tarefa do sujeito que pensa certo não é transferir, depositar, oferecer, doar ao outro, tomado como paciente de seu pensar, a inteligibilidade das coisas, dos fatos, dos conceitos. A tarefa coerente do educador que pensa certo é, exercendo como ser humano a irrecusável prática de inteligir, desafiar o educando com quem se comunica e a quem comunica, produzir sua compreensão do que vem sendo comunicado. Não há inteligibilidade que não seja comunicação e intercomunicação e que não se funde na dialogicidade. O pensar certo por isso é dialógico e não polêmico. 21 1.8 - Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática O pensar certo sabe, por exemplo, que não é partir dele como um dado dado, que se conforma a prática docente crítica, mas também que sem ele não se funda aquela. A prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer. O saber que a prática docente espontânea ou quase espontânea, "desarmada", indiscutivelmente produz é um saber ingênuo, um saber de experiência feito, a que falta a rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito. Este não é o saber que a rigorosidade do pensar certo procura. Por isso, é fundamental que, na prática da formação docente, o aprendiz de educador assuma que o indispensável pensar certo não é presente dos deuses nem se acha nos guias de professores que iluminados intelectuais escrevem desde o centro do poder, mas, pelo contrário, o pensar certo que supera o ingênuo tem que ser produzido pelo próprio aprendiz em comunhão com o professor formador. É preciso, por outro lado, reinsistir em que a matriz do pensar ingênuo como a do crítico é a curiosidade mesma, característica do fenômeno vital. Neste sentido, indubitavelmente, é tão curioso o professor chamado leigo no interior de Pernambuco quanto o professor de Filosofia da Educação na Universidade A ou B. o de que se precisa é possibilitar, que, voltando-se sobre si mesma, através da reflexão sobre a prática, a curiosidade ingênua, percebendo-se como tal, se vá tornando crítica. Por isso é que, na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser tal modo concreto que quase se confunde com a prática. O seu "distanciamento" epistemológico da prática enquanto objeto de sua análise e maior comunicabilidade exercer em torno da superação da ingenuidade pela rigorosidade. Por outro lado, que quanto mais me assumo como estou assim, mais me torno capaz de mudar, de promover-me, no caso, do estado de curiosidade ingênua para o de curiosidade epistemológica. Não é possível a assunção que o sujeito faz de si numa certa forma de estar sendo sem a disponibilidade para mudar. Para mudar e de cujo processo se faz necessariamente sujeito também. 22 respeito e de consideração. O gesto do professor valeu mais do que a própria nota dez que atribuiu à minha redação. O gesto do professor me trazia uma confiança ainda obviamente desconfiada de que era possível trabalhar e produzir. De que era possível confiar em mim mas que seria tão errado confiar além dos limites quanto errado estava sendo não confiar. Este saber, o da importância desses gestos que se multiplicam diariamente nas tramas do espaço escolar, é algo sobre que teríamos de refletir seriamente. É uma pena que o caráter socializante da escola, o que há de informal na experiência que se vive nela, de formação ou deformação, seja negligenciado. Fala-se quase exclusivamente do ensino dos conteúdos, ensino, lamentavelmente quase sempre entendido como transferência do saber. Creio que uma das razoes que explicam este caso em trono do que ocorre no espaço-tempo da escola, que não seja a atividade ensinante, vem sendo uma compreensão estreita do que é educação e do que é aprender. No fundo, passa despercebido a nós que foi aprendendo socialmente que mulheres e homens, historicamente, descobriram que é possível ensinar. Se tivesse claro para nós que foi aprendendo que percebemos ser possível ensinar, teríamos entendido com facilidade a importância das experiências informais nas ruas, nas praças, no trabalho, nas salas de aula das escolas nos pátios dos recreios, em que variados gestos de alunos, de pessoal administrativo, de pessoal docente se cruzam cheios de significação. Há uma natureza testemunhal nos espaços tão lamentavelmente relegados das escolas. Em A Educação na cidade chamei a atenção para esta importância quando discuti o estado em que a administração de Luiza Erundina encontrou a rede escolar da cidade de São Paulo em 1989. O descaso pelas condições materiais das escolas alcançava níveis impensáveis. Nas minhas primeiras visitas à rede quase devastada eu me perguntava horrorizado: Como cobrar das crianças um mínimo de respeito às carteiras escolares, à mesa, às paredes se o Poder Público revela absoluta desconsideração à coisa publica? É incrível que não imaginemos a significação do "discurso" formador que faz uma escola respeitada em seu espaço. A eloqüência do discurso "pronunciado" na e pela limpeza do chão, na boniteza das salas, na higiene dos sanitários, nas flores que adornam. Há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço. Pormenores assim da cotidianeidade do professor, portanto igualmente do aluno, a que quase sempre pouca ou nenhuma atenção se dá, têm na verdade um peso significativo 25 na avaliação da experiência docente. O que importa, na formação docente, não é a repetição mecânica do gesto, este ou aquele, mas a compreensão do valor dos sentimentos, das emoções, do desejo, da insegurança a ser superada pela segurança, do medo que, ao ser "educado", vai gerando a coragem. Nenhuma formação docente verdadeira pode fazer-se alheada, de um lado, do exercício da criatividade que implica a promoção da curiosidade ingênua à curiosidade epistemológica, e do outro, sem o reconhecimento do valor das emoções, da sensibilidade, da afetividade, da intuição ou adivinhação. Conhecer não é, de fato, adivinhar, com intuir. O importante, não resta dúvida, é não pararmos satisfeitos ao nível das intuições, mas submetê-las à análise metodicamente rigorosa de nossa curiosidade epistemológica. 26 Capítulo 2 Ensinar não é transferir conhecimento As considerações ou reflexões até agora vêm sendo desdobramentos de um primeiro saber inicialmente apontado como necessário à formação docente, numa perspectiva progressista. Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção. Quando entro em uma sala de aula devo estar sendo um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos, a suas inibições, um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da tarefa que tenho - a ele ensinar e não a de transferir conhecimento. É preciso insistir: este saber necessário ao professor - que ensinar não é transferir conhecimento - não apenas precisa ser apreendido por ele e pelos educandos nas suas razoes de ser - ontológica, política, ética, epistemológica, pedagógica, mas também precisa ser constantemente testemunhado, vivido. Como professor num curso de formação docente não posso esgotar minha prática discursando cobre a Teoria da não extensão do conhecimento. Não posso apenas falar bonito sobre as razoes ontológicas, epistemológicas e políticas da Teoria. O meu discurso sobre a Teoria deve ser o exemplo concreto, prático, da teoria. Sua encarnação. Ao falar da construção do conhecimento, criticando a sua extensão, já devo estar envolvido nela, e nela, a construção, estar envolvendo os alunos. Fora disso, me emaranho na rede das contradições em que meu testemunho, inautêntico, perde eficácia. Torno-me não falso quanto quem pretende estimular o clima democrático na escola por meios e caminhos autoritários. Tão fingido quanto quem diz combater o racismo mas, perguntando se conhece Madalena, diz: "Conheço-a é negra mas é competente e decente." Jamais ouvi ninguém dizer que conhece Célia, que ela é loura, de olhos azuis, mas é competente e decente. No discurso perfilado de Madalena, negra, sabe a conjunção adversativa mas, no que contorna Célia, loura de olhos azuis, a conjunção adversativa é um não-senso. A compreensão do papel das conjunções que, ligando sentenças entre si, impregnam a relação que estabelecem de certo sentido, o de causalidade, falo porque recuso o silêncio, de adversidade, tentaram domina-lo mas não conseguiram, o de finalidade, Pedro lutou para que ficasse clara a sua posição, o de 27 domínio da vida, a "espiritualização" do mundo, a possibilidade de embelezar como enfear o mundo e tudo isso inscreveria mulheres e homens como seres éticos. Capazes de intervir no mundo, de comparar, de ajuizar, de decidir, de romper, de escolher, capazes de grandes ações, de dignificantes testemunhos, mas capazes também de impensáveis exemplos de baixeza e de indignidade. Só os seres que se tornam éticos podem romper com a ética. Não se sabe de tigres africanos que tenham jogado bombas altamente destruidoras em "cidades" de tigres asiáticos. No momento em que os seres humanos, intervindo no suporte, foram criando o mundo, inventando a linguagem, com que passaram a dar nome às coisas que faziam com a ação sobre o mundo, na medida em que se foram habilitando a inteligir o mundo e criaram por conseqüência a necessária comunicabilidade do inteligido, já não foi possível existir a não ser disponível à tensão radical e profunda entre o bem e o mal, entre a dignidade e indignidade, decência e o despudor, entre boniteza e a feiúra do mundo. Quem dizer, já não foi possível existir sem assumir o direito e o dever de optar, de decidir, de lutar, de fazer política. E tudo isso nos traz de novo à imperiosidade da prática formadora, de natureza eminentemente ética. E tudo isso nos traz de novo à radicalidade de esperança. Sei que as coisas podem até piorar, mas sei também que é possível intervir para melhorá-las. Gosto de ser homem, de ser gente, porque não está dado como certo, inequívoco, irrevogável que sou ou serei decente, que testemunharei sempre gestos puros, que sou e que serei justo, que respeitarei os outros, que não mentirei escondendo o seu valor porque a inveja de sua presença no mundo me incomoda e me enraivece. Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que meu "destino" não é um dado mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade. 30 2.2 - Ensinar exige o reconhecimento de ser condicionado Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado mas, consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele. Esta é a diferença profunda entre o ser condicionado e o ser determinado. A diferença entre o inacabado que não se sabe como tal e o inacabado que histórica e socialmente alcançou a possibilidade de saber-se inacabado. Gosto de ser gente porque, como tal, percebo afinal que a construção de minha presença no mundo, que não se faz no isolamento, isenta da influência das forças sociais, que não se compreende fora da tensão entre o que herdo geneticamente e o que herdo social, cultural e historicamente, tem muito a ver comigo mesmo. Seria irônico se a consciência de minha presença no mundo não implicasse já o reconhecimento da impossibilidade de minha ausência na construção da própria presença. Não posso me perceber como uma presença no mundo, mas ao mesmo tempo, explica-la como resultado de operações absolutamente alheias a mim. Neste caso o que faço é renunciar à responsabilidade ética, histórica, política e social que a promoção do suporte a mundo nos coloca. Renuncio a participar a cumprir a vocação ontológica de intervir no mundo. O fato de me perceber no mundo, com o mundo e com os outros me põe numa posição em face do mundo que não é de quem nada tem a ver com ele. Afinal, minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também há história. Gosto de ser gente porque, mesmo sabendo que as condições materiais, econômicas, sociais e políticas, culturais e ideológicas em que nos achamos geram quase sempre barreias de difícil superação para o cumprimento de nossa tarefa histórica de mudar o mundo, sei também que os obstáculos não se eternizam. Nos anos 60, preocupado já com esses obstáculos, apelei para a conscientização não como panacéia, mas como um esforço de conhecimento crítico dos obstáculos, vale dizer, de suas razões de ser. Contra toda a força do discurso fatalista neoliberal, pragmático e reacionário, insisto hoje, sem desvios idealistas, na necessidade da conscientização. Ínsito na sua atualização. Na verdade, enquanto aprofundamento da "crise de consciência" do mundo, dos fatos, dos acontecimentos, a conscientização é exigência humana, é um dos caminhos para a posta em prática da curiosidade epistemológica. Em lugar de estranha, a conscientização é natural ao ser que, inacabado, 31 se sabe inacabado. A questão substantiva não está por isso no puro inacabamento ou na pura inconclusão. A inconclusão, repito, faz parte da natureza do fenômeno vital. Inconclusos somos nós, mulheres e homens, mais inconclusos são também as jabuticabeiras que enchem, na safra, o meu quintal de pássaros cantadores; inconclusos são estes pássaros como inconcluso é Eico, ,meu, pastor alemão, que me "saúda" contente no começo das manhãs. Entre nós, mulheres e homens, a inconclusão se sabe como tal. Mais ainda, a inconclusão que se reconhece a si mesma, implica necessariamente a inserção do sujeito inacabado num permanente processo social de busca. Histórico-sócio-culturais, mulheres e homens nos tornam seres em quem a curiosidade, ultrapassando os limites que lhe são peculiares no domínio vital, se torna fundante da produção do conhecimento. Mais ainda, a curiosidade e já conhecimento. Como a linguagem que anima a curiosidade e com ela se anima, é também conhecimento e não só expressão dele. Numa madrugada, há alguns meses, estávamos Nita e eu, cansados, na sala de embarque de um aeroporto do Norte do país, à espera da partida para São Paulo num desses vôos madrugadores que a sabedoria popular chama de "vôo coruja". Cansados e realmente arrependidos de não haver mudado o esquema de vôo. Uma criança em tenra idade, saltitante e alegre, nos fez, finalmente, ficar contentes, apesar da hora para nós inconveniente. Um avião chega. Curiosa a criança inclina a cabeça na busca de selecionar o som dos motores. Volta-se para a mãe e diz: "O avião ainda chegou".Sem comentar, a mãe atesta: "O avião já chegou".Silêncio. A criança corre até o extremo da sala e volta. "O avião já chegou", diz. O discurso da criança, que envolvia a sua posição curiosa em face do que ocorria, afirmava primeiro o conhecimento da ação de chegar do avião, segundo o conhecimento da temporalização da ação no advérbio já. O discurso da criança era conhecimento do ponto de vista do fato concreto: o avião chegou e era conhecimento do ponto de vista da criança que, entre outras coisas, fizera o domínio da circunstância adverbial de tempo, no já. 32 igualmente o que devo ter por mim mesmo. Não faz mal repetir afirmação varias vezes feita neste texto - o inacabamento de que nos tornamos conscientes nos fez seres éticos. O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros. Precisamente porque éticos podemos desrespeitar a rigorosidade da ética e resvalar para a sua negação, por isso é imprescindível deixar claro que a possibilidade do desvio ético não pode receber outra designação senão a de transgressão. O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o professor que ironiza o aluno, que minimiza, que manda que "ele se ponha em seu lugar" ao mais tênue sinal de sua rebeldia legitima, tanto quanto o professor que se exige do cumprimento de seu dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência. É neste sentido que o professor autoritário, que por isso mesmo afoga a liberdade do educando, amesquinhando o seu direito de estar sendo curioso e inquieto. Tanto quanto o professor licencioso rompe com a radicalidade do ser humano - a de sua inconclusão assumida em que se enraíza a eticidade. É neste sentido também que a dialogicidade verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos. É preciso deixar claro que a transgressão da eticidade jamais pode ser vista ou entendida como virtude, mas como ruptura com a decência. O que quero dizer é o seguinte: que alguém se torne machista, racista, classista, sei lá o quê, mas se assuma como transgressor da natureza humana. Não me venha com justificativas genéticas, sociológicas ou históricas ou filosóficas para explicar a superioridade da branquitude sobre negritude, dos homens sobre as mulheres, dos patrões sobre os empregados. Qualquer discriminação é imoral e lutar contar ela é um dever por mais que se reconheça a força dos condicionamentos a enfrentar. A boniteza de ser gente se acha, entre outras coisas, nessa possibilidade e nesse dever de brigar. Saber que devo respeito à autonomia e à identidade do educando exige de mim uma prática em tudo coerente com este saber. 35 2.4 - Ensinar exige bom senso A vigilância do meu bom senso tem uma importância enorme na avaliação que, a todo instante, devo fazer de minha prática. Antes, por exemplo, de qualquer reflexão mais detida e rigorosa é o meu bom senso que me diz ser dão negativo, do ponto de vista de minha tarefa docente, o formalismo insensível que me faz recusar o trabalho de um aluno por perca de prazo, apesar das explicações convincentes do aluno, quanto o desrespeito pleno pelos princípios reguladores da entrega dos trabalhos. É o meu bom senso que me adverte de exercer a minha autoridade de professor na classe, tomando decisões, orientando atividades, estabelecendo tarefas, cobrando a produção individual e coletiva do grupo não é sinal de autoritarismo de minha parte. É a minha autoridade cumprindo o seu dever. Não resolvemos bem, ainda, entre nos, a tensão que a contradição autoridade-liberdade nos coloca e confundimos quase sempre autoridade com autoritarismo, licença com liberdade. Não preciso de um professor de ética para me dizer que não posso, como orientador de dissertação de mestrado ou de tese de doutoramento, surpreender o pós-graduando com críticas duras a seu trabalho porque um dos examinadores foi severo em sua argüição. Se isto ocorre e eu concordo com as críticas feitas pelo professor não há outro caminho senão solidarizar-me de público com o orientando, dividindo com ele a responsabilidade do equívoco ou do erro criticado. Não preciso de um professor de ética para me dizer isto. Meu bom senso me diz. Saber que devo respeito à autonomia, à dignidade e à identidade do educando e, a prática, procurar a coerência com este saber, me leva inapelavelmente à criação de algumas virtudes ou qualidades sem as quais aquele saber vira inautêntico, palavreado vazio e inoperante. De nada serve, a não ser para irritar o educando e desmoralizar o discurso hipócrita do educador, falar em democracia e liberdade mais impor ao educando a vontade de arrogante do mestre. O exercício do bom senso, com o qual só temos o que ganhar, se faz no corpo da curiosidade. Neste sentido, quanto mais pomos em prática de forma metódica a nossa 36 capacidade de indagar, de comparar, de duvidar, de aferir, tanto mais eficazmente curiosos nos podemos tornar e mais crítico se pode fazer o nosso bom senso. O exercício ou a educação do bom senso vai superando o que há nele de instintivo na avaliação que fazemos dos fatos e dos acontecimentos em que nos envolvemos. Se o bom senso, na avaliação moral que faço de algo, não basta para orientar ou fundar minhas táticas de luta, tem, indiscutivelmente importante papel na minha tomada de posição, a que não pode faltar ética, em face do que devo fazer. O meu bom senso me diz, por exemplo, que é imoral afirmar que a fome e a miséria a que se acham expostos milhões de brasileiras e de brasileiros são uma fatalidade em face de que só há uma coisa a fazer: esperar pacientemente que a realidade mude. O meu bom senso diz que isso é imoral e exige de minha rigorosidade científica a afirmação de que é possível mudar com a disciplina da gulodice da minoria insaciável. O meu bom senso me adverte de que há algo a ser compreendido no comportamento de Pedrinho, silencioso, assustado, distante, temeroso, escondendo-se de si mesmo. O bom senso me faz quer que o problema não esta nos outros meninos, na sua inquietação, no seu alvoroço, na sua vitalidade. O meu bom senso não me diz o que é, mas deixa claro que há algo que precisa ser sabido. Esta é a tarefa da ciência que, sem o bom senso do cientista, pode se desviar e se perder. Não tenho dúvida do insucesso do cientista a quem falte a capacidade de adivinhar, o sentido da desconfiança, a abertura à dúvida, a inquietação de quem não se acha demasiado certo das certezas. Tenho pena e, às vezes, medo, do cientista demasiado seguro da segurança, senhor da verdade e que não suspeita sequer da historicidade do próprio saber. É o meu com senso, em primeiro lugar, o que me deixa suspeitoso, no mínimo, de que não é possível à escola, se, na verdade, engajada na formação, de educandos educadores, alhear-se das condições sociais culturais, econômicas de seus alunos, de suas famílias, de seus vizinhos. Não é possível respeito aos educandos, à sua dignidade, a seu ser formando-se, à sua identidade fazendo-se, se não se levam em consideração às condições em que eles vem existindo, se não se reconhece a importância dos "conhecimentos de experiência feitos" 37 tanto descaso pela educação publica, existencialmente cansados, cair no indiferentismo fatalistamente cínico que leva ao cruzamento dos braços. "Não há o que fazer" é o discurso acomodado que não podemos aceitar. O meu respeito de professor à pessoa do educando, à sua curiosidade, à sua timidez, que não devo agravar com procedimentos inibidores exige de mim o cultivo da humildade e da tolerância. Como posso respeitar a curiosidade do educando se, carente de humildade e da real compreensão do papel da ignorância na busca do saber, temo revelar o meu desconhecimento? Como ser educador, sobretudo numa perspectiva progressista, sem aprender, com maior ou menor esforço, a conviver com os diferentes? Como ser educador, se não desenvolvo em mim a indispensável amorosidade aos educandos com quem me comprometo e ao próprio processo formador de que sou parte? Não posso desgostar do que faço sob pena de não fazê-lo bem. Desrespeitando como gente no desprezo a que é relegada a prática pedagógica não tenho por que desamá-la e aos educandos. Não tenho por que exerce-la mal. A minha resposta à ofensa à educação é a luta política, consciente, crítica e organizada contra os ofensores. Aceito até abandona- la, cansado, à procura de melhores dias. O que não é possível é, ficando nela, avilta-la com o desdém de mim mesmo e dos educandos. Uma das formas de luta contra o desrespeito dos poderes públicos pela educação, de um lado, é a nossa recusa a transformar nossa atividade docente em puro bico, e de outro, a nossa rejeição a entende-la e a exerce-la como prática afetiva de "tias e tios". É como profissionais idôneos - na competência que se organiza politicamente está talvez a maior força dos educadores - que eles e elas devem ver-se a si mesmos e a si mesmas. É nesse sentido que os órgãos de classe deveriam priorizar o empenho de formação permanente dos quadros do magistério como tarefa altamente política e repensar a eficácia das greves. A questão que se coloca, obviamente, não é parar de lutar, mas reconhecendo-se que a luta é uma categoria histórica, reinventar a forma também histórica de lutar. 40 2.6 - Ensinar exige apreensão da realidade Outro saber fundamental à experiência educativa é o que se diz respeito à sua natureza. Como professor preciso me mover com clareza na minha prática. Preciso conhecer as diferentes dimensões que caracterizam a essência da prática, o que me pode tornar mais seguro no meu próprio desempenho. O melhor ponto de partida para estas reflexões é a inconclusão do ser humano de que se tornou consciente. Como vimos, aí radica a nossa educabilidade bem como a nossa inserção num permanente movimento de busca em que, curiosos e indagadores, não apenas nos damos conta das coisas mas também delas podemos ter um conhecimento cabal. A capacidade de aprender, não apenas para nos adaptar mas sobretudo para transformar a realidade, para nela intervir, recriando-a, fala de nossa educabilidade e um nível distinto do nível do adestramento dos outros animais ou do cultivo das plantas. A nossa capacidade de aprender, de que decorre a de ensinar, sugere ou, mais do que isso, implica a nossa habilidade de aprender a substantividade do objeto que nos é possível reconstruir um mal aprendizado, o em que o aprendiz foi puro paciente da transferência do conhecimento feita pelo educador. Mulheres e homens, somos os únicos seres que, social e historicamente, nos tornamos capazes de aprender. Por isso, somos os únicos em que aprender é uma aventura criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico do que meramente repetir a lição dada. Aprender para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito. Creio poder afirmar, na altura destas considerações, que toda prática educativa demanda a existência de sujeitos, um que, ensinando, aprende, outro que, aprendendo, ensina, daí o seu cunho gnosiológico; a existência de objetos, conteúdos a serem ensinados e aprendidos; envolve o uso de métodos, de técnicas, de materiais; implica, em função de seu caráter diretivo, objetivo, sonhos, utopias, ideais. Daí a sua politicidade, qualidade que tem a prática educativa de ser política, de não poder ser neutra. 41 Especificamente humana e educação é gnosiológica, é diretiva, por isso política, é artística e moral, serve-se de meios, de técnicas, envolve frustrações, medos, desejos. Exige de mim, como professor, uma competência geral, um saber de sua natureza e saberes especiais, ligados à minha atividade docente. Como professor, se minha opção é progressista e venho sendo coerente com ela, se não me posso permitir a ingenuidade de pensar-me igual ao educando, de desconhecer a especificidade da tarefa do professor, não posso, por outro lado, negar que o meu papel fundamental é contribuir positivamente para que o educando vá sendo o artífice de sua formação com a ajuda necessária do educador. Se trabalho com crianças, devo estar atento à difícil passagem ou caminhada da heteronomia para a autonomia, atento à responsabilidade de minha presença que tanto pode ser auxiliadora como pode virar perturbadora da busca inquieta dos educandos, se trabalho com jovens ou adultos, não menos atento devo estar com relação a que o meu trabalho possa significar com estimulo ou não à ruptura necessária com algo defeituosamente assentado e à espera de superação. Primordialmente, minha posição tem de ser a de respeito à pessoa que queira mudar ou que recuse mudar. Não posso negar-lhe ou esconder-lhe minha postura mas não posso desconhecer o seu direito de rejeita-la. Em nome do respeito que devo aos alunos não tenho por que me omitir, por que ocultar a minha opção política assumindo uma neutralidade que não existe. Esta, a omissão do professor em nome do respeito ao aluno, talvez seja a melhor maneira de desrespeita-lo. O meu papel, ao contrario, é o de quem testemunha o direito de comparar, de escolher, de romper, de decidir e estimular a assunção desde direito por parte dos educandos. Recentemente, num encontro publico, um jovem recém-entrado na universidade me disse cortesmente: "Não entendo como o senhor defende os sem-terra, no fundo, uns baderneiros, criadores de problemas". "Pode haver baderneiros entre os sem-terra", disse, "mas sua luta é legitima e ética". "Baderneira"é a resistência reacionária de quem se opõe a ferro e fogo à reforma agrária. A imoralidade e a desordem estão na manutenção de uma "ordem" injusta. 42 menos maltratada do bairro popular. Olhávamos de cima um braço de rio poluído, sem vida, cuja lama, e não água, empapa os mocambos nela quase mergulhados. "Mais além dos mocambos", me disse Danilson, "há algo pior: um grande terreno onde se faz o depósito do lixo público. Os moradores de toda esta redondeza "pesquisam" no lixo o que comer. O que vestir, o que os mantenha vivos". Foi desse horrendo aterro, que há dois anos, uma família retirou de lixo hospitalar pedaços de seio amputado com que preparou seu almoço domingueiro. A imprensa noticiou o fato que citei, horrorizado e pleno de justa raiva, no meu último livro À Sombra desta Mangueira. É possível que a notícia tenha provocado em pragmáticos neoliberais sua reação habitual e fatalista sempre em favor dos poderosos. "É triste, mas, que fazer? A realidade é mesmo esta." A realidade, porém, não é inexoravelmente esta. Está sendo esta como poderia ser outra e é para que seja outra que precisamos, os progressistas, lutar. Eu me sentiria mais do que triste, desolado e sem achar sentido para minha presença no mundo, se fortes e indestrutíveis razões me convencessem de que a existência humana se dá no domínio da determinação. Domínio em que dificilmente se poderia falar de opções, de decisão, de liberdade, de ética. "Que fazer? A realidade é assim mesmo", seria o discurso universal. Discurso monótono, repetitivo, como a própria existência humana. Numa história assim determinada, as posições rebeldes não têm como tornar-se revolucionárias. Tenho o direito de ter raiva, de manifestá-la, de tê-la como motivação para minha briga tal qual tenho o direito de amar, de expressar meu amor ao mundo, de tê-lo como motivação de minha briga porque, histórico, vivo a Historia como tempo de possibilidade e não de determinação. Se a realidade fosse assim porque estivesse dito que assim teria de ser não haveria sequer por que ter raiva. Meu direito à raiva pressupõe que, na experiência histórica da qual participo, o amanhã não é algo pré- datado, mas um desafio, um problema. A minha raiva, minha justa ira, se funda na minha revolta em face da negação do direito de "ser mais" inscrito na natureza dos seres humanos. Não posso, por isso, cruzar os braços fatalistamente diante da miséria, esvaziando, desta maneira, minha responsabilidade no discurso cínico e "morno", que fala da impossibilidade de mudar porque a realidade é mesmo assim. O discurso da acomodação ou de sua defesa, o discurso da exaltação do silêncio imposto de que resulta a imobilidade dos silenciados, o discurso do elogio da adaptação tomada como fado ou sina é um discurso negador da humanização de cuja responsabilidade não podemos nos eximir. A adaptação a situações negadoras da humanização só pode ser 45 aceita como conseqüência da experiência dominadora, ou como exercício de resistência, como tática na luta política. Dou a impressão de que aceito hoje a condição de silenciado para bem lutar, quando puder, contra a negação de mim mesmo. Esta questão, a da legitimidade da raiva contra a docilidade fatalista diante da negação das gentes foi um tema que esteve implícito em toda a nossa conversa naquela manhã. 2.8 - Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível Um dos saberes primeiros, indispensáveis a quem, chegando a favelas ou a realidades marcadas pela traição a nosso direito de ser, pretende que sua presença se vá tornando convivência, que seu estar no contexto vá virando estar com ele, é o saber do futuro como problema e não como inexorabilidade. É o saber da História como possibilidade e não como determinação. O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História mas seu sujeito igualmente. No mundo da História, da cultura, da política, constato não para me adaptar mas para mudar. No próprio mundo físico minha constatação não me leva à impotência. O conhecimento sobre os terremotos desenvolveu toda uma engenharia que nos ajuda a sobreviver a eles. Não podemos eliminá-los mas podemos diminuir os danos que nos causam. Constatando, nos tornamos capazes de intervir na realidade, tarefa incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente a de nos adaptar a ela. É por isso também que não me parece possível nem aceitável a posição ingênua ou, pior, astutamente neutra de quem estuda, seja o físico, o biólogo, o sociólogo, o matemático, ou o pensador da educação. Ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra. Não posso estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas. A acomodação em mim é apenas caminho para a inserção, que implica decisão, escolha, intervenção na realidade. Há perguntas a serem feitas insistentemente por todos nós e que nos fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar. De estudar descomprometidamente como se misteriosamente, de repente, nada tivéssemos que ver com o mundo, um lá fora e distante mundo, alheado de nós e nós dele. 46 Em favor de que estudo? Em favor de quem? Contra que estudo? Contra quem estudo? Que sentido teria a atividade de Danilson no mundo que descortinávamos do pontilhão se, para ele, estivesse decretado por um destino todo poderoso a impotência daquela gente fustigada pela carência? Restaria a Danilson trabalhar apenas a possível melhora de performance da população no processo irrecusável de sua adaptação à negação da vida. A prática de Danilson seria assim o elogio da resignação. Porém na medida em que para ele, como para mim, o futuro é problemático e não inexorável, outra tarefa se nos oferece. A de, discutindo a problematicidade do amanhã, tornando-a tão óbvia quanto a carência de tudo na favela, ir tornando igualmente óbvio que a adaptação à dor, à fome, ao desconforto, à falta de higiene que o eu de cada um, como corpo e alma, experimenta é uma forma de resistência física a que se vai juntando outra, a cultural. Resistência ao descaso ofensivo de que os miseráveis são objetos. No fundo, as resistências - a orgânica e/ou a cultural dos oprimidos. O sincretismo religioso afro- brasileiro expressa a resistência ou a manha com que a cultura africana escrava se defendia do poder hegemônico do colonizador branco. É preciso, porém, que tenhamos na resistência que nos preserva vivos, na compreensão do futuro como problema e na vocação para o ser mais como expressão da natureza humana em processo de estar sendo, fundamentos para a nossa resignação em face das ofensas que nos destroem o ser. Não é na resignação mas na rebeldia em face das injustiças que nos afirmamos. Uma das questões centrais com que temos de lidar é a promoção de posturas rebeldes em posturas revolucionárias que nos engajam no processo radical de transformação do mundo. A rebeldia é ponto de partida indispensável, é deflagração da justa ira, mas não é suficiente. A rebeldia enquanto denúncia precisa se alongar até uma posição mais radical e crítica, a revolucionária, fundamentalmente anunciadora. A mudança do mundo implica a dialetização entre a denúncia da situação desumanizante e o anúncio de superação, no fundo, o nosso sonho. É a partir deste saber fundamental: mudar é difícil mas é possível, que vamos programar nossa ação político - pedagógica, não importa se o projeto com o qual nos 47 moço mais revolucionarista do que revolucionário fosse negativa à fala do favelado, entendida como expressão de quem se inclina mais para a acomodação do que para a luta. No fundo, o discurso do jovem operário era a leitura nova que fazia de sua experiência social de favelado. Se ontem se culpava, agora e tornava capaz de perceber que não era apenas responsabilidade sua se achar naquela condição. Mas, sobretudo, se tornava capaz de perceber que a situação de favelado não é irrevogável. Sua luta foi mais importante na constituição do seu novo saber do que o discurso sectário do militante messianicamente autoritário. É importante salientar que o novo momento na compreensão da vida social não é exclusivo de uma pessoa. A experiência que possibilita o discurso novo é social. Uma pessoa ou, porém, se antecipa na explicitar da nova percepção da mesma realidade. Uma das tarefas fundamentais do educador progressistas é, sensível à literatura e a releitura do grupo, provocá-lo bem como estimular a generalização da nova forma de compreensão do contexto. É importante ter sempre claro que faz parte do poder ideológico dominante a inculcação nos dominados da responsabilidades por sua situação. Daí a culpa que sentem eles, em determinado momento de suas relações com o seu contexto e com suas classes dominantes por se acharem nesta ou naquela situação desvantajosa. É exemplar a resposta que recebi de mulher sofrida, em São Francisco, Califórnia, numa instituição católica de assistência aos pobres. Falava com dificuldade do problema que a afligia e eu, quase sem ter o que dizer, afirmei indagando: Você é norte-americana, não é? "Não. Sou pobre", respondeu como se estivesse pedindo desculpas à "norte- americanidade" por seu insucesso na vida. Me lembro de seus olhos azuis marejados de lágrimas expressando seu sofrimento e a assunção da cultura pelo seu "fracasso" no mundo. Pessoas assim fazem parte das legiões de ofendidos que não percebem a razão de ser de sua dor na perversidade do sistema social, econômico, político em que vivem, mas na sua incompetência. Enquanto sentirem assim, pensarem assim e agirem assim, reforçam o poder do sistema. Se tornam coniventes da ordem desumanizante. A alfabetização, por exemplo, numa área de miséria, só ganha sentido na dimensão humana se, com ela, se realiza uma espécie de psicanálise histórico-político-social de 50 que vá resultando a extrojeção da culpa indevida. A isto corresponde a "expulsão" do opressor de "dentro" do oprimido, enquanto sombra invasora. Sombra que, expulsa pelo oprimido, precisa de ser substituída por sua autonomia e sua responsabilidade. Saliente- se contudo que, não obstante a relevância ética e política do esforço conscientizador que acabo de sublinhar, não se pode parar nele, deixando-se relegado para um plano secundário o ensino da escrita e da leitura da palavra. Não podemos, numa perspectiva democrática, transformar uma classe de alfabetização num espaço em que se proíbe toda reflexão em torno da razão de ser dos fatos nem tampouco num "comício libertador". A tarefa fundamental dos Danilson entre que me situo é experimentar com intensidade a dialética entre "a leitura do mundo" e a "leitura da palavra". "Programados para aprender" e impossibilitados de viver sem a referência de um amanhã, onde quer que haja mulheres e homens há sempre o que fazer, há sempre o que fazer, há sempre o que ensinar, há sempre o que aprender. Nada disso, contudo, cobra sentido, para mim, se realizado contra a vocação para o "ser mais", histórica e socialmente constituído-se, em que mulheres e homens nos achamos inseridos. 2.9 - Ensinar exige curiosidade Um pouco mais sobre a curiosidade Se há uma prática exemplar como negação da experiência formadora é a que dificulta ou inibe a curiosidade do educando e, em conseqüência, a do educador. É que o educador que, entregue a procedimentos autoritários ou paternalistas que impedem ou dificultam o exercício da curiosidade do educando, termina por igualmente tolher sua própria curiosidade. Nenhuma curiosidade se sustenta eticamente no exercício da negação da outra curiosidade. A curiosidade dos pais que só se experimenta no0 sentido de saber como e onde anda a curiosidade dos filhos se burocratiza e fenece. A curiosidade que silencia a outra se nega a si mesma também. O bom clima pedagógico- democrático é o em que o educando vai aprendendo à custa de sua prática mesma que sua curiosidade como sua liberdade deve estar sujeita a limites, mas em permanente 51 exercício. Limites eticamente assumidos por ele. Minha curiosidade não tem o direito de invadir a privacidade do outro e expô-lo aos demais. Como professor devo saber que sem a curiosidade que me move, que me inquieta, que me insere na busca, não aprendo nem ensino. Exercer a minha curiosidade de forma correta é um direito que tenho como gente e a que corresponde o dever de lutar por ele, o direito à curiosidade. Com a curiosidade domesticada posso alcançar a memorização mecânica do perfil deste ou daquele objeto, mas não o aprendizado real ou o conhecimento cabal do objeto. A construção ou a produção do conhecimento do objeto implica o exercício da curiosidade, sua capacidade crítica de "tomar distância" do objeto, de observá-lo, de delimitá-lo, de cindi-lo, de "cercar" o objeto ou fazer sua aproximação metódica, sua capacidade de comparar, de perguntar. Estimular a pergunta, a reflexão crítica sobre a própria pergunta, o que se pode pretende com esta ou com aquela pergunta em lugar da passividade em face das explicações discursivas do professor, espécies de respostas a perguntas que não foram feitas. Isto significa realmente que devamos reduzir a atividade docente em nome da defesa da curiosidade necessária, a puro vai-e-vem de perguntas e respostas, que burocraticamente se esterilizam. A dialogicidade não nega a validade de momentos explicativos, narrativos em que o professor expõe ou fala do objeto. O fundamental é que o professor e alunos saibam que a postura deles, do professor e dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada, enquanto fala ou enquanto ouve. O que importa é que professor e alunos se assumam epistemologicamente curiosos. Neste sentido, o bom professor é o que consegue, enquanto fala, trazer o aluno até a intimidade do movimento de seu pensamento. Sua aula é assim um desafio e não uma "cantiga de ninar". Seus alunos cansam, não dormem. Cansam porque acompanham as idas e vindas de seu pensamento, surpreendem suas pausas, suas dúvidas, suas incertezas. Antes de qualquer tentativa de discussão de técnica, de materiais, de métodos para uma aula dinâmica assim, é preciso, indispensável mesmo, que o professor se ache "repousado" no saber de que a pedra fundamental é a curiosidade do ser humano. É ela que me faz perguntar, conhecer, atuar, mais perguntar, re-conhecer. 52 Entre nós, em função mesma do nosso passado autoritário, contestado, nem sempre com segurança por uma modernidade ambígua, oscilamos entre formas autoritárias e formas licenciosas. Entre uma certa tirania da liberdade e o exacerbamento da autoridade ou ainda na combinação das duas hipóteses. O bom seria que experimentássemos o confronto realmente tenso em que a autoridade de um lado e a liberdade do outro, medindo-se, se avaliassem e fossem aprendendo a ser ou a estar sendo elas mesmas, na produção de situações dialógicas. Para isto, o indispensável é que ambas, autoridade e liberdade, vão se tornando cada vez mais convertidas ao ideal do respeito comum somente como podem autenticar-se. Comecemos por refletir sobre algumas das qualidades que autoridade docente democrática precisa encarnar em sua suas relações com a liberdade dos alunos. É interessante observar que a minha experiência discente é fundamental para a prática docente que terei amanhã ou que estou tendo agora simultaneamente com aquela. É vivendo criticamente a minha liberdade de aluno e aluna que, em grande parte, me preparo para assumir e refazer o exercício de minha autoridade de professor. Para isso com, aluno que sonha com ensinar amanhã ou como aluno que já ensina hoje devo ter como objeto de minhas curiosidades as experiências que venho tendo com professores vários e as minhas próprias, se as tenho, com meus alunos. O que quero dizer é o seguinte: Não devo pensar apenas sobre os conteúdos programáticos que vem sendo exposto ou discutidos pelos professores das diferentes disciplinas mas, ao mesmo tempo, a maneira mais aberta, dialógica, ou mais fechada, autoritária, com que este ou aquele professor ensina. 55 Capítulo 3 Ensinar é uma especificidade humana Que possibilidade de expressar-se, de escrever, vem tendo a minha curiosidade? Creio que uma das qualidades essenciais que a autoridade docente democrática deve revelar em suas relações com as liberdades dos alunos é a segurança em si mesma. É a segurança que se expressa na firmeza com quem atua, com que decide, com que respeita as liberdades, com que discuti suas próprias posições, com que aceita rever-se. Segura de si, a autoridade não necessita de, a cada instante, fazer o discurso sobre sua existência, sobre si mesma. Não precisa perguntar a ninguém, certa de sua legitimidade, se "sabe com quem está falando?" Segura de si, ela é por que tem autoridade, porque a exerce com indiscutível sabedoria. 3.1- Ensinar exige segurança, competência profissional e generosidade A segurança com que a autoridade docente se move implica uma outra, a que se funda na sua competência profissional. Nenhuma autoridade docente se exerce ausente desta competência. O professor que não leve a sério sua formação, que não estuda, que não se esforce para estar à altura de sua tarefa não tem força moral para coordenar as atividades de sua classe. Isto não significa, porém, que a opção e a prática democrática do professor ou da professora sejam determinadas por sua competência científica. Há professoras cientificamente preparados mas autoritários a toda prova. O que quero dizer é que a incompetência profissional desqualifica a autoridade do professor. Outra qualidade indispensável à autoridade em suas relações com as liberdade é a generosidade. Não há nada mais que inferiorize mais a tarefa formadora da autoridade do a mesquinhez com que se comporte. A arrogância farisaica, malvada, com que julga os outros e a indulgência macia com que se julga ou com que julga os seus. A arrogância que nega a generosidade nega também a humildade, que não é virtude dos que ofendem nem tampouco dos que se regozijam com sua humilhação. O clima de respeito que nasce em relações justas, sérias, humildes 56 generosas, em que a autoridade docente e as liberdades dos alunos se assumem eticamente, autentica o caráter formados do espaço pedagógico. A reação negativa ao exercício do comando é tão incompatível com o desempenho da autoridade quanto a sofreguidão pelo mando. O mandonismo é exatamente esse gozo irrefreável e desmedido pelo mando. A autoridade docente mandonista, rígida, não conta com nenhuma criatividade do educando. Não faz parte de sua forma de ser, esperar, sequer, que o educando revele o gosto de aventurar-se. A autoridade coerentemente democrática, fundando-se na certeza da importância, quer de s mesma, quer da liberdade dos educandos para a construção de um clima de real disciplina, jamais minimiza a liberdade. Pelo contrário, aposta nela. Empenha-se em desafiá-la sempre e sempre; jamais vê, na rebeldia da liberdade, um sinal de deterioração da ordem. A autoridade coerentemente democrática está convicta de que a disciplina verdadeira não existe na estagnação, no silêncio dos silenciados, mas no alvoroço dos inquietos, na dúvida que instiga, na esperança que desperta. A autoridade coerentemente democrática, mais ainda, que reconhece a eticidade de nossa presença, a das mulheres e dos homens, no mundo, reconhece, também e necessariamente, que não se vive a eticidade sem liberdade e não se tem liberdade sem risco. O educando que exercita sua liberdade ficará tão mais livre quanto mais eticamente vá assumindo a responsabilidade de suas ações. Decidir é romper e, para isso, preciso correr o risco. Não se rompe como quem toma um suco de pitanga numa praia tropical. Mas, por outro lado a autoridade coerentemente democrática jamais se omite. Se recusa, de um lado, silenciar a liberdade dos educandos, rejeita, de outro, a sua supressão do processo de construção de boa disciplina. Um esforço sempre presente à prática da autoridade coerentemente democrática é o que a torna quase escrava de um sonho fundamental: o de persuadir ou convencer a liberdade de que vá construindo consigo mesma, em si mesma, com materiais que, 57 Se perguntando por um aluno sobre o que é tomar distância epistemológica do objeto lhe respondo que não sei, mas que posso vir a saber, isso não me dá a autoridade de quem conhece, me dá a alegria de, assumindo minha ignorância, não ter mentido. E não ter mentido abre para mim junto aos alunos um crédito que devo preservar. Eticamente impossível teria sido dar uma resposta falsa, um palavreado qualquer. Um chute, como se diz popularmente. Mas, de um lado, precisamente porque a prática docente, sobretudo como a entendo me coloca a possibilidade que devo estimular de perguntas várias, preciso me preparar ao máximo para, de outro, continuar sem mentir aos alunos, de outro, não ter de afirmar seguidamente que não sei. Saber que não posso passar despercebido pelos alunos, e que a maneira como me percebam me ajuda ou desajuda no cumprimento de minha tarefa de professor, aumenta em mim os cuidados com meu desempenho. Se a minha opção é democrática, progressista, não posso ter uma prática reacionária, autoritária, elitista. Não posso discriminar o aluno em nome de nenhum motivo. A percepção que o aluno tem de mim não resulta exclusivamente de como atuo mas também de como o aluno entende como atuo. Evidentemente, não posso levar meus dias como professor a perguntar aos alunos o que acham de mim ou como me avaliam. Mas devo estar atento à leitura que fazem de minha atividade com eles. Precisamos aprender a compreender a significação de um silêncio, ou de um sorriso ou de uma retirada da sala. O tom menos cortês com que foi feita uma pergunta. Afinal, o espaço pedagógico é um texto para ser constantemente lido, interpretado, escrito e reescrito. Neste sentido, quanto mais solidariedade exista entre o educador e educandos no trato deste espaço, tanto mais possibilidades de aprendizagem democrática se abrem na escola. Creio que nunca precisou o professor progressista estar tão advertido quanto hoje em face da esperteza com que a ideologia dominante insinua a neutralidade da educação. Desse ponto de vista, que é reacionário, o espaço pedagógico, neutro por excelência, é aquele em que se treinam os alunos para práticas apolíticas, como se a maneira humana de estar no mundo fosse ou pudesse ser uma maneira neutra. Minha presença de professor, que não pode passar despercebida dos alunos na classe e na escola, é uma presença em si política. Enquanto presença não posso ser uma omissão mas um sujeito de opções. Devo revelar aos alunos a minha capacidade de analisar, de 60 comparar, a avaliar, de decidir, de optar, de romper. Minha capacidade de fazer justiça, de não falhar à verdade. Ético, por isso mesmo, tem que ser o meu testemunho. 3.3 - Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo. Outro saber de que não posso duvidar um momento sequer na minha prática educativo- crítica é o de que, como experiência especificamente humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo. Intervenção que além do conhecimento dos conteúdos bem ou mal ensinados e/ou aprendidos implica tanto o esforço de reprodução da ideologia dominante quanto o seu esforço de reprodução da ideologia dominante quanto o seu desmascaramento. Dialética e contraditória, não poderia ser a educação só uma ou só a outra dessas coisas. Nem apenas reprodutora nem apenas desmascaradora da ideologia dominante. Neutra, indiferente a qualquer destas hipóteses, a da reprodução da ideologia dominante ou de sua contestação, a educação jamais foi, é, ou pode ser. È um erro decretá-la como tarefa apenas reprodutora da ideologia dominante como erro é tomá-la como uma força de desocultação da realidade, a atuar livremente, sem obstáculos e duras dificuldades. Erros que implicam diretamente visões defeituosas da História e da consciência. De um lado, a compreensão mecanicista da História, que reduz a consciência a puro reflexo da materialidade, e de outro, o subjetivismo idealista, que hipertrofia o papel da consciência no acontecer histórico. Nem somos, mulheres e homens, seres simplesmente determinados nem tampouco livres de condicionamentos genéticos, culturais, sociais, históricos, de classe, de gênero, que nos marcam e a que nos achamos referidos. Do ponto de vista dos interesses dominantes, não há dúvida de que a educação deve ser uma prática imobilizadora e ocultadora de verdades. Toda vez, porém, que a conjuntura o exige, a educação dominante é progressista pela metade. As forças dominantes estimulam e materializam avanços técnicos compreendidos e, tanto quanto possível, realizados de maneira neutra. Seria demasiado ingênuo, até angelical de nossa parte, 61 esperar que a bancada ruralista aceitasse quieta e concordante a discussão, nas escolas rurais e mesmo urbanas do país, da reforma agrária como projeto econômico, político e ético da maior importância para o próprio desenvolvimento nacional. Isso é tarefa para educadoras e educadores progressistas cumprir, dentro e fora das escolas. É tarefa para organizações não-governamentais, para sindicatos democráticos realizar. Já não é ingênuo esperar, porém, que o empresariado que se moderniza, progressista em face da truculência retrógrada dos ruralistas, se esvazia de humanismo quando da confrontação entre o interesses humanos e os de mercado. E é uma imoralidade, para mim, que se sobreponha, como se vem fazendo, aos interesses radicalmente humanos, os do mercado. Continuo bem aberto à advertência de Marx, a da necessária radicalidade que me faz sempre desperto a tudo o que diz respeito à defesa dos interesses humanos. Interesses superiores aos de puros grupos ou de classes de gente. Ao reconhecer que, precisamente porque nos tornamos seres capazes de observar, se comparar, de avaliar, de escolher, de decidir, de intervir, de romper, de optar, nos fizemos seres éticos e se abriu para nós a probabilidade de transgredir a ética, jamais poderia aceitar a transgressão como direito mas como uma possibilidade. Possibilidade contra que devemos lutar e não diante da qual cruzar os braços. Daí a minha recusa rigorosa aos fatalismos quietistas que terminam por absorver as transgressões éticas em lugar de condená-las. Não posso virar conivente de uma ordem perversa, irresponsabilizando-a por sua malvadez, ao atribuir a força cegas e imponderáveis os danos por elas causados aos seres humanos. A fome frente a frente à abastança e o desemprego no mundo são imoralidades e não fatalidades como o reacionarismo apregoa com ares de quem sofre por nada poder fazer. O que quero repetir, com força, e que nada justifica a minimização dos seres humanos, no caso das maiorias compostas de minorias que não perceberam ainda que juntas seriam a maioria. Nada, o avanço da ciência e/ou da tecnologia, pode legitimar uma ordem desordeira em que só as minorias do poder esbanjam e gozam enquanto às maiorias em dificuldades até para sobreviver se diz que a realidade é assim mesmo, que sua fome é uma fatalidade do fim do século. Não junto a minha voz à dos que, falando em paz, pedem aos oprimidos, aos esfarrapados do mundo, a sua resignação. Minha voz tem outra semântica, tem outra 62 3.4 - Ensinar exige liberdade e autoridade Noutro momento deste texto me referi ao fato de não termos ainda resolvido o problema da tensão entre a autoridade e a liberdade. Inclinados a superar a tradição autoritária, tão presente entre nós resvalamos para formas licenciosas de comportamento e descobrimos autoritarismo onde só houve o exercício legítimo da autoridade. Recentemente, jovem professor universitário, de opção democrática, comentava comigo o que lhe parecia ter sido um desvio seu no uso de sua autoridade. Disse, constrangido, ter se oposto a que aluno de outra classe continuasse na porta entreaberta de sua sala, a manter uma conversa gesticulada com uma das alunas. Ele tivera inclusive que parar sua fala em face do descompasso que a situação provocava. Para ele, sua decisão, com que devolvera ao espaço pedagógico o necessário clima para continuar sua atividade específica e com a qual restaurara o direito dos estudantes e o seu de prosseguir a prática docente, fora autoritária. Na verdade, não. Licencioso teria sido se tivesse permitido que a indisciplina de uma liberdade mal centrada desequilibrasse o contexto pedagógico, prejudicando assim o seu funcionamento. Num dos inúmeros debates de que venho participando, e em que discutia precisamente a questão dos limites sem os quais a liberdade se perverte em licença e a autoridade em autoritarismo, ouvi de um dos participantes que, ao falar dos limites à liberdade eu estava repetindo a cantinela que caracterizava o discurso de professor seu, reconhecidamente reacionário, durante o regime militar. Pra o meu interlocutor, a liberdade estava acima de qualquer limite. Para mim, não exatamente porque aposto nela, porque sei que sem ela a existência só tem valor e sentido na luta em favor dela. A liberdade sem limite é tão negada quanto a liberdade asfixiada ou castrada. O grande problema que se coloca ao educador ou à educadora de opção democrática é com trabalhar no sentido de fazer possível que a necessidade do limite seja assumida eticamente pela liberdade. Quanto mais criticamente a liberdade assuma o limite necessário tanto mais autoridade tem ela, eticamente falando, para continuar lutando em seu nome. 65 Gostaria uma vez mais de deixar bem expresso o quanto aposto na liberdade, o quanto me parece fundamental que ele se exercite assumindo decisões. Foi isso, pelo menos, o que marcou a minha experiência de filho, de irmão, de aluno, de professor, de marido, de pai e cidadão. A liberdade amadurece no confronto com outras liberdades, na defesa de seus direitos em face da autoridade dos pais, do professor, do estado. É claro que, nem sempre, a liberdade do adolescente faz a melhor decisão com relação a seu amanhã. É indispensável que os pais tomem parte das discussões com os filhos em torno desse amanhã. Não podem nem devem omitir-se mas precisam saber e assumir, que o futuro de seus filhos é de seus filhos e não seu. É preferível, para min, reforçar o direito que tem a liberdade de decidir, mesmo correndo o risco de não acertar, a seguir a decisão dos pais. É decidindo que se aprende a decidir. Não posso aprender a ser eu mesmo se não decido nunca, porque há sempre a sabedoria e a sensatez de meu pai e minha mãe a decidir por mim. Não valem argumentos imediatista como: "Já imaginou o risco, por exemplo, que você corre, de perder tempo e oportunidade, insistindo nessa idéia maluca???" A idéia do filho, naturalmente. O que há de pragmático em nossa existência não pode sobrepor-se ao imperativo ético de que não podemos fugir. O filho tem, no mínimo, o direito de provar a maluquice de sua idéia. Por outro lado, faz parte do aprendizado da decisão a assunção das conseqüências do ato de decidir. Não há decisão a que não se sigam efeitos esperados, pouco esperados ou inesperados. Por isso é que a decisão é um processo responsável. Uma das tarefas pedagógicas dos pais é deixar óbvio aos filhos que sua participação no processo de tomada de decisão deles não é uma intromissão mas um dever, até, desde que não pretendam assumir a missão de decidir por eles. A participação dos pais se deve dar sobretudo na análise, com os filhos, das conseqüências possíveis da decisão a ser tomada. A posição da mãe ou do pai é a de quem, sem nenhum prejuízo ou rebaixamento de sua autoridade, humildemente, aceita o papel de enorme importância de assessor ou assessora do filho ou da filha. Assessor que, embora batendo-se pelo acerto de sua visão das coisas, jamais tente impor sua vontade ou se abespinha porque seu ponto de vista não foi aceito. 66 O que é preciso, fundamentalmente mesmo, é que o filho assuma eticamente, responsavelmente, sua decisão, fundante de sua autonomia. Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai se constituindo na experiência de várias, inúmeras decisões, que vão sendo tomadas. Por que, por exemplo, não desafiar o filho, ainda criança, no sentido de participar da escolha da melhor hora para fazer seus deveres escolares? Porque o melhor tempo para esta tarefa é sempre o dos pais? Por que perder a oportunidade de ir sublinhando aos filhos o dever e o direito que eles tem, como gente, de ir forjando sua própria autonomia? Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. Por outro lado, ninguém amadurece de repente, aos 25 anos. A gente vai amadurecendo todo dia, ou não. A autonomia, enquanto amadurecimento todo dia, ou não. A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiência respeitosas da liberdade. Uma coisa me parece muito clara hoje: jamais tive medo de apostar na liberdade, na seriedade, na amorosidade, na solidariedade, na luta em favor das quais aprendi o valor e a importância da raiva. Jamais receei ser criticado por minha mulher, por minhas filhas, por meus filhos, assim como pelos alunos e alunas com quem tenho trabalhado ao longo dos anos, porque tivesse apostado demasiado na liberdade, na esperança, na palavra do outro, na sua vontade de erguer-se ou reerguer-se, por ter sido mais ingênuo do que crítico. O que temi, nos diferentes momentos de minha vida, foi dar margem, por gestos ou palavrões, a ser considerado um oportunista, um realista, um homem de pé no chão, ou um desses equilibristas que se acham sempre em cima do muro à espera de saber qual a onda que se fará poder. O que sempre deliberadamente recusei, em nome do próprio respeito à liberdade, foi sua distorção em licenciosidade. O que sempre procurei foi viver em plenitude a relação tensa, contraditória e não mecânica, entre autoridade e liberdade, no sentido de assegurar o respeito entre ambas, cuja ruptura provoca a hipertrofia de uma ou de outra. É interessante observar como, de modo geral, os autoritários consideram, amiúde, o respeito indispensável à liberdade como expressão de incorrigível espontaneísmo e os licenciosos descobrem autoritarismo em toda manifestação legítima da autoridade. A 67 assumido e praticado pelos educadores não importa de que escola, particular ou pública. É por isto que devo lutar sem cansaço. Lutar pelo direito que tenho de ser respeitado e pelo dever que tenho de reagir a que me destratem . Lutar pelo direito que você, que me lê, professora ou aluna, tem de ser você mesma e nunca, jamais, lutar por essa coisa impossível, acinzentada e insossa que é a neutralidade. Que é mesmo a minha neutralidade senão a maneira cômoda, talvez, mas hipócrita, de esconder minha opção ou meu medo de acusar a injustiça? "Lavar as mãos" em face da opressão é reforçar o poder do opressor, é optar por ele . Como posso ser neutro diante da situação, não importa qual seja ela, em que o corpo das mulheres e dos homens vira puro objeto de espoliação e descaso? O que se coloca à educadora ou educador democrático, consciente da impossibilidade da neutralidade da educação, é forjar em si um saber especial, que jamais deve abandonar, saber que motiva e sustenta sua luta: se a educação não pode tudo, alguma coisa fundamental a educação pode. Se a educação não é a chave das transformações sociais, não é também simplesmente reprodutora da ideologia dominante. O que quero dizer é que a educação nem é uma força imbatível a serviço da transformação da sociedade, porque assim eu queira, nem tampouco é a perpetuação do 'status quo" porque o dominante o decrete. O educador e a educadora críticos não podem pensar que, a partir do curso que coordenam ou do seminário que lideram, podem transformar o país. Mas podem demonstrar que é possível mudar. E isto reforça nele ou nela a importância de sua tarefa político-pedagógica. A professora democrática, coerente, competente, que testemunha seu gosto da vida, sua esperança no mundo melhor, que atesta sua capacidade de luta, seu respeito às diferenças, sabe cada vez mais o valor que tem para a modificação da realidade, a maneira consistente com que vive sua presença no mundo, de que sua experiência na escola é apenas um momento, mas um momento importante que precisa de ser autenticamente vivido. 3.6 - Ensinar exige saber escutar Recentemente, em conversa com um grupo de amigos e amigas , uma delas, a professora Ollgair Garcia, me disse que, em sua experiência pedagógica de professora 70 de crianças e de adolescentes mas também de professora de professoras, vinha observando quão importante e necessário é saber escutar. Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando dos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que, em certas condições , precise de falar a ele. O que jamais faz quem aprende a escutar para poder falar com é falar impositivamente. Até quando, necessariamente, fala contra posições ou concepções do outro, fala com ele como sujeito da escuta de sua fala crítica e não como objeto de seu discurso. O educador que escuta aprende a difícil lição de transformar o seu discurso, às vezes necessário, ao aluno, em uma fala com ele. Há um sinal dos tempos, entre outros, que me assusta: a insistência com que, em nome da democracia, da liberdade e da eficácia, se vem asfixiando a própria liberdade e, por extensão a criatividade e o gosto da aventura do espírito. A liberdade de mover-nos, de arriscar-nos vem sendo submetida a uma certa padronização de fórmulas de maneiras de ser, em relação às quais somos avaliados. É claro que já não se trata de asfixia truculentamente realizada pelo rei despótico sobre seus súditos, pelo senhor feudal sobre seus vassalos, pelo colonizador sobre os colonizados, pelo dono da fábrica sobre seus operários, pelo estado autoritário sobre os cidadãos, mas pelo poder invisível da domesticação alienante que alcança a eficiência extraordinária no que venho chamando "burocratização da mente". Um estado refinado de estranheza, de "autodemissão" da mente, do corpo consciente, de conformismo do indivíduo, de acomodação diante de situações consideradas fatalistamente como imutáveis. É a posição de quem encara os fatos como algo consumado, como algo que se deu porque tinha que se dar da forma como se deu, é a posição, por isso mesmo, de quem entende e vive a História como determinismo e não como possibilidade. É a posição de quem se assume como fragilidade total diante do todopoderosismo dos fatos que não apenas se deram porque tinham que se dar mas que não podem ser "reorientados" ou alterados. Não há, nesta maneira mecanicista de compreender a História, lugar para a decisão humana. Na medida mesma em que a desproblematização do tempo, de que resulta de que o amanhã ora é a perpetuação do hoje, ora é algo que será porque está dito que será, não há lugar para a escolha, mas para a acomodação bem comportada ao que está aí ou ao que virá. Nada é possível de ser feito contra a globalização que, realizada porque tinha de ser 71 realizada, tem de continuar seu destino, porque assim está misteriosamente escrito que deve ser. A globalização que reforça o mando das minorias poderosas esmigalha e pulveriza a presença impotente dos dependentes, fazendo-os ainda mais impotentes, é destino dado. Em face dela não há outra saída senão que cada um baixe a cabeça docilmente e agradeça a deus ou à própria globalização. Sempre recusei os fatalismos. Prefiro a rebeldia que me confirma como gente e que jamais deixou de provar que o ser humano é maior do que mecanismos que o minimizam. A proclamada morte da História que significa, em última análise, a morte da utopia e do donho, reforça, indiscutivelmente, os mecanismos de asfixia da liberdade. Daí que a briga pelo resgate do sentido da utopia de que a prática educativa humanizante não pode deixar de estar impregnada tenha de ser uma sua constante. Quanto mais me deixe seduzir pela aceitação da morte da História tanto mais admito que a impossibilidade do amanhã diferente implica a eternidade do hoje neo-liberal que aí está, e a permanência do hoje mata em mim a possibilidade de sonhar. Desproblematizando o tempo, a chamada morte da História decreta o imobilismo que nega o ser humano. A desconsideração total pela formação integral do ser humano e a sua redução a puro treino fortalecem a maneira autoritária de falar de cima para baixo. Nesse caso, falar a, que, na perspectiva democrática é um possível momento do falar com, nem sequer é ensaiado. A desconsideração total pela formação integral do ser humano, a sua redução a puro treino fortalecem a maneira autoritária de falar de cima para baixo a que falta, por isso mesmo, a intenção de sua democratização no falar com. Os sistemas de avaliação pedagógica de alunos e de professores vêm se assumindo cada vez mais como discursos verticais, de cima para baixo, mais insistindo em passar por democráticos. A questão que se coloca a nós, enquanto professores e alunos críticos e amorosos da liberdade, não é, naturalmente, ficar contra a avaliação, de resto necessária, mas resistir aos métodos silenciadores com que ela vem sendo às vezes realizada. A questão que se coloca a nós é lutar em favor da compreensão e da prática da avaliação 72 compreensão ou na inteligência do objeto e para sua curiosidade, compensada e gratificada pelo êxito da compreensão alcançada, seja mantida e, assim, estimulada a continuar a busca permanente que o processo de conhecer implica. Que me seja perdoada a reiteração, mas é preciso enfatizar, mais uma vez: ensinar não é transferir a inteligência do objeto ao educando mas instigá-lo no sentido de que, como sujeito cognoscente, se torne capaz de inteligir e comunicar o inteligido. É nesse sentido que se impõe a mim escutar o educando em suas dúvidas, em seus receios, em sua incompetência provisória. E ao escutá-lo, aprendo a falar com ele. Escutar é obviamente algo que vai mais além da possibilidade auditiva de cada um. Escutar, no sentido aqui discutido, significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro. Isto não quer dizer , evidentemente, que escutar exija de quem realmente escuta sua redução ao outro que fala. Isto não seria escuta, mas auto-anulação. A verdadeira escuta não diminui em mim, em nada, a capacidade de exercer o direito de discordar, de me opor, de me posicionar. Pelo contrário, é escutando bem que me preparo para melhor me colocar ou melhor me situar do ponto de vista das idéias. Como sujeito que se dá ao discurso do outro, sem preconceitos, o bom escutador fala e diz de sua posição com desenvoltura. Precisamente porque escuta, sua fala discordante, em sendo afirmativa, porque escuta, jamais é autoritária. Não é difícil perceber como há umas tantas qualidades que a escuta legítima demanda do seu sujeito. Qualidades que vão sendo constituídas na prática democrática de escutar. Deve fazer parte de nossa formação discutir quais são estas qualidades indispensáveis, mesmo sabendo que elas precisam de ser criadas por nós, em nossa prática, se nossa opção político-pedagógica é democrática ou progressista e se somos coerentes com ela. É preciso que saibamos que, sem certas qualidades ou virtudes como amorosidade, respeito aos outros, tolerância, humildade, gosto pela alegria, gosto pela vida, abertura ao novo, disponibilidade à mudança, persistência na luta, recusa aos fatalismos, identificação com a esperança, abertura à justiça, não é possível a prática pedagógico- progressista, que não se faz apenas com ciência e técnica. 75 Aceitar e respeitar a diferença é uma dessas virtudes sem o que a escuta não se pode dar. Se discrimino o menino ou menina pobre, a menina ou o menino negro, o menino índio, a menina rica; se discrimino a mulher, a camponesa, a operária, não posso evidentemente escutá-las e se não as escuto, não posso falar com eles, mas a eles de cima para baixo. Sobretudo, me proíbo entendê-los. Se me sinto superior ao diferente, não importa quem seja, recuso-me escutá-lo ou escutá-la. O diferente não é o outro a merecer respeito é um isto ou aquilo, destratável ou desprezível. Se a estrutura do meu pensamento é a única certa, irrepreensível, não posso escutar quem pensa e elabora seu discurso de outra maneira que não a minha. Nem tampouco escuto quem fala ou escreve fora dos padrões da gramática dominante. E como estar aberto às formas de ser, de pensar, de valorar, consideradas por nós demasiado estranhas e exóticas de outra cultura? Vemos como o respeito às diferenças e obviamente aos diferentes exige de nós a humildade que nos adverte dos riscos de ultrapassagem dos limites além dos quais a nossa autovalia necessária virá arrogância e desrespeito aos demais. É preciso afirmar que ninguém pode ser humilde por puro formalismo como se cumprisse mera obrigação burocrática. A humildade exprime, pelo contrário, uma das raras certezas de que estou certo: a de que ninguém é superior a ninguém. A falta de humildade, expressa na arrogância e na falsa superioridade de uma pessoa sobre a outra, de uma raça sobre a outra , de um gênero sobre outro, de uma classe ou de uma cultura sobre a outra, é uma transgressão da vocação humana do ser mais. O que a humildade não pode exigir de mim é a minha submissão à arrogância e ao destempero de quem me desrespeita. O que a humildade exige de mim, quando não posso reagir à altura da afronta, é enfrentá-la com dignidade. A dignidade do meu silêncio e do meu olhar que transmitem o meu protesto possível. É óbvio que não posso me bater fisicamente com um jovem a quem não é necessário juntar robustez e, menos ainda, a qualidade de lutador. Nem por isso, porém, devo amesquinhar-me diante de seu desrespeito e de seu agravo, trazendo-os comigo de volta para casa sem um gesto ao menos de protesto. É preciso que, assumindo com gravidade a minha impotência na relação de poder entre mim e ele, fique sublinhada sua covardia. É necessário que ele saiba que eu sei que falta de valor ético o inferioriza. É preciso que ele saiba que, se fisicamente pode golpear-me e seus golpes me causam dor, não tem, contudo, a força suficiente para dobrar-me a seu arbítrio. 76 Sem bater fisicamente no educando o professor pode golpeá-lo, impor-lhe desgostos e prejudicá-lo no processo de sua aprendizagem. A resistência do professor, por exemplo, em respeitar a " leitura de mundo" com que o educando chega á escola, obviamente condicionada por sua cultura de classe e revelada em sua linguagem , também de classe, se constitui em um obstáculo à sua experiência de conhecimento. Como tenho insistido neste e em outros trabalhos, saber escutá-lo não significa, já deixei isto claro, concordar com ela, a leitura do mundo ou a ela se acomodar, assumindo-a como sua. Respeitar a leitura de mundo, do educando não é também um jogo tático com que o educador ou educadora procura tornar-se simpático ao educando. É a maneira correta que tem o educador de, com o educando e não sobre ele, tentar a superação de uma maneira mais ingênua por outra mais crítica de inteligir o mundo. Respeitar a leitura de mundo do educando significa tomá-la como ponto de partida para a compreensão do papel da curiosidade, de modo geral, e da humana, de modo especial, como um dos impulsos fundantes da produção do conhecimento . É preciso que, ao respeitar a leitura do mundo do educando para ir mais além dela, o educador deixe claro que a curiosidade fundamental à inteligibilidade do mundo é histórica e se dá na história, se aperfeiçoa, muda qualitativamente, se faz metodicamente rigorosa. E a curiosidade assim metodicamente rigorosa. E a curiosidade assim metodicamente rigorizada faz achados cada vez mais exatos. No fundo, o educador que respeita a leitura de mundo do educando, reconhece a historicidade do saber, o caráter histórico da curiosidade, desta forma, recusando a arrogância cientificista, assume a humildade crítica, própria da posição verdadeiramente científica. O desrespeito à leitura de mundo do educando revela o gosto elitista, portanto antidemocrático, do educador que, desta forma, não escutando o educando, com ele não fala. Nele deposita seus comunicados. Há algo ainda de real importância a ser discutido na reflexão sobre a recusa ou ao respeito à leitura de mundo do educando por parte do educador. A leitura de mundo revela, evidentemente, a inteligência do mundo que vem cultural e socialmente se constituindo. Revela também o trabalho individual de cada sujeito no próprio processo de assimilação da inteligência do mundo. 77 hegemônicas como se o Brasil, o México, a Argentina devessem participar da globalização da economia da mesma forma que os Estados Unidos, a Alemanha, o Japão. Pega-se o trem no meio do caminho e não se discutem as condições anteriores e atuais das diferentes economias. Nivelam-se os patamares de deveres entre as distintas economias sem se considerarem as distâncias que separam os "direitos" dos fortes e o seu poder de usufruí-los e a fraqueza dos débeis para exercer os seus direitos. Se a globalização implica a superação de fronteiras, a abertura sem restrições ao livre comércio, acabe-se então quem não puder resistir. Não se indaga, por exemplo, se em momentos anteriores da produção capitalista nas sociedades que lideram a 'globalização hoje elas eram radicais na abertura que consideram agora uma condição indispensável ao livre comércio. Exigem, no momento, dos outros, o que não fizeram consigo mesmas. Uma das eficácias de sua ideologia fatalista é convencer os prejudicados das economias submetidas de que a realidade é assim mesmo, de que não há nada a fazer mas a seguir a ordem natural dos fatos. Pois é como algo natural ou quase natural que a ideologia neoliberal se esforça por nos fazer entender a globalização e não como uma produção histórica. O discurso da globalização que fala da ética esconde, porém, que a sua é a ética do mercado e não a ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar bravamente se optarmos, na verdade, por um mundo de gente. O discurso da globalização astutamente oculta ou nela busca penumbrar a reedição intensificada ao máximo, mesmo que modificada, de medonha malvadez com que o capitalismo aparece na História. O discurso ideológico da globalização procura disfarçar que ela vem robustecendo a riqueza de uns poucos e verticalizando a pobreza e a miséria de milhões. O sistema capitalista alcança no neoliberalismo globalizante o máximo de eficácia de sua malvadez intrínseca. Espero, convencido de que chegará o tempo em que, passada a estupefação em face da queda do muro de Berlim, o mundo se refará e recusará a ditadura do mercado, fundada na perversidade de sua ética do lucro. Não creio que as mulheres e os homens do mundo, independentemente até de suas opções políticas, mas sabendo-se e assumindo-se como mulheres e homens, como gente, não aprofundem o que hoje já existe como uma espécie de mal-estar que se generaliza 80 em face da maldade neoliberal. Mal-estar que determinará por consolidar-se numa rebeldia nova em que a palavra crítica, o discurso humanista, o compromisso solidário, a denúncia veemente da negação do homem e da mulher e o anúncio de um mundo "genteficado" serão armas de incalculável alcance. Há um século e meio Marx e Engels gritavam em favor da união das classes trabalhadoras do mundo contra sua espoliação. Agora, necessária e urgente se fazem a união e a rebelião das gentes contra a ameaça que nos atinge, a dos à "fereza" da ética do mercado.] É neste sentido que jamais abandonei a minha preocupação primeira, que sempre me acompanhou, desde os começos de minha experiência educativa. A preocupação com a natureza humana a que devo a minha lealdade sempre proclamada. Antes mesmo de ler Marx já fazia minhas as palavras: já fundava a minha radicalidade na defesa dos legítimos interesses humanos. Nenhuma teoria da transformação político-social do mundo me comove, sequer, se não parte de uma compreensão do homem e da mulher enquanto seres fazedores da história e por ela feitos, seres da decisão , da ruptura, da opção. Seres éticos, mesmo capazes de transgredir a ética indispensável, algo de que tenho insistentemente "falado" neste texto. Tenho afirmado e reafirmado o quanto realmente me alegra saber-me um ser condicionado mas capaz de ultrapassar o próprio condicionamento. A grande força sobre que alicerçar-se a nova rebeldia é a ética universal do ser humano e não a do mercado, insensível a todo reclamo das gentes e apenas aberta à gulodice do lucro. É a ética da solidariedade humana. Prefiro ser criticado como idealista e sonhador inveterado por continuar, sem relutar, a aposta no ser humano, a me bater por uma legislação que o defenda contra as arrancadas agressivas e injustas de que transgride a própria ética. A liberdade do comércio não pode acima da liberdade do ser humano. A liberdade de comércio sem limite é licenciosidade do lucro. Vira privilégio de uns poucos que, em condições favoráveis, robustece seu poder contra os direitos de muitos, inclusive o direito de sobreviver. Uma fábrica de tecido que fecha por não poder concorrer com os preços da produção asiática, por exemplo, significa não apenas o colapso econômico financeiro de seu proprietário que pode ter sido ou não um transgressor da ética universal humana, mas também a expulsão de centenas de trabalhadores e trabalhadoras do processo de produção. E suas 81 famílias? Insisto, com a força que tenho e que posso juntar na minha veemente recusa a determinismos que reduzem a nossa presença na realidade histórico-social à pura adaptação a ela. O desemprego no mundo não é,como disse e tenho repetido, uma fatalidade. É antes o resultado de uma globalização da economia e de avanços tecnológicos a que vem faltando o dever ser de uma ética realmente a serviço do ser humano e não do lucro e da gulodice irrefreada das minorias que comandam o mundo. O progresso cientifico e tecnológico que não responde fundamentalmente aos interesses humanos, ás necessidades de nossa existência, perdem, para mim, sua significação. A todo avanço tecnológico haveria de corresponder o empenho real de resposta imediata a qualquer desafio que pusesse em risco a alegria de viver dos homens e das mulheres. A um avanço tecnológico que ameaça a milhares de mulheres e de homens de perder seu trabalho deveria corresponder outro avanço tecnológico que estivesse a serviço do atendimento das vítimas do progresso anterior. Como se vê, esta é uma questão ética e política e não tecnológica. O problema me parece muito claro. Assim como não posso usar minha liberdade de fazer coisas, de indagar, de caminhar, de agir, de criticar para esmagar a liberdade dos outros para usar os avanços científicos e poderia ser livre para usar os avanços científicos e tecnológicos que levam milhares de pessoas à desesperança. Não se trata, acrescentemos, de inibir a pesquisa e frear os avanços mas de pô-los a serviço dos seres humanos. A aplicação de avanços tecnológicos com o sacrifício de milhares de pessoas é um exemplo a mais de quanto podemos ser transgressores da ética universal do ser humano e o fazemos em favor de uma ética pequena, a do mercado, a do lucro. Entre as transgressões à ética universal do ser humano, sujeitos à penalidade, deveria estar a que implicasse a falta de trabalho a um sem-número de gentes, a sua desesperação e a sua morte em vida. A preocupação, por isso mesmo, com a formação técnico-profissional capaz de reorientar a atividade prática dos que foram postos entre parênteses, teria de multiplicar- se. Gostaria de deixar bem claro que não apenas imagino mas sei quão difícil é a aplicação de uma política do desenvolvimento humano que, assim, privilegie fundamentalmente o 82 metódica que me defende de tornar-me absolutamente certo de certezas. Para me resguardar das artimanhas da ideologia não posso nem devo me fechar aos outros nem tampouco me enclausurar no ciclo de minha verdade. Pelo contrário, o melhor caminho para guardar viva e desperta a minha capacidade de pensar certo, de ver com acuidade, de ouvir com respeito, por isso de forma exigente, é me deixar exposto às diferenças, é recusar posições dogmáticas, em que me admita como proprietário da verdade. No fundo, a atitude correta de quem não se sente dono da verdade nem tampouco objeto acomodado do discurso alheio que lhe é autoritariamente feito. Atitude correta de quem se encontra em permanente disponibilidade a tocar e a ser tocado, a perguntar e a responder, a concordar e a discordar. Disponibilidade á vida e a seus contratempos. Estar disponível é estar sensível aos chamamentos que nos chegam, aos sinais mais diversos que nos apelam, ao canto do pássaro, à chuva que cai ou que se anuncia na nuvem escura, ao risco manso da inocência, à cara carrancuda da desaprovação, aos braços que se abrem para acolher ou ao corpo que se fecha na recusa. É na minha disponibilidade permanente á vida a que me entrego de corpo inteiro, pensar crítico, emoção, curiosidade, desejo, que vou aprendendo a ser eu mesmo em minha relação com o contrário de mim. E quanto mais me dou à experiência de lidar sem medo, sem preconceito, com as diferenças, tanto melhor me conheço e construo meu perfil. 3.8 Ensinar exige disponibilidade para o diálogo. Nas minhas relações com os outros, que não fizeram necessariamente as mesmas opções que fiz, no nível da política, da ética, da estética, da pedagogia, nem posso partir de que vejo "conquistá-los", não importa a que custo, nem tampouco temo que pretendam "conquistar-me". É no respeito às diferenças entre mim e eles ou elas, na coerência entre o que faço e o que digo, que me encontro com eles ou com elas. É na minha disponibilidade à realidade que construo a minha segurança, indispensável á própria disponibilidade á realidade sem segurança mas é impossível também criar a segurança fora do risco da disponibilidade. Como professor não devo poupar oportunidade para testemunhar aos alunos a segurança com que me comporto ao discutir um tema, ao analisar um fato, ao expor minha posição em face de uma decisão governamental. Minha segurança não repousa na falsa 85 suposição de que sei tudo, de que sou o "maior". Minha segurança se funda na convicção de que sei algo e de que ignoro algo que se junta a certeza de que posso saber melhor o que já sei e conhecer o que ainda não sei. Minha segurança se alicerça no saber confirmado pela própria existência de que, se minha inconclusão, de que sou consciente, atesta, de um lado, minha ignorância, me abre, de outro, o caminho para conhecer. Me sinto seguro porque não há razão para me envergonhar por desconhecer algo. Testemunhar a abertura aos outros, a disponibilidade curiosa à vida, a seus desafios, são saberes necessários à prática educativa. Viver a abertura respeitosa aos outros e, de quando em vez, de acordo com o momento, tomar a própria prática de abertura ao outro como objetivo da reflexão crítica deveria fazer parte da aventura docente. A razão ética da abertura, seu fundamento político sua referência pedagógica; a boniteza que há nela como viabilidade do diálogo. A experiência da abertura como experiência fundante do ser inacabado que terminou por se saber inacabado. Seria impossível saber-se inacabado e não se abrir ao mundo e aos outros à procura de explicação, de respostas a múltiplas perguntas. O fechamento ao mundo e aos outros se torna transgressão ao impulso natural da incompletude. O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na História. Certa vez, numa escola da rede municipal de São Paulo que realizava uma reunião de quatro dias com professores e professoras de dez escolas da área para planejar em comum suas atividades pedagógicas, visitei uma sala em que se expunham fotografias das redondezas da escola. Fotografias de ruas enlameadas, de ruas bem postas também. Fotografias de recantos feios que sugeriam tristeza e dificuldades. Fotografias de corpos andando com dificuldade, lentamente, alquebrados, de caras desfeitas, de olhar vago. Um pouco atrás de mim dois professores faziam comentários em torno do que lhes tocava mais perto. De repente, um deles afirmou: "Há dez anos ensino nesta escola. Jamais conheci nada de sua redondeza além das ruas que lhe dão acesso. Agora, ao ver esta exposição de fotografias que nos revelam um pouco de seu contexto, me convenço 86 de quão precária deve ter sido a minha tarefa formadora durante todos estes anos. Como ensinar, como formar sem estar aberto ao contorno geográfico, social, dos educandos?" A formação dos professores e das professoras devia insistir na constituição deste saber necessário e que me faz certo desta coisa óbvia, que é a importância inegável que tem sobre nós o contorno ecológico, social e econômico em que vivemos. E ao saber teórico desta influência teríamos que juntar o saber teórico-prático da realidade concreta em que os professores trabalham, Já sei, não há dúvida, que as condições materiais em que e sob que vivem os educandos lhes condicionam a compreensão do próprio mundo, sua capacidade de aprender, de responder aos desafios. Preciso, agora, saber ou abrir-me à realidade desses alunos com quem partilho a minha atividade pedagógica. Preciso tornar-me , se não absolutamente íntimo de sua forma de estar sendo, no mínimo, menos estranho e distante dela . e a diminuição de minha estranheza ou de minha distância da realidade hostil em que vivem meus alunos não é uma questão de pura geografia. Minha abertura à realidade negadora de seu projeto de gente é uma questão de pura geografia. Minha abertura à realidade negadora de seu projeto de gente é uma questão de real adesão de minha parte a eles e a elas, a seu direito de ser. Não é mudando-me para uma favela que provarei a eles e a elas minha verdadeira solidariedade política sem falar ainda na quase certa perda de eficácia de minha luta em função da mudança mesma. O fundamental é a minha decisão ético-política, minha vontade nada piegas de intervir no mundo. É o que Amilcar Cabral chamou "suicídio de classe" e a que me referi, na Pedagogia do Oprimido, como páscoa ou travessia. No fundo, diminuo a distância que me separa das condições malvadas em que vivem os explorados, quando, aderido realmente ao sonho de justiça, luto pela mudança radical do mundo e não apenas espero que ela chegue porque se disse que chegará. Diminuo a distância entre mim e a dureza de vida dos explorados não com discursos raivosos, sectários, que só não são ineficazes porque dificultam mais ainda a minha comunicação com os oprimidos. Com relação a meus alunos, diminuo a distância que me separa de suas condições negativas de vida na medida em que os ajudo a aprender não importa que saber, o do torneio ou o do cirurgião, com vistas à mudança do mundo, à superança das estruturas injustas, jamais com vistas à sua imobilização. O saber alicerçante da travessia na busca da diminuição da distância entre mim e a perversa realidade dos explorados é o saber fundado na ética de que nada legitima a 87 A minha abertura ao querer bem significa a minha disponibilidade à alegria de viver. Justa alegria de viver, que, assumida plenamente, não permite que me transforme num ser "adocicado" nem tampouco num ser arestoso e amargo. A atividade docente de que a discente não se separa é uma experiência alegre por natureza. É falso também tomar como inconciliáveis seriedade docente e alegria, como se a alegria fosse inimiga da rigoridade. Pelo contrário, quanto mais metodicamente rigoroso me torno na minha busca e na minha docência, tanto mais alegre me sinto e esperançoso também. A alegria não chega apenas no encontro do achado mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender não podem dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria. O desrespeito à educação, aos educandos, aos educadores e às educadoras corrói ou deteriora em nós, de um lado, a sensibilidade ou a abertura ao bem querer da própria prática educativa de outro, a alegria necessária ao que fazer docente. É digna de nota a capacidade que tem a experiência pedagógica para despertar, estimular e desenvolver em nós o gosto de querer bem e o gosto da alegria sem a qual a prática educativa perde o sentido. É esta força misteriosa, às vezes chamada vocação, que explica a quase devoção com que a grande maioria do magistério nele permanece, apesar da imoralidade dos salários. E não apenas permanece, mas cumpre, como pode, seu dever. Amorosamente, acrescento. Mas é preciso, sublimo, que, permanecendo e amorosamente cumprindo o seu dever, não deixe de lutar politicamente, por seus direitos e pelo respeito à dignidade de sua tarefa, assim como pelo zelo devido ao espaço pedagógico em que atua com seus alunos. É preciso, por outro lado, reinsistir em que não se pense que a prática educativa vivida com afetividade e alegria, prescinda da formação científica séria e da clareza política dos educadores ou educadoras. A prática educativa é tudo isso: afetividade, alegria, capacidade científica, domínio técnico a serviço da mudança ou, lamentavelmente, da permanência do hoje. É exatamente esta permanência do hoje neoliberal que a ideologia contida no discurso da "morte da História" propõe. Permanência do hoje a que o futuro desproblematizado se reduz. Daí o caráter desesperançoso, fatalista, antiutópico de uma tal ideologia em que se forja uma educação friamente tecnista e se requer um educador 90 exímio na tarefa de acomodação ao mundo e não na de sua transformação. Um educador com muito pouco de formador , com muito mais de treinador, de transferidor de saberes, de examinador de destrezas. Os saberes de que este educador "pragmático" necessita na sua prática não são os de que venho falando neste livro. A mim não me cabe falar deles, os saberes necessários ao educador "pragmático" neoliberal mas, denunciar sua atividade anti-humanista. O educador progressista precisa estar convencido como de suas conseqüências é o de ser o seu trabalho uma especificidade humana. Já vimos que a condição humana fundante da educação é precisamente a inconclusão de nosso ser histórico de que nos tornamos conscientes. Nada que diga respeito ao ser humano, à possibilidade de seu aperfeiçoamento físico e moral, de sua inteligência sendo produzida e desafiada, os obstáculos a seu crescimento, o que possa fazer em favor da boniteza do mundo como de seu enfeamento, a dominação a que esteja sujeito, a liberdade por que deve lutar, nada que diga respeito aos homens e às mulheres pode passar despercebido pelo educando progressista. Não importa com que faixa etária trabalhe o educador ou a educadora. O nosso é um trabalho realizado com gente, miúda, jovem ou adulta, mas gente em permanente processo de busca. Gente formando-se, mudando, crescendo, reorientando-se, melhorando, mas, porque gente, capaz de negar os valores, de distorcer-se, de recuar, de transgredir. Não sendo superior nem inferior a outra prática 'profissional, a minha, que é a prática docente, exige de mim um alto nível de responsabilidade ética de que a minha própria capacitação científica faz parte. É que lido com gente. Lido, por isso mesmo, independentemente do discurso ideológico negador dos sonhos e das utopias, com os sonhos, as esperanças tímidas, às vezes, mas às vezes, fortes, dos educandos. Se não posso, de um lado, estimular os sonhos impossíveis, não devo, de outro, negar a quem sonha o direito de sonhar. Lido com gente e não com coisas. E porque lido com gente, não posso, por mais que, inclusive, me dê prazer entregar-me à reflexão teórica e crítica em torno da própria prática docente e discente, recusar a minha atenção dedicada e amorosa à problemática mais pessoal deste ou daquele aluno ou aluna. Desde que não prejudique o tempo normal da docência, não posso fechar-me a seu sofrimento ou à sua inquietação porque não sou terapeuta ou assistente social. Mas sou gente. O que não posso, por uma questão de ética e de respeito profissional, é pretender passar por terapeuta. Não posso negar a minha 91 condição de gente de que se alonga, pela minha abertura humana, uma certa dimensão terápica. Foi convencido disto que, desde jovem, sempre marchei de minha casa para o espaço pedagógico onde encontro os alunos, com quem comparto a prática educativa. Foi sempre como prática de gente que entendi o que fazer docente. De gente inacabada, de gente curiosa, inteligente, de gente que pode saber, que pode por isso ignorar, de gente que, não podendo passar sem ética se tornou contraditoriamente capaz de transgredí-la. Mas, se nunca idealizei a prática educativa, se em tempo algum a vi como algo que, pelo menos, parecesse com um que fazer de anjos, jamais foi fraca em mim a certeza de que vale a pena lutar contra os descaminhos que nos obstaculizam de ser mais. Naturalmente, o que de maneira permanente me ajudou a manter esta certeza foi a compreensão da História como possibilidade e não como determinismo, de que decorre necessariamente a importância do papel da subjetividade na História, a capacidade de comparar, de analisar, de avaliar, de decidir de romper e por isso tudo, a importância da ética e da política. É esta percepção do homem e da mulher como seres "programados, mas para aprender" e, portanto, para ensinar, para conhecer, para intervir, que me faz entender a prática educativa como um exercício constante em favor da produção e do desenvolvimento da autonomia de educadores e educandos. Como prática estritamente humana jamais pude entender a educação como uma experiência fria, sem alma, em que os sentimentos e as emoções, os desejos, os sonhos devessem ser reprimidos por uma espécie de ditadura reacionalista. Nem tampouco jamais compreendi a prática educativa como uma experiência a que faltasse o rigor em que se gera a necessária disciplina intelectual. Estou convencido, porém de que a rigosidade, a séria disciplina intelectual, o exercício da curiosidade epistemológica não me fazem necessariamente um ser mal-amado, arrogante, cheio de mim mesmo. Ou, em outras palavras, não é a minha arrogância intelectual a que fala de minha rigorosidade científica. Nem a arrogância é sinal de competência nem a competência é causa de arrogância. Não nego a competência , por outro lado, de certos arrogantes, mas lamento neles a ausência de simplicidade que, não diminuindo em nada seu saber, os faria gente melhor. Gente mais gente. 92