Baixe Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho e outras Notas de aula em PDF para Política Econômica, somente na Docsity! PARA COMPREENDER
A POLITICA BRASILEIRA
SUBSÍDIOS PARA O CURSO
a MACRO
BIAL
BS
Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho
Olavo de Carvalho
Para compreender a política brasileira
Subsídios para o curso “Política e Cultura no Brasil: História e
Perspectivas”.
E-book
Para circulação interna do Seminário de Filosofia
Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho O que estou fazendo aqui Diário do Comércio, 8 de fevereiro de 2016 A característica fundamental das ideologias é o seu caráter normativo, a ênfase no “dever ser”. Todos os demais elementos do seu discurso, por mais denso ou mais ralo que pareça o seu conteúdo descritivo, analítico ou explicativo, concorrem a esse fim e são por ele determinados, ao ponto de que as normas e valores adotados decidem retroativamente o perfil da realidade descrita, e não ao inverso. Isso não quer dizer que às ideologias falte racionalidade: ao contrário, elas são edifícios racionais, às vezes primores de argumentação lógica, mas construídos em cima de premissas valorativas e opções seletivas que jamais podem ser colocadas em questão. Daí que, como diz A. James Gregor, o grande estudioso do fenômeno revolucionário moderno, o discurso ideológico seja “enganosamente descritivo”: quando parece estar falando da realidade, nada mais faz do que buscar superfícies de contraste e pontos de apoio para o “mundo melhor” cuja realização é seu objetivo e sua razão de ser. Se o cidadão optou pelo socialismo, ele descreverá o capitalismo como antecessor e adversário, suprimindo tudo aquilo que, na sociedade capitalista, não possa ser descrito nesses termos. Se escolheu a visão iluminista da democracia como filha e culminação da razão científica, descreverá o fascismo como truculência irracional pura, suprimindo da História as décadas de argumentação fascista – tão racional quanto qualquer outro discurso ideológico – que prepararam o advento de Mussolini ao poder. Tendo isso em vista, a coisa mais óbvia domundo é que nenhumdosmeus escritos e nada do que eu tenha ensinado em aula tem caráter ideológico, e que descreverme como “ideólogo da direita”, ou ideólogo do que quer que seja, só vale como pejorativo difamatório, tentativa de me reduzir à estatura mental do anão que assim me rotula. Podem procurar nos meus livros, artigos e aulas. Não encontrarão qualquer especulação sobre a “boa sociedade”, muito menos um modelo dela. Posso, no máximo, ter subscrito aqui ou ali, de passagem e sem lhe prestar grande atenção, este ou aquele preceito normativo menor em economia, em educação, em política eleitoral ou em qualquer outro domínio especializado, sem nenhuma tentativa de articulálos e muito menos de sistematizálos numa concepção geral, numa “ideologia”. 4 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho Isso deveria ser claro para qualquer pessoa que saiba ler, e de fato o seria se a fusão de analfabetismo funcional, malícia e medo caipira do desconhecido não formasse aquele composto indissolúvel e inalteravelmente fedorento que constitui a forma mentis dos nossos “formadores de opinião” hoje em dia (refirome, é claro, aos mais populares e vistosos e à sua vasta plateia de repetidores no universo bloguístico, não às exceções tão honrosas quanto obscuras, das quais encontro alguns exemplos neste mesmo Diário do Comércio). É óbvio que essas pessoas são incapazes de raciocinar na clave do discurso descritivo. Não dizem uma palavra que não seja para “tomar posição”, ou melhor, para ostentar uma autoimagem lisonjeira perante os leitores, devendo, para isso, contrastála com algum antimodelo odioso que, se não for encontrado, tem de ser inventado com deboches, caricaturações pueris e retalhos de aparências. A coisamais importante na vida, para essas criaturas, é personificar ante os holofotes alguns valores tidos como bons e desejáveis, como por exemplo “a democracia”, “os direitos humanos”, “a ordem constitucional”, “a defesa das minorias”, etc. e tal, colocando nos antípodas dessas coisas excelentíssimas qualquer palavra que lhes desagrade. Alguns desses indivíduos tiveram as suas personalidades tão completamente engolidas por esses símbolos convencionais do bem, que chegam a tomar qualquer reclamação, insulto ou crítica que se dirija às suas distintas pessoas como um atentado contra a democracia, um virtual golpe de Estado. O desejo de personificar coisas bonitas como a democracia e a ordem constitucional é aí tão intenso que, no confronto entre esquerda e direita, os dois lados se acusam mutualmente de “golpistas” e “fascistas”. Melhor prova de que se trata de meros discursos ideológicos não se poderia exigir. Da minha parte, meus escritos políticos dividemse entre a busca de conceitos descritivos cientificamente fundados e a aplicação desses conceitos ao diagnóstico de situações concretas, complementado às vezes por prognósticos que, ao longo de mais de vinte anos, jamais deixaram de se cumprir. Dessas duas partes, a primeira está documentada nas minhas apostilas de aulas (especialmente dos cursos que dei na PUC do Paraná), a segunda nos meus artigos de jornal. Os leitores destes últimos não têm acesso direto à fundamentação teórica, mas encontram neles indicações suficientes de que ela existe, de que não se trata de opiniões soltas no ar, mas, como observouMartin Pagnan, de ciência 5 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho política no sentido estrito em que a compreendia o seu mestre e amigo, Eric Voegelin. Não há, entre os mais incensados “formadores de opinião” deste país jornalísticos ou universitários , um só que tenha a capacidade requerida, já não digo para discutir esse material, mas para apreendêlo como conjunto. Descrevo aí as coisas como as vejo por meio de instrumentos científicos de observação, pouco me importando se vou “dar a impressão” de ser democrata ou fascista, socialista, neocon, sionista, católico tradicionalista, gnóstico ou muçulmano. Tanto que já fui chamado de todas essas coisas, o que por si já demonstra que os rotuladores não estão interessados em diagnósticos da realidade,mas apenas em inventar, naquilo que lêem, o perfil oculto do amigo ou do inimigo, para saber se, na luta ideológica, devem louválo ou achincalhálo. A variedade mesma das ideologias que me atribuem é a prova cabal de que não subscrevo nenhuma delas, mas falo numa clave cuja compreensão escapa ao estreito horizonte de consciência dos ideólogos que hoje ocupam o espaço inteiro da mídia e das cátedras universitárias. Suas reações histéricas e odientas, suas poses fingidas de superioridade olímpica, sua invencionice entre maliciosa e pueril, seus afagos teatrais de condescendência paternalista entremeados de insinuações pérfidas, são os sintomas vivos de uma inépcia coletivamonstruosa, como jamais se viu antes em qualquer época ou nação. O que neste país se chama de “debate político” é de umamiséria intelectual indescritível, que por si só já fornece a explicação suficiente do fracasso nacional em todos os domínios – economia, segurança pública, justiça, educação, saúde, relações internacionais etc. Digo isso porque a intelectualidade falante demarca a envergadura e a altitude máximas da consciência de umpovo. Sua incapacidade e sua baixeza, que venho documentando desde os tempos do Imbecil Coletivo (1996), mas que depois dessa época vieram saltando do alarmante ao calamitoso e daí ao catastrófico e ao infernal, refletemse na degradação mental e moral da população inteira. De todos os bens humanos, a inteligência –e inteligência não quer dizer senão consciência –se distingue dos demais por um traço distintivo peculiar: quanto mais a perdemos, menos damos pela sua falta. Aí as mais óbvias conexões de causa e efeito se tornam um mistério inacessível, um segredo esotérico impensável. A conduta desencontrada e absurda tornase, então, a norma geral. Durante quarenta anos, os brasileiros deixaram, sem reclamar, que seu 6 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho Direitista à força Diário do Comércio, 19 de maio de 2014 Desde que comecei a ler livros, meu sonho era um dia emergir do meio social culturalmente depressivo e ter um círculo de amigos com quem pudesse conversar seriamente sobre arte, literatura, filosofia, religião, as perplexidades morais da existência e a busca do sentido da vida – o ambiente necessário para um escritor desenvolver sua autoconsciência e seus talentos. Li centenas de biografias de escritores e todos eles tiveram isso. Nunca realizei esse sonho, nunca tive esse ambiente estimulante. Por volta dos quarenta anos, entendi que não o teria nunca, e decidi que minha obrigação era fazer tudo para que outros o tivessem. Minha atividade de ensino é voltada toda para isso. É com profundo desprezo que ouço gente dizendo que o objetivo dos meus esforços é "criar um movimento de direita". Não conheço coisa mais inútil do que tomadas de posição doutrinal em política. O sujeito adota certas regras gerais e delas deduz o que se deve fazer na prática. Por exemplo, acredita em liberdade individual e daí conclui que não se pode proibir o consumo de cocaína e crack. Ou acredita em justiça social e por isso acha que o governo deve controlar todos os preços e salários. O que caracteriza esse tipo de pensamento é a arbitrariedade das premissas, escolhidas na base da pura preferência pessoal, e o automatismo mecânico do raciocínio que leva às conclusões. No Brasil, praticamente todas as diferenças entre direita e esquerda se definem assim. A coisa tornase ainda pior pela tendência incoercível de raciocinar a partir de figuras de linguagem, chavões e clichês, em vez de conceitos descritivos criticamente elaborados. Isso torna o "debate político nacional" um duelo entre fetiches verbais imantados de uma carga emocional quase psicótica. Os fatos concretos, a complexidade das situações, as diferenças entre níveis de realidade, o senso das proporções e das nuances, ficam fora da conversa. Aristóteles já ensinava que a política não é uma ciência teoréticodedutiva, na qual as conclusões se seguissem matematicamente das premissas, mas uma ciência prática enormemente sutil, onde tudo dependia da frónesis, o senso da prudência, assim como do exercício da dialética. Mas a dialética é a arte de seguir ao mesmo tempo duas ou mais linhas de raciocínio, e a impossibilidade de fazer isso é, dentre as 28 deficiências de inteligência assinaladas pelo pedagogo israelense Reuven Feuerstein, certamente a mais disseminada entre estudantes, professores, jornalistas e formadores de opinião no Brasil. 9 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho Não raro essa deficiência é tão arraigada que chega a determinar, por si, toda a forma mentis de alguma personalidade falante. Naquilo que neste país se chama um "debate", o que se observa nos contendores é a incapacidade de apreender o argumento do adversário, a ausência de uma verdadeira relação intelectual, substituída pela reiteração de opiniões prontas que o debate em nada enriquece. O que me colocou contra a esquerda nacional desde o início dos anos 90 não foi nenhuma tomada de posição "liberal" ou "conservadora", mas a simples constatação de dois fatos: 1) a instrumentalização política das instituições de cultura e ensino pela "revolução gramsciana" estava acabando com a vida intelectual no Brasil e em breve iria reduzila a zero, como de fato veio a acontecer; 2) a opção preferencial dos partidos de esquerda pelo lumpenproletariat, tomado erroneamente como sinônimo de "povo" por influência residual de Herbert Marcuse, estava destinada a transformar a existência cotidiana dos brasileiros no carnaval sangrento que hoje vemos por toda parte. Como é óbvio e patente que a solução de quaisquer problemas na sociedade depende da dose de inteligência circulante e do nível de consciênciamoral da população, daí decorria que, para denunciar a atividademaligna da esquerda nacional, que estava destruindo essas duas coisas, não era preciso que eume definisse quanto àqueles inumeráveis pontos específicos de política econômicosocial em que tanto se deliciam os doutrinários de todos os partidos e que em muitos casos eu considerava superiores à minha capacidade de análise. Nos meus artigos, aulas e conferências, como o pode atestar qualquer observador isento, não se trata nunca de advogar determinada política em particular, mas apenas de lutar para que as condições intelectuais e morais mais genéricas e indispensáveis a qualquer debate político saudável não se percam ao ponto de desaparecer por completo do horizonte de consciência da classe nominalmente "intelectual". Quando essas condições forem restauradas, não terei a menor dificuldade de me voltar para assuntos da minha preferência e deixar que o debate político transcorra normalmente sem a minha gentil intervenção. Mas o fato é que, se a deterioração mental do País começou já no tempo dos militares, logo depois a esquerda triunfante a agravou ao ponto da mais desesperadora calamidade, e o fez de propósito, planejadamente, maquiavelicamente, disposta a tudo para impor, de um lado, a hegemonia cultural de cabos eleitorais, agitadores de botequim e doutores salafrários 10 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho com carteirinha do Partido; de outro, a beatificação do lumpenproletariado e a completa perversão da consciência moral na população brasileira. Até o momento nenhum partido de esquerda deu o menor sinal de arrependimento. Ao contrário, cada um se esmera na autoglorificação como se fosse uma plêiade de heróis e santos. Assim, nãome deixam remédio senão estar na direita, no mínimo porque esta, no momento, não tem os meios de concorrer com a esquerda na prática do mal. 11 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho Ciência e ideologia O Globo, 20 set. 2003 Vinte e quatro séculos atrás, Sócrates, Platão e Aristóteles lançaram as bases do estudo científico da sociedade e da política. Muito se aprendeu depois disso, mas os princípios que eles formularam conservam toda sua força de exigências incontornáveis. O mais importante é a distinção entre o discurso dos agentes e o discurso do cientista que o analisa.Doxa (opinião) e epistemê (ciência) são os termos que os designam respectivamente,mas estas palavras tanto se desgastaram pelo uso que para tornálas novamente úteis é preciso explicar seu sentido em termos atualizados. Foi o que fez Edmund Husserl com a distinção entre o discurso “préanalítico” e o discurso tornado consciente pela análise de seus significados embutidos. “Préanalítico” é o discurso que tem vários significados confusamente mesclados e por isso não serve para descrever nenhuma realidade objetiva, apenas para expressar o estado de espírito ele próprio confuso da pessoa que fala. Mas esse estado de espírito, esse amálgama de desejos, temores, anseios e expectativas, é por sua vez umum componente da situação objetiva. Por meio da análise, o estudioso decompõe os discursos dos vários agentes em distintas camadas de intenções e redesenha a situação segundo ummapa que pode sair bem diverso daquele imaginado pelos agentes. Por exemplo, na linguagem corrente podemos opor o comunismo ao anticomunismo como duas “ideologias”. Objetivamente, porém, o comunismo tem uma história contínua de 150 anos e,malgrado todas as suas dissidências e variantes, é um movimento histórico identificável, uma “tradição” que se prolonga justamente por meio do conflito interno. Já o “anticomunismo” abrange movimentos semnenhuma conexão ou parentesco entre si, que coincidem em rejeitar uma mesma ideologia por motivos heterogêneos e incompatíveis. Só para dar um exemplo extremo, o rabino Menachem Mendel Schneerson, célebre ativista antisoviético, era anticomunista por ser judeu ortodoxo; Joseph Goebbels era anticomunista por achar que o comunismo era uma conspiração judaica. Comunismo e anticomunismo só constituem espécies do mesmo gênero quando considerados como puras intenções verbais desligadas de suas encarnações históricas, isto é, da única realidade que possuem. O comunismo é uma “ideologia”, isto é, um discurso de autojustificação de um movimento político identificável. O anticomunismo não é uma ideologia de maneira alguma, mas a simples rejeição crítica de uma ideologia pormotivos que, em 14 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho si, não têm de ser ideológicos, embora possam ser absorvidos no corpo de diversas ideologias. Outro exemplo. O conceito nazista de “judeu” não correspondia a nenhuma realidade objetiva, e sim a um complexo de projeções imaginárias. Mas este complexo, por sua vez, expressava muito bem o que o nazista gostaria de fazer com as pessoas nas quais a imagem projetada se encaixasse de algum modo. Esse desejo, por sua vez, coincidia com os de seus companheiros de partido e dava ao nazista um senso de identidade como participante de um empreendimento coletivo, cuja unidade se reconhecia no ódio comum ao símbolo do seu inimigo ideal. Os líderes nazistas estavam conscientes disso. Hitler declarouo expressamente nas suas confissões a Hermann Rauschning, e Goebbels, quando o cineasta Fritz Lang recusou um cargo no governo alegando termãe judia, respondeu: “Quem decide quem é ou quem não é judeu sou eu.”Mas a massa dos militantes imaginava estar despejando seu rancor sobre um inimigo preciso e bem definido. Não é preciso dizer que os conceitos comunistas do “burguês” e do “proletário” são igualmente fantasmagóricos se bem que envoltos numa embalagem intelectualmente mais elegante. O próprio historiador marxista E. P. Thompson reconheceu que é impossível distinguir um “proletário” por traços econômicos objetivos: é preciso acrescentar informações culturais e até psicológicas entre as quais, é claro, a própria autoimagem do sujeito que se sente integrado nas “forças proletárias” pelo ódio à imagem do “burguês”. Os kulaks, que foram mortos aos milhões na URSS, eram nominalmente “camponeses ricos”. Ninguém sabia dizer se para ser catalogado como “rico” era preciso ter uma vaca, duas vacas ou talvez uma dúzia de galinhas, mas isso pouco interessava: o kulak era um símbolo, e a militância comunista no campo consistia em odiálo. A força da identidade grupal comunista, reiterada pelos constantes discursos de ódio, se projetava sobre o kulak e lhe conferia uma aparência de realidade social perfeitamente nítida. Por isso o militante não sentia ter errado de alvo quandomatava um camponês que não tivesse vacas nem galinhas,mas apenas um ícone da igreja russa na parede. A crença religiosa transferia a vítima para outra classe econômica. Também é evidente que o “latifundiário”, objeto de ódio do MST, não é nenhuma classe objetivamente identificável, mas um símbolo do malvado acumulador de bens agrários socialmente estéreis, símbolo que pode se ajustar, conforme as circunstâncias, até aos empreendimentos agrícolasmais úteis e benéficos, poupando de qualquer censura mais grave a imensidão de terras improdutivas do próprio MST. 15 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho É analisando e decompondo esses compactados verbais e comparandoos com os dados disponíveis que o estudioso pode chegar a compreender a situação em termos bem diferentes daqueles do agente político.Mas também é certo que os próprios conceitos científicos daí obtidos podem se incorporar depois no discurso político, tornandose expressões da doxa. É isso, precisamente, o que se denomina uma ideologia: umdiscurso de ação política composto de conceitos científicos esvaziados de seu conteúdo analítico e imantados de carga simbólica. Então é preciso novas e novas análises para neutralizar a mutação da ciência em ideologia. 16 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho algumas fundações bilionárias estavam usando seus recursos formidáveis “para destruir ou desacreditar o sistema de livre empresa que lhes deu nascimento”. Essas fundações estão hoje entre os mais robustos pilares de suporte do governo socialista de Barack Hussein Obama. O desconhecimento ou incompreensão desses fatos entre liberais e conservadores está na raiz de sua incapacidade de opor uma resistência séria à marcha triunfante do comunismo na América Latina. Muitos ainda acreditam, por exemplo, que será uma grande vitória da democracia obrigar as Farc a abandonar a luta armada para transformarse em partido legal. Não entendem que criar uma força política reconhecida é, no fim das contas, o único objetivo da luta armada – na Colômbia ou em qualquer outro lugar. Guerrilhas não vencem guerras: tudo o que desejam é uma derrota politicamente vantajosa. Por isso, ao mesmo tempo que trocam tiros com as forças do governo, na selva e nas cidades, colocam seus agentes em postoschave dos partidos esquerdistas legais, de onde clamam contra o derramamento de sangue e apelam dramaticamente ao retorno da legalidade. Fizeram isso no Brasil, fazem agora na Colômbia. Enquanto os liberais e conservadores não obtiverem uma clara visão de conjunto do fenômeno enormemente complexo do comunismo, enquanto insistirem em se opor somente às facetasmais imediatas e repugnantes desse movimento, se não apenas às doutrinas comunistas consideradas abstratamente, estarão condenados à derrota mesmo quando se julgam vencedores. O fato de que jamais tenha havido uma internacional anticomunista torna difícil para muitas pessoas obter essa visão de conjunto, que os próprios comunistas obtêm tão facilmente. Mas a ausência de suporte social não pode servir de desculpa para a preguiça intelectual. Há sempre algumas inteligências individuais capazes de raciocinar acima das perspectivas grupais, quando existem, ou sem elas, quando não existem. Nada justifica que essas inteligências permaneçam à margem das discussões públicas, deixando aos ignorantes o monopólio dos microfones. Neste como em todos os demais assuntos humanos, quem não estudou nada está cheio de certezas simplórias e as proclama com um ar de tremenda superioridade, sem perceber o papel ridículo que faz. Quem estudou fica às vezes parecendo maluco ou excêntrico, mas, afinal, para que é que alguém estuda, se não é para ficar sabendo de algo que a maioria não sabe? 19 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho Basta! Fora! Diário do Comércio, 11 de junho de 2015 Volto a explicar, agora ponto por ponto, a catástrofe estratégica monstruosa com que o PT destruiu a si mesmo e à nação. 1. No incipiente capitalismo brasileiro, as grandes empresas são quase sempre sócias do Estado, o único cliente que pode remunerálas à altura dos serviços que prestam. 2. Por isso elas acabam se incorporando ao “estamento burocrático” de que falava Raymundo Faoro: o círculo dos “donos do poder”, que fazem da burocracia estatal o instrumento dócil dos seus interesses grupais, em vez da máquina administrativa impessoal e científica que ela é nas democracias normais. 3. Nesse sentido, o sistema econômico brasileiro não é capitalista nem socialista, mas sim patrimonialista, como destacaram, além do próprio Faoro, vários estudiosos de orientação liberal, entre os quais Ricardo Velez Rodriguez, Antonio Paim e o embaixador J. O. de Meira Penna. 4. Nos anos 70 do século passado os intelectuais de esquerda que sonhavam em formar um grande partido de massas tomaram conhecimento do livro de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder. Formação do Patronato Político Brasileiro, então lançado em aumentadíssima segunda edição, e entenderam que o curso normal da revolução brasileira não deveria ser propriamente anticapitalista, mas antipatrimonialista: o ponto focal do combate já não seria propriamente “o capitalismo”, e sim – com nomes variados o “estamento burocrático”. 5. A definição do alvo era corretíssima, mas, ao mesmo tempo, o partido, como aliás toda a esquerda nacional, estava intoxicado de gramscismo e ansioso por tomar o poder por meio dos métodos do fundador do Partido Comunista Italiano, que preconizavam a infiltração generalizada e a “ocupação de espaços” destinadas a criar a “hegemonia”, isto é o controle do imaginário popular, da cultura, de modo a fazer do partido “o poder onipresente e invisível de um imperativo categórico, de um mandamento divino”. 6. A aplicação do esquema gramscista obtevemais sucesso no Brasil do que em qualquer outro país do mundo. Por volta dos anos 80, o modo comunopetista de pensar já havia se tornado tão habitual e quase natural entre as classes falantes no país, que os liberais e conservadores, inimigos potenciais dessa corrente, abdicaramde todo discurso próprio e, para se fazer 20 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho entender, tinham de falar na linguagem do adversário, reforçandolhe a hegemonia ideológica, mesmo quando obtinham sobre ele alguma modesta vitória eleitoral em troca. Entre os anos 90 e a década seguinte, toda política “de direita” havia desaparecido do cenário público, deixando o campo livre para a concorrência exclusiva entre frações da esquerda, separadas pela disputa de cargos apenas, sem nenhuma divergência séria no terreno ideológico ou mesmo estratégico. 7. O sucesso da operação produziu sem grandes dificuldades a vitória eleitoral de Lula numa eleição presidencial na qual, como ele próprio reconheceu, todos os candidatos eram de esquerda, o que canalizava os votos quase espontaneamente na direção daquele que personificasse o esquerdismo da maneira mais consagrada e mais típica. 8. Com Lula na Presidência, intensificouse formidavelmente a “ocupação de espaços”, fortalecendo a hegemonia ao ponto de levar ao completo aparelhamento da máquina estatal pelo comando comunopetista, que ao mesmo tempo precisava da ajuda das grandes empresas para cumprir o compromisso assumido no Foro de São Paulo, coordenação estratégica da política comunista no continente, no sentido de amparar e salvar do naufrágio os regimes e movimentos comunistas moribundos espalhados por toda parte. 9. Inevitavelmente, assim, o próprio partido governante se transformou no “estamento burocrático” que ele havia jurado destruir. E, imbuído da fé cega nos altos propósitos que alegava, atribuiuse em nome deles o direito de trapacear e roubar em escala incomparavelmente maior que a de todos os seus antecessores, sem admitir acima de si nenhuma autoridademoral à qual devesse prestar satisfações. O próprio sr. Lula expressou esse sentimento com candura admirável, afirmandose o mais insuperavelmente honesto dos brasileiros, ao qual ninguém teria o direito de julgar – e isso nomomento em que seu partido, abalado por uma tremenda sucessão de escândalos, já era conhecido no país todo como o partidoladrão por excelência. 10. Assim, não apenas o PT fortaleceu o patrimonialismo, como frisou o cientista político Ricardo Velez Rodriguez,mas se transformou ele próprio na encarnação mais pura e aparentemente mais indestrutível do poder patrimonialista, soldando numa liga indissolúvel a ilimitada pretensão esquerdista ao monopólio da autoridade moral, os anseios do movimento comunista continental, os interesses de grandes grupos industriais e bancários, o aparato cultural amestrado (mídia, show business, universidades) e, last not least, o instinto de sobrevivência da classe política praticamente inteira. 21 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho O plano era bom, em teoria, mas os estrategistas iluminados do comunopetismo se esqueceram de alguns detalhes: 1. Dominando a estrutura inteira do Estado em vez de se contentar com o Executivo, o partido se transformou no próprio “estamento burocrático” que antes ele jurava combater. Já expliquei isso em artigo anterior (leia aqui). 2. O apoio dos grandes grupos econômicos o descaracterizava ainda mais como “partido dos pobres” e o identificava cada vez mais com a elite privilegiada que ele dizia odiar. 3. O uso maciço das propinas e desvios de verbas como instrumentos de controle da classe política tornava o partido ainda mais cínico, egoísta e desonesto do que essa elite jamais tivera a ousadia de ser. O PT tornouse a imagem por excelência da elite criminosa e exploradora. 4. O PT havia sido, na década de 90, a forçamais ativa nas campanhas que sensibilizaram o povo para o fenômeno da corrupção entre os políticos. Ele criou. Assim. a atmosfera de revolta e até a linguagem do discurso de acusação que haveriam de fazer dele próprio, no devido tempo, omais odioso dos réus. 5. A “revolução cultural”, a “ocupação de espaços” e a instrumentação do Estado deram ao PT os meios de fazer uma “revolução por cima”, mas o deixaram desprovido de toda base popular autêntica. Ao longo dos anos, pesquisas atrás de pesquisas demonstravam que o povo brasileiro continuava acentuadamente conservador, odiando com todas as suas forças as políticas abortistas e a “ideologia de gênero” que o partido comungava gostosamente com a elite financeira e com o “proletariado intelectual” das universidades e do show business. Desprovidas as massas de todo meio de expressarse na mídia e de canais partidários para fazer valer a sua opinião, no coração do povo foi crescendo uma revolta surda, inaudível nas altas esferas, que mais cedo ou mais tarde teria de acabar eclodindo à plena luz do dia, como de fato veio a acontecer, surpreendendo e abalando a elite petista ao ponto de despertar nela as reações mais desesperadas e semiloucas, desde a afetação grotesca de tranquilidade olímpica até a fanfarronada do apelo às “armas” seguido de trêmulas desculpas esfarrapadas. A convergência de todos os fatores produziu um resultado que só pessoas de inteligência precária como os nossos congressistas, os nossos cientistas políticos e os nossos analistas midiáticos não conseguiriam prever: quando a mídia pressionada pelas redes sociais e pela pletora de denúncias judiciais desistiu de continuar acobertando os crimes do PT (voltarei a isto em artigo próximo), a revolta contra o esquema comunopetista tomou as ruas, nas 24 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho maiores manifestações de protesto de toda a nossa História e, mesmo fora dos dias de passeata, continuou se expressando por toda parte sob a forma de vaias e panelaços, obrigando os falsos ídolos a esconderse em casa, sem poder mostrar suas caras nem mesmo nos restaurantes. As pesquisasmostram que o apoio popular ao PT é hoje de somente umpor cento, já que seis dos famosos sete consideram o governo apenas “regular”, isto é, tolerável. Como é possível que um partido assim desprezado, odiado e achincalhado pela maioria ostensiva da população continue se achando no direito de governar e habilitado a salvar o país mediante desculpinhas grotescas que, à acusação de crimes, respondem com uma confissão de “erros”? Em que se funda o poder que o PT, acuado e desmoralizado, continua a desfrutar? Esse poder fundase em apenas quatro coisas: 1. O apoio da oligarquia cúmplice. 2. A militância subsidiada, cada vez mais escassa, incapaz de mobilizarse sem o estímulo dos sanduíches de mortadela, dos cinquenta reais e do transporte em ônibus, tudo pago com dinheiro público. 3. O apoio externo, não só do governo Obama, dos organismos internacionais e de alguns velhos partidos da esquerda europeia, mas sobretudo do Foro de São Paulo, já articulado paramover guerra ao Brasil em caso de destituição do PT. 4. Uma militância estudantil, também decrescente, que tudo fará pelas grandes causas idealísticas que a animam: drogas e camisinhas para todos, operações transex pagas pelo governo, banheiros unissex, liberdade de fazer sexo em público no campus, reconhecimento do sexo grupal como “nova modalidade de família” etc. Etc. A base de apoio do PT é uma casquinha da aparência na superfície de uma sociedade em vias de explodir. O único fator que realmentemantém esse partido no poder é o temor servil com que as forças ditas “de oposição” encaram uma possível crise de governabilidade e, sob a desculpa da “legalidade”, e da “normalidade democrática”, insistem em dar ao comunopetismo uma sobrevida artificial, encarregando a classe política de ajudálo a respirar com aparelhos ou pelo menos a matálo só aos pouquinhos, de maneira discreta e indolor. Mas que legalidade é essa? Por favor, leiam: Constituição Federal, Título I, Art. V, parágrafo único: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente. ” 25 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho Será que o “diretamente” não valemais? Foi suprimido? Os representantes eleitos adquiriram o direito de decidir tudo por si, contra a vontade expressa do povo que os elegeu? Só eles, e não o povo, representam agora a “ordem democrática”? Senhores deputados, senadores, generais e importantões em geral: Quem meteu nas suas cabeças que a ordem constitucional é personificada só pelos representantes e não, muito acima deles, por quem os elegeu? Parem se ser hipócritas: defender “as instituições” contra o povo que as constituiu é traição. A vontade popular é clara e indisfarçável: Fora Dilma, Fora PT, Fora o Foro de São Paulo! Contra a vontade popular, a presidente, seusministros, o Congresso inteiro e o comando das Forças Armadas não têm autoridade nenhuma. Se vocês não querem fazer a vontade do povo, saiam do caminho e deixem que ele a faça por si. 26 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho Faoro tornouse quase espontaneamente o santo padroeiro do novo partido. Sua casa era frequentada assiduamente pelo sr. Luís Inácio Lula da Silva, que em 1989 chegou a convidálo, em vão, para ser candidato à vicepresidência. Vestindo a camiseta faoriana de inimigo primordial da apropriação privada dos poderes públicos, o PT fez um sucesso tremendo nos anos 90, como denunciadormor da corrupção nas altas esferas federais e promotor de uma vasta campanha pela “ética na política”, que resultou na quase beatificação do seu líder principal (quando Lula viajava pelas áreasmais pobres doNordeste, doentes vinham lhe pedir que os curasse por imposição demãos, como os reis da França). Àquela altura, o partido parecia mesmo resumir e encarnar o espírito da “Revolução Brasileira”, com toda a expectativa messiânica embutida nesse símbolo. Daí a vitória espetacular de Lula na eleição de 2002. Aconteceu – sempre acontece alguma coisa – que a liderança esquerdista em geral, e a petista em especial, não lia nem seguia só Raymundo Faoro. Desde os anos 6070 lia comdeleitação crescente os Cadernos do Cárcere e as Cartas de Antonio Gramsci, o fundador do Partido Comunista Italiano e criador da estratégia comunista mais sutil e mais calhorda de todos os tempos: a “revolução cultural” a ser implementada mediante a “ocupação de espaços” em todos os órgãos da administração pública, da mídia, do ensino etc., para culminar no momento em que todo o povo seria socialista sem saber e o partido se tornaria “um poder onipresente e invisível”. Se Faoro forneceu ao PT a sua identidade aparente e a base do seu discurso “ético”, foi Gramsci quem deu à agremiação a sua estratégia e as suas táticas substantivas. “Gramscismo sob pretextos faorianos” é uma expressão que resume perfeitamente bem a política do PT ao longo de toda a sua existência. Nunca um partido teve tão bela oportunidade de colocar em prática uma estratégia estritamente comunista sob uma camuflagem weberiana tão insuspeita. Tudo parecia perfeito. Diante de uma plateia sonsa, a quem a sugestão de que houvesse algum comunismo nisso soava como delírio de “saudosistas da Guerra Fria”, o partido foi “ocupando espaços” e concentrando poder até fazer da administração federal inteira – sem contar o sistema de ensino e a mídia – o instrumento servil dos seus objetivos privados. Nenhum, nenhum dos seus guias iluminados notou que era impossível fazer isso sem que o partido se transformasse, ele próprio, no odioso e odiado “estamento burocrático”, com o formidável agravante de que, na ânsia de concentrar todo o poder em suas mãos, e sempre enleado na boa consciência 29 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho de servir à causa da Revolução Brasileira, passou a roubar, trapacear e explorar o povo incomparavelmente mais do que todos os estamentos anteriores. Faoro morreu em maio de 2003, quatro meses depois de Lula tomar posse no seu primeiro mandato, e não teve tempo de meditar, nem muito menos de alertar o PT, quanto ao desastre que a síntese artificiosa e perversa, o “faorogramscismo”, anunciava como desenvolvimento fatal do processo. Inevitavelmente, os papéis se inverteram: transmutado por obra do gramscismo na encarnação máxima e mais cínica do “tipo tradicional de dominação política, em que o poder não é uma função pública, mas sim objeto de apropriação privada”, o PT, quando por fim a população emmassa se voltou contra ele, revoltada ante os maiores escândalos financeiros de todos os tempos, no fundo dos quais ela enxergava ainda que vagamente a premeditação gramsciana, viuse perdido, desorientado, atônito, seus líderes ora escondendose no palácio como aristocratas assustados na Paris de 1789, ora tentando camuflar o medo mediante bravatas truculentas de um ridículo sem par. Sim, a Revolução Brasileira está nas ruas. É ela, e não outro personagem qualquer. E veio com mais força do que nunca, brotando da pura espontaneidade popular, quase sem líderes (ou com tantos que se diluemuns aos outros), sem dinheiro, sem respaldo em partidos – o povo contra o “estamento burocrático”. Como diria o próprio alvo supremo da ira popular, “nunca ânftef na iftória dêfte paíf” esse povo demonstrou vontade tão firme e inabalável de ser seu próprio mentor e guia, de criar sua própriaHistória, de mandar às favas todos os importantões e de calar de vez as bocas dos mentirosos. A começar pelas da sra. Rousseff e do sr. Lula. Quem mandou o PT confiar nas falsas espertezas do gramscismo? Deus realmente escreve direito por linhas tortas 30 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho A mentalidade revolucionária Diário do Comércio, 16 de agosto de 2007 Desde que se espalhou por aí que estou escrevendo um livro chamado “A Mente Revolucionária”, tenho recebido muitos pedidos de uma explicação prévia quanto ao fenômeno designado nesse título. A mente revolucionária é um fenômeno histórico perfeitamente identificável e contínuo, cujos desenvolvimentos ao longo de cinco séculos podem ser rastreados numa infinidade de documentos. Esse é o assunto da investigação que me ocupa desde há alguns anos. “Livro” não é talvez a expressão certa, porque tenho apresentado alguns resultados desse estudo em aulas, conferências e artigos e já nem sei se algum dia terei forças para reduzir esse material enorme a um formato impresso identificável. “Amente revolucionária” é o nome do assunto e não necessariamente de um livro, ou dois, ou três. Nunca me preocupei muito com a formatação editorial daquilo que tenho a dizer. Investigo os assuntos queme interessam e, quando chego a algumas conclusões que me parecem razoáveis, transmitoas oralmente ou por escrito conforme as oportunidades se apresentam. Transformar isso em “livros” é uma chatice que, se eu pudesse, deixaria por conta de um assistente. Como não tenho nenhum assistente, vou adiando esse trabalho enquanto posso. A mente revolucionária não é um fenômeno essencialmente político, mas espiritual e psicológico, se bem que seu campo de expressãomais visível e seu instrumento fundamental seja a ação política. Para facilitar as coisas, uso as expressões “mente revolucionária” e “mentalidade revolucionária” para distinguir entre o fenômeno histórico concreto, com toda a variedade das suas manifestações, e a característica essencial e permanente que permite apreender a sua unidade ao longo do tempo. “Mentalidade revolucionária” é o estado de espírito, permanente ou transitório, no qual um indivíduo ou grupo se crê habilitado a remoldar o conjunto da sociedade – senão a natureza humana em geral – por meio da ação política; e acredita que, como agente ou portador de um futuromelhor, está acima de todo julgamento pela humanidade presente ou passada, só tendo satisfações a prestar ao “tribunal da História”. Mas o tribunal da História é, por definição, a própria sociedade futura que esse indivíduo ou grupo diz representar no presente; e, como essa sociedade não pode testemunhar ou julgar senão através desse seu mesmo representante, é claro que este se torna assim não apenas o único juiz soberano de seus próprios 31 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho natureza, totalitária e universalmente expansiva: não há aspecto da vida humana que ela não pretenda submeter ao seu poder, não há região do globo a que ela não pretenda estender os tentáculos da sua influência. Se, nesse sentido, vários movimentos políticomilitares de vastas proporções devem ser excluídos do conceito de “revolução”, devem ser incluídos nele, em contrapartida, váriosmovimentos aparentemente pacíficos e de natureza puramente intelectual e cultural, cuja evolução no tempo os leve a constituirse em poderes políticos com pretensões de impor universalmente novos padrões de pensamento e conduta por meios burocráticos, judiciais e policiais. A rebelião húngara de 1956 ou a derrubada do presidente brasileiro João Goulart, nesse sentido, não foram revoluções de maneira alguma. Nemo foi a independência americana, um caso especial que terei de explicar num outro artigo. Mas sem dúvida são movimentos revolucionários o darwinismo e o conjunto de fenômenos pseudoreligiosos conhecido como Nova Era. Todas essas distinções terão de ser explicadas depois em separado e estão sendo citadas aqui só a título de amostra. * * * Entre outras confusões que este estudo desfaz está aquela que reina nos conceitos de “esquerda”e “direita”. Essa confusão nasce do fato de que essa dupla de vocábulos é usada por sua vez para designar duas ordens de fenômenos totalmente distintos. De um lado, a esquerda é a revolução em geral, e a direita a contrarevolução. Não parecia haver dúvida quanto a isso no tempo em que os termos eram usados para designar as duas alas dos Estados Gerais. A evolução dos acontecimentos, porém, fez com que o próprio movimento revolucionário se apropriasse dos dois termos, passando a usálos para designar suas subdivisões internas. Os girondinos, que estavam à esquerda do rei, tornaramse a “direita” da revolução, na mesma medida em que, decapitado o rei, os adeptos do antigo regime foram excluídos da vida pública e já não tinhamdireito a uma denominação política própria. Esta retração do “direitismo” admissível, mediante a atribuição do rótulo de “direita” a uma das alas da própria esquerda, tornouse depois um mecanismo rotineiro do processo revolucionário. Ao mesmo tempo, remanescentes contrarevolucionários genuínos foram freqüentemente obrigados a aliarse à “direita”revolucionária e a confundirse com ela para poder conservar alguns meios de ação no quadro criado pela vitória da revolução. Para complicar mais as coisas, uma vez excluída a contrarevolução do repertório das idéias politicamente admissíveis, o ressentimento contrarevolucionário continuou existindo como fenômeno psicosocial, e muitas vezes foi usado pela esquerda revolucionária como 34 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho pretexto e apelo retórico para conquistar para a sua causa faixas de população arraigadamente conservadoras e tradicionalistas, revoltadas contra a “direita” revolucionária imperante no momento. O apelo do MST à nostalgia agrária ou a retórica pseudotradicionalista adotada aqui e ali pelo fascismo fazem esquecer a índole estritamente revolucionária desses movimentos. O próprio Mao Dzedong foi tomado, durante algum tempo, como um reformador agrário tradicionalista. Também não é preciso dizer que, nas disputas internas do movimento revolucionário, as facções em luta com freqüência se acusam mutuamente de “direitistas” (ou “reacionárias”). À retórica nazista que professava destruir ao mesmo tempo “a reação” e “o comunismo” correspondeu, no lado comunista, o duplo e sucessivo discurso que primeiro tratou os nazistas como revolucionários primitivos e anárquicos e depois como adeptos da “reação” empenhados em “salvar o capitalismo” contra a revolução proletária. Os termos “esquerda” e “direita” só têm sentido objetivo quando usados na sua acepção originária de revolução e contrarevolução respectivamente. Todas as outras combinações e significados são arranjos ocasionais que não têm alcance descritivo mas apenas uma utilidade oportunística como símbolos da unidade de um movimento político e signos demonizadores de seus objetos de ódio. Nos EUA, o termo “direita” é usado ao mesmo tempo para designar os conservadores em sentido estrito, contrarevolucionários até à medula, e os globalistas republicanos, “direita” da revolução mundial. Mas a confusão existente no Brasil émuito pior, onde a direita contrarevolucionária não tem nenhuma existência política e o nome que a designa é usado, pelo partido governante, para nomear qualquer oposição que lhe venha desde dentro mesmo dos partidos de esquerda, ao passo que a oposição de esquerda o emprega para rotular o próprio partido governante. Para mim está claro que só se pode devolver a esses termos algum valor descritivo objetivo tomando como linha de demarcação o movimento revolucionário como um todo e opondolhe a direita contrarevolucionária, mesmo onde esta não tenha expressão política e seja apenas um fenômeno cultural. A essência da mentalidade contrarevolucionária ou conservadora é a aversão a qualquer projeto de transformação abrangente, a recusa obstinada de intervir na sociedade como um todo, o respeito quase religioso pelos processos sociais regionais, espontâneos e de longo prazo, a negação de toda autoridade aos portavozes do futuro hipotético. 35 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho Nesse sentido, o autor destas linhas é estritamente conservador. Entre outros motivos, porque acredita que só o ponto de vista conservador pode fornecer uma visão realista do processo histórico, já que se baseia na experiência do passado e não em conjeturações de futuro. Toda historiografia revolucionária é fraudulenta na base, porque interpreta e distorce o passado segundo o molde de um futuro hipotético e aliás indefinível. Não é uma coincidência que os maiores historiadores de todas as épocas tenham sido sempre conservadores. Se, considerada em si mesma e nos valores que defende, a mentalidade contrarevolucionária deve ser chamada propriamente “conservadora”, é evidente que, do ponto de vista das suas relações com o inimigo, ela é estritamente “reacionária”. Ser reacionário é reagir da maneira mais intransigente e hostil à ambição diabólica de mandar no mundo. 36 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho Nacional da Bolívia. A Romênia era um país latino, e Khrushchev queria nossa “visão latina” sobre sua nova guerra de “libertação” religiosa. Ele também nos queria para enviar alguns padres que eram cooptadores ou agentes disfarçados para a América Latina – queria ver como “nós” poderíamos tornar palatável para aquela parte domundo a sua nova Teologia da Libertação. “Naquele momento a KGB estava construindo uma nova organização religiosa internacional em Praga, chamada “Christian Peace Conference” (CPC), cujo objetivo seria espalhar a Teologia da Libertação pela América Latina. “Em 1968, o CPC – criado pela KGB – foi capaz de dirigir um grupo de bispos esquerdistas sulamericanos na realização de uma Conferência de Bispos Latinoamericanos em Medellín, na Colômbia. O propósito oficial da Conferência era superar a pobreza. O objetivo não declarado foi reconhecer um novo movimento religioso, que encorajasse o pobre a se rebelar contra a ‘violência da pobreza institucionalizada’, e recomendálo ao Conselho Mundial de Igrejas para aprovação oficial. A Conferência de Medellín fez as duas coisas. Também engoliu o nome de batismo dado pela KGB: ‘Teologia da Libertação.’” Ou seja, em suas linhas essenciais, a idéia da TL veio pronta deMoscou três anos antes de que o jesuíta peruano Gustavo Gutierrez, com o livro Teología de la Liberación (Lima, Centro de Estudios y Publicaciones, 1971), se apresentasse como seu inventor original, decerto com a aprovação de seus verdadeiros criadores, que não tinham o menor interesse num reconhecimento público de paternidade. O tutor da criança, Leonardo Boff, entraria em cena ainda mais tarde, não antes de 1977. Até hoje as fontes populares, como por exemplo a Wikipedia, repetem como papagaios adestrados que o Pe. Gutierrez foi mesmo o gerador da coisa e o sr. Boff seu segundo pai. 39 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho Um cadáver no poder (II) Diário do Comércio, 29 de janeiro de 2015 Volto à análise da Teologia da Libertação. Se a coisa e até o nome que a designa vieram prontos da KGB, isso não quer dizer que seus pais adotivos, Gutierrez, Boff e Frei Betto, não tenham tido nenhum mérito na sua disseminação pelo mundo. Ao contrário, eles desempenharam um papel crucial nas vitórias da TL e no mistério da sua longa sobrevivência. Os três, mas principalmente os dois brasileiros, atuaram sempre e simultaneamente em dois planos. De um lado, produzindo artificiosas argumentações teológicas para uso do clero, dos intelectuais e da Cúria romana. De outro lado, espalhando sermões e discursos populares e devotandose intensamente à criação da rede de militância que se notabilizaria com o nome de “comunidades eclesiais de base” e viria a constituir a semente do Partido dos Trabalhadores. “Base” é aliás o termo técnico usado tradicionalmente nos partidos comunistas para designar a militância, distinguindoa dos líderes. Sua adoção pela TL não foi mera coincidência. Quando os pastores se transformaram em comissários políticos, o rebanho tinha mesmo de tornarse “base”. No seu livroE a Igreja se Fez Povo, de 1988, Boff confessa que foi tudo um “plano ousado”, concebido segundo as linhas da estratégia da lenta e sutil “ocupação de espaços” preconizada pelo fundador do Partido Comunista Italiano, Antonio Gramsci. Tratavase de ir preenchendo aos poucos todos os postos decisivos nos seminários e nas universidades leigas, nas ordens religiosas, na mídia católica e na hierarquia eclesiástica, sem muito alarde, até chegar a época em que a grande revolução pudesse exibirse a céu aberto. Logo após o conclave que o elegeu, em 1978, o papa João Paulo I teve um encontro com vinte cardeais latinoamericanos e ficou muito impressionado com o fato de que a maioria deles apoiava ostensivamente a Teologia da Libertação. Informaramlhe, na ocasião, que já havia mais de cem mil “comunidades eclesiais de base” disseminando a propaganda revolucionária na América Latina. Até então, João Paulo I conhecia a TL apenas como especulação teórica. Nem de longe imaginava que ela pudesse ter se transformado numa força política de tais dimensões. Em 1984, quando o cardeal Ratzinger começou a desmontar os argumentos teóricos da “Teologia da Libertação”, já fazia quatro anos que as “comunidades eclesiais de base” tinham se transfigurado num partido de massas, o Partido dos Trabalhadores, cuja militância ignora maciçamente quaisquer especulações teológicas, mas jura que Jesus Cristo era socialista porque assim dizem os líderes do partido. Dito de outro modo, a pretensa argumentação teológica já tinha cumprido o seu papel de alimentar discussões e minar a autoridade da Igreja, e fora substituída, funcionalmente, pela pregação aberta do socialismo, onde o esforço aparentemente erudito de aproximar cristianismo emarxismo cedia o passo aomanejo de chavões baratos e jogos de palavras nos quais amilitância não procurava nem encontrava uma argumentação racional, mas apenas os 40 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho símbolos que expressavam e reforçavam a sua unidade grupal e o seu espírito de luta. O sucesso deste segundo empreendimento foi proporcional ao fracasso do trio na esfera propriamente teológica. É possível que na Europa ou nos EUA um formador de opinião com pretensões de liderança não sobreviva à sua desmoralização intelectual, mas na América Latina, e especialmente no Brasil, a massa militante está a léguas de distância de qualquer preocupação intelectual e continuará dando credibilidade ao seu líder enquanto este dispuser de um suporte políticopartidário suficiente. No caso de Boff e Betto, esse suporte foi nada menos que formidável. Fracassadas as guerrilhas espalhadas em todo o continente pela OLAS, Organización LatinoAmericana de Solidariedad, fundada por Fidel Castro em 1966, a militância se refugioumaciçamente nas organizações da esquerda nãomilitar, que iam colocando em prática as ideias de Antonio Gramsci sobre a “ocupação de espaços” e a “revolução cultural”. A estratégia de Gramsci usava a infiltraçãomaciça de agentes comunistas em todos os órgãos da sociedade civil, especialmente ensino e mídia, para disseminar propostas comunistas pontuais, isoladas, sem rótulo de comunismo, de modo a obter pouco a pouco um efeito de conjunto no qual ninguém visse nada de propaganda comunista, mas no qual o Partido, ou organização equivalente, acabasse controlando mentalmente a sociedade com “o poder invisível e onipresente de um mandamento divino, de um imperativo categórico” (sic). Nenhum instrumento se prestava melhor a esse fim do que as “comunidades eclesiais de base”, onde as propostas comunistas podiam ser vendidas com o rótulo de cristianismo. No Brasil, o crescimento avassalador dessas organizações resultou, em 1980, na fundação do Partido dos Trabalhadores, que se apresentou inicialmente como um inocente movimento sindicalista da esquerda cristã e só aos poucos foi revelando os seus vínculos profundos com o governo de Cuba e com várias organizações de guerrilheiros e narcotraficantes. O líder maior do Partido, Luís Inácio “Lula” da Silva, sempre reconheceu Boff e Betto como mentores da organização e dele próprio. Nascido no bojo do comunismo latinoamericano por intermédio das “comunidades eclesiais de base”, o Partido não demoraria a devolver o favor recebido, fundando, em 1990, uma entidade sob a denominação gramscianamente anódina de “Foro de São Paulo”, destinada a unificar as várias correntes de esquerda e a tornarse o centro de comando estratégico do movimento comunista no continente. Segundo depoimento do próprio Frei Betto, a decisão de criar o Foro de São Paulo foi tomada numa reunião entre ele, Lula e Fidel Castro, em Havana. Durante dezessete anos o Foro cresceu em segredo, chegando a reunir aproximadamente duzentas organizações filiadas, misturando partidos legalmente constituídos, grupos de sequestradores como o MIR chileno e quadrilhas de narcotraficantes como as Farc, que juravam nada ter com o tráfico de drogas mas então já costumavam trocar anualmente duzentas toneladas de cocaína colombiana por armas contrabandeadas do Líbano pelo traficante brasileiro Fernandinho BeiraMar. 41 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho Por trás da subversão Diário do Comércio, 5 de junho de 2006 No começo de 2001, o Council on Foreign Relations (CFR), bilionário think tank de onde já emergiram tantos presidentes e secretários de Estado que há quem o considere uma espécie de metagoverno dos EUA, criou uma “forçatarefa”, transbordante de Ph.Ds, presidida pelo historiador Kenneth Maxwell e encarregada de sugerir modificações na política de Washington para com o Brasil. A primeira lista de sábios conselhos, publicada logo em 12 de fevereiro, enfatizava “a urgência de trabalhar com o Brasil no combate à praga das drogas e à sua influência corruptora sobre os governos”. Naquele momento, destruídos os antigos cartéis, emergiam como dominadoras do mercado de drogas na América Latina as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, deliberadamente poupadas pelo Plano Colômbia do governo Clinton sob o pretexto de que o combate ao narcotráfico deveria ser apolítico. As Farc, uma organização comunista, haviam entrado no mercado das drogas para financiar suas operações terroristas e a tomada do poder. Desde 1990 faziam parte do Foro de São Paulo, onde articulavam suas ações com a estratégia geral da esquerda latinoamericana, garantindo apoios políticos que a tornavam virtualmente imunes a perseguições em vários países onde operavam. No Brasil, por exemplo, a despeito das centenas de toneladas de cocaína que por meio do seu sócio Fernandinho BeiraMar elas despejavam anualmente nomercado, e apesar dos tiros que de vez em quando trocavam com o Exército na floresta amazônica, as Farc eram bem tratadas: seus líderes circulavam livremente pelas ruas sob a proteção das autoridades federais e eram recebidos como hóspedes oficiais pelo governo petista do Estado do Rio Grande. Nunca, portanto, as relações entre narcotráfico e política tinham sido mais íntimas. Arriscavam tornarse ainda mais intensas porque Luís Inácio Lula da Silva, fundador do Foro e portanto orquestrador maior da estratégia comum entre partidos legais de esquerda e organizações criminosas, parecia destinado a ser o próximo presidente do Brasil. A integração crescente de narcotráfico e política tornava portanto urgente combater “a praga das drogas e sua influência sobre os governos”. E a única maneira de fazer isso era, evidentemente, desmantelar o Foro de São Paulo. Vista nessa perspectiva, a sugestão da “forçatarefa” parecia mesmo oportuna. Mas só a interpreta assim quem não entende as sutilezas do metagoverno. O sentido literal da frase expressava, de fato, o oposto simétrico do que o CFR pretendia. 44 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho Desde logo, o Foro de São Paulo, para continuar se imiscuindo impunemente na política interna de várias nações latinoamericanas, necessitava manter sua condição de entidade discreta ou semisecreta, e o próprio chefe da forçatarefa o ajudava nisso. Em artigo publicado na New York Review of Books – e, é claro, reproduzido na Folha , Maxwell declarava que o Foro simplesmente não existia, porque “nem os mais bem informados especialistas com quem conversei no Brasil jamais ouviram falar dele”. Para um historiador profissional, confiarse à opinião de terceiros em vez de averiguar as fontes primárias, então fartamente disponíveis no próprio site do Foro, era uma escandalosa prova de inépcia. Na época, o sr. Maxwell pertencia (pertence ainda) ao círculo de iluminados que costumava (costuma ainda) ser ouvido com o máximo respeito pela mídia brasileira, especialmente pela Folha de S. Paulo. Isso parecia dar uma prova incontestável de que ele era de fato um jumento, tendo agido demaneira tão extravagante em pura obediência à sua natureza animal. Mas agora noto que isso não explicava tudo. Logo depois, outro intelectual de grande reputação nos círculos asininos, Luiz Felipe de Alencastro, professor de História do Brasil na Sorbonne e colunista da Veja, brilhava num debate do CFR emprestando à tese da inexistência do Foro de São Paulo o aval da sua formidável autoridade e ainda acrescentava ter sido eu o criador da lendária organização... Dar sumiço na coordenação continental do movimento comunista latinoamericano parecia terse tornado um hábito consagrado no CFR. Isso poderia ser apenas um inocente acúmulo de erros de interpretação se a entidade não tivesse cultivado simultaneamente um outro hábito: o das boas relações com as Farc. Em 1999, o presidente da Bolsa de Valores de Nova York, Richard Grasso, membro do CFR, fez uma visita de cortesia ao comandante das Farc, Raul Reyes, e saiu dali festejando a comunidade de interesses entre a quadrilha colombiana e a elite financeira “progressista” dos EUA. Logo em seguida, outros dois membros do CFR, James Kimsey, presidente emérito da America Online, e Joseph Robert, chefe do conglomerado imobiliário J. E. Robert, tinham um animado encontro com o próprio fundador das Farc, o velho Manuel Marulanda, e em seguida iam ao presidente colombiano Pastrana para tentar convencêlo, com sucesso, a ficar de bem com a narcoguerrilha. A divisão de trabalho era nítida: os potentados do CFR negociavam com a pricipal força de sustentação militar e financeira do Foro de São Paulo, enquanto seus officeboysintelectuais cuidavam de despistar a operação 45 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho proclamando que o Foro nem sequer existia. O CFR alardeava a intenção de eliminar a influência do narcotráfico nos governos ao mesmo tempo que contribuía ativamente para que essa influência se tornasse mais vasta e fecunda do que nunca. Ao CFR pertencia também o presidente Clinton, cujo famigerado Plano Colômbia tinha tido por principal resultado eliminar os concorrentes e entregar às Farc o quase monopólio do mercado de drogas na América Latina. Em 2002, a política latinoamericana dos grãosenhores globalistas sofria umupgrade: ao esforço de embelezar as Farc somavase agora o empenho de fazer do presidente do Foro de São Paulo o presidente do Brasil. Poucos dias antes da eleição de 2002, a embaixadora americana Donna Hrinak, que não sei se pertence pessoalmente ao CFR mas está entre os fundadores de uma entidade estreitamente associada a ele, o Diálogo Interamericano, fazia propaganda descarada do candidato petista, proclamandoo “uma encarnação do sonho americano”. Embora fosse uma interferência ilegal e indecente de autoridade estrangeira numa eleição nacional só não causando escândalo porque até a prepotência imperialista se torna amável quando trabalha para o lado politicamente correto , e embora a fórmula verbal escolhida para realizála fosse uma absurdidade sem par (pois não consta quemuitos americanos tivessem como suprema ambição parar de trabalhar aos 24 anos para fazer carreira numpartido comunista), a expressão fez tanto sucesso que, logo em seguida, foi repetida ipsis litteris, sem citação de fonte, num artigo daNew York Review of Books que celebrava entusiasticamente a vitória de Lula. Adivinhem quem assinava o artigo? O indefectível Kenneth Maxwell. Diante desses fatos, alguém ainda hesitará em perceber que as ligações entre o esquerdismo pódearroz do CFR e o esquerdismo sangueefezes dos Marulandas e Reyes são mais íntimas do que caberia na imagem estereotipada de uma hostilidade essencial e irredutível entre capitalistas reacionários e comunistas revolucionários? O sentido dos acontecimentos é transparente demais, mas o cérebro das nossas elites ainda é capaz de projetar sobre eles a sua própria obscuridade para esquivarse de tirar as conclusões que eles impõem. É claro que não endosso a idéia de que o CFR, como instituição, seja uma central conspiratória prócomunista. Muitos de seus membros são patriotas americanos que jamais endossariam conscientemente uma política prejudicial ao seu país. Mas não dá para esconder que, ali dentro, um grupo de bilionários reformadores do mundo, incalculavelmente poderosos, tem induzido a entidade a influenciar o governo de Washington, quase sempre 46 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho Moreira Alves, Mário Augusto Jacobskind e Cesar Benjamin. A duplicidade de tratamento deixa a vítima desnorteada e acaba por subjugála. Entre tapas e beijos, boa parte da nossa oficialidade se deixou facilmente cair no engodo, mostrando ter mesmo QI de ratinho de laboratório. A recente palestra do comandante do Exército em Porto Alegre mostra até que ponto uma instituição caluniada, marginalizada e espezinhada sente alívio e reconforto ante a oferta humilhante de um lugarzinho no banquete de seus tradicionais detratores. Ardis semelhantes foram aplicados entre empresários e políticos, com igual eficácia. É por isso que se tornou tão difícil explicar aos brasileiros aquilo que, entre os conservadores americanos, até os mais lerdos de inteligência como Pat Robertson entendem perfeitamente bem: que a elite globalista é o inimigo número um da soberania nacional americana e, por tabela, mas somente por tabela, de todas as demais soberanias. Quem foi que inventou o Brasil? Zero Hora, 11 de junho de 2006 Se todos os meios de produção são estatizados, não há mercado. Sem mercado, os produtos não têm preços. Sem preços, não se pode fazer cálculo de preços. Sem cálculo de preços, não há planejamento econômico. Sem planejamento, não há economia estatizada. “Comunismo” é apenas uma construção hipotética destituída de materialidade, um nome sem coisa nenhuma dentro, um formalismo universal abstrato que não escapa ileso à navalha deOccam. Não existiu nem existirá jamais uma economia comunista, apenas uma economia capitalista camuflada ou pervertida, boa somente para sustentar uma gangue de sanguessugas politicamente lindinhos. Desde que Ludwig von Mises explicou essas obviedades em 1922, muitas conseqüências se seguiram. Os líderes comunistas, por mais burros que fossem, entenderam imediatamente que o sábio austríaco tinha razão, mas não podiam, em público, dar o braço a torcer. Tolerando doses cada vez maiores de capitalismo legal ou clandestino nos territórios que dominavam, continuaram teimando em buscar algum arranjo que maquiasse o inevitável. Eduard Kardelij, ministro da Economia da Iugoslávia, chegoumesmo a imaginar que seria possível uma comissão de planejadores iluminados determinar um a um, por decreto, os preços de milhões de artigos, desde aviões supersônicos até agulhas de costura. A idéia jamais foi levada à prática, porque se assemelhava demasiado ao método português de matar baratas jogando uma 49 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho bolinha de naftalina em cada uma. Os soviéticos permitiram que o capitalismo oficialmente banido continuasse prosperando na sombra e respondesse por quase cinqüenta por cento da economia da URSS. Daí o enxame de milionários que emergiram da toca, da noite para o dia, quando da queda do Estado soviético: eles jamais teriam podido existir num regime de proibição efetiva da propriedade privada. Alguns grandes capitalistas ocidentais tiraram da demonstração de von Mises algumas conclusões mais agradáveis (para eles próprios). Se a economia comunista era impossível, todos os esforços destinados nominalmente a criála acabariam gerando alguma outra coisa. Essa outra coisa só poderia ser um capitalismo oculto, como naURSS, ou um socialismo meiabomba, uma simbiose entre o poder do Estado e os grupos econômicos mais poderosos, um oligopólio, em suma. As duas hipóteses prometiam lucros formidáveis, aquela pela absoluta ausência de impostos, esta pela garantia estatal oferecida aos amigos do governo contra os concorrentes menos dotados. Se a primeira ainda comportava alguns riscos menores (extorsão, vinganças pessoais de funcionários públicos mal subornados), a segunda era absolutamente segura. Foi então que um grupo de bilionários criou o plano estratégicomaismaquiavélico da história econômicamundial inventaram a fórmula assim resumida ironicamente pela colunista Edith Kermit Roosevelt (neta de Theodore Roosevelt): “A melhor maneira de combater o comunismo seria uma Nova Ordem socialista governada por ‘especialistas’ como eles próprios.” Essa idéia espalhouse como fogo entre os membros do CFR, Council on Foreign Relations, o poderoso think tanknovaiorquino. A política adotada desde então por todos os governos americanos (exceto Reagan) para com o Terceiro Mundo, na base de combater a “extrema esquerda” mediante o apoio dado à “esquerda moderada”, foi criada diretamente pelo CFR. O esquema era infalível: se os “moderados” vencessem a parada, estaria instaurado o monopolismo; se os comunistas subissem ao poder, entraria automaticamente em ação o Plano B, o capitalismo clandestino. A “extrema esquerda”, apresentada como “o” inimigo, não era na verdade o alvo visado, era apenas a mão esquerda do plano. O verdadeiro alvo era o livremercado, que deveria perecer sob o duplo ataque de seus inimigos e de seus “defensores” os quais, usando o espantalho da revolução comunista, o induziam a fazer concessões cada vez maiores ao socialismo alegadamente profilático da esquerda “boazinha”. Reduzir o leque das opções políticas a uma disputa entre comunistas e socialdemocratas tem sido há meio século o objetivo constante dos 50 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho bilionários inventores da Nova Ordem global. O Brasil de hoje é o laboratório dos seus sonhos. 51 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho Wagner esperava encontrar provas de uma ligação íntima entre o Foro de São Paulo e uma prestigiosa entidade da esquerda chique americana, o "Diálogo Interamericano". Não sei se essa prova específica existe ou não, nem se ela é realmente necessária para demonstrar algo que metade da América já conhece por outros e abundantes sinais, isto é, que os líderes mais barulhentos do Partido Democrata são notórios protetores de movimentos revolucionários e terroristas (de modo que o Foro, se acrescentado à lista, não modificaria em grande coisa as biografias desses personagens vampirescos). O que sei é que o começo da ruína pessoal do meu amigo data aproximadamente de uma entrevista que ele deu ao Diário Las Américas, importante publicação de língua espanhola emMiami, na qual falava do Foro de São Paulo e de suas relações perigosas com o "Diálogo". Mas isto já seria matéria para outra investigação, e longe de mim a intenção de explicar obscurum per obscurius. Mesmo sem poder prometer a solução para esse aspecto particularmente enigmático do problema, uma coisa posso garantir: os arquivos do Dr. Wagner, recentemente postos à disposição da equipe de pesquisadores do Mídia Sem Máscara e da Associação Comercial de São Paulo, pela generosidade de José Roberto Valente Wagner, permitem retomar a investigação com a esperança de que antes de um ano teremos pelo menos a história interna do Foro de São Paulo reconstituída praticamente mês a mês. Então será possível colocar em bases mais sólidas a questão do "Diálogo", mas antes disso será preciso resolver outro enigma, bem mais urgente e bem mais próximo de nós. Vou formular esse enigma mediante o contraste entre duas ordens de fatos: Primeira: O Foro de São Paulo é a mais vasta organização política que já existiu na América Latina e, sem dúvida, uma das maiores do mundo. Dele participam todos os governantes esquerdistas do continente. Mas não é uma organização de esquerda como outra qualquer. Ele reúne mais de uma centena de partidos legais e várias organizações criminosas ligadas ao narcotráfico e à indústria dos seqüestros, como as FARC e o MIR chileno, todas empenhadas numa articulação estratégica comum e na busca de vantagens mútuas. Nunca se viu, no mundo, em escala tão gigantesca, uma convivência tão íntima, tão persistente, tão organizada e tão duradoura entre a política e o crime. Segunda: Durante dezesseis anos, todos os jornais, canais de TV e estações de rádio deste País – todos, sem exceção, inclusive aqueles que mais se gabavam de primar pelo jornalismo investigativo e pelas denúncias corajosas – se recusaram obstinadamente a noticiar a existência e as atividades dessa 54 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho organização, malgrado as sucessivas advertências que lhes lancei a respeito, em todos os tons possíveis e imagináveis. Do aviso solícito à provocação insultuosa, das súplicas humildes às argumentações lógicasmais persuasivas, tudo foi inútil. Quando não me respondiam com o silêncio desdenhoso, faziamno com desconversas levianas, com objeções céticas inteiramente apriorísticas, que dispensavam qualquer exame do assunto, com observações sapientíssimas sobre o meu estado de saúde mental ou com a zombariamais estúpida e pueril que se pode imaginar. Reagindo a essa pertinaz negação dos fatos, fiz publicar no jornal eletrônico Mídia Sem Máscara as atas quase completas das assembléias e grupos de trabalho do Foro de São Paulo. A volumosa prova documental mostrouse incapaz de demover os negacionistas. Eles pareciam hipnotizados, estupidificados, mentalmente paralisados diante de uma hipótese mais temível do que seus cérebros poderiam suportar na ocasião. O Foro de São Paulo reúne mais de uma centena de partidos legais e várias organizações criminosas ligadas ao narcotráfico e à indústria dos seqüestros, como as FARC e o MIR chileno. A publicação das atas teve porém duas conseqüências importantes. De um lado, o site oficial do Foro, www.forosaopaulo.org, foi retirado do ar às pressas, para só voltarmeses depois, em versão bastante expurgada. De outro lado, entre os jornalistas e analistas políticos, a afetação de desprezo pelo asunto cedeu lugar à negação ostensiva, pública, da existência mesma do Foro de São Paulo. Dois personagens destacaramse especialmente nesse servicinho sujo: o inglês Kenneth Maxwell e o brasileiro Luiz Felipe de Alencastro. Para anunciar ao mundo a completa inexistência da entidade que eu denunciava, ambos – por ironia, historiadores de profissão – usaram como tribuna ou megafone o pódio do CFR, Council on Foreign Relations, o mais poderoso think tank americano, dando assim à ignorância dolosa (ou à mentira grotesca) o aval de uma autoridade considerável. Quem ainda tenha ilusões quanto à confiabilidade intelectual da profissão acadêmica, mesmo exercida nos chamados "grandes centros" (Alencastro é professor na Universidade de Paris, e Maxwell é o consultor supremo do próprio CFR em assuntos brasileiros), pode se curar dessa doença mediante a simples notificação desses fatos. Mas aí a hipótese da mera ignorância organizada começa a ceder lugar à suspeita de uma trama consciente bem maior do que a nossa paranóia poderia imaginar. Membros importantes do CFR tiveram contatos próximos com as organizações criminosas participantes do Foro de São Paulo, cuja existência, portanto, não poderiam ignorar (leiase a respeito o meu artigo 55 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho "Por trás da subversão", Diário do Comércio, dia 05 de junho de 2006, http://www.olavodecarvalho.org/semana/060605dc.html). Em suma, o Brasil parecia estar preso entre as malhas de uma articulação criminosa, que envolvia, ao mesmo tempo, a totalidade dos partidos de esquerda latinoamericanos, o grosso da classe jornalística nacional, as principais gangues de narcotraficantes do continente e, por fim, uma parcela nada desprezível da elite política e financeira norte americana. A gravidade desses fatos medese pela amplitude e persistência da sua ocultação. Crescendo em segredo, o Foro de São Paulo tornouse o motor principal das transformações históricas no continente, ao mesmo tempo que a ignorância geral a respeito fazia com que os debates públicos – e portanto a totalidade da vida cultural – se afastasse cada vez mais da realidade e se transformasse numa engenharia da alienação, favorecendo ainda mais o crescimento de um esquema de poder que se alimentava gostosamente da sua própria invisibilidade. A queda vertiginosa do nível de consciência pública nessas condições, era não só previsível como inevitável. As opiniões circulantes tornaramse uma dança grotesca de irrelevâncias, desconversas e erros maciços, ao mesmo tempo em que a violência e a corrupção cresciam ante os olhos atônicos do público e dos formadores de opinião, cada um apegandose às explicações mais desencontradas, extemporâneas e impotentes. Muitas décadas hão de passar antes que a devastação psicológica resultante desse quadro possa ser revertida. O fabuloso concurso de crimes que a determinou não tem paralelo na história universal. Um dos aspectos mais grotescos da situação é a facilidade com que os culpados se desvencilham de qualquer tentativa de denúncia, qualificandoa de "teoria da conspiração". Mas quem falou em conspiração? O que vemos é uma gigantesca movimentação de recursos, de poderes, de organizações, de correntes históricas, que para permanecer imune à curiosidade popular não precisa se esconder em porões, mas apenas apostar na incapacidade pública de apreender a sua complexidade inabarcável e de acreditar na existência de tanta malícia organizada. O Foro é uma entidade sui generis, sem correspondência em qualquer época ou país. Longo tempo depois de extinto, como espero venha a sêlo um dia, ele ainda constituirá um enigma e um desafio ao tirocínio dos historiadores. Para nós, ele é mais do que isso. É o inimigo "onipresente e invisível" sonhado por Antonio Gramsci. estratégica comum e na busca de vantagens mútuas. Nunca se viu, no mundo, em escala tão gigantesca, uma convivência tão íntima, tão persistente, tão organizada e tão duradoura entre a política e o crime. 56 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho historiadores. Para nós, ele é mais do que isso. É o inimigo "onipresente e invisível" sonhado por Antonio Gramsci. 59 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho Digitais do Foro de São Paulo Diário do Comércio, 28 de janeiro de 2008 Nos documentos de fonte primária sobre o Foro de São Paulo, encontramos as seguintes informações: 1) Conforme afirmei desde o início, e contra todo o exército de achismos e desconversas, o Foro de São Paulo existe e é a coordenação estratégica do movimento comunista na América Latina (ver documento original em 3° Congresso do PT e comentário em O Manifesto Comunista do PT; outro documento original em Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no encerramento do Encontro de Governadores da Frente Norte do Mercosul e comentário em Saindo do armário). 2) Ao longo de seus dezessete anos e meio de atividade, não se observa nas atas de suas assembléias e grupos de trabalho a menor divergência, muito menos conflito sério, entre as centenas de facções de esquerda que o compõem. Todas as declarações finais foram assinadas pela unanimidade dos participantes (cf. transcrição das atas e assinaturas em"Atas do Foro de São Paulo"). Nenhuma das queixas e recriminações vociferadas pelos antipetistas de esquerda na mídia que eles mesmos chamam de direitista e burguesa foi jamais levada às discussões internas do Foro, o que prova que a esquerda latinoamericana permanece unida por baixo de suas divergências de superfície, por mais que estas impressionem a platéia ingênua. 3) As ações do Foro prolongamse muito além daquilo que consta das atas. Segundo confissão explícita do sr. presidente da República, os encontros da entidade são ocasião de conversações secretas que resultam em decisões estratégicas de grande alcance, como, por exemplo, a articulação internacional que consolidou o poder de Hugo Chávez na Venezuela (ver o documento oficial em"Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no ato político de celebração aos 15 anos do Foro de São Paulo" e comentário em Lula, réu confesso"). Estas decisões e sua implementação prática subentendem uma unidade estratégica e tática ainda mais efetiva do que aquela que transparece nas atas. 4) Segundo as Farc, a criação desse mecanismo coordenador salvou da extinção o movimento comunista latinoamericano e foi diretamente responsável pela ascensão dos partidos de esquerda ao poder em várias nações do continente. (ver Comissão Internacional das Farc, “Saudação à Mesa Diretora do Foro de São Paulo, 16 de janeiro de 2007”, significativamente já retirado do ar, mas recuperável em 60 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho http://web.archive.org/web/20070310215800/www.farcep.org/?node>2,251 3,1 ). 5) As declarações de solidariedade mútua firmadas no Foro de São Paulo entre partidos legais e organizações criminosas (ver por exemplo X Foro de São Paulo, “Resolução de Condenação ao Plano Colômbia e de Apoio ao Povo Colombiano”) não ficaram no papel, mas traduziramse em ações políticas em que as entidades legais eram instantaneamentemobilizadas para proteger e libertar os agentes das Farc e do Mir presos pelas autoridades locais (explicarei isto melhor, com os documentos respectivos, num próximo artigo). Na pesquisa histórica, na investigação policial, nos processos judiciais, na ciência política ou em qualquer discussão pública que se pretendamais séria do que propaganda eleitoral ou conversa de botequim, o princípio mais elementar e incontornável é que os documentos de fonte primária são a autoridade absoluta, o critério último de arbitragem entre as hipóteses e opiniões. Trinta anos de definhamento intelectual sem precedentes no mundo civilizado tornaram esse princípio inacessível e incompreensível às mentes dos formadores de opinião neste país, principalmente aqueles que a mídia considera mais respeitáveis e dignos de ser ouvidos. A idéia mesma de “prova”, sem a qual não existe justiça, nem ciência, nem honestidade, nem muito menos a possibilidade da ação racionalmente conduzida, desapareceu do horizonte de consciência desses indivíduos, que se rebaixaram assim à condição de criancinhas mentirosas, apegadas a sonsos jogos de palavras para fazer desaparecer por mágica os fatos que as desagradam ou que por outro motivo qualquer desejam ocultar. Não digo apenas que se tornaram desonestos: abdicaram por completo da capacidade de distinguir o honesto do desonesto, o certo do errado, o verdadeiro do falso. Uns fizeram isso por sacrifício voluntário no altar de suas crenças políticas, outros por presunção vaidosa, outros por comodismo, outros por mera covardia. Confiado neles, o Brasil cometeu suicídio intelectual, tornandose um país incapaz de acompanhar sua própria história presente com aquele mínimo de consciência alerta cuja presença distingue a vigília do sono. Jamais, na história da mídia mundial, tantos traíram aomesmo tempo sua missão de investigar e informar. 61 Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho seus próprios termos os planos e ações dos outros dois, em parte para fins de propaganda, em parte por genuína incompreensão. As análises estratégicas de parte a parte refletem, cada uma, o viés ideológico que lhe é próprio. Ainda que tentando levar em conta a totalidade dos fatores disponíveis, o esquema russochinês privilegia o ponto de vista geopolítico e militar, o ocidental o ponto de vista econômico, o islâmico a disputa de religiões. Essa diferença reflete, por sua vez, a composição sociológica das classes dominantes nas áreas geográficas respectivas: 1) Oriunda da Nomenklatura comunista, a classe dominante russochinesa compõese essencialmente de burocratas, agentes dos serviços de inteligência e oficiais militares. 2) O predomínio dos financistas e banqueiros internacionais noestablishment ocidental é demasiado conhecido para que seja necessário insistir sobre isso. 3) Nos vários países do complexo islâmico, a autoridade do governante depende substancialmente da aprovação da umma – a comunidade multitudinária dos intérpretes categorizados da religião tradicional. Embora haja ali uma grande variedade de situações internas, não é exagerado descrever como “teocrática” a estrutura do poder dominante. Assim, pela primeira vez na história do mundo, as três modalidades essenciais do poder – políticomilitar, econômico e religioso – encontramse personificadas em blocos supranacionais distintos, cada qual com seus planos de dominação mundial e seus modos de ação peculiares. Isso não quer dizer que cada um não atue em todos os fronts, mas apenas que suas respectivas visões históricas e estratégicas são delimitadas, em últ1ima instância, pela modalidade de poder que representam. Não é exagero dizer que o mundo de hoje é objeto de uma disputa entre militares, banqueiros e pregadores. Praticamente todas as análises de política internacional hoje disponíveis na mídia do Brasil ou de qualquer outro país refletem a subserviência dos “formadores de opinião” a uma das três correntes em disputa, e portanto o desconhecimento sistemático de suas áreas de cumplicidade e ajuda mútua. Esses indivíduos julgam fatos e “tomam posições” com base nos valores abstratos que lhes são caros, sem nem mesmo perguntar se suas palavras, na somatória geral dos fatores em jogo no mundo, não acabarão concorrendo para a glória de tudo quanto odeiam. Os estrategistas dos três grandes projetos mundiais estão bem alertados disso, e incluem os comentaristas políticos – jornalísticos ou acadêmicos – entre osmais preciosos idiotas úteis a seu serviço. 64 65
Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho