Baixe Requisitos da Espressão Literária - Olavo de Carvalho e outras Trabalhos em PDF para Comunicação, somente na Docsity! Sapientiam Autem Non Vincit Malitia www.seminariodefilosofia.org Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio, sem a permissão expressa do autor. 1 Requisitos da expressão literária1 por Olavo de Carvalho I. É espantoso o número de pessoas nominalmente cultas, com diploma universitário, que acreditam seriamente na idéia de que os escritores escrevem suas obras espontaneamente, como livre expressão que flui da sua subjetividade, sem nenhum cuidado técnico nem muito menos base teórica. Ars sine scientia nihil: a literatura requer, sim, o domínio consciente dos meios técnicos de expressão, requer uma intencionalidade, uma reflexão, uma ciência enfim, e é por isto mesmo que ela é uma arte, isto é, elaboração consciente e inteligente de um objeto, atividade portanto humana, dotada de significação intencional e de comunicabilidade voluntária, de homem a homem, de sujeito a sujeito, de igual a igual, o que não se dá na natureza. O objeto de natureza nos fala, por certo; a árvore fala, fala o pôr-do-sol, fala a tempestade; mas fala-nos desde baixo, não de igual para igual: fala ao homem que compreende, mas não compreende o homem a quem fala. O homem pode ver presságios ou símbolos no vôo do pássaro; mas o pássaro só vê, no seu próprio vôo, o objetivo imediato ditado pelo instinto, e passa ao largo, indiferente ao sentido que nele vê o homem que o observa. A natureza nos fala, mas não nos ouve. Inversamente, se enxergamos na natureza a projeção vivente da vontade de Deus, então ela é portadora de uma Inteligência que nos transcende infinitamente; que nos compreende, mas que raramente compreendemos. A natureza enquanto puro fenômeno fala-nos desde baixo; a natureza enquanto símbolo vivente do Logos fala-nos desde cima. Somente o homem, nosso irmão, nos fala de igual para igual. Sua obra, para diferenciar-se da obra da natureza e da de Deus, chama-se arte. O artista pode ser-nos enormemente superior, em inteligência, em profundidade de intuições e sentimentos, em qualidade moral. Mas não será jamais diferente de nós quanto à espécie, como é diferente de nós o animal, como é diferente de nós Deus. O homem, por maior que seja, é sempre homem. O homem caracteriza-se pela linguagem consciente (rationalitas) e pela carnalidade, pelo nexo indissolúvel dessa racionalidade com a condição terrestre e animal de vida, no quadro das medidas de espaço, de tempo e de número que nos prendem à matéria que nos resiste com sua opacidade, e que se trata, precisamente, de vencer: não de destruir. A vitória da forma sobre a matéria, celebrada pela matéria mesma elevada a um esplendor translúcido e harmonioso, é o que denominamos arte; e isto não se consegue a esmo, pelo simples jogo dos instintos e caprichos de uma mente autolátrica e teimosamente cega; mas consegue-se pela inteligência, pela intencionalidade aplicada, pelo conhecimentodos nexos analógicos que permitem um diálogo entre a forma intencionada e a matéria que lhe resiste, e depois lhe cede, e depois com ela se funde com tal felicidade que nos parece jamais terem estado separadas. Isto é a arte: fixação viva de um saber num objeto que, mais que o expressar, o é. II. Se perguntamos: “O escritor tem de ter portanto domínio consciente do seu instrumento linguístico de expressão?”, a resposta é: sim, contanto que não se entenda por “instrumento” um simples canal neutro, amorfo e indiferente por onde um “conteúdo” prévio escorre sem sofrer alterações, mas, ao contrário, uma ferramenta ativa e fecundante que retroage sobre esse conteúdo para lhe dar vida, profundidade, cor, plenitude de significação, existência. O mesmo se dá na música e nas outras artes. Se um músico pode expressar melhor seus sentimentos ao tocar um instrumento que domine com maior mestria do que 1 Apostila do curso Introdução à Vida Intelectual para a aula de 28 maio 1988. Sapientiam Autem Non Vincit Malitia www.seminariodefilosofia.org Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio, sem a permissão expressa do autor. 2 um outro em que seja inábil, inversamente é também verdade que o domínio progressivamente maior que ele vá adquirindo sobre o instrumento de expressão retroagirá sobre a consciência que ele tem desses sentimentos, revelando neles novas nuances, novos nexos, novas profundidades que permaneceriam para sempre soterradas no desconhecimento se um instrumento habilmente manejado não as houvesse, por uma felicidade quase que impremeditada, trazido à luz, de mescla com as premeditadas. Toda expressão, se artística, é assim também necessariamente retro-impressão, conscientizadora e vivificante, e é assim que se aprimora o estilo, até o ponto em que um novo melhoramento poria tudo a perder, e está portanto acabada a obra. Sim, o escritor tem de ter domínio consciente dos seus meios de expressão, porque estes meios não são só de expressão, mas de conhecimento mesmo do “conteúdo”. Sim, porque eles retroagem sobre o conteúdo e, ao esclarecê-lo, não raro o corrigem e modificam. A ciência do instrumento literário não é nunca somente um meio de escrever, mas sim também de pensar, de conhecer, de melhorar e de ser. Sem eles o escritor não somente escreveria mal: apreenderia mal, compreenderia mal, e mal teria o que dizer. O domínio dos meios de expressão pode influenciar de tal modo o homem que o possui, que uma reforma do estilo resulta em ser, na grande maioria dos casos, uma reforma total da personalidade, o surgimento de um homem novo desde a medula. III. Que é a literatura? Tomem um exemplo mais simples: Que é música? A definição se faz por gênero próximo e diferença específica. Todo mundo sabe que a música é algo referente a som. Som é, portanto, o gênero. Qual a diferença específica entre a música e outros tipos de som? A música é som organizado, responderão. Portanto, “organizado” é a diferença específica. Podemos objetar, no entanto, que a fala humana também não é um som inarticulado e caótico. “Organizado”, então, não é uma diferença suficientemente específica. Neste caso, passa a ser gênero. Qual a diferença específica entre a música e outras formas de som organizado? Vocês podem responder, por exemplo: a música é organizada esteticamente. Mas a poesia também é assim. “Esteticamente” não é uma diferença suficientemente específica, e esta definição, ademais, teria o defeito de nos obrigar a adefinir preliminarmente o que é arte. Vejamos outra hipótese: música, dirão, é som organizado matematicamente. Não serve: porque o ritmo de uma máquina que funcione regularmente – um bate-estacas, digamos – também é matemático. Compreendem o processo lógico de busca da definição? É o método de Sócrates: encontrado o gênero, criticar as diferenças específicas, até encontrar uma que seja perfeitamente adequada, uma que não sirva a nenhum outro objeto senão àquele que se deseje definir. Para encurtar a história, dizemos então que a música é organização do som enquanto tal. Esta diferença é suficientemente específica, porque as outras formas de organização do som estão vinculadas a alguma finalidade que nada tem diretamente a ver com o som; por exemplo, a poesia organiza o som em vista da significação linguística; o bate-estacas é som organizado acidentalmente; etc. Ao passo que a música é organizar o som para organizar o som, e para nada mais. Esta definição, é claro, pode ser completada e aperfeiçoada; podemos dizer que a organização no caso é intencional, que é estética, etc., mas isto não mudará em nada a definição. Notem que, bem usada, a definição não é apenas um artifício lógico, isto é, uma combinatória mental, mas um modo efetivo de cingir uma coisa a seus limites reais, um modo de destacar, de dar relevo à coisa para que esta possa ser claramente distinguida daquelas que a rodeiam. A definição lógica é um instrumento auxiliar da percepção, quando bem usada. Pessoas de mente tosca, quando aprendem umas noções de lógica, logo se perdem na combinatória formal e tomam os entes de razão como entes reais, e vice-versa. A lógica, como toda ciência, é um auxiliar para determinada função natural, e, se esta é deficiente num indivíduo, a ciência não pode, por si, suprir essa deficiência. Por exemplo, a pintura baseia-se no sentido natural da visão, e se o sujeito é cego não adianta querer lhe ensinar pintura. Do mesmo modo, a