Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

PRIMEIROS PASSOS A epígrafe desta dissertação foi ..., Notas de aula de Construção

Como essa construção do eu docente se dá socialmente, analiso, em primeiro lugar, que vozes guiaram os peregrinos (numa analogia à voz do poeta mencionado na.

Tipologia: Notas de aula

2023

Compartilhado em 17/01/2023

Jandiara62
Jandiara62 🇵🇹

4.8

(37)

3.2K documentos

1 / 128

Toggle sidebar

Documentos relacionados


Pré-visualização parcial do texto

Baixe PRIMEIROS PASSOS A epígrafe desta dissertação foi ... e outras Notas de aula em PDF para Construção, somente na Docsity! 12 1 INTRODUÇÃO: PRIMEIROS PASSOS A epígrafe desta dissertação foi fundamental para a concepção da pesquisa que ora apresento. Desempenha, portanto, um papel importante para a compreensão da mesma. O eu- lírico tece reflexões acerca do curso da vida. Tudo passa mas também fica: o que se experimenta passa objetivamente, permanecendo em nossa memória e nossa formação. A cada golpe sofrido e a cada verso criado, volta à memória do eu-lírico uma voz que é de um outro poeta mas ao mesmo tempo sua própria: caminhante, não busque caminhos prontos – suas pegadas são o seu caminho, rastros efêmeros na superfície da água. Interessa-nos aqui o elemento imagético do caminhante, o andarilho, o peregrino. A ele o eu-lírico exorta e desilude: não existe caminho traçado para esse viajante. Suas próprias pegadas constituirão a estrada. Seu caminho não fora constituído num tempo passado, nem permanecerá para uso num tempo futuro. É no presente, âncora de um e de outro, que se faz o caminho: este é o próprio processo de andar. Na analogia do caminhante de Antonio Machado1 se apoia o fio condutor deste estudo. O caminhante será, para nós, o professor. Assumindo que o bosque por onde transita o professor seja a Educação Básica, temos o seguinte cenário: um sujeito passa por um processo de formação institucionalizada para aprender os fundamentos do ser e do fazer docente. Ao longo desse processo, idealmente, o professor em formação entra em contato com os rudimentos da orientação no espaço. Aprende a localizar pontos cardeais, ler mapas, a usar uma bússola, a orientar-se pelos astros – e em tempos atuais talvez aprenda a utilizar um sistema de posicionamento global. Durante o estágio supervisionado, ele dá seus primeiros passos no bosque com a companhia de um guia (seu professor supervisor). Assim, ele tem a chance de vivenciar, na prática, os aspectos teóricos estudados anteriormente tendo quem o ampare. Quando concluir-se esse processo formativo – a licenciatura – o professor passa, enfim, a traçar seus próprios caminhos tendo à disposição estradas alheias e instrumentos de navegação para lhe servirem de referência. Essa formação do sujeito para traçar suas trilhas na Educação Básica não constitui apenas uma instância conveniente: o bosque em questão é uma reserva ambiental cujo acesso é legalmente restrito. Trata-se de uma instância formativa prevista em lei e estabelecida como 1 Antonio Cipriano José María y Francisco de Santa Ana Machado Ruiz (1875-1939) foi um poeta modernista espanhol. 13 pré-requisito para conceder ao professor-peregrino a licença oficial para atuar na Educação Básica2. Assim, virtualmente, a ninguém se outorgaria o acesso à docência na Educação Básica sem que passasse previamente por um curso superior de licenciatura. Nesse terreno aparentemente exclusivo, a região sobre a qual este estudo se debruça é a modalidade Educação Profissional. Plena de especificidades históricas e epistêmicas, a Educação Profissional é palco de intensos debates e disputas políticas. O panorama da formação docente para esta modalidade é, no entanto, ambivalente – especialmente na sua forma de articulação integrada ao Ensino Médio. Os docentes do Ensino Médio Integrado (doravante EMI) podem ou não ter formação (a licença) para transitar nessa parte do bosque. Isso acontece porque há nesse Ensino Médio disciplinas para as quais não há licenciatura. Disciplinas de formação geral, chamadas propedêuticas por suposta ou tradicionalmente virem antes das demais, como língua portuguesa, história, geografia, matemática, física e química, seguem ministradas por professores que foram formados para se orientarem em meio àquela mata. Já as chamadas disciplinas técnicas, específicas de cada curso técnico ofertado, são disciplinas para as quais não há licenciados: tecnologia mecânica e processos de usinagem, gestão organizacional e sistemas digitais são alguns exemplos de disciplinas que são, por causa das condições objetivas, ministradas por professores sem a requerida licença, “os graduados bacharéis e tecnólogos que, na falta de licenciados, recebem autorização do órgão competente de cada sistema, em caráter precário e provisório, para exercer a docência e aos quais se proporcione formação pedagógica em serviço” (BRASIL, 2008). Ficam estabelecidos, portanto, um impasse, uma contradição e uma lacuna: o impasse da demanda por professores de áreas de conhecimento que não contam com a oferta de licenciaturas; a contradição da admissão de professores licenciados para as disciplinas propedêuticas e professores sem licenciatura para as disciplinas técnicas; a lacuna formativa referente à racionalidade pedagógica, aos saberes específicos da profissão docente. Nos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, bacharéis e técnicos de nível superior são selecionados para adentrarem a mata fechada do Ensino Médio Integrado sem a formação primordialmente exigida por lei, mas regulamentados por documentos que reconhecem a demanda e legitimam sua prática. Esse cenário é controverso sob diversos 2 O Art. 62 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394 de 1996) estabelece que “A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação” (BRASIL, 1996). 16 princípio educativo; (4) pesquisa como princípio educativo; (5) relação parte-totalidade na proposta curricular. A noção de formação humana integral de que trata o documento remete aos conceitos de educação politécnica, ou omnilateral, de Marx e Engels, assim como de escola unitária, de Gramsci (MOURA, 2013). Trata-se de uma perspectiva educacional que busca superar a dualidade estrutural histórica sobre a qual se estabelece a educação brasileira4. Na mesma direção, apontam o trabalho e a pesquisa como princípios educativos: trata-se aqui não do trabalho como emprego, mas como o fazer do ser humano, aquilo que ele produz tanto de material como de espiritual (cultura); o elemento mesmo que o torna humano (SAVIANI, 2003). A pesquisa se encaixa aqui como um tipo de trabalho: a produção de conhecimento. O documento defende ainda que o estudante do EMI deve ser capaz de estabelecer relações entre aspectos microscópicos e macroscópicos da realidade onde estiver inserido. Assim, num ensino médio que se pretenda integrado, importa que o currículo possibilite ao aluno relacionar aquele elemento específico que ele estuda na escola à totalidade representada pelo que ele vive, pelo que ocorre no mundo. Logo, a aprendizagem dos aspectos técnicos relacionados estritamente a uma prática profissional específica não faz sentido dentro desta proposta. A formação geral é igualmente importante, pois sem ela o aluno não tem como compreender o todo, ficando limitado aos conteúdos específicos do curso. Da mesma forma, a aprendizagem dos conteúdos da formação geral apenas tende a se perder em abstrações que não ajudam o aluno a relacioná-la com a prática. Configura-se assim um ensino enciclopédico, deslocado da realidade, no qual muitas vezes o estudante não vê sentido. É na articulação entre o pensar e o fazer, entre a teoria e a prática, que reside a essência do EMI. Alguns dos aspectos trazidos pelo Documento Base são a dualidade estrutural, a politecnia e a escola unitária. O termo dualidade indica uma dupla natureza. Nos termos deste trabalho, escrevo sobre como a educação escolar tende a manifestar essa natureza dobre, com uma proposta educacional para um grupo social e uma segunda proposta para um outro grupo. Marx já apontava esse aspecto conjuntural da universalização do ensino: A educação popular igual para todos? O que é que se imagina que esta fórmula é? Acredita-se que na atual sociedade (e apenas tratamos dela neste momento) a educação possa ser igual para todas as classes? Ou pretender-se-á forçar as classes 4 As noções de politecnia, escola unitária e dualidade estrutural serão debatidas mais adiante. 17 superiores a contentarem-se com a mesquinha educação popular das escolas primarias, educação a qual só podem ter acesso os trabalhadores assalariados bem como os camponeses, dadas as suas condições econômicas? (MARX, 2012, p. 45). O autor indica que, porquanto o todo social seja estratificado, tal estratificação se refletirá também na educação. Tecendo mais detalhes, Grabowski escreve: Assim é que a dualidade estrutural se manifestava inequivocamente nos modos de organização da produção, em que a distinção entre dirigentes e trabalhadores era bem definida, a partir das formas de divisão social e técnica do trabalho. À velha escola humanista tradicional correspondia a necessidade socialmente determinada de formar os grupos dirigentes, que não exerciam funções instrumentais. A proposta pedagógica da escola, portanto, não tinha por objetivo a formação técnico- profissional vinculada a necessidades imediatas, e sim a formação geral da personalidade e o desenvolvimento do caráter através da aquisição de hábitos de estudo, disciplina, exatidão e compostura. Já no âmbito das formas tayloristas/fordistas de organizar o trabalho capitalista no século XX, desenvolveu-se uma rede de escolas de formação profissional em diferentes níveis, paralela à rede de escolas destinadas à formação propedêutica, com a finalidade de atender às funções instrumentais inerentes às atividades práticas que decorriam da crescente diferenciação dos ramos profissionais (GRABOWSKI, 2006, p. 9-10). O trecho reproduzido acima sintetiza de maneira eficaz a dualidade estrutural de que trato aqui. Historicamente, no Brasil (não apenas, mas mantenhamos o foco), as políticas educacionais direcionaram duas vias de educação: uma, de natureza clássica, humanista, dedicada à formação dos filhos das classes dirigentes; e a outra, dedicada à formação dos filhos da classe trabalhadora. A primeira consistia (e ainda consiste) do conhecimento historicamente acumulado e socialmente validado (conhecimentos de história, filosofia, latim, etc); a segunda estava relacionada aos saberes práticos da vida profissional, ao saber fazer, ao produzir concretamente. Uma se destinava a formar dirigentes; outra, a formar subalternos. À primeira cabia ensinar a pensar, conceber, conhecer em profundidade; à segunda cabia ensinar a executar, sem maiores reflexões, sem maiores profundidades epistemológicas. Um lado era destinado a quem ordenava, para que continuasse ordenando; outro a quem obedecia, para que continuasse obedecendo. A partir do advento da Revolução Industrial, particularmente com o taylorismo/fordismo, o aprendizado de ofícios (ao menos aqueles relacionados às fábricas) deixou de estar atrelado à produção de um produto final acabado, posto que o processo de produção passou a ser fragmentado em tarefas mínimas que não apenas otimizavam o tempo de produção, como também alijavam o trabalhador do controle sobre o que produzia. O Brasil conheceu a industrialização um pouco mais tarde do que, por exemplo, os Estados Unidos e 18 os países europeus. Logo, certos aspectos dessa divisão do trabalho só se fizeram conhecer tardiamente, o que teve reflexos na organização da educação para o trabalho. Saviani explicita como essa nova organização do trabalho afeta a formação destinada ao trabalhador: Todos já ouviram falar naquela famosa frase atribuída a Adam Smith, que reconhecia ser necessária a instrução para os trabalhadores: “instrução para os trabalhadores sim, porém, em doses homeopáticas”. Significa que os trabalhadores têm de dominar aquele mínimo de conhecimentos necessários para serem eficientes no processo produtivo, mas não devem ultrapassar este limite (SAVIANI, 2003, p. 138). É contra essa política de educação empobrecida para os empobrecidos que se pensa o EMI. Integrar conhecimentos numa perspectiva que supere essa dualidade estrutural é o que pretende o currículo integrado. Conceber esse currículo justamente no ensino médio se faz necessário posto que é esta a etapa da Educação Básica em que mais fortemente se sente essa dualidade. A atual proposta de currículo para o Ensino Médio5 propedêutico acaba assumindo, como objetivo primordial, o acesso à educação superior. Ele se faz propedêutico por se colocar como preparatório para o Ensino Superior, um momento de travessia. O sucesso do ensino médio em uma dada escola é geralmente aferido pela porcentagem de concluintes que conseguiram ingressar numa graduação. E é nesse caráter propedêutico que reside a sutil perversidade da dualidade: para os filhos de famílias que podem pagar escolas de nível médio de alta qualidade, o ensino médio de fato tende a cumprir esse papel de travessia para o Ensino Superior. Por mais reducionista que seja este papel, por colocar a preparação para um exame acima da formação do sujeito, ele é cumprido a contento. Entretanto, resta aos filhos de quem não pode pagar por um ensino médio dessa natureza uma formação propedêutica insuficiente, que geralmente acaba não conduzindo à verticalização dos estudos, nem à formação do sujeito e muito menos à formação para o trabalho. Assim, as desigualdades sociais, em vez de transformadas pela escola, acabam legitimadas pela “igualdade formal que pauta a prática pedagógica [que] serve como máscara e justificação para a indiferença no que diz respeito às desigualdades reais” (BOURDIEU, 2008, p. 53). Dessa forma, ainda que o ensino médio propedêutico hoje proposto seja, com 5 Modelo segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Parecer CNE/CEB 05/2011 e Resolução CNE/CEB nº 02/2012). 21 A escola e o currículo escolar refletem os princípios do trabalho. As ciências naturais ensinam a agir sobre a natureza; as ciências sociais ensinam sobre como os homens se relacionam enquanto agem sobre a natureza (e uns sobre os outros); ler, escrever e contar foram se tornando pressupostos da vida produtiva e, portanto, elementos primordiais da educação escolar. É na medida que os estudos chegam ao nível médio que estes princípios devem começar a ser desvelados, de modo que o Ensino Médio se torne um espaço de aprendizagem sobre o trabalho e de problematização do trabalho. No capitalismo, o conhecimento é também um meio de produção. Como a sociedade capitalista pressupõe que um grupo restrito é proprietário dos meios de produção, isso se estende ao conhecimento, de modo que este passa a ser detido por aquele grupo restrito, segundo o qual o conhecimento não deve ser plenamente socializado. É neste contexto que se delineia o ensino profissionalizante (em oposição à Educação Profissional, de caráter tecnológico, politécnico): ele parte do princípio de que o trabalhador não deve ter acesso ao conhecimento de maneira plena, mas importa que ele saiba o mínimo para poder trabalhar para os detentores do capital. Portanto, não se aprofunda nas bases científicas que subsidiam seu trabalho, treinando o estudante para reproduzir determinados procedimentos sem compreendê-los bem. Nas palavras de Gramsci: A escola profissional não deve se tornar uma incubadora de pequenos monstros aridamente instruídos para um ofício, sem ideias gerais, sem cultura geral, sem alma, mas só com o olho certeiro e a mão firme. Mesmo através da cultura profissional é possível fazer que surja da criança o homem, contanto que se trate de cultura educativa e não só informativa, ou não só prática manual (GRAMSCI, 2010, p. 66- 67). Enquanto isso, à classe detentora do capital cabe uma educação científica que lhe permite compreender e transformar cada etapa do processo produtivo, e ainda manipular os trabalhadores. Numa perspectiva radicalmente crítica desse cenário, Gramsci (2010, p. 66) defende que “Também os filhos do proletariado devem ter diante de si todas as possibilidades, todos os terrenos livres para poder realizar sua própria individualidade do melhor modo possível”. É nesse sentido que se propõe a politecnia: Politecnia diz respeito ao domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas que caracterizam o processo de trabalho produtivo moderno. Está relacionada aos fundamentos das diferentes modalidades de trabalho e tem como base determinados princípios, determinados fundamentos, que devem ser garantidos pela formação politécnica. Por quê? Supõe-se que, dominando esses fundamentos, esses princípios, o trabalhador está em condições de desenvolver as diferentes modalidades de trabalho, com a compreensão do seu caráter, da sua essência. Não se 22 trata de um trabalhador adestrado para executar com perfeição determinada tarefa e que se encaixe no mercado de trabalho para desenvolver aquele tipo de habilidade. Diferentemente, trata-se de propiciar-lhe um desenvolvimento multilateral, um desenvolvimento que abarca todos os ângulos da prática produtiva na medida em que ele domina aqueles princípios que estão na base da organização da produção moderna (SAVIANI, 2003, p. 140). Uma proposta politécnica de educação possibilita que o estudante se fundamente nos conhecimentos basilares das ciências naturais, sociais, da linguagem, da cultura e da tecnologia – de modo que ele consiga transitar pelo mundo do trabalho com plasticidade e autonomia. Saviani (2003, p. 140) prossegue alertando que não se confunda politecnia com interdisciplinaridade: a primeira entende o conhecimento como uma totalidade; a segunda parte do princípio de que o conhecimento é fragmentado. O autor também chama a atenção para o fato de que politecnia é um conceito socialista. O texto propõe o seguinte questionamento: sabendo-se que o socialismo não chegou a se concretizar (tendo sido, digamos, “vencido”), faz sentido, nos dias de hoje, defender ideias marxistas? Ora, se Marx foi um teórico do capitalismo (que era a sua realidade objetiva), e não propriamente do socialismo (posto que este não chegou a existir efetivamente), reflexões de cunho socialista ainda são importantes. Enquanto o capitalismo for o modo de produção vigente, o pensamento marxista fará sentido como crítica a ele. O próximo tópico, escola unitária, se relaciona diretamente à politecnia. Refere-se ao pensamento de Antonio Gramsci a respeito de como se deve organizar uma escola única para todos, tanto filhos da classe dirigente quanto da classe trabalhadora; fundamenta-se no trabalho como princípio educativo – inclusive no tocante à educação de crianças. A escola unitária é defendida por Gramsci como uma alternativa à escola socialmente fragmentada, opondo-se a uma escolaridade dual. Segundo Farias (1995), mesmo preso pelo regime fascista italiano, Gramsci deixou registrado muito de seu pensamento em escritos pessoais e cartas trocadas com familiares. Ao tratar, nessas cartas, da educação de sua sobrinha Edméa, ele opõe disciplina e espontaneísmo7, preferindo o primeiro ao segundo8. Essa ideia de disciplina inclui, por exemplo, uma rotina de estudos de cinco a oito horas diárias, de maneira não apenas a preparar o futuro trabalhador para a sociedade industrial (que instituía uma jornada 7 Este espontaneísmo é relacionado, pela autora, à prática educativa proposta por Rousseau, no Emílio. 8 Ressalto que Gramsci não confunde espontaneísmo com espontaneidade. Para ele, inclusive, a espontaneidade é um elemento importante para a verdadeira disciplina. 23 de trabalho extensa), mas principalmente porque para que essa mesma sociedade alcançasse êxito seria necessário um “cidadão com uma sólida formação geral, sendo por excelência um cidadão disciplinado” (FARIAS, 1995, p. 144). A respeito da orientação profissional do jovem em idade escolar, o gatilho é o debate entre Gramsci e sua irmã a respeito do sobrinho Délio. Ele recomenda implicitamente que o presente a ser escolhido para Délio deve ser algo que lhe estimule as potencialidades físicas e intelectuais. Não significa que Gramsci defendia uma orientação profissional precoce, pelo contrário: significa que ele entendia ser importante desenvolver, nas crianças, o conjunto de suas potencialidades. Assim, quando chegar o momento adequado ela terá liberdade de escolher o caminho profissional que melhor lhe aprouver. Ou seja: não se trata aqui de uma escolarização dicotômica, em que os caminhos profissionais já aparecem delineados (implícita ou explicitamente) desde cedo, mas de uma escola única, unitária, igual para todos, que proporcione a todos as mesmas oportunidades de crescimento e desenvolvimento: Na concepção gramsciana, a preparação para uma profissão não significa a preparação imediata de mão-de-obra para o mercado de trabalho, ou seja, ela não se prende a uma aprendizagem técnica ou preparação mecânica. É, antes de tudo, a formação de hábitos adequados, necessários ao mundo do trabalho. Logo, não seria uma formação a ser realizada apenas dentro de um curto espaço de tempo, mas dentro de uma perspectiva que informe todo o processo educativo desde a primeira infância. Tinha Gramsci [...] o trabalho industrial como princípio educativo na escola, contudo, nunca aceitou que essa fosse uma mesquinha máquina de preparação de mão-de-obra. Sua preocupação prendia-se a uma escola que desenvolvesse harmoniosamente todas as faculdades do educando [...] (FARIAS, 1995, p. 146). Fica claro que, apesar de pensar uma educação fundamentada no trabalho, Gramsci não confundia o princípio educativo do trabalho com adestramento para o exercício de funções manuais quaisquer. Ela deveria se dedicar a construir o novo homem, o homem omnilateral, pleno de capacidades intelectuais, manuais e reflexivas, em contraponto ao homem unilateral, formado apenas para o pensamento ou apenas para a execução. A escola não deve se submeter ao bel-prazer do capitalismo (que ele distingue de industrialismo), mas não pode ser descolada da vida. Há que se levar em conta a historicidade do ser humano no momento de se pensar um projeto educacional, sob pena de se desenvolver uma escola baseada em noções transcendentes e imanentes. Em outras palavras, a escola deve ensinar que a realidade posta foi historicamente construída e, portanto, pode ser transformada. Assim, o trabalho como princípio educativo se opõe à disseminação de uma “cultura desinteressada” (descolada da vida). 26 ele próprio de ser educado”. Eis o porquê da premência de compreender a formação do professor atuante no EMI: torná-lo efetivamente uma instância de transformação social. Descritos o território e as relações de poder que nele operam, voltemo-nos para o sujeito que nos interessa compreender. Como se movimenta, dentro desse terreno tão acidentado, o professor bacharel? Que implicações pode ter a (não) compreensão dos fundamentos epistemológicos do ensino, da aprendizagem e do EMI? O que a topografia desse território deveria revelar a esses sujeitos para que se pudessem orientar em meio à mata escura? O território do EMI constitui um espaço de disputas políticas e ideológicas entre diferentes projetos de sociedade, de ser humano e de educação. Entendo que qualquer iniciativa no sentido de apontar as demandas formativas do professor atuante neste território não pode acontecer sem a devida e explícita opção por um desses projetos. Particularmente, concordo com Souza (2013) quando ele escreve: Ainda em relação aos professores da EPT, temos a clareza de que formamos homens e não mercadorias? Entendo que o papel desses profissionais vai além da simples preparação para o trabalho, para o mercado, dimensões objetivas e reais da vida social que não podem ser desconsideradas. No entanto, os fins do trabalho pedagógico pressupõem a preparação de homens e mulheres que saibam se situar na sociedade e compreendê-la, entender a economia política e a sua relação com o trabalho, com as condições materiais em que vivem, com o próprio trabalho docente que realizam. A formação docente para a EPT deve resultar, por meio do trabalho escolar, na formação de jovens capazes não somente de manipular (no sentido próprio do termo) o conhecimento que adquiriram, mas, usando esse conhecimento, possam se colocar como sujeitos autônomos e a serviço da sua própria emancipação. Eis, então, a importância de identificarmos e avaliarmos as características de formação que esses profissionais têm recebido, incluindo seus paradigmas, de maneira a pensarmos o processo de formação continuada que se impõe ao trabalhador docente no exercício de suas funções (SOUZA, 2013, p. 414). A opção que faço está de acordo, portanto, com os princípios previamente expostos de (1) superação da dualidade estrutural por meio de uma proposta educacional que una a formação do homo faber à do homo sapiens, que ensine a pensar e fazer, conceber e executar; que habilite o estudante a produzir a própria existência dentro da lógica hegemônica vigente sem, no entanto, assumi-la como dada e acabada; (2) promoção de uma educação que caminhe na direção da politecnia, munindo os estudantes da Educação Profissional dos alicerces epistemológicos que sustentam o mundo do trabalho, desde o trabalho como emprego (conforme se estabelece na categoria mercado de trabalho) até a produção cultural; (3) construir gradualmente uma escola que ofereça essa formação omnilateral tanto para o 27 filho das classes dirigentes quanto o filho das classes subalternas, juntos, aprendendo um do outro e diferenciados na medida em que seu percurso escolar e familiar demande atenções diferentes. Ao primeiro importa compreender que a realidade restrita de conforto material em que vive não é a regra, mas a exceção; importa-lhe compreender profundamente as injustiças da ordem vigente e desenvolver um senso genuíno de solidariedade – não a solidariedade superficial da “beneficência”, mas aquela que leva os seres humanos a irmanarem-se na luta por um mundo mais justo. Ao segundo importa conhecer de perto a lógica da produção da desigualdade; é de grande valia também que ambos ampliem seus horizontes pelo contato com o capital cultural um do outro, refletindo sobre a historicidade das diferentes valorações atribuídas a um e a outro e sabendo criticar os mecanismos de reprodução e reforço dessas valorações. Nesse sentido, entendo que a formação do professor para a EP deve acontecer, nas palavras de Moura (2008): [...] na perspectiva de que a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico devem estar voltados para a produção de bens e serviços que tenham a capacidade de melhorar as condições de vida dos coletivos sociais e não apenas para produzir bens de consumo para fortalecer o mercado e, em consequência, concentrar a riqueza e aumentar o fosso entre os incluídos e os excluídos. [...] Diante do exposto, podemos sintetizar alguns eixos da formação docente que devem estar presentes em quaisquer das possibilidades apresentadas ao longo do texto: formação didático-político- pedagógica; uma área de conhecimentos específicos; e diálogo constante de ambas com a sociedade em geral e com o mundo do trabalho. (MOURA, 2008, p. 35-36) O professor do EMI, licenciado, bacharel ou tecnólogo, precisa de uma profunda fundamentação científica referente à sua área; entretanto esse conhecimento não pode estar compartimentado, encaixotado, isolado: esse professor precisa estabelecer relações entre a especificidade de seu conhecimento e a globalidade do fazer social, entre a dimensão teórica de sua área de estudos e a concretude do que se pratica; entre sua disciplina, disciplinas outras e as aplicações concretas dessas disciplinas no “mundo real” – que é o mundo do trabalho. Neste sentido, penso que o professor licenciado tenha bastante a aprender com o bacharel que atuou (ou atua ainda) profissionalmente em áreas diversas antes de abraçar a docência. O professor do EMI precisa ter clareza a respeito da racionalidade pedagógica. Para um professor, pouco vale conhecer profundamente e não ser capaz de orientar seus alunos na construção desse conhecimento; pouco vale estar plenamente familiarizado com os aspectos tecnológicos e científicos do conteúdo a ser ministrado e desprezar os aspectos afetivos, 28 psicológicos e cognitivos envolvidos no longo processo que é a aprendizagem. Neste sentido, o professor bacharel tem bastante a aprender com o licenciado – alguém cuja formação acadêmica e profissional se fez tendo a docência como eixo principal. O professor do EMI precisa ter em mente a natureza política tanto da EP quanto de sua atuação nela. É urgente que cada professor compreenda a posição epistemopolítica em que se coloca ao atuar num território permeado de contradições e disputas. Ainda que não coadune com os projetos de sociedade, de ser humano e de educação que orientam a EP que ora defendo e o EMI, urge que o professor os conheça e compreenda – e que se posicione em relação a eles, assumindo toda a carga político-ideológica de seu posicionamento perante seus alunos e seus pares. É neste sentido que licenciados e bacharéis têm muito a aprender uns com os outros. Importa que os princípios da escola unitária, do trabalho e da pesquisa como princípios educativos, da politecnia, de reconhecimento e superação da dualidade estrutural estejam claros e devidamente apropriados por parte dos docentes. Machado (2011, p. 694) resume: Ou seja, o desafio da formação de professores para a EP manifesta-se de vários modos, principalmente quando se pensa nas novas necessidades e demandas político-pedagógicas dirigidas a eles: mais diálogos com o mundo do trabalho e a educação geral; práticas pedagógicas interdisciplinares e interculturais; enlaces fortes e fecundos entre tecnologia, ciência e cultura; processos de contextualização abrangentes; compreensão radical do que representa tomar o trabalho como princípio educativo; perspectiva de emancipação do educando, porquanto sujeito de direitos e da palavra. Uma vez estabelecida a perspectiva epistêmica do EMI, estabeleci o referencial teórico para o trabalho com narrativas de formação na produção científica. Este momento na construção da pesquisa foi bastante delicado, posto que eu precisei fazer algumas escolhas que não me foram simples, porto que esse aporte metodológico ainda não é. A abordagem (auto)biográfica vem se consolidando, ano após ano, sobrenomes de peso, e se fortalecendo como método e arcabouço teórico. Quem se debruça sobre esses nomes fundamentais encontra abundante material acerca do impacto das narrativas de si no processo da formação docente. Entretanto, neste trabalho, o foco não está posto no como o narrar-se afeta a reflexividade do professor bacharel, mas sim em como a compreensão de suas narrativas constitui fazer científico legítimo e relevante. Assim, direcionei a construção do referencial para pesquisadores da narrativa de si (Passeggi (2010; 2011; 2012; 2014) e Josso (2004; 31 A terceira e última seção, “Traçando caminhos”, é dedicada à compreensão sistemática de como os narradores se fizeram professores ao longo de suas trajetórias formativas. Como essa construção do eu docente se dá socialmente, analiso, em primeiro lugar, que vozes guiaram os peregrinos (numa analogia à voz do poeta mencionado na epígrafe, que se fazia ouvir através do tempo). A seguir, sistematizo os caminhos percorridos por cada sujeito em direção à e dentro da docência no EMI, numa tentativa de indicar por onde andaram. Finalmente, apresento os fatores que, no processo de biografização dos professores, constituíram as estrelas e constelações utilizadas por eles para se orientarem. A respeito de caminhos em meio ao desconhecido, Clarice Lispector (1964, p. 54) escreveu: “Foi assim que fui dando os primeiros passos no nada. Meus primeiros passos hesitantes em direção à vida e abandonando a minha vida. O pé pisou no ar, e entrei no paraíso e no inferno: no núcleo”. Assim fui dando meus passos como pesquisadora em Educação Profissional. Muitas vezes pisava sem ver o chão, tendo as vozes de teóricos e do meu orientador como guia. Eu caminhava em direção não apenas à vida acadêmica, mas também à despedida de quem eu era antes desse caminho começar. Passo a passo pude ver no núcleo de minha pesquisa não apenas os dados e os textos, mas a mim mesma, presente objetiva e subjetivamente – completa – em cada livro selecionado, em cada entrevista, em cada momento de escrita. Entendo que o fazer científico não pode fugir da subjetividade porque quem o realiza é um sujeito. Por isso, tiro proveito dessa impossibilidade e me implico. Por isso, a tranquilidade em selecionar colegas para entrevistar. Por isso disserto (e narro) em primeira pessoa. Conhecer uma pesquisa é conhecer o pesquisador. 32 2 TUDO PASSA E TUDO FICA: PARÂMETROS TEÓRICOS DA PESQUISA COM NARRATIVAS DE SI Introduzi este estudo estabelecendo um paralelo entre o professor e um caminhante. Neste paralelo, o professor licenciado é um peregrino que aprendeu a ler mapas, estrelas, bússola; foi formado, ao menos em tese, para compreender as relações entre as representações em escala e a realidade que se lhe apresenta. Já o professor sem licenciatura (aqui, o bacharel) assemelha-se ao andarilho posto em meio à mata fechada sem quaisquer recursos que o ajudem a situar-se ou mesmo a saber para onde ir. Sem estradas, sem trilhas, seu caminho será construído a partir de seus próprios passos. O caminhante de que trato neste estudo – o bacharel – tem já algum tempo de caminhada. Abriu picadas, criou trilhas, possivelmente construiu estradas. Posto em meio a um terreno desconhecido, ele aprendeu a sobreviver – encontrou meios de matar a fome e a sede, encontrou seu lugar e talvez nele se tenha encontrado. O que era um território atravessado por relações de poder históricas, macro e micropolíticas anteriores à sua chegada, agora apresenta sinais da atuação subjetiva desse caminhante. Suas turmas de EMI, para esse professor, passaram de terreno a território – seu território. Meu objeto de estudo se constitui, justamente, desses caminhos trilhados. Para compreender e registrar caminhos, faz-se necessária a concepção de um mapa. O formato de um mapa, assim como a maneira adequada de interpretá-lo, depende de diversos fatores: dentre eles, a projeção cartográfica escolhida: “Entendendo que o método cartográfico convoca a um exercício cognitivo peculiar do pesquisador, uma vez que, estando voltado para o traçado de um campo problemático, requer uma cognição muito mais capaz de inventar o mundo do que reconhecê-lo” (MOURA, HERNANDEZ, 2012). Num mapa-mundi, a projeção de Mercator parece organizada com seus ângulos retos e suas linhas paralelas, mas perde precisão por distorcer as áreas mais próximas aos polos: “A projeção de Mercator deformava o mundo em favor da Europa, criava uma imagem hegemônica nas cabeças das pessoas e permaneceu como base da visão ocidental do mundo” (SEEMAN, 2003, p. 8). A de Robinson, ovalada, ajusta um pouco as proporções, mas não o suficiente, enquanto a projeção azimutal oferece uma alternativa para a representação polar, mas a precisão é diretamente proporcional à proximidade do centro do mapa. Cada projeção 33 apresenta potencialidades e fragilidades, que deverão ser consideradas juntamente com o objetivo do geógrafo. De maneira semelhante, a seleção do aporte teórico e metodológico de uma pesquisa será ao mesmo tempo promissora e perigosa. Longe de ser um processo neutro e sem implicações subjetivas da parte do pesquisador, a eleição deste ou daquele método é sempre um ato ideológico. Sendo meu objeto o itinerário formativo do professor bacharel, minha opção teórico-metodológica recai sobre a abordagem (auto)biográfica, também conhecida como trabalho com histórias de vida, com narrativas de si, método biográfico e outras denominações dentro da atual flutuação terminológica apontada por Pineau (2006). O termo “abordagem” é utilizado por representar um arcabouço tanto de teoria quanto de metodologia. Ela incide, como diz o próprio nome, no levantamento e estudo de biografias, de histórias de vida, de narrativas de si. Essa opção, como qualquer outra, não é neutra. Também não é ponto pacífico dentro do mundo acadêmico. Há hoje diversos pesquisadores debruçados sobre a narrativa de si como instrumento tanto de construção do conhecimento quanto de formação, especialmente nos estudos em educação. Gaston Pineau, Marie-Christine Josso, Christine Delory-Momberger, António Nóvoa, Matthias Finger, Conceição Passeggi e Elizeu Clementino de Souza são alguns dos exemplos mais relevantes entre os estudos (auto)biográficos em educação. Uma parte considerável destes estudos se volta justamente para compreender e conceber processos de formação docente. Como nesta pesquisa a formação do professor bacharel por meio da narrativa de si é uma consequência esperada mas não é central, opto por recorrer a um número reduzido de autores de modo a especificar como a narrativa de si pode constituir um objeto de conhecimento científico. O trabalho com histórias de vida está, segundo Passeggi (2011, p. 20-21), ancorado em três princípios. O primeiro deles é a “construção da realidade mediante a linguagem pelo sujeito ou pelo grupo”. A linguagem (escrita ou oral) não é apenas um meio de se conhecer a realidade; é antes um elemento constitutivo dela. Entende-se, então, que não há uma história até que ela seja narrada. O segundo princípio situa a linguagem como “elemento mediador da historicidade do sujeito, mediante uma hermenêutica prática”. Este princípio concorda com a prática da escrita de si como um processo automaiêutico – trata-se se partejar a sua própria 36 Ricoeur (1994) argumenta que a ação acontece mediatizada por traços estruturais, traços simbólicos e traços temporais. Os traços estruturais dizem respeito à ação como “algo que alguém faz”, sendo que esse fazer traz motivos, agentes, circunstâncias, fins, interação (cooperativa ou competitiva) e um resultado. Mesmo no que Ricoeur (1994, p. 88) chama de “frase narrativa mínima” (“X faz A.”) há todos esses elementos e estão implicados tanto o agir quanto o sofrer a ação. Já os traços simbólicos permitem que a ação seja narrada. A mediação simbólica incide na distinção dos símbolos que embasam a ação. É em função da convenção simbólica imanente à ação que é possível interpretá-la. A convenção simbólica é o que atribui sentido ao gesto. Quanto aos traços temporais, Ricoeur (1994, p. 96) se reporta ao pensamento agostiniano e afirma: Dizendo que não há um tempo futuro, um tempo passado e um tempo presente, mas um tríplice presente, um presente das coisas futuras, um presente das coisas passadas e um presente das coisas presentes, Agostinho pôs-nos no caminho de uma investigação sobre a estrutura temporal mais primitiva da ação (RICOEUR, 1994, p. 96). Entendo, portanto, que a ação pode permear todos os três “níveis” de presente. A ação/experiência que busco analisar estará predominantemente num presente das coisas passadas. Foram ações/experiências que tiveram um sentido simbólico à época em que aconteceram e esse sentido poderá ser reconstruído no presente – esse presente das coisas passadas que é acionado no momento da narrativa. Assim, o caminho, o percurso, o itinerário formativo do professor bacharel são a imagem simbólica das experiências que se passaram a esses professores, deixando-lhes marcas na memória e na formação. São experiências passíveis de ser narradas porque permeadas de traços estruturais, simbólicos e temporais. Bosi (2004) recorre a estudos de Bergson (1999) e Halbwachs (2006) para constituir as noções relativas à memória com as quais trabalha, cada um oferecendo uma perspectiva peculiar acerca do lembrar. Bergson (1999) traz a oposição entre a memória-hábito e a memória-trabalho (imagem-lembrança). A memória-hábito está relacionada a um lembrar espontâneo, registrado integralmente, uma “memória pura” (BERGSON, 1999, p. 179) à qual a mente não pode transformar porque não a alcança plenamente. Já a memória-trabalho, a lembrança aprendida, traz à tona da consciência um momento único, singular, não repetido, irreversível, da vida. Traz à tona a experiência e se faz, ela mesma, experiência. É neste segundo olhar sobre a memória que me apoio. 37 Já Halbwachs (2006) evidencia que a memória tem um estofo social. A memória do indivíduo depende de seu relacionamento com o outro (com a família, com a classe social, com a escola, com a igreja, com seus colegas de trabalho – no caso deste estudo, com seus alunos), com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo. Existe um caráter social da memória. O ato de lembrar ocorre pela reatualização social do vivido. Assim, por subjetiva que seja a narrativa, ela fará sempre referência a um entorno social do narrador, tanto referente ao momento que é narrado quando ao momento em que se narra. Fica claro, portanto, como uma narrativa indica um recorte e uma síntese da realidade social mais ampla. É justamente essa narrativa das experiências de vida e formação em direção à docência11 que elejo para ter acesso a elas. Não há como ter acesso ao passado. Entretanto, via memória e narrativa, é possível vislumbrar o caráter temporal da passagem dos transeuntes pelo chão da alma do professor bacharel, tomando como parâmetro a experiência como algo que deixa marcas no sujeito. Importa, para assumir a narrativa como material científico para a pesquisa da formação docente, compreender: (1) a natureza da narrativa, (2) o potencial epistemológico da narrativa e (3) que opções metodológicas faço nesta investigação 2.1 A NATUREZA DA NARRATIVA “Narrar é humano!”, anuncia Passeggi (2011, p. 103). Trata-se de um princípio antropológico, de um traço que faz parte do ser gente. Daí surge já um desafio: saber tratar de um ato tão próximo a nós, tão inerente, tão antigo em nós quanto a própria linguagem, de modo que se torna banal e difícil de analisar. Por isso, para tratar da natureza da narrativa, eu me distancio e recorro a vozes outras para proceder à explanação. A narrativa recorre à memória do passado a partir do presente: “a memória parte do presente, de um presente ávido pelo passado” (BOSI, 2003, p. 20). À primeira vista (ou à primeira escuta), o passado impera na narrativa. Entretanto, é o presente que a articula, é do 11 Entendo a docência não como um destino pronto, definido e acabado aonde se chega repentinamente. Entendo-a como uma prática profissional atravessada por toda uma complexa teia de fatores subjetivos. Desta forma, o tornar-se professor não se reduz a assumir um cargo ou uma turma, mas se refere a um processo de construção subjetiva. 38 presente que se narra, é do contexto “atual” que se lança atrás a mirada sensível necessária ao fazer autobiográfico. O presente é determinante dos rumos que o narrador dará ao vivido – ou, para usar a expressão de Ricoeur (1994), o presente é o articulador da “tessitura da intriga”, incidindo diretamente sobre a figura que surgirá no “tecido”. No mesmo sentido, Bergson (1999) afirma que: Para que uma lembrança reapareça à consciência, é preciso com efeito que ela desça das alturas da memória pura até o ponto preciso onde se realiza a ação. Em outras palavras, é do presente que parte o apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos sensório-motores da ação presente que a lembrança retira o calor que lhe confere vida (BERGSON, 1999, p. 179). Fica claro, portanto, que, apesar de parecer totalmente imerso no passado, o sujeito que recorda lança seu olhar de onde está no momento da recordação. É o contexto em que está inserido durante o ato de lembrar que delineia a forma como o vivido será lembrado e narrado. O presente é a âncora da lembrança. Nessa tessitura da intriga, a narrativa é fundante de sua própria temporalidade. O tempo do relógio e do calendário se desfaz e se refaz no tempo organizado pelo narrador: “A narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer [...], mas a de sua lembrança. A narração também funda uma temporalidade que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar” (SARLO, 2007, p. 25). Para Sarlo (2007), a relação entre o vivido e o narrado (também denominados por Delory-Momberger (2008) de “fato biográfico” e “biografização”, respectivamente) é tão estreita que “não há experiência sem narração” (SARLO, 2007, p. 24). A experiência humana acontece mediatizada pelo campo do simbólico, de modo que não apenas pode ser narrada, mas, na dinâmica social, tende a ser narrada. A narração também torna o tempo em tempo humano, como afirma Bosi (2003: O tempo não flui uniformemente, o homem tornou o tempo humano em cada sociedade. Cada classe o vive diferentemente, assim como cada pessoa. Existe a noite serena da criança, a noite profunda e breve do trabalhador, a noite infinita do doente, a noite pontilhada do perseguido (BOSI, 2003, p. 53). Esses tempos se distinguem em meio a duas instâncias inter-relacionadas: no campo da ação (ou do fato biográfico), há, como foi mencionado anteriormente, um simbolismo implícito, imanente; na narrativa (ou na biografização), o simbolismo se torna explícito, autônomo, pois passa ao domínio não mais da ação, mas da linguagem. Nesse “vaivém” simbólico da experiência, tem-se como resultado que “qualquer relato da experiência é 41 numa narração convencional, sobre a qual se exerce a pressão de um conhecimento construído no presente” (SARLO, 2007, p. 57). Assim, o professor estará falando do alto de seu tempo de experiência no EMI. Sua caminhada já lhe terá permitido traçar reflexões acerca de seu processo formativo, das implicações pedagógicas da sua formação acadêmica como bacharel e não como licenciado. Talvez ele tenha chegado à conclusão de que a licenciatura não lhe tenha feito falta; é possível que se ressinta das poucas instâncias de formação oferecidas pela instituição12; quem sabe ele sequer perceba a relevância de um estudo desta natureza; quiçá ainda tenha se identificado com o fazer docente a ponto de buscar espaços formativos extra-institucionais ou amparo de colegas professores e pedagogos. Seja como for, terá sua memória apoiada na história vivida: história concebida não como “uma sucessão cronológica de acontecimentos e de datas, mas tudo aquilo que faz com que um período se distinga dos outros” (HALBWACHS, 1968, p. 41). Os narradores saberão, certamente, que sua entrevistadora é licenciada em Letras, professora de Língua Inglesa e engajada no debate político-pedagógico da instituição, e também que está registrando sua narrativa para uma pesquisa acadêmica. É desse lugar que esses professores vão biografar suas experiências. É desse presente das coisas presentes e futuras que eles vão se lançar ao presente das coisas passadas. É nessa situação atual que eles vão mobilizar sua imaginação para que seja capaz de configurar o que viveram de modo que tenhamos um relato passível de interpretação. Seus testemunhos serão cheios de “impurezas”. Entretanto, a impureza do testemunho e sua trama anacrônica não são uma fatalidade inescapável, mas um recurso que contribui para tornar a experiência cognoscível (SARLO, 2007, p. 60). Para discorrer sobre o potencial epistemológico da narrativa de si e do trabalho com (auto)biografias, faz-se necessário situar historicamente essa perspectiva, por tratar-se de um posicionamento epistemo-político marginal. Muitos estudiosos têm sido ousados o suficiente para apontar as fragilidades do pensamento científico tradicional, que rejeita a validade de conhecimentos que não lhe pareçam objetivos o suficiente. Diversas vozes têm dado sua contribuição para a contestação do paradigma epistemológico hegemônico dentro da pesquisa 12 Por parte do IFRN, houve quatro edições da especialização em PROEJA e uma em Educação Profissional. Entretanto, não se pode afirmar que essas instâncias fossem suficientes nem que tenha havido a responsabilização dos professores quanto à sua participação nelas. 42 social. Faço aqui uma opção de ordem prática por uma obra em particular, que passo a comentar a seguir. Em 1985, na Universidade de Coimbra, Boaventura de Souza Santos proferiu “Um discurso sobre as ciências”, posteriormente ampliado e publicado em 1987. Nele, o pesquisador estabelece reflexões inquietantes a respeito do fazer científico que ele intitula paradigma dominante. Trata-se de um paradigma científico que nasce das ciências da natureza a partir do século XVI e que, com a necessidade de se distinguir do pensamento religioso, estabelece para si limites que por um lado o libertam do grilhão gnosiológico da Igreja e por outro o aprisionam dentro de si mesmo. Para esse paradigma há dois tipos de conhecimento irracional (não científico) contra os quais a “verdadeira ciência” deve se proteger a todo custo: um é o senso comum. O outro – vejam só – são as humanidades. A ciência se opõe ao senso comum como opõe a natureza ao ser humano, gerando relações dicotômicas que afetam profundamente o fazer científico (por exemplo, a dicotomia entre sujeito e objeto, observador e observado, quantificação e qualificação). Ironicamente, enquanto os primeiros representantes desse paradigma (como Galileu) encamparam “uma luta apaixonada contra todas as formas de dogmatismo e de autoridade” (SANTOS, 1995, p. 12), seus representantes seguintes fazem-no assumir um caráter totalitário por negar a racionalidade de qualquer forma de conhecimento fora do seu próprio crivo. Por ser um modo de fazer ciência cuja linguagem fundamental é a linguagem matemática, não leva em consideração conhecimentos que não sejam passíveis de quantificação. Ou seja, para esse paradigma: [...] conhecer significa quantificar. O rigor científico afere-se pelo rigor das medições. As qualidades intrínsecas do objeto são, por assim dizer, desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as quantidades em que eventualmente se podem traduzir. O que não é quantificável é cientificamente irrelevante (SANTOS, 1995, p. 15). Logo, dentro do paradigma hegemônico, a própria natureza da pesquisa qualitativa a torna menos digna de se chamar ciência. A validade das próprias Ciências Sociais é posta em cheque. Afinal, já que a ciência se opõe ao senso comum na mesma lógica que opõe natureza e ser humano, a natureza constitui um objeto de estudos intrinsecamente legítimo. O ser humano, nem tanto. 43 Além do caráter quantificador, o paradigma dominante procura, em todo o conhecimento que produz, aspectos nomotéticos. Há que se fazer ciência para entender como a natureza funciona; portanto, seu objetivo último é descobrir e compilar as leis que regem a natureza, o universo. A nomotetia privilegia a maneira como as coisas funcionam, relegando a segundo plano (ou a plano nenhum) o agente das coisas e o fim das coisas. Uma ciência nomotética “tem como pressuposto metateórico a ideia de ordem e estabilidade do mundo, a ideia de que o passado se repete no futuro” (SANTOS, 1995, p. 17). Esse paradigma, para Santos, é compatível com o ideário da burguesia que ascende ao poder e nele se consolida também à medida que o próprio paradigma se constrói e solidifica: No plano social, é esse também o horizonte cognitivo mais adequado aos interesses da burguesia ascendente que via na sociedade em que começava a dominar o estádio final da evolução da humanidade (o estado positivo de Comte; a sociedade industrial de Spencer; a solidariedade orgânica de Durkheim). Daí que o prestígio de Newton e das leis simples a que reduzia toda a complexidade da ordem cósmica tenham convertido a ciência moderna no modelo de racionalidade hegemónica que a pouco e pouco transbordou do estudo da natureza para o estudo da sociedade. Tal como foi possível descobrir as leis da natureza, seria igualmente possível descobrir as leis da sociedade (SANTOS, 1995, p. 17-18). Como é possível ver, a neutralidade que o paradigma dominante conclama para si não passa de uma ilusão: sendo a ciência um construto do ser humano (um animal político), por mais que este tente embasá-la numa absoluta racionalidade ela será sempre atravessada por perspectivas ideológicas. A ciência não é, nunca foi e não pode ser neutra. O pesquisador precisa estar ciente disso, aceitar isso e ser claro a respeito de suas próprias orientações. À medida que se começa a esbarrar nos limites desse paradigma, estes passam a ser questionados. O primeiro grande golpe sofrido veio de dentro do estudo da natureza por excelência – a Física. Einstein, ao trazer à tona a relatividade da simultaneidade, pôs às vistas também a arbitrariedade presente no trabalho do cientista. Santos (1995, p. 25) afirma que “não havendo simultaneidade universal, o tempo e o espaço absolutos de Newton deixam de existir”. Se Einstein levanta um questionamento de proporções astronômicas, outro golpe, desferido por Heisenberg e Bohr, surge no nível da microfísica. Os referidos cientistas demonstraram não ser possível analisar um objeto sem que a mera presença do observador afete esse objeto. Portanto, o resultado de uma análise não pode ser exatamente equivalente ao que havia antes de a análise acontecer. “Não conhecemos do real senão a nossa intervenção 46 Sociologia ela é tratada ora com desconfiança, ora com acatamento. Por exemplo, Pierre Bourdieu defendeu a “ilusão biográfica”, para, no fim da vida, passar por uma “conversão biográfica” (PASSEGGI, 2014). Hoje, a “sedução biográfica” (PASSEGGI, 2010) tem conquistado cada vez mais adeptos dentro do cenário da pesquisa em educação, em especial na formação de professores. Debruçar-nos-emos a seguir sobre o percurso que a narrativa vem fazendo desde “fora” (como domínio da literatura), passando pelas margens da pesquisa social e hoje em direção a uma legitimidade mais amplamente reconhecida. 2.2 A ABORDAGEM (AUTO)BIOGRÁFICA Na década de 1950, Franco Ferrarotti (2010) se debruçava sobre o material biográfico numa tentativa de preencher as lacunas que ele percebia no modelo vigente de se fazer pesquisa social. Deu-se conta de que a biografia tem um caráter sintético que lhe pareceu relevante. Entretanto, rondava a biografia um certo “perigo literário”, uma noção de que um texto biográfico não era digno de confiança como parâmetro de conhecimento da verdade. Afinal, onde acabaria o “fato” e começaria a ficção (do latim fictione, fingimento) do relato? Essa resistência ao uso de material biográfico em sua plenitude heurística motivou o sociólogo a buscar mais respaldo epistemológico. Dessa busca, resultaram algumas obras e a noção de que uma biografia representa um recorte de um todo social. Nos anos de 1980, o interesse das Ciências Sociais pelo biográfico promove o que Ferrarotti chamou de “revival” (2010, p. 33), a “guinada subjetiva” (SARLO, 2007, p. 18). Esse retorno à narrativa é justificado pelo autor por duas razões. A primeira é a necessidade de renovação metodológica nas Ciências Sociais. Os pesquisadores começam a questionar a objetividade absoluta pretendida, assim como a intencionalidade nomotética do paradigma hegemônico. O sociólogo estava à beira de tornar-se um “engenheiro social”, tal era a preocupação com o enquadramento das Ciências Sociais nas Ciências da Natureza. A objetividade seria produto de um desejado distanciamento, mas esse distanciamento incorria na objetificação do ser social, de modo que as pesquisas não abordavam as partes mais profundas da vida social. A própria exigência de descoberta de “leis sociais” era questionada. 47 A segunda razão foi a exigência de uma “nova antropologia do concreto” (FERRAROTTI, 2010, p. 35): A sociologia clássica é impotente para compreender e satisfazer essa necessidade de uma hermenêutica social do campo psicológico individual. Propõe correlações constantes e gerais, em que seriam necessárias pontes que ligassem a historicidade absoluta de um ato à generalidade de uma estrutura. [...] Ora, a biografia que se torna instrumento sociológico parece poder vir a assegurar essa mediação do ato à estrutura, de uma história individual à história social (FERRAROTTI, 2010, p. 35). A biografia assim trabalhada poderia preencher lacunas teóricas entre os domínios social e psicológico, articulando-os. Essa articulação viria ao encontro de diversos anseios epistemológicos nas Ciências Sociais, e mesmo na psiquiatria, na psicologia e a psicanálise. Elementos jurídicos, políticos e historiográficos também se voltaram para a figura do narrador em primeira pessoa. Para Sarlo (2007), o caráter de verdade atribuído à narrativa autobiográfica está relacionado à dívida de escuta e reparação para com vítimas de regimes totalitários, desde refugiados da I Guerra Mundial até os torturados e filhos de desaparecidos durante as ditaduras de extrema direita na América Latina (a autora se concentra no caso argentino), passando pelo Holocausto. O testemunho se torna um recurso de reconstituição do passado moralmente difícil de ignorar. Nesse contexto, passa a ganhar força o chamado “método biográfico”. O método biográfico tornou-se uma “aposta científica” com certos aspectos polêmicos, como cabe a todo paradigma emergente. A subjetividade passava a ganhar ares de conhecimento, e o método biográfico estava situado “para além de toda a metodologia quantitativa e experimental” (FERRAROTTI, 2010, p. 36). Nesse cabo-de-guerra científico, por vezes vencia uma visão objetivista e reducionista do método, reduzindo-o à mera compilação de material biográfico. Em tais casos, quebrava-se a unicidade sintética da biografia e se eliminava sua autonomia heurística: “Utilizam-se as biografias ‘para saber’, insiste-se em não as considerar como um saber organizado, mas crítico, que é preciso aprender a decifrar” (FERRAROTTI, 2010, p. 37). O empobrecimento epistemológico do método biográfico leva-o ainda ao patamar de mero caso, ilustração ou exemplo. Ora, o uso do concreto como mero exemplo implica uma perspectiva epistemológica formalista, que só reconhece o conhecimento generalizável – ou seja, retorna-se à busca de um caráter nomotético da pesquisa social. Em síntese, , tinha-se que aquilo que a biografia tem de mais rico se tornava um obstáculo à pesquisa. 48 Consequentemente, a abordagem das biografias foi se curvando à lógica quantitativa, de amostragem, colocando a qualidade do material em segundo plano. Os materiais biográficos secundários – “correspondências, fotografias, narrativas e testemunhos escritos, documentos oficiais, processos verbais, recortes de jornal, etc” (FERRAROTTI, 2010, p. 43) – ganham primazia sobre os primários (narrativas autobiográficas coletadas pelo próprio investigador). O método biográfico, para Ferrarotti, tem uma especificidade que precisa ser conhecida profundamente sob pena de se cair nas armadilhas previamente enumeradas. Cada biografização é prenhe de uma profunda historicidade. Por isso o método biográfico “tradicional” (arraigado ainda no paradigma epistêmico hegemônico) prefere o material biográfico secundário e tende a rejeitar ou diminuir o primário. Ferrarotti (2010, p. 43) defende que se caminhe na contramão dessa lógica. Ao abraçarmos o material biográfico primário podemos trabalhar com sua “subjetividade explosiva” e a “pregnância do sujeito” que lhe é peculiar. A subjetividade inerente à autobiografia pode se tornar conhecimento científico à medida que: Todas as narrações autobiográficas relatam, segundo um corte horizontal ou vertical, uma práxis humana. Ora se “a essência do homem [...] é, na sua realidade, o conjunto das relações sociais” (Marx, VIª Tese de Feuerbach), toda a práxis humana é atividade sintética, totalização ativa de todo um contexto social. Uma vida é uma práxis que se apropria das relações sociais (as estruturas sociais) interiorizando-as e voltando a traduzi-las em estruturas psicológicas por meio de sua atividade desestruturante-reestruturante (FERRAROTTI, 2010, p. 44, grifos do autor). Toda narrativa autobiográfica recorta uma práxis humana; toda práxis humana sintetiza as estruturas sociais circundantes. O ser humano não “reflete” o social: ele o mediatiza, apropria-se dele, filtra-o, sintetiza-o ativamente. Eis a noção que Ferrarotti chama de “universal singular” (FERRAROTTI, 2010, p. 45). O indivíduo “não fundamenta o social; ele é o produto sofisticado do social” (FERRAROTTI, 2014, p. 85). Se é relevante que se interprete uma sociedade por meio de uma biografia, faz-se necessário, primeiramente, legitimar o valor heurístico de toda biografia bem tratada, conservando sua especificidade epistemológica. A biografia revela uma microrrelação social: o narrador biografa para alguém, ainda que para um si mesmo, num exercício de distanciamento. No caso da entrevista biográfica, por exemplo, o pesquisador precisa parar de 51 segue um esquema autogerador ancorado em três características principais: textura detalhada, fixação de relevância e fechamento da Gestalt (da totalidade narrativa). A textura detalhada consiste na teia de detalhes apresentados pelo narrador (também chamado de informante) para que sua história flua de um acontecimento ao outro de maneira que faça sentido para seu ouvinte (no caso, o entrevistador). A fixação de relevância é o registro feito pelo narrador daqueles aspectos que ele considera centrais na história contada. A explicação dos acontecimentos é necessariamente seletiva. Ela se desdobra ao redor de centros temáticos que refletem o que o narrador considera importante. Estes temas representam sua estrutura de relevância. Já o fechamento da Gestalt diz respeito ao momento em que a narrativa atinge sua totalidade. A entrevista narrativa consiste numa transgressão metodológica em relação à entrevista estruturada, baseada no esquema pergunta-resposta e centrada totalmente no entrevistador. A entrevista narrativa pressupõe uma atuação restrita por parte do entrevistador, de modo a deixar o entrevistado o mais à vontade possível. Entende-se que é na perspectiva livre do entrevistado que melhor se dará a conhecer o que ele tem a contar. Obviamente não há como se eliminar o pesquisador desse esquema, mas ao contrário do cenário controlado pelo pesquisador (que compõe a entrevista estruturada), na entrevista narrativa, ele busca interferir o mínimo possível no rumo da narrativa: Como técnica de entrevista, a EN consiste em uma série de regras sobre: como ativar o esquema da história; como provocar narrações dos informantes; e como, uma vez começada a narrativa, conservar a narração andando através da mobilização do esquema autogerador. A história se desenvolve a partir de acontecimentos reais, uma expectativa do público e as manipulações formais dentro do ambiente (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2002, p. 96). Em outras palavras, o entrevistador age como uma espécie de animador da narrativa em curso, oferecendo a pergunta inicial que fará o narrador dar início à sua história e posteriormente indagando-o a respeito dos desdobramentos do narrado. Entretanto, apesar de enumerar diversas “regras”, os autores deixam bastante claro que “A função destas regras não é tanto encorajar uma adesão cega, mas oferecer guia e orientação para o entrevistador, a fim de fazer com que seja uma narração rica sobre um tópico de interesse, evitando os perigos do esquema pergunta-resposta de entrevista” (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2002, p. 96). 52 Um outro estudioso que me lança luz sobre o processo da entrevista narrativa é Bertaux (2010), embora com algumas ressalvas. No âmbito teórico, ele assume posicionamentos em relação ao relato autobiográfico que diferem dos que eu assumo aqui. Bertaux busca entender o entorno social imediato (etnografia) com o objetivo de estabelecer ou encontrar relações nomotéticas. Trata a narrativa na perspectiva que Ferrarotti chamou de reducionista, diminuindo o relato a apenas mais um material de apoio. Apesar desse posicionamento teórico divergente, Bertaux oferece um guia de como proceder com a entrevista narrativa que é bastante esclarecedora. Orienta a estabelecer o contexto social da entrevista, dá sugestões de como ajudar o entrevistado a assumir o papel de narrador, tranquiliza o pesquisador a respeito da dimensão do imprevisível. É nessas orientações que eu ponho o foco. Tomando estas orientações por bússola, parti em busca de selecionar meus entrevistados (os caminhantes, segundo a metáfora que utilizei a partir da obra de Antonio Machado). Por trabalhar diretamente com diversos professores bacharéis que trabalham no Ensino Médio Integrado, passei a observá-los com mais atenção e a refletir acerca de quais deles poderiam ser eleitos informantes (afinal, são dezenas de colegas). Santos (1995, p. 50) afirma que “a distância epistemológica entre sujeito e objeto deve se articular metodologicamente com a distância empírica entre sujeito e objeto”. Tendo eu tantos colegas que eu poderia entrevistar, não me pareceu vantajoso nem pertinente ir buscar informantes em um outro campus a pretexto de um distanciamento entre mim e eles. Se eu estou situada em um contexto sócio-histórico que me privilegia com uma variedade de informantes que, por seu vínculo comigo, estariam dispostos a me contar suas histórias de vida a caminho da docência, por que eu deveria dar início a um longo e desgastante trabalho de visita e sensibilização de professores para quem eu seria uma completa estranha? Por outro lado, eu tinha a opção, dentro do campus no qual trabalho, de fazer um recorte por curso de atuação. Como, desde minha chegada à escola, trabalho diretamente com o curso Técnico de Nível Médio em Informática, julguei proveitoso voltar minhas buscas por informantes em outro curso, aquele no qual eu não atuo (Técnico de Nível Médio em Mecatrônica). Julguei esta escolha proveitosa em dois sentidos. O primeiro diz respeito ao distanciamento empírico entre mim e esses colegas: tínhamos proximidade suficiente para que 53 eles não me vissem como uma estranha que lhes queria roubar o tempo, mas também não tínhamos, em geral, tido um convívio profissional em que essa proximidade parecesse ameaçadora (com alguns deles eu nunca tive alunos em comum; com nenhum houve ocasião de uma discussão mais acalorada em alguma reunião que o fizesse ter uma postura defensiva em relação ao meu convite, por exemplo). Além disso, o curso Técnico em Mecatrônica do IFRN tem algumas peculiaridades que o tornam interessante para a constituição do locus desta pesquisa. Em primeiro lugar, trata-se do único curso de nível médio nessa área no estado, o que lhe confere um caráter privilegiado de pioneirismo. Em segundo lugar, o período de conclusão desta pesquisa coincide com o período em que se formaram as duas primeiras turmas de EMI em Mecatrônica, de modo que este trabalho tem potencial para contribuir para a avaliação institucional do curso. Minha primeira providência após estabelecer esse recorte foi preparar um termo de consentimento livre e esclarecido convidando o professor a se tornar colaborador da pesquisa. O termo alertava o professor tanto a respeito dos benefícios da entrevista narrativa quanto dos riscos inerentes. O termo de consentimento também deixava claro o tratamento que seria dado ao material narrativo disponibilizado na entrevista. Deixei claro para o entrevistado que a transcrição da entrevista seria feita por mim em forma de “texto corrido”, com a supressão da minha voz de entrevistadora. Esse texto resultante seria encaminhado ao próprio entrevistado para leitura, conferência e alterações (acréscimos, retiradas ou modificações nas nuances de sentido). Assim, o entrevistado seria o dono último da narrativa escrita final. Essa sim, uma vez devidamente lida e autorizada pelo colaborador, construiria o material de análise. Optei por proceder assim por três razões. Primeiro por acreditar que seria mais fácil conseguir entrevistas orais que a escrita de autobiografias educativas. Em segundo lugar, porque Bosi (2003) alerta o pesquisador que trabalha com memória a sempre devolver o material escrito para o memorialista para que ele seja parte integrante do processo de construção do texto final. Finalmente, pelo encanto que um outro trabalho da mesma autora (BOSI, 2004) me despertou desde que iniciei meus estudos sobre narrativa de si: nele, os testemunhos de cada colaborador se apresentavam como um texto corrido, embora no texto a 56 o sujeito se apropria da realidade, mediatiza-a e a sintetiza, desaguando no “universal singular”; (2) importa legitimar o valor heurístico de toda biografia adequadamente tratada (ou seja, com suas especificidades epistemológicas conservadas). Restabelecendo uma relação metafórica entre métodos e projeções cartográficas, comparo o paradigma epistemológico dominante à projeção de Mercator: profundamente difundida, eurocêntrica, distorce as áreas (aumentando-as) na medida do distanciamento do equador. Esta distorção, por vezes, passa despercebida do leitor pela “naturalidade” que o uso hegemônico desta projeção lhe conferiu ao longo do tempo. Também é uma projeção cujo mapa resultante dá ao leitor a sensação de organização e precisão por causa da representação dos meridianos e paralelos de maneira equidistante com linhas e ângulos retos. São elementos representativos do paradigma positivista: objetividade, nomotetia, clareza, organização – o padrão a ser seguido. Também é possível comparar, dentro do paradigma emergente, a projeção azimutal com a abordagem (auto)biográfica. No centro da projeção, está o sujeito, representado por sua narrativa. O sujeito é o ponto de referência; é a partir do que ele conta, de como ele conta que se fará a leitura hermenêutica da realidade que o narrador sintetiza. Assim, deixo claro meu posicionamento epistemopolítico: pela valorização do professor como sujeito de sua própria formação, dono de sua história; pela aceitação da implicação de mim como pesquisadora e colega nas entrevistas; a este respeito, pelo reconhecimento da pregnância subjetiva e da subjetividade explosiva como características que enriquecem a pesquisa; pelo tratamento da narrativa com respeito e cuidado pelo seu potencial heurístico, levando em consideração a grande contribuição de um tratamento assim para a concepção de políticas efetivas para a formação docente de professores sem licenciatura atuantes no Ensino Médio Integrado; pela escuta sensível das histórias de vida de sujeitos muitas vezes tratados como um “problema a ser resolvido”; por um cuidado crescente com a formação docente para a Educação Profissional. 57 3 VERSO A VERSO: ANÁLISE HERMENÊUTICA DAS NARRATIVAS DE FORMAÇÃO O itinerário do caminhante sem mapas vai sendo estabelecido a cada passo dado. O peregrino vai escolhendo suas direções a partir das condições que lhe estão à disposição. Percorrida já uma parte da caminhada, voltar a vista atrás via exercício de rememoração permite que o vivido seja configurado no processo narrativo. O narrar(-se) proporciona ao caminhante um distanciamento em relação ao caminho trilhado que o permite compreendê-lo melhor. Além disso, o material narrativo, pela sua propriedade de tecer sentidos, permite que o vivido, representado no tecido final, seja conhecido e compreendido. Este trecho de minha pesquisa é dedicado a compreender as trajetórias dos caminhantes por meio do que a trama do tecido narrativo revela. Aqui, os caminhantes fazem uma parada para voltarem a vista atrás e contarem sobre o que veem, passando de caminhantes a narradores. Para isso, lanço mão do exercício de compreensão proposto por Ricoeur (1990). Ao propor um trabalho de análise hermenêutica de narrativas de si estou assumindo compromissos epistemopolíticos que deixei claros na seção anterior. Reitero que, sendo o presente a âncora da lembrança, temos em questão mais de um “presente” na elaboração das narrativas de formação. A entrevista é o ponto de partida primordial para este estudo. Entretanto, de minha parte há, posteriormente, o momento de transcrição das entrevistas como também um presente de onde volto o pensamento para o instante da entrevista (que já passa a ser um presente das coisas passadas). A seguir, cada entrevistado tem no momento de leitura e edição de sua narrativa um outro apoio. Esclareço ainda que a entrevista constitui o fundamento primordial neste estudo porque não necessariamente este foi a primeira vez em que cada narrador contou sua história ou partes dela. Se não há experiência sem narração, não posso afirmar que é, na entrevista, que o vivido por cada professor é convertido em experiência, posto que possivelmente esse vivido já fora narrado anteriormente. O presente da interpretação das narrativas também constitui o ponto de partida dos sentidos construídos no processo de análise. A pesquisadora que narra e disserta sobre suas 58 descobertas e deduções está tão evidente nelas quanto os próprios caminhantes. Nas palavras de Ricoeur (1990, p. 18), todo exercício de interpretação hermenêutica consiste na “compreensão de si mesmo através do desvio da compreensão do outro”. Diante do material abundante para análise (as narrativas escritas totalizavam mais de sessenta páginas), optei por um procedimento que uniu possibilidade cronológica e profundidade epistemológica. Elegi uma das cinco narrativas de formação e fiz sua análise em primeiro lugar. A partir dos elementos revelados no processo de desconstrução do texto, as demais narrativas foram evocadas e articuladas àquela primeira narrativa. Uma estrada analisada serve de esteio para compreender os caminhos comuns a outras. Os professores narradores tiveram a oportunidade de escolher os nomes pelos quais seriam identificados. Alguns optaram por deixar a meu cargo a escolha do pseudônimo. Assim, nossos caminhantes estão nomeados da seguinte forma: Olívia (professora da instituição há três anos, tendo iniciado sua vida docente no próprio IFRN), Adriana (também com três anos de IFRN, além de um ano no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba, o IFPB), Eduardo (professor do IFRN há 9 anos, com extensa experiência docente na EB antes de seu ingresso nesta instituição. No entanto, só assumiu turmas de EMI dentro do IFRN), Xavier (com três anos de instituição e de docência) e Ricardo (professor há nove anos, tendo iniciado sua caminhada na docência também no IFRN). Os cinco estavam lotados, durante a realização do estudo, no campus Parnamirim e atuavam no curso técnico integrado em Mecatrônica. A primeira narrativa é a do professor Ricardo, engenheiro mecânico, professor do IFRN e policial civil. Escolheu começar a sua história a partir de um constrangimento que passou na oitava série e narrou ainda outros, evidenciando que além de ser tímido por natureza, outros elementos contribuíram para que sua timidez aumentasse e para que sua afinidade com as Ciências Exatas se combinasse com uma repulsa por Ciências Humanas. Os números lhe davam segurança para se expressar sem medo. Na UFRN, durante o curso de Engenharia Mecânica, casou e teve sua primeira filha, de modo que seus planos acadêmicos de pós-graduação perderam prioridade para a necessidade prática de sustento da família, primeiramente como bolsista de iniciação científica e depois como policial civil. Ele soube, por acaso, do concurso para professores do 61 está indo”. Passa, inclusive, a contestar opiniões do irmão-guia: a exclamação “isso não é justo!” marca, no texto, sua recém-conquistada autonomia. A partir daí a narradora vai se apropriando do lugar da docência até transformá-lo em seu território. Uma narrativa construída de maneira um tanto peculiar em relação às demais é a do professor Eduardo. Ele tem uma formação que parece, a princípio, ambivalente: é bacharel em Engenharia Elétrica (à semelhança de Olívia e Xavier) e também licenciado em Física. Entretanto, à medida que ele conta sua história, vai evidenciando que sua formação para a docência se deu de maneira emergencial e aligeirada, de modo que Eduardo não se sentiu “tocado” por esse processo formativo num âmbito subjetivo mais profundo. Sob o ponto de vista de Larrosa (2006), é como se essa formação docente de Eduardo não tivesse constituído para ele uma experiência de fato. O professor Eduardo tem uma relação afetiva muito forte com a docência. Narra-se como uma pessoa curiosa que: sempre havia gostado muito de estudar e aprender; trabalhava muito; superou as dificuldades com muita serenidade; dava aulas melhor que seus professores (quando monitor de Física da então ETFRN); conduzia práticas de laboratório (quando técnico de laboratório numa universidade privada) com muito mais desenvoltura do que os professores da instituição; chegava até a assumir o lugar de colegas de outras áreas (ainda nessa universidade) em palestras quando eles faltavam; não precisou fazer todo o curso de formação docente porque fora informalmente dispensado pelos professores de algumas disciplinas; não precisava sequer de planejamento para ministrar suas aulas. Eduardo começou a dar aulas de reforço ainda na adolescência, em busca de sua primeira fonte de renda. Mesmo afeito às atividades de ensino, optou por um bacharelado em vez de uma licenciatura por temer que seu futuro profissional ficasse “engessado”: uma engenharia lhe daria mais opções profissionais, inclusive a docência (trata-se aqui de um momento histórico anterior à exigência efetiva de licença para atuação docente nos Ensinos Fundamental e Médio). Ingressou num curso de formação docente por força de lei, mas sem engajamento subjetivo, sem acreditar que aquele processo formativo fosse de fato importante. Ele conta que a universidade privada onde ele trabalhava como técnico de laboratório “criou um programa chamado Programa de Formação Docente. Traduzindo em boas palavras, ela abriu todas as licenciaturas em todas as áreas de uma vez só. Ela já tinha algumas e abriu 62 em todas”. O curso em questão “era um programa especial de formação docente, e não uma licenciatura comum, esse curso era oferecido em condições especiais. Por exemplo: quinta e sexta à noite e sábado de manhã”. O Programa de Formação Docente da referida universidade funcionava da seguinte forma: as disciplinas relacionadas aos saberes pedagógicos eram ofertadas logo no primeiro semestre, para professores de quaisquer áreas; no semestre seguinte, os cursistas foram direcionados para outras graduações de acordo com as áreas nas quais atuavam. Para Eduardo, “o primeiro módulo foi um módulo pedagógico violento. Didática, Pedagogia do Ensino, História da Educação, Psicologia da Educação”. A formação institucionalizada para a docência de Eduardo é narrada assim: “eu entrei no primeiro semestre, paguei as disciplinas que eu não tinha, as pedagógicas, e quando a turma ia começar Física 1 eu pulei para a turma concluinte. Terminei a licenciatura em física em um ano e alguma coisa”. Fica bem evidente pela maneira como a narrativa é tecida que Eduardo tinha compromisso com o curso, mas percebia também que ele já trazia todos os elementos necessários para sua atuação profissional na docência. O curso foi feito para que ele pudesse prosseguir na docência, apenas – não porque Eduardo visse nele uma instância formativa relevante. No EMI, Eduardo conta que, ao ministrar a mesma disciplina em cursos diferentes, ele assumia enfoques distintos. Seu discurso traz muito claramente as marcas da dualidade estrutural: uma educação para formar o trabalhador e outra educação para formar o universitário. Na primeira, segundo Eduardo, o foco seria o trabalho; na segunda, o que ele chama de “ciência do cotidiano”. As narrativas indicam que os primeiros passos em direção à profissionalização de cada narrador indicavam outras instâncias de atuação que não a docência. Xavier buscava trabalhar como engenheiro eletricista; Ricardo, como engenheiro mecânico; Adriana como administradora ou pesquisadora. Mesmo Eduardo e Olívia, cuja relação com a docência se estabeleceu num momento anterior à escolha do curso superior, narram trilhas enviesadas: ele optou pelo bacharelado em engenharia elétrica por considerar a licenciatura em física um fator limitante de sua vida profissional; ela preteriu a docência em favor da engenharia devido ao discurso vigente da desvalorização do professor. 63 3.1 PEGADAS EM DIREÇÃO À DOCÊNCIA NO EMI A autobiografia de Ricardo inaugura uma temporalidade bastante peculiar. Ancorada num duplo momento presente – a entrevista e as revisões do texto transcrito – a história segue por caminhos que indicam um alto nível de organização narrativa. Ao longo da entrevista, eu fui surpreendida por algumas características da narração, como marcas de linearidade e de metanarração. Das entrevistas realizadas, a de Ricardo foi a que apresentou uma linearidade temporal mais marcada. Ele inicia sua narrativa remetendo-se ao fim do Ensino Fundamental, passa ao Ensino Médio, ao Ensino Superior e assim por diante sem muitas retomadas de momentos anteriores. A cada trecho de sua história cabem os elementos constitutivos concernentes àquele momento histórico específico. Esse aspecto surpreende porque a memória não funciona de maneira linear. As narrativas dos outros colaboradores evidenciam um percurso mais espiralado, com idas e vindas de um passado mais recente a um passado anterior, no “vaivém” simbólico da experiência. Obviamente não se trata de uma narrativa linear propriamente dita, mas há marcas de linearidade já na entrevista, um gênero discursivo que, como é próprio da oralidade, tende a estabelecer uma temporalidade mais fluida. Outra particularidade da narrativa de Ricardo é que ela evidencia, num primeiro momento, um processo criterioso e profundamente reflexivo no tocante ao “assumir” a vaga na instituição. Posteriormente, no entanto, o que se entretece é uma história que exige um investimento considerável de energia para que ele pudesse assumir a vaga da maneira que ele estipulara. Esses dois aspectos também contribuem para tornar a narrativa ainda mais singular em relação às outras quatro produzidas para esta pesquisa. Os outros colaboradores narram um processo inverso: participam do processo seletivo com bastante expectativa e investem bastante tempo e energia; quando chega o momento da posse, eles não relutam nem resistem: celebram, comemoram e tomam posse com alegria e pressa. 66 contar: “Por que eu conto essa história? Porque hoje em dia eu procuro não fazer isso com meus alunos”. Embutida nesse trecho também está uma primeira reflexão a respeito de como essa experiência de vida foi formativa e ecoa hoje na sua prática docente: “Eu não exponho meu aluno: se ele errou alguma coisa, eu circulo e mostro a ele em particular. Essa já foi uma atitude que eu adotei em função do meu aprendizado como estudante, a partir das minhas próprias dificuldades”. O narrador atribui sua escolha pela engenharia a uma série de fatores relacionados a experiências vivenciadas no ambiente escolar. O professor de história que o constrangeu contribuiu para que ele se afastasse afetivamente das humanidades. Já um professor de Língua Portuguesa pedia a todos que lessem textos em voz alta, o que deixava Ricardo numa situação constrangedora. Sua timidez excessiva atrapalhava sua leitura, que soava cômica aos ouvidos de seus colegas. Assim, a área de linguagens também foi se tornando sinônimo de nervosismo e mal-estar. Em meio a tanto sofrimento psíquico, uma outra área do conhecimento foi se desenhando como um lugar de aceitação e refúgio para o narrador, as Ciências Exatas. Ele conta: “o que me fez escolher as disciplinas de cálculo foi que eu me expressava de uma forma que eu não me expunha. Eu estudava o cálculo da matemática e conseguia, através de números, o meu raciocínio - sem travar, sem gaguejar”. E assim ele fez sua escolha profissional pela Engenharia Mecânica. O ingresso no Ensino Superior veio acompanhado de mudanças que ajudaram Ricardo a desenvolver mais confiança. A linguagem fundamental passou das letras para os números; as leituras estavam agora baseadas em áreas de seu interesse, em vez de obras literárias escritas em outros séculos; o envolvimento com grupos de estudo fortaleceu sua segurança como estudante. O ambiente da universidade foi tão propício ao crescimento de Ricardo que foi nele que surgiu, pela primeira vez, um vislumbre, ainda distante, da atuação profissional como docente: “Quando eu estava terminando o meu estágio curricular, no curso de engenharia mecânica, eu estagiei com um professor do curso. Foi a primeira vez que eu considerei a docência [...] e eu comentei que gostaria de fazer mestrado e, se possível, ministrar aulas”. 67 Entretanto, o então graduando se deparou com um momento-charneira em sua trajetória, que se encaminhava para a vida acadêmica. Sua vida “tomou outro rumo: eu casei cedo, tive filhos. Aos vinte e três anos, eu ainda estava na faculdade e tive minha primeira filha”. Diante da necessidade premente de sustento da família, Ricardo prestou concurso para a Polícia Civil e passou. No entanto, quatro anos se passaram entre a aprovação e a convocação. Nesse período, sua fonte de renda foi uma bolsa de iniciação científica. Ele também tomou todas as medidas que pôde para apressar a conclusão de seu curso: “Eu adiantei tudo o que eu podia adiantar para terminar em quatro anos e começar a trabalhar”. Nas narrativas estudadas aqui, as condições objetivas atuam, em algum ponto da jornada profissional, como obstáculo que faz o caminhante desviar-se do itinerário previamente estabelecido. Ricardo abandona suas ambições acadêmicas na engenharia pelo trabalho como policial por causa do nascimento de sua filha e da necessidade de prover seu sustento. Nesse mesmo sentido, Olívia, quando desejava ser professora de língua inglesa, esbarrou no realismo pessimista de um professor seu: “Ele disse que no fim das contas é uma profissão que dá muito trabalho e geralmente é muito frustrante. Disse também que às vezes, dependendo da turma que se pega, você faz um esforço danado para não valer a pena. Então eu acabei escolhendo a engenharia”. Já Xavier foi detido em seu caminho em direção ao exercício da engenharia pelo senso de responsabilidade para com o esforço de seus pais investido em sua formação: “eu estava um pouco incomodado por ter já dois anos de formado e ainda viver de bolsa, sendo que como eu não vim de família rica os meus pais haviam ‘investido pesado’ na minha formação. [...] Eu pensei ‘puxa, ser professor?’” Adriana, por sua vez, cedeu à pressão familiar e desistiu de se tornar bacharel em economia: “Mas fui convencida pela minha família a fazer administração na época porque achavam que profissionalmente o campo estava melhor. Eu e meus pais conversamos bastante e eu vi que de fato me encaixava ali - mas ainda hoje eu gosto de economia”. Eduardo é o narrador para quem as condições concretas da vida não constituíram um obstáculo, mas um mapa. Ao escolher o curso de Eletrotécnica, de nível médio, ele conta: “Eu já tinha a seguinte noção: eu preciso fazer uma escolha que me dê opções. Já pensou se eu 68 escolho uma coisa e essa coisa me limita para uma única saída? E Eletrotécnica me parecia dar essas opções mais do que outros cursos”. Não se tratou exatamente de uma escolha por aquele curso, mas de uma eliminação dos cursos que lhe pareciam oferecer leques menores de atuação profissional. Ele usa uma lógica semelhante quando, mesmo animado pela ideia de se tornar professor, decide por um curso de bacharelado em vez de licenciatura em Física: “Se eu fizesse licenciatura em Física eu seria professor de Física e acabou-se. Já engenharia, não. Eu tenho um leque muito maior. Eu posso ir para a indústria, eu posso ir para uma empresa e posso inclusive dar aula das disciplinas técnicas”. Assim, Eduardo baseia suas escolhas profissionais na abundância de possibilidades profissionais. Mesmo assim, seguiu na docência e nela se encontra até hoje. Ricardo, confrontado com suas novas responsabilidades de pai, abraça uma profissão diferente da planejada e encontra notória satisfação nela: “Gostava muito do que fazia, e gosto ainda. Hoje eu acumulo os dois cargos. E segui vivendo sem pensar em fazer outro concurso”. Ora, se o Ricardo policial sentia tanto prazer nessa função, por que seu caminho tomou também o “rumo” da docência? A resposta indicada na narrativa é uma combinação de acaso e condições objetivas: “alguém disse ‘olha, vai ter um concurso aí para professor do Instituto’. E o salário da polícia civil na época era baixo. Eu lembro hoje que era mil, cento e dezoito - talvez um pouco mais. E eu pensei ‘rapaz, eu acho que esse é o caminho’”. O caminho traçado pelo narrador em direção à docência passava pela manutenção do cargo de agente da Polícia Civil, tanto por questões financeiras quanto afetivas. Mesmo sem ter como se preparar para a seleção e sem possuir títulos que lhe conferissem pontuação numa das etapas do processo, fez a prova escrita. A expressão que ele usa para narrar o resultado é “acabei passando na prova, que na época era toda objetiva”. Ricardo, que não se relacionava bem com a escrita, encontrou na prova de múltipla escolha um apoio que considera importante. Caso se tratasse de uma prova discursiva, é possível que o resultado não lhe fosse tão favorável. O “acabei passando” dá indícios de certa modéstia por parte do narrador. Ele poderia ter narrado esse sucesso de outro modo, por exemplo, “passei na prova mesmo sem estudar”, o que poderia ser analisado como uma espécie de sinalização da própria competência. Também o destaque à natureza da prova aponta um narrador que não faz “alarde” em torno da aprovação. 71 Xavier também se surpreendeu diante do próprio desempenho: “na prova prática eu tirei quase 100 (acho que uns 97, foi a segunda maior nota!) Aquilo foi extremamente surpreendente para mim!”. Ele não se aprofunda na lógica utilizada por ele para conceber sua aula para o concurso, mas se orgulha do feito: “E eu fui o único candidato aprovado dentro das vagas que não tinha quase nada de ponto de titulação, porque eu não tinha concluído o mestrado ainda”. Por sua vez, Adriana ressalta que, diferentemente dos concursos mais recentes para o IFRN, o processo no qual ela passou (IFPB) não requeria o estudo de aspectos pedagógicos para a prova escrita. Mesmo assim, a narradora afirma que “concurso difícil é concurso para professor. São tantas etapas que você se traumatiza!”. Eduardo, por outro lado, narra sua passagem pela seleção com muita leveza. Primeiramente, ressalta o bom desempenho na prova escrita: “Foram mais ou menos quarenta pessoas para uma vaga, mas só passariam oito para a prova didática. Eu acho que fui o sétimo ou o oitavo”. A seguir, explicita que não teve necessidade (ou tempo) de se preparar para a prova didática, já que “afinal eu estudava constantemente, não é verdade?”. Por fim, enaltece a própria performance, que “Foi considerada a segunda melhor aula”. A narrativa de Ricardo revela muito maior cautela nesse aspecto. Apesar de ter sido aprovado e classificado dentro do número de vagas, o narrador permanece cético: “‘sétimo lugar... acho que não vão me chamar’ e continuei minha vida, trabalhando, progredindo na minha carreira”. Alcançou inclusive um posto de liderança na inteligência da Polícia Civil, o que parece condizer com seu caráter introspectivo. Ele prossegue na sua história narrando três momentos-charneira específicos em que um dos caminhos postos à frente era justamente a docência. Cada um desses momentos teve seu início marcado por um telefonema. O primeiro telefonema veio do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Alagoas (IFAL), à época ainda CEFET-AL. Como ele estava aprovado em um concurso para uma instituição federal, havia a possibilidade de sua vaga ser aproveitada por outra escola da rede. Enquanto os outros professores narradores desta pesquisa aguardaram ansiosamente o chamado para assumir o cargo público após terem sido aprovados, Ricardo, que já tinha não apenas um cargo público mas um trabalho que lhe trazia profunda satisfação subjetiva, lidou 72 com a perspectiva de se tornar professor de maneira bastante objetiva. Diante do convite, sua preocupação primordial foi absolutamente material: “Quanto é que eu vou ganhar?”. Essa preocupação não deve ser confundida com uma postura “mercenária”. Ricardo já havia deixado claro anteriormente que a docência e a vida acadêmica lhe haviam ocorrido como caminho e destino profissionais. Tratava-se, no entanto, de uma bifurcação cujo caminho novo, se percorrido, teria um custo objetivo muito alto: implicaria a exoneração da polícia e uma mudança para outro estado. E nosso narrador tinha sua família para manter. Outros três narradores desta pesquisa também contam que haviam considerado a docência como um caminho profissional possível. Olívia e Eduardo o fizeram ainda no Ensino Médio e, inclusive com vistas à atuação na Educação Básica. Já Adriana, à semelhança de Ricardo, aspira a uma docência no Ensino Superior, de caráter mais acadêmico, vinculada à pesquisa e ao cotidiano do ambiente universitário. No fim das contas, Ricardo se deu um tempo para refletir. O salário que ganharia lá em Alagoas era mais ou menos equivalente ao que já ganhava. Antes que ele tivesse oportunidade de dar um retorno efetivo, aconteceu o segundo telefonema. Desta vez a ligação veio do então CEFET-CE, de uma unidade de ensino no interior do Ceará, na cidade de Cedro. Novamente Ricardo estava trabalhando em Caraúbas. Novamente a figura do chefe surge como um promotor de oportunidades na narrativa: “Conversei com meu chefe e ele disse ‘vamos lá amanhã! Eu tenho umas coisas para resolver em Pau dos Ferros e você aproveita e vai visitar a escola no Cedro’”. A visita transcorreu bem. O narrador percebeu naquele novo caminho um percurso desejável. Projetou mentalmente a logística envolvida: “eu já fui imaginando que eu pediria transferência para Pau dos Ferros e de lá eu iria para a escola, daria minhas aulas e voltaria”. Entretanto, “um dos documentos que ele me passou dizia que o regime era de dedicação exclusiva. ‘Ah, então eu não posso ficar’”. Ao projetar seu percurso profissional, Ricardo não planejava exatamente tomar um caminho distinto daquele que já vinha trilhando. Ele desejava, na verdade, que sua via fosse duplicada: exercer a docência paralelamente à atuação na Polícia. 73 Reitero esse critério por parte do narrador porque ele deixa entrever uma relação com a docência que, uma vez estabelecida, não terá sido nem por acaso nem por força da necessidade material. Ele tinha um trabalho no qual se realizava e pensava a docência como um outro trabalho onde ele se realizaria também: por isso não se tornaria docente nem por causa de uma simples oportunidade que deu certo nem por falta de acesso a um trabalho “melhor”. A escolha de Ricardo pela docência, quando de fato se efetivasse, seria plenamente consciente, presente; ele seria protagonista absoluto desse novo processo de profissionalização. O terceiro e definitivo telefonema viria dois anos após o concurso. Dessa vez era do CEFET-RN. Ricardo não estava em casa nem conseguiu retornar, mas o telegrama da convocação chegou e facilitou as coisas. Assim ele narra sua chegada à escola: “Cheguei novamente ao setor dos recursos humanos e o rapaz perguntou ‘veio tomar posse?’ e eu respondi ‘não, vim ver primeiro quanto vai ser o salário, se é dedicação exclusiva e se eu posso optar pelo regime de 40h’”. O próprio servidor se surpreendeu com a postura do narrador, que decidiu, após as explicações devidas sobre regime e proventos, refletir antes de tomar posse. Novamente o chefe de Ricardo desempenha um papel importante no desenrolar da intriga, aconselhando-o a não desistir do CEFET-RN: “Conversando com meu chefe ele disse ‘rapaz, vá! Aqui você já chegou ao topo da carreira, não tem mais para onde evoluir! Lá você tem como crescer profissionalmente! Aqui as dificuldades são imensas’”. Esse chefe vai assumindo na narrativa um ar de figura paterna, dando condições para que seu subordinado faça a prova, incentivando-o a abraçar a nova carreira e encorajando-o a perseguir objetivos mais altos do que aqueles já atingidos na corporação. Um professor do campus Mossoró (à época UNED13 Mossoró) estava aguardando que o próximo candidato aprovado (no caso, Ricardo) assumisse o cargo para poder ser remanejado desse campus para outro. Assim, esse professor entrou em contato com o narrador e propôs a ele que fosse conhecer a escola, em Mossoró. Foram ambos. Ricardo considerou a escola um ambiente interessante. Como tinha aulas para ministrar e não poderia fazer companhia ao narrador durante aquele período, o professor anfitrião disponibilizou para 13 Unidade Descentralizada de Ensino, termo utilizado para designar cada escola do então CEFET-RN. 76 aula: um momento individual e marcado mais pela revisão do conteúdo a ser ministrado do que pela preparação da sequência didática. O hiato narrativo entre o concurso e a primeira aula é pródigo em significado. O apoio e a orientação da instituição não são sequer insinuados. As primeiras milhas percorridas por Adriana no EMI tiveram o amparo de dois elementos distintos, um pragmático e outro afetivo. O fator pragmático residiu na coincidência entre os conteúdos da disciplina do curso superior (em que ela estreou na primeira semana no campus Guarabira) e a disciplina ministrada no EMI, de modo que quando ela entrava em sala de aula no nível médio ela contava com uma experiência prévia recente, que lhe servia de referência. O fator afetivo está relacionado às relações entre professora e alunos. Estes ela descreve como “um pessoal muito carinhoso, muito atento, os meninos bem novinhos, uma coisa linda! [risos] Achei fantástico. Uma turma cheia, quarenta alunos... foi bacana. Basicamente era o mesmo conteúdo, os mesmos slides, etc. Mas a linguagem era diferente”. Xavier narra seus primeiros passos em dois âmbitos distintos: as estrelas que ele seleciona para guiarem o seu caminho e as dificuldades concretas da caminhada. “Sobre minhas primeiras experiências de sala de aula, eu tenho a dizer primeiramente que eu fui aluno, né?”, ou seja, a partir de suas experiências como estudante ele projeta seu itinerário como professor. No tocante à concretude da docência, ele menciona a experiência no PROEJA como um terreno pantanoso a ser atravessado. Conta que foi um trecho “muito, muito difícil, extremamente complicado” de sua caminhada: “então eu já comecei a dar aula com a ‘faca na garganta’”. Diante da heterogeneidade da turma, ele se reporta à sua experiência com grupos de estudo na universidade e decide por dividir a turma em grupos, conforme o grau de autonomia dos alunos, atribuindo-lhes tarefas condizentes com suas capacidades naquele momento. Essa estratégia lhe dava condições de direcionar mais tempo e energia àqueles estudantes que apresentavam mais dificuldade. Prosseguiu fazendo uma seleção dos conteúdos propostos na ementa a partir tanto da viabilidade de cada um diante da realidade posta naquela turma, quanto da centralidade de cada conteúdo dentro da prática profissional do curso técnico em Informática (este era o curso em questão): “Cabia a mim ter sensibilidade, né?”. 77 A professora Olívia narra os trechos iniciais de seu caminho no EMI como fonte de intimidação: “na primeira vez foi muito difícil, eu queria pegar uma turma que fosse boa de lidar, mas... foi assustador”. Seu irmão conselheiro lhe havia advertido para o “susto” que viria com a primeira vez em que um aluno lhe fizesse uma pergunta. No entanto, a narradora consegue se desvencilhar do medo inicial com mais tranquilidade do que ela havia previsto: “Acho que foi tanta pergunta ao mesmo tempo que eu nem tive tempo de processar, eu estava mais preocupada em manter a estabilidade da turma. Mas foi um bom dia de aula, foi um bom primeiro dia”. Ela conta ainda de outra turma que lhe deixou bem mais apreensiva pela postura indiferente e arrogante. Atravessou sozinha esse momento: “na época eu não procurei pedagogia, eu não procurei ninguém da assistência acadêmica. Sinceramente, eu só queria que o semestre acabasse, porque eles estariam no quarto ano e eu não estaria mais com eles”. O elemento central aqui é o afeto: uma turma proveu acolhimento; a outra, rejeição: “A gente gosta de se sentir querido pela turma. A turma de Info celebrou, bateu palmas e tudo. A de Eletrônica não”. O único narrador que não manifesta frustração alguma é Eduardo, que, segundo ele, já entra na instituição trazendo uma extensa experiência como docente. Suas primeiras milhas no EMI são narradas sem o sofrimento das outras narrativas: ele descreve as turmas de acordo com o curso e o enfoque dado à disciplina de acordo com o perfil dos egressos de cada curso, sem a mesma perspectiva afetiva dos demais narradores. Ricardo prossegue na narrativa contando sobre sua “primeira entrada em sala de aula, no [curso Técnico] Integrado de Mecânica e no de Eletrotécnica”. Apesar do embate para poder assumir o novo cargo, o professor Ricardo demonstra que ainda era professor “de direito” – faltavam ainda alguns passos para se tornar professor “de fato”. Ele ainda se mostra reticente quando conta que foi conversar com o professor que ele deveria substituir no campus Mossoró: “A carga horária dele era baixa, o que colaborou para que eu não desistisse”. Ricardo dá seus primeiros passos na nova profissão buscando se apropriar dos elementos pertinentes a ela. Essa busca se dá por iniciativa dele próprio, junto ao colega de disciplina: “Cheguei para o professor que eu viria a substituir e disse ‘olhe, eu queria os diários, a matéria que você está passando’. [...] Ele sentou comigo, abriu o Acadêmico, me 78 mostrou as coisas, imprimiu a lista de presença, etc”. Em nenhum momento a narrativa inclui uma mediação institucional que oferecesse ao recém-declarado professor um mínimo de orientação para sua nova caminhada. As orientações que o professor Ricardo recebeu de seu colega incluíram a informação de que as turmas estavam em meio à apresentação de um seminário, de modo que “eu entrei em sala de aula sem ter preparado nada – afinal eles apresentariam um seminário. Quando eu cheguei na sala, os alunos disseram ‘não, a gente já apresentou tudo! Tem seminário mais não!’ Isso na primeira sala em que eu entrei”. Primeiro momento da vida docente pontuado pela primeira situação desconfortável em sala de aula. O professor Ricardo lida com essa situação da seguinte forma: “‘já que vocês já apresentaram e eu não vim preparado para a aula, a gente vai bater um papo, eu vou explicar a vocês como seria a metodologia, como seriam as avaliações, as atividades e a gente continua na próxima aula. Bati um papo com os alunos e liberei a turma”. A narrativa não explicita quando ou como Ricardo estabeleceu esses parâmetros metodológicos e avaliativos, nem quais foram. Na turma seguinte, de fato houve ainda apresentação de trabalhos. Quando foram concluídas as apresentações, o professor repetiu o procedimento de apresentação dos procedimentos didático-metodológicos da disciplina. E assim teve início o que o narrador denomina seu “pior mês no Instituto”: “eu não tinha nenhuma metodologia de aula, eu não tinha material pronto para dar aula, quer dizer...”. Ele conclui, taxativo: “eu caí ali de paraquedas e tinha que me virar”. Esta afirmação é literal e figurativamente central na narrativa de Ricardo. Está também imbuída de uma explosão de sentidos que carecem de problematização quanto ao itinerário formativo do professor bacharel no EMI. A afirmação dialoga diretamente com a metáfora do caminhante: o “cair de paraquedas” faz uma referência simbólica a uma chegada “de cima”, descontextualizada, sem que o sujeito tenha caminhado até o lugar de onde fala. Quem usa essa expressão dá indícios de que, metaforicamente, não sabe como chegou até ali. Foi levado de avião, se jogou e se vê agora em meio a um terreno desconhecido (e possivelmente inóspito) sem ter recebido os instrumentos de orientação necessários para encontrar ou construir seu caminho. O caminho feito de andar poderia ser feito de um andar mais seguro, 81 recurso que oportuniza ao estudante um momento de pôr em prática o conhecimento debatido e compreender melhor os princípios inerentes a ele: é reduzida a um “truque na manga” caso a aula acabe mais cedo do que o previsto. Reitero, no entanto, que aquele professor-guia: (1) provavelmente precisou pensar esses recursos didáticos por conta própria; (2) percebeu uma devolutiva positiva por parte dos estudantes; (3) é a única figura presente na narrativa que se dispôs a acolher o novo docente e dividir com ele as “estratégias de sobrevivência no EMI” de que dispunha. Independentemente da racionalidade pedagógica subjacente a essas técnicas de ensino, tais sugestões simples de organização do tempo em sala de aula foram de grande auxílio para que Ricardo conseguisse traçar um novo caminho metodológico: “Assim foi que eu comecei a me organizar melhor. Em vez de levar os tópicos eu comecei a levar uns textinhos [...]. Mas enfim, a partir daí eu comecei a desenvolver”. Ele vai pouco a pouco ganhando confiança: “Passou-se aquele mês de adaptação e eu fiquei mais solto. Eu ainda tinha aquelas dificuldades de falar em público, né? Mas dava uma respirada e conseguia me soltar”. Vai também aprimorando seu repertório de métodos e técnicas de ensino: “Fui voltando pouco a pouco a usar o PowerPoint e passei a utilizar vários recursos. Levava lista de exercícios, criei um site para disponibilizar os exercícios, as provas do semestre anterior, material didático, links para apostilas”. Dentre os novos recursos listados, dois merecem destaque. O uso de slides, primeiramente, porque Ricardo foi capaz de ressignificá-lo após uma péssima primeira experiência. O professor conseguiu perceber que o mecanismo de apresentação dos conteúdos é menos importante do que o manejo feito dele, do que a intencionalidade de quem o utiliza. O segundo recurso recebe destaque do próprio narrador: animações que ilustravam o funcionamento das partes de motores: “hoje você encontra animações em Flash que mostram o motor sendo desmontado, o movimento das peças, etc. Eu fui então retirando os textos dos meus slides e substituindo-os por animações e passei a explicar sem mostrar o texto”. O narrador não apenas repensou o uso de slides como também percebeu que a apresentação da matéria não precisa apenas ser mediada por textos e exercícios: recursos imagéticos têm grande potencial como material didático. Os estudantes também deixaram sua postura passiva em sala de aula para assumir uma função ativa e central, o que muito alegrou 82 o professor: “Depois dessa mudança eu percebi que eu não dava mais conta nem de terminar o assunto da aula que eu preparava, porque os alunos começavam a perguntar tanto que eu parava num ponto e não dava mais conta de avançar!”. A reação dos alunos leva o narrador a um processo reflexivo acerca de materiais didáticos e procedimentos metodológicos, “Havia tanta informação naquela animação que eu começava a falar, entrava até em outras disciplinas”, ou seja, a disciplina que Ricardo apresenta deixa de ser uma área estanque de conhecimento para se relacionar com outras áreas. Diante de uma turma com a curiosidade desperta e cheia de perguntas para fazer, ele pondera: “Ali eu via que era ainda mais do que eu tinha para apresentar, diferentemente de quando eu só levava o texto e o texto estava ali, os alunos sentados e a informação já estava dada!”. A respeito da relação entre a própria disciplina e as demais, Xavier narra um caminho distinto. Para este professor narrador, sua responsabilidade vai até o limite da ementa. Ele se queixa do fato da disciplina de Eletricidade Instrumental estar situada (ou ser “jogada”, para usar o termo do próprio narrador) no primeiro ano do EMI segundo a matriz curricular do IFRN, “sem que os alunos tenham estudado uma matemática decente, uma física decente”. Xavier progride em sua narrativa com um questionamento que articula um ponto de contradição em seu discurso: “E para ser professor de física você tem que ser professor de física, né?”. Ele não deixa claro se essa condição estabelecida tem a ver com a especificidade profissional ou com a formação acadêmica. Se assumirmos que o narrador trata aqui da especificidade profissional, vislumbramos mais um indício de uma visão epistêmica fragmentadora. Caso se trate da formação acadêmica (para ser professor de física é necessário ter feito licenciatura em física), eu me faço outra pergunta: e para ser professor de Eletricidade Instrumental, é preciso ter cursado o quê? Se uma disciplina exige uma licença para atuação docente, o que distinguiria física e eletricidade? De qualquer forma, Xavier reconhece: “Eu acho que eu em muitos momentos devo ter deixado a desejar nesse aspecto. Eles às vezes ficam com umas dúvidas sobre a natureza da física que eles deveriam ter visto anteriormente”. Entretanto, a experiência revela um professor que não se omite diante do desafio, ainda que não compreenda bem a natureza do 83 desafio: “como eu já tenho um certo tempo lidando com essa disciplina, eu (ainda) estou desenvolvendo uma habilidade para lidar com essa situação”. Lançando o olhar de volta à narrativa de Ricardo, noto que um outro guia que nosso narrador estabelece na jornada docente é a memória. Do presente da reflexão pedagógica ele lança o olhar atrás para vislumbrar o Ricardo estudante e suas maneiras de aprender diante de seus professores. Ele menciona o tratamento que dá às memórias de momentos proveitosos e penosos. Os primeiros são tomados como referência de passos a serem seguidos: “Eu me baseava muito na minha experiência na graduação: ‘quem era o meu melhor professor? Fulano de Tal? Então eu vou me basear nele, vou pensar em como ele fazia a aula dele para poder seguir os passos dele’”. As experiências de vida sofridas são ressignificadas e transformadas em uma sinalização proibitiva: “eu tinha problemas com seminário, certo? Então hoje eu prefiro não passar seminários para os meus alunos. Eu chego a passar trabalhos de outra forma, chego até a questionar o aluno sobre aquele trabalho, mas de uma forma individual”. Ricardo narra um processo de seleção da referência docente positiva exigente e criterioso: “quem era meu melhor professor?”. E também: “Eu me baseei muito em professores que eu tinha, que eu considerava professores excelentes, e comecei a seguir mais ou menos a metodologia deles, né?”. Essa postura escrupulosa me remete à narrativa de Xavier quando ele afirma “desde que cogitei virar professor eu sempre tive uma coisa em mente: ser o professor que eu queria ter tido”. Retomando esse norte mais à frente, ele conta que teve professores muito bons ao longo da vida, mas nenhum deles ficou marcado como “aquele professor extremamente atencioso, porque eu também não tinha essa demanda como aluno (era tímido). Então como eu me espelhava nas experiências que tive, ficou faltando essa parte”. Ambos os professores narram uma busca por um “farol”, um facho de luz no escuro que os situe e lhes indique uma direção apropriada. Esse farol está atrelado à lembrança de suas experiências como alunos. Ricardo se remete às práticas que o marcaram negativamente para evitá-las; Xavier constrói a noção do que seria o professor ideal a partir de suas memórias. Ricardo narra seus primeiros passos no EMI como inflexíveis e impassíveis: “No começo eu era muito rígido. Eu entrei em sala de aula naquela posição de ‘é isso e acabou’. 86 Novamente o professor se apoia na própria autonomia para se apropriar de suas responsabilidades na nova profissão, posto que é o narrador quem vai em busca do documento. Para Ricardo, conhecer e seguir os trâmites formais da instituição são elementos importantes para a formação do profissional: “Como a gente está desenvolvendo um profissional, saber seguir esses procedimentos vai servir para ele tanto aqui quanto numa indústria ou no trabalho que for. Se o cara falta ao trabalho, ele precisa apresentar uma justificativa”. O professor relata com satisfação a sua crescente desenvoltura no fazer docente. Enumera as diversas disciplinas que teve oportunidade de ministrar desde o começo da caminhada no EMI e como esse repertório permitiu que ele fizesse um trabalho de integração entre matérias: “quando eu ia falar de soldagem eu falava de fundição; quando ia falar de motores eu mencionava o processo de conformação”. O professor percebe esse imbricamento como uma prática desejável que permite ao estudante uma visão que vai do específico ao geral e de volta ao específico: “Eu comecei não só a passar para os alunos o conhecimento específico da minha disciplina, mas eu comecei a ‘linkar’ minha disciplina com as demais disciplinas, a interligá-las”. Chego a um ponto nevrálgico da autobiografia formativa de Ricardo. Trata-se de um relato feito com bastante tranquilidade, apesar de se referir a um momento pedregoso do seu caminho. Obviamente o narrador opera no nível da mimese III15, ressignificando uma experiência penosa que passa a ter um sentido de triunfo. Apesar de não ser uma vivência relativa ao EMI, ela é sintomática de posturas institucionais que diminuem e depreciam a atividade docente na sua especificidade e no cuidado que ela demanda. O narrador anuncia assim o episódio: “Aconteceu outra coisa bem interessante”. Seu chefe imediato o abordou, pouco antes das férias do fim do ano letivo e gentilmente perguntou-lhe se Ricardo poderia assumir alguma disciplina de um curso de extensão que o campus ofertaria para funcionários da Petrobras. O narrador agradece e recusa, afirmando que tal evento não lhe desperta o interesse. E em se tratar de uma ação de extensão, não havia obrigatoriedade. O chefe, no entanto, insiste: “‘mas diga aí pelo menos uma, se você pudesse, qual você poderia dar?’”. Ora, o que leva um superior hierárquico a levantar uma conjectura 15 A instância do processo narrativo a que se atribui a refiguração do vivido (mimese I) que foi narrado (mimese II). 87 dessa natureza? “Se você pudesse, qual seria?” A intenção do chefe não é se apropriar melhor dos limites e potencialidades do seu subordinado, mas driblar-lhe o “não” prévia e claramente dado. O professor indica, das disciplinas disponíveis, cinco que estariam dentro de sua competência. Concordou, por fim, com a participação no curso e faz uma solicitação simples e absolutamente pertinente: “‘Pronto, bote aí meu nome, mas você precisa me avisar antes para que eu possa saber com antecedência e me preparar. Tem disciplinas aí que eu vi só na graduação e vou ter que estudar novamente para me preparar’”. Ora, ainda que fossem conhecimentos que não demandassem revisão por parte do narrador, sabe-se que o fazer docente pressupõe tempo investido em planejamento e concepção de sequências didáticas adequadas. O chefe lhe assegura: “‘Não se preocupe não, a gente avisa antes’”. Eis como Ricardo conta os fatos subsequentes: “Passaram-se as férias e eu chego para a semana pedagógica. [Numa quarta-feira] O diretor acadêmico bate no meu ombro e diz ‘ei, deu certo lá, as disciplinas’. Eu: ‘Que disciplinas?’, e ele: ‘aquelas lá do curso’”. As aulas começariam na segunda-feira seguinte. Se no primeiro contato feito pelo diretor acadêmico para tratar desse curso deu pistas de negligência para com o trabalho docente, esse segundo momento explicita e revela o que antes apenas se intuía. O professor, dentro do que a hierarquia lhe permitia, protestou: “‘Mas rapaz, eu não pedi que você me avisasse com antecedência?’”. A tréplica do chefe reitera o descaso verificado previamente: “‘Não se preocupe não, tem umas apostilas já prontas, é fácil’”. Ou seja, para esse gestor, a atividade do professor pode, sem prejuízo, ser resumida à leitura de uma apostila com seus alunos numa sala de aula. A instituição, representada pela figura do diretor, diminui o professor e todos os aspectos que são peculiares da atuação docente responsável. Ciente da responsabilidade inerente à prática docente, o narrador ainda resiste: “‘Rapaz, não vai dar, não tem condição!’”. Seu interlocutor propõe uma solução para o impasse: “‘Faça o seguinte então: pegue pelo menos duas que as outras três eu passo para outro’”. A solução proposta, na verdade, não resolve o problema – apenas o transfere para outro professor. Não concebo esse diretor como alguém mal intencionado e deliberadamente negligente: entendo sua postura como um recorte do todo social em que ele se insere. 88 Empiricamente, compreendo tal conduta como um vislumbre concreto de uma atitude macroscópica dentro da instituição. Uma atitude contraditória que, em certos aspectos, dá condições ao professor para trabalhar com tranquilidade (por exemplo, por meio da limitação de horas-aula semanais e do incentivo financeiro da dedicação exclusiva) e, em outros, impõe ao professor rotinas e procedimentos que precarizam sua prática. Geralmente, para um gestor agir como o chefe de Ricardo agiu, há um elemento mais ou menos oculto que promove essa postura: pressão e cobrança por parte de outra instância, geralmente superior. Assim, possivelmente o chefe em pauta tinha algum elemento externo que o pressionava pelo encaminhamento imediato dos nomes dos professores para a realização do curso. Para essa instância alheia, o gestor cumpriu a contento seu dever. Deixo claro que não é meu objetivo apontar o gestor como causador primordial da situação narrada. Tiro proveito de seu proceder na narrativa de Ricardo para poder lançar luz sobre uma postura institucional mais ampla que tem um peso fundamental nas falas dos professores entrevistados: uma desatenção institucional com o fazer docente. Uma desatenção que não apenas envia para sala de aula professores licenciados sem orientá-los a respeito da especificidade do EMI mas também, o que me parece bem mais grave, “solta de paraquedas” o professor bacharel no terreno da docência sem lhe fornecer meios para que ele se oriente e construa seu caminho da maneira mais suave e segura possível. Xavier narra: “faltou o lado pedagógico aqui pra gente”. A propósito da narrativa de Xavier, sua relação com a racionalidade pedagógica é ambivalente: no seu relato, essa racionalidade vai de “decorativa” a algo importante que a instituição não proporcionou. Num primeiro momento, temos um narrador que encontra na própria história de vida o amparo total e suficiente para o exercício da docência no EMI, afirmando que já sabia de alguma forma o que deveria acontecer na relação professor-aluno. Também reitera seu caráter de pessoa curiosa ao contar que buscou fazer leituras a respeito de “Piaget, behaviorismo, e essas coisas bonitas e complicadas que a galera da pedagogia estuda”. Entretanto, a referência a textos teóricos da área pedagógica como “essas coisas bonitas e complicadas” nos dão indícios de um olhar condescendente por parte do engenheiro- professor em relação à racionalidade pedagógica. 91 O professor buscou valorizar e problematizar a realidade de cada aluno: “Eu também disse ‘pessoal, eu sei que tem muita gente que trabalha na área já, então vamos trazer a experiência de vocês para a sala de aula? Facilita a vida de vocês, a minha e a dos colegas’”. O conhecimento de mundo dos alunos (todos trabalhadores) foi trazido para as aulas. O resultado desse procedimento foi imediato e positivo: “Então esses alunos começaram a participar”. Ainda nesse curso, Ricardo narra um desencontro terminológico e como ele foi resolvido de maneira dialógica. Ele apresentava uma peça chamada lanterna d’água quando foi interpelado por um aluno: “‘professor, essa lanterna de que o senhor está falando não seria o cadeado d'água não?’. ‘Eu disse ‘não sei, por esse nome eu não conheço. Mas a gente procura saber e depois eu trago aqui para vocês’”. Entretanto, um outro aluno tinha em mãos um vídeo que ilustrava o funcionamento da tal peça e solicitou ao professor que o exibisse para a turma, já que era um vídeo curto, de apenas dez minutos. O narrador, mais uma vez, lida com a interferência discente no seu planejamento com placidez e dialogia: “‘Bom, vai sobrar um tempinho da aula, então a gente assiste’. Passei o vídeo e o rapaz foi explicando o funcionamento da bomba e mostrando as peças. Num dado momento ele apontou para uma peça e disse ‘aqui é o cadeado d'água’”. Ricardo então acena para o aluno que havia feito a pergunta anterior e ambos aprendem juntos uma nova terminologia aplicada a uma peça que já conheciam. O aluno que propôs o vídeo não apenas encontrou acolhimento por parte do professor como também assumiu, sob a orientação de Ricardo, o protagonismo daquela aula: “passei o vídeo e o rapaz foi explicando”. O professor abre mão do seu papel tradicional em favor de um momento pedagógico enriquecedor para si próprio, para a turma e, em especial, para aquele aluno, que conduziu a aula por dez minutos. Ricardo reviu suas posições, envolveu-se na curiosidade dos alunos e aceitou de bom grado uma nova vereda proposta por ela. A síntese que Ricardo faz a seguir é emblema de um momento-charneira: “A partir daí eu já comecei a gostar da docência”. Essa bifurcação na caminhada do professor é articulada por princípios de uma racionalidade pedagógica sistematizada. A partir dessa nova sensibilidade, sua relação com a docência se ressignifica. Teria Ricardo sofrido todos os dilemas que sofreu no seu “pior mês” 92 como docente se esses princípios lhe tivessem sido efetivamente apresentados? Teria ele, nesse acerto em meio ao esquema “tentativa e erro”, compreendido também toda a carga política implicada na práxis dialógica? Penso que, por mais que ele tenha avançado em suas práticas, sua compreensão da política do fazer pedagógico ainda era bastante incipiente, se havia. Acredito que se essa dimensão político-pedagógica lhe tivesse sido apresentada pela instituição o potencial do diálogo como método poderia ter sido explorado em maior profundidade. O afeto reconhecido pela nova profissão inaugura um novo momento na narrativa de Ricardo. O discurso assume um caráter mais reflexivo, de releitura do narrado, e começa a encaminhar o texto para o seu fechamento. O narrador retoma seus primeiros passos na docência, fazendo uma apreciação do seu itinerário: “O primeiro mês foi muito ruim para mim. Eu estava ali como se fosse uma obrigação. Eu chegava já com aquela repulsa. ‘Poxa, vou chegar na sala de aula, vai terminar, vou ter que liberar a turma...’ Hoje em dia eu entro facilmente numa sala de aula”. Indica sua participação na construção de documentos institucionais como um espaço de ponderação a respeito de princípios curriculares: “comecei a participar de elaboração de grade de curso, de PPC de curso, já comecei a trazer entendimentos das minhas dificuldades para dentro daquilo ali”. Ricardo atesta sua contribuição para a instituição e vai se vendo cada vez mais parte dela: “tinha disciplinas na grade antiga que o mesmo assunto era tratado em três, quatro disciplinas diferentes - o mesmo conteúdo em quatro disciplinas! Eu já eliminei isso, já coloquei numa disciplina anterior”. O professor vai caminhando e deixando claras as marcas da sua passagem pela escola. Chega, por fim, ao momento presente, de onde narra sua história: “Hoje, como eu disse, aqui no Instituto Federal eu dou aula no curso de Mecatrônica, integrado (ainda não dei aula no subsequente), e ministro tanto disciplinas teóricas quanto práticas, né?”. Nas disciplinas que leciona, Ricardo vai sempre buscar elementos concretos, palpáveis (literalmente) para seduzir seus alunos e trazer sua atenção para o objeto de estudo. “‘Olhe, essa cadeira aqui, como é feita? Esse sofá? Como é que eu faço esse acabamento cromado?’”. O efeito dessa prática continua o mesmo: alunos engajados na dinâmica da aula. “E daí eles 93 começam a perguntar também: ‘professor, como é que se faz um parafuso? professor, como se faz uma corrente? Essa máquina funciona como?’. E você começa a ‘linkar’ as coisas”. Ver a curiosidade e o engajamento dos alunos aflorando é considerado por Ricardo o ponto alto de seu cotidiano: “o que eu considero a melhor experiência para professores da área prática é o momento em que você tenta encerrar a aula e os alunos ficam ‘professor, espere aí, deixe a gente ficar mais um pouquinho!’”. Ele conta que por vezes tem dificuldades para poder usufruir do seu intervalo entre aulas, tamanha a insistência dos alunos em permanecerem no laboratório trabalhando. A muito custo, ele consegue sair para beber água e se preparar para a aula seguinte, e “Se nesse processo eu me atrasar dois minutos, o aluno já está na porta do laboratório: ‘professor, vamos lá, para a gente terminar!’”. Ainda com a marca explícita do presente, Ricardo é taxativo quanto à sua relação com a docência: “Hoje eu me sinto satisfeito em dar aula. Eu gosto de dar aula. Aquela repulsa que eu tinha no início por não ter a prática passou”. Essa “conversão” à nova identidade profissional se opera de maneira tão profunda e subjetiva que afeta os caminhos projetados pelo professor para o seu futuro, numa articulação entre memória e devir. No início de sua trajetória, o professor conta que se questionava bastante: “eu pensava ‘o que é que eu estou fazendo aqui? Vou voltar para o meu emprego, pedir exoneração daqui e voltar’. Mas hoje é o contrário. Eu ainda acumulo, mas o que eu penso em fazer é, assim que possível, desistir do outro e continuar na docência”. A partir dessa declaração, é possível afirmar que Ricardo começou seu percurso profissional na docência como um policial professor e se vê, hoje, como um professor policial. É nessa atmosfera de sedução e abertura afetiva que a narrativa prossegue, se debruçando sobre como se dá o encantamento do narrador nessa nova atividade profissional. O que o encanta “é ajudar uma pessoa a desenvolver um conhecimento. [...] Então o aluno chega sem noção nenhuma de como se faz uma peça em usinagem, por exemplo. E quando você ensina e ele lhe entrega o trabalho produzido, você vê a satisfação dele!”. O professor aponta a possibilidade de contribuir para a construção do conhecimento de alguém como o motivador primordial de seu engajamento afetivo no magistério. Ricardo tece, por fim, reflexões também a respeito de seus métodos avaliativos. Ele relata que, se, nas primeiras milhas, ele fazia cinco tipos de prova por desconfiança em 96 orientação pedagógica para que eles dependessem menos do trabalho com tentativa-e-erro. À exceção das professoras entrevistadas, os demais não dão sinais de enxergarem a equipe pedagógica (que existe em todos os campi) como uma instância cuja função inclui ajudá-los nessa caminhada. E devo ressaltar que nas narrativas de Olívia e Adriana essa compreensão só se apresenta após um certo tempo de caminhada. É certo que um diploma de licenciatura não é garantia de um professor excelente, assim como a falta dele não assegura um péssimo professor. Entretanto, quando estabelece seus critérios de seleção, a instituição deixa claro o que espera de cada candidato. Ao exigir a licenciatura dos futuros professores da formação geral, a instituição sinaliza que busca professores familiarizados com a racionalidade pedagógica, além de uma profunda compreensão de seu objeto de ensino. É óbvio que uma instituição de EP precisa reconhecer a demanda imediata de professores para disciplinas para as quais não há licenciatura. Consequentemente, ao conceber um processo para selecionar esses professores, a instituição não pode exigir que os candidatos cheguem até ela contando com a mesma racionalidade pedagógica que se pode cobrar do professor licenciado. Se a instituição entende que estará mandando para a sala de aula professores sem a compreensão dos aspectos político-pedagógicos do seu fazer, cabe a ela prover essa orientação de maneira efetiva (conforme previsto na Resolução nº65/2009 do Conselho Superior do IFRN16). Olívia é quem resume a noção central que qualquer instituição de ensino deve compreender: “Dar aula é muito difícil”. Se uma instituição contrata pessoas para fazê-lo sabendo que não estudaram para isso, importa que ela promova processos formativos, ainda que em serviço. Isso se aplica não apenas aos não licenciados, mas também aos licenciados, que a empiria mostra não terem tido contato algum com os estudos em Educação Profissional durante a graduação. Cabe, portanto, não apenas uma formação voltada para o fazer docente em geral, mas também para as concepções e os princípios da Educação Profissional, particularmente aqueles subjacentes ao EMI. Afinal, o caminhante precisa saber pelo menos em que direção seguir para construir seu caminho. 16 A Resolução 65/2009 do Conselho Superior do IFRN estipula que “durante o período de estágio probatório dos docentes que ingressam na instituição, a Pró-Reitoria de Ensino, em conjunto com a Diretoria de Gestão de Pessoas, viabilize a capacitação desses servidores em cursos para formação de professores, de acordo com a formação inicial do docente, a saber: a) Para os professores não licenciados cuja formação inicial seja de bacharelado ou de engenharia: Curso de Licenciatura em Educação Profissional, nos termos da Resolução nº. 02/1997-CNE” (IFRN, 2009). 97 4 TRAÇANDO CAMINHOS A partir da memória evocada e da experiência narrada, o caminho trilhado se faz conhecer. Compreendê-lo implica investigar por onde os caminhantes andaram e – mais importante para este trabalho – como se orientaram para fazer seus itinerários. Construir um mapa que indique as trilhas deixadas pelas pegadas exige, como já foi debatido, a escolha de uma projeção cartográfica apropriada (escolha essa que deve levar em consideração as próprias potencialidades e limitações). O pesquisador, assim como o cartógrafo, deve eleger seu referencial teórico-metodológico com segurança e sem ilusões. O objetivo deste capítulo é tecer teorizações sobre o itinerário formativo do professor bacharel atuante no EMI a partir de cinco narrativas de formação (JOSSO, 2010), apresentadas no capítulo anterior, tendo como alicerce a abordagem (auto)biográfica. Assim, o que se busca não é uma verdade preexistente, já dada, que seria descoberta de maneira pronta e acabada, mas compreender como os professores bacharéis “constroem a consciência histórica de si e de suas aprendizagens nos territórios que habitam e são por eles habitados” (PASSEGGI, 2011, p. 371). À medida que as narrativas são evocadas e discutidas, alguns elementos teóricos são retomados e outros acrescentados de acordo com o tópico em tela. Os itinerários formativos dos sujeitos são o percurso de vida trilhado por eles no sentido do construir-se docente, do formar-se professor. Esse processo formativo implica a aquisição de certos saberes específicos da prática docente. Para Tardif (2014), esses saberes são plurais e podem ser divididos em quatro tipos: os saberes da formação profissional, os saberes disciplinares, os saberes curriculares e os saberes experienciais. Os saberes profissionais dizem respeito ao “conjunto dos saberes transmitidos pelas instituições de formação de professores” (TARDIF, 2014, p. 36). Dizem respeito ao conhecimento produzido pelas ciências da educação, mas não apenas se manifestam como algo que se conhece. Frequentemente, articulam-se à orientação do próprio fazer, aos saberes pedagógicos: “doutrinas ou concepções provenientes de reflexões sobre a prática educativa no sentido amplo do termo, reflexões racionais e normativas” (TARDIF, 2014, p.37). Portanto, os saberes profissionais são aqueles construídos e reproduzidos primordialmente em licenciaturas. 98 Já os saberes disciplinares estão relacionados às diferentes áreas em que o professor atua: “correspondem aos diversos campos do conhecimento, aos saberes de que dispõe a nossa sociedade, tais como se encontram hoje integrados nas universidades, sob a forma de disciplinas, no interior das faculdades e de cursos distintos” (TARDIF, 2014, p. 38). São os saberes relativos, por exemplo, à linguística e à literatura para os licenciados em Letras, à história para os professores de História, às ciências sociais para os professores de Sociologia. Este é um conhecimento que chega tanto ao licenciando quando ao bacharelando. Os saberes curriculares estão relacionados à maneira como a escola sistematiza o conhecimento. São constituídos pelos “discursos, objetivos, conteúdos e métodos a partir dos quais a instituição escolar categoriza e apresenta os saberes sociais por ela definidos e selecionados como modelos da cultura erudita [...]. Apresentam-se concretamente sob a forma de programas escolares” (TARDIF, 2014, p. 39). Os saberes curriculares são construídos ao longo da carreira do professor. Os saberes experienciais (ou saberes práticos) são construídos, como a própria expressão indica, na experiência. Trata-se da huella (LARROSA, 2006) que o vivido deixa no sujeito, no rastro de formação que permanece no professor mesmo depois que o momento da experiência passa: “são saberes que brotam da experiência e são por ela validados” (TARDIF, 2014. p. 39). Mais uma vez, trata-se de uma categoria de saberes que é comum tanto ao professor licenciado quanto ao bacharel. No entanto, este último tenderá a se apoiar muito mais radicalmente nos saberes experienciais do que o professor licenciado. O professor licenciado, além dos saberes da racionalidade pedagógica, conta com a reflexividade sobre seu trabalho cotidiano para (re)construírem suas práticas. O caminhante que está familiarizado com um mapa tem como articular a esse saber representativo (o mapa representa a realidade, mas não a constitui) um processo de enriquecimento de sua compreensão do terreno onde se encontra. A teoria encontra a empiria. Já o caminhante que não lidou com a carta geográfica do espaço que passa a ocupar terá, como diz o poema de Antonio Machado, apenas suas pegadas, seus próprios passos para traçar seu caminho. Entretanto, não caminha só: como suas relações sociais os conduziram à e na docência no EMI? Ao caminhar por “este lugar onde hoje os bosques se vestem de espinhos”, que vozes de poetas se fazem ouvir? Se o caminhante/professor bacharel traz 101 4.1.1 Vozes familiares Como locus primordial de socialização, as relações familiares lançam os fundamentos da subjetividade. É nessas relações que se tecem as mais antigas lembranças. Para Barros (1989, p. 33), “a importância do grupo familiar como referência fundamental para a reconstrução do passado advém do fato de a família ser, ao mesmo tempo, o objeto das recordações do indivíduo e o espaço onde essas recordações podem ser avivadas”. De maneira geral, as narrativas analisadas neste estudo revelam a repercussão das relações familiares como vozes que, de maneira mais ou menos evidente, indicam ao caminhante a direção a seguir. As influências dos pais são narradas sob diferentes prismas. Para Xavier, a relação com seus pais constituiu não apenas uma motivação considerada a cada mudança de rota, mas a origem mesma de sua desenvoltura na dinâmica escolar e acadêmica. Os pais que brincam de escolinha com o filho são os pais pobres que não chegaram ao ensino superior e percebem na escolarização “o meio pra gente sair dessa situação”, como conta o narrador. O brincar de ensinar a ler e a escrever desenvolve muito cedo, na trajetória de vida de Xavier, um afeto positivo com o que ele viria a encontrar no cotidiano escolar. Mais tarde, quando diante da configuração do que vivera como bolsista na graduação e no mestrado, Xavier evoca novamente seus pais como elemento chave para estabelecer para si um momento-charneira: como ele não viera “de família rica”, o investimento de seus pais em sua formação acadêmica leva-o a considerar pela primeira vez a docência como uma profissão possível. Olívia menciona a própria mãe de maneira muito rápida: ela é a mãe que é professora e que, junto com o esposo, declara apoio a qualquer que seja a decisão profissional da filha por ocasião do ingresso no Ensino Superior. O esposo de Olívia, evocado na narrativa na condição de noivo e colega de pós-graduação, tem participações breves: ele é o noivo que não quis prestar concurso para professor substituto, que passou posteriormente no mesmo concurso para professor efetivo que Olívia e o esposo que, sendo também colega de trabalho, divide com ela suas incertezas e soluções na nova profissão. 102 Assim como Olívia, Eduardo narra brevemente sua relação com sua mãe pedagoga, professora da Educação Básica. Ela é a mãe que estimulou desde cedo a autonomia dos filhos e a mãe/colega professora que insiste em convencer Eduardo da importância da formação docente para uma atuação profissional sólida (ideia a que Eduardo oferece bastante resistência). A figura paterna aparece mais brevemente ainda como o pai que tinha diversas aptidões profissionais (técnico radiofônico, produtor de material publicitário, etc). Os “outros” mais evidentes na narrativa de Eduardo são seus próprios professores. Os pais de Adriana, por sua vez, deixaram marcas contundentes na trajetória formativa de sua filha, e estas emergem com certa frequência na narrativa. Dos atores com os quais a professora se relaciona ao longo de sua narrativa, seu pai e sua mãe são, sem dúvida, aqueles com maior influência sobre os caminhos que a narradora percorreu. Ambos são professores do IFRN desde a época em que essa instituição era denominada Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte (ETFRN). O pai da entrevistada é engenheiro eletricista e a mãe é professora de matemática. As conversas familiares que Adriana rememora costumavam girar em torno das atividades profissionais dos pais: em outras palavras tratavam de rotinas escolares. Desempenho e comportamento de alunos, posturas mais ou menos adequadas ao docente e questões relacionadas à gestão escolar fazem parte da vida de Adriana desde bastante cedo. Entretanto, não foi em direção à docência que seus pais a tentaram conduzir a priori. Antes mesmo de ingressar no Ensino Superior, o pai de Adriana a encaminhou para o mundo do trabalho de forma inusitada: “meu pai me deu uma loja. Eu deveria ter uns dezesseis, dezessete anos”. A narradora relata que não foi algo conversado com ela previamente. Sua vontade quanto a ser ou não dona de uma loja (de roupas femininas num shopping center) não foi consultada. Seu pai simplesmente soube que essa loja estava à venda, comprou-a e deu-a de presente à filha. Apreendo dois aspectos dessa relação parental a partir desse relato: (1) uma apreensão quanto ao futuro profissional e financeiro da filha, preocupação esta que poderia ser resolvida com aquele presente; (2) o trato com essa filha numa perspectiva ao mesmo tempo amorosa e impositiva, objetificadora. A filha com quem o pai se preocupa é a mesma filha que não é consultada no que tange aos seus interesses empreendedores, de modo que Adriana acaba sendo endereçada não como sujeito de seu futuro profissional, mas como objeto da preocupação paterna. A narradora optou pela venda da loja alguns anos depois, já na graduação, e afirma que a experiência lhe deixou marcas 103 desagradáveis a ponto de desistir do seu lado empreendedor: ela afirma que esse momento de sua vida lhe deixara “certos traumas”. Chegado o momento de escolher o curso de graduação, a narradora tinha bem claro o desejo de ingressar no bacharelado em Economia. No entanto, seus pais interferiram e ela acabou por optar pelo curso de Administração: “Eu gostava muito de cálculo, de finanças. Mas fui convencida pela minha família a fazer administração na época [...]. Eu e meus pais conversamos bastante e eu vi que de fato me encaixava ali - mas ainda hoje eu gosto de Economia”. Adriana narra, a princípio, uma relação com a família (uma noção ampla) que a convenceu a mudar de ideia quanto ao seu curso de graduação (deixar de lado o de Economia para abraçar o de Administração). No entanto, logo a seguir essa família ganha contornos específicos e individuais: “eu e meus pais”. A heteronomia envolvida na escolha do curso superior não parece ter sido refigurada pela narradora, que afirma: “Eu acho que eu me realizaria mais se tivesse estudado o que eu de fato queria. Tanto é que hoje quando eu penso em fazer um doutorado ou mesmo uma especialização eu penso nessa área”. Esse processo de escolha controlado pelo qual Adriana passa endossa o que afirmam Almeida e Magalhães (2011, p. 206): a escolha da profissão como projeto de vida não acontece de maneira descolada da realidade imediata, “mas sim em meio a uma situação social, econômica, política; sofrendo influências dessas diversas dimensões, inclusive da família. O indivíduo que escolhe está inserido em um determinado contexto, logo o projeto não é puramente individual”. Também a escolha profissional que Olívia narra ilustra claramente a natureza social dessa decisão. Uma terceira decisão da narradora marcada pela heteronomia foi justamente a de participar do processo seletivo para docentes do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB). Sempre que se divulgava um concurso para “o IF”, os pais de Adriana insistiam: “‘Faça, minha filha, não custa nada, faça, faça’. Até que num dia (eu já tinha meu filho e estudava para concursos – imagine aí a dificuldade) meu pai mandou um e- mail dizendo ‘abriu o concurso’. Eu fui olhar o edital e pensei ‘gente, eu já estudei tudo isso aqui!’”. 106 sujeito com “talento” para a docência, posto que os demais estudantes costumavam aprender mais da matéria nos encontros da monitoria do que em sala de aula. Ricardo, por sua vez, não narra sua infância e, no pouco de sua adolescência que é relatado, seus pais não são mencionados. De maneira geral, suas relações familiares não aparecem na sua narrativa, excetuando-se o nascimento de sua filha mais velha, que foi o fator primordial para que ele começasse sua vida profissional como policial civil. Nesta narrativa, a relação social posta em maior evidência como influente nos direcionamentos tomados por Ricardo em direção ao EMI é a relação com seu chefe na polícia civil. É por incentivo dele que Ricardo decide fazer o concurso para docente do IFRN. Uma vez aprovado na primeira fase do processo seletivo, seu chefe assume uma posição de articulador das circunstâncias laborais de modo a possibilitar que Ricardo estivesse presente em Mossoró tanto para a entrega da documentação quanto para a realização da prova didática. Quando, desestimulado por um professor do então CEFET-RN (UNED Mossoró), o narrador decide desistir da ideia de assumir o cargo, é esse chefe que o leva a refletir sobre a dureza das condições objetivas do trabalho como policial e as possibilidades que a docência numa instituição federal apresentavam. Pela narrativa é possível afirmar que se não houvesse essa relação social específica Ricardo não teria se tornado professor do EMI (pelo menos não naquelas circunstâncias). O segundo ator cuja relação com Ricardo serviu de orientação ao longo de sua jornada é, coincidentemente, o irmão de Olívia. À época, ele já havia se tornado professor da UNED Mossoró, conhecia Ricardo desde antes de ambos ingressarem na instituição e tinha já alguma experiência como professor, igualmente bacharel. Diante dos primeiros percalços da docência no EMI, é esse colega que oferece sugestões práticas para que Ricardo se sentisse mais seguro e menos frustrado em sala de aula. Assim como aconteceu com Olívia, essa relação de orientação teve um tempo limitado; a partir de certo ponto, Ricardo passou a desenvolver sua prática docente com suas próprias ideias. De maneira geral, as vozes que serviram de guia aos caminhantes vinham de muito perto: família, amigos, colegas de trabalho e seus próprios professores. Em alguns casos esse movimento interacional foi mais equilibrado, com os interlocutores provendo estímulo para a reflexão acerca de que direção tomar. Em outros momentos, a autonomia dos caminhantes 107 aparece diminuída, seja diante do peso do argumento utilizado ou do grau de autoridade que o outro exerce sobre o sujeito. 4.2 POR ONDE ANDARAM 4.2.1 Do sonho infantil à concretude do real Os narradores tiveram diversas aspirações profissionais ao longo da infância (mais uma vez excetua-se Ricardo, cuja infância não é narrada). Olívia quis ser médica e a seguir advogada; Adriana desejava ser comissária de bordo; Eduardo aspirava pela área do direito, por gostar muito de estudar e associar o ser advogado com o estudo frequente; Xavier, conta ter desejado ser astronauta e desenhista, além de arquiteto. A profissão docente não aparece nas narrativas vinculadas a esse momento primordial das vidas dos professores – apesar de Olívia e Eduardo terem mães professoras, dos pais de Adriana serem professores e do próprio Xavier contar que seus pais brincavam de “escolinha” com ele. Chegado o período da opção do direcionamento profissional, dois de nossos narradores consideraram a docência, embora com ressalvas. Sobre esse trecho nos caminhos narrados, importa ressaltar que a escolha “implica a renúncia, pelo menos por um determinado período, a outras identidades, e este ato (escolher e renunciar) representa justamente a transição da adolescência, em que ‘tudo é possível’, para a vida adulta, em que os compromissos surgem mais carregados de consequências” (HUBERMAN, 2000). Cada narrador, de maneira mais ou menos intensa, passou pela tensão que representa esse passo importante em direção à maturidade. Assim, em especial no caso de Olívia e de Eduardo, as reservas em relação à opção por uma identidade profissional docente se dão num contexto socialmente complexo e delicado. O que acontece com Olívia é que, ao final do Ensino Médio, ela direciona seu caminho para a docência, a princípio. Antes de dar os passos necessários nessa direção, ela compartilha essa orientação profissional com um professor de sua confiança. Esse professor, 108 possivelmente preocupado com o futuro de sua aluna, deixa entrever em sua devolutiva o discurso hegemônico de desvalorização da profissão docente: “dá muito trabalho” e esse trabalho não dá um retorno proporcional (seja esse retorno financeiro ou afetivo – ou ambos). Assim, o desprestígio da docência, mediado por um docente, leva Olívia a repensar sua orientação profissional em direção à engenharia. A respeito desse desprestígio, Arroyo (2000) tece uma reflexão pertinente para lançar luz sobre a direção dos caminhos dos narradores para destinos profissionais outros, que não a docência: Vimos como o magistério é um modo de ser, uma produção histórica que traz as marcas de nossa formação social e cultural. O magistério primário, básico foi se configurando na medida exata da configuração dos setores populares. Esta é uma das marcas. Em nossa história de pouco mais de um século de consolidação da Instrução Pública a maioria das professoras e professores têm como origem os setores populares e as camadas médias baixas. Essa tendência vem dos primórdios da instrução primária e se afirma nas últimas décadas. Salário de professor(a) nunca foi para filho(a) de quem tem posses e dinheiro (ARROYO, 2000, p. 2000). Não posso afirmar aqui a origem socioeconômica dos narradores e colocá-la em questão diante do que afirma o autor. Entretanto é inegável a relação socialmente difundida entre o ser professor e o não ter um padrão de vida confortável. Tanto que os dois narradores que de fato chegaram a considerar a docência como carreira profissional (um com ressalvas e outra por um período breve) são justamente aqueles que tinham uma mãe professora da Educação Básica (Eduardo e Olívia). O fator socioeconômico implicado na opção profissional pela docência é inegavelmente preocupante, posto que a “remuneração é um aspecto fundamental para qualquer profissão, principalmente numa sociedade sob a lógica capitalista, e não é diferente quando se trata da docência no contexto do sistema educacional brasileiro atual” (ALVES; PINTO, 2011, p. 609). Assumir o caminho da docência significa estar disposto a se enquadrar num extrato socioeconômico inferior ao de profissionais com o mesmo nível de formação. Alves e Pinto (2011) indicam que: um quinto dos professores brasileiros pertence a famílias cujo rendimento mensal per capita é de até um salário mínimo; 34,6%, o grupo com maior proporção, está na faixa de rendimento maior do que um até dois salários; 18,8% têm rendimento maior do que dois até três; e cerca de um quarto tem rendimento per capita domiciliar superior a três salários. Entretanto, as variações regionais revelam grandes disparidades. No Nordeste, por exemplo, 42,5% das famílias dos professores