Baixe Um olhar sobre a Loucura de Foucault e outras Notas de estudo em PDF para Tecnologia Industrial, somente na Docsity! CienteFico. Ano III, v. I, Salvador, janeiro-junho 2003 Um Olhar Sobre a Loucura de Foucault Sabrina Camargo Resumo O presente trabalho tem por objetivo apresentar o conceito de loucura desenvolvido por Michel Foucault em seu livro História da Loucura. Descreve-se o fenômeno da loucura desde o Renascimento até a modernidade, mostrando que a maneira de o homem tratá-la foi mudando através dos séculos. Com o advento da Psiquiatria, houve algumas transformações no tratamento fornecido à loucura: o louco não tinha chão, não era dono de seu pensamento, de sua cidadania, de sua identidade, nem tampouco de seu comportamento. A metodologia escolhida foi a epistemológica, realizando-se, dessa forma, uma leitura detalhada das idéias do autor. Considera-se uma pesquisa de suma importância devido ao valor que se tem dado à loucura e aos inúmeros estudos acerca de suas manifestações. Palavras-chave Loucura, epistemologia, Renascimento, modernidade, Psiquiatria, exclusão. Este trabalho tem por objetivo apresentar o conceito de loucura desenvolvido por Michel Foucault em seu livro História da Loucura. O tema escolhido surgiu de uma coincidência a partir de visitas em hospitais psiquiátricos e da leitura da obra de Foucault. A metodologia escolhida foi a epistemológica, realizando-se, dessa forma, uma leitura detalhada das idéias do autor. Cabe ressaltar que, além da leitura de História da Loucura, ainda foi utilizado um fragmento do autor Isaías Pessotti extraído de seu livro O Século dos Manicômios,* por apresentar uma forte relação com o tema abordado. Por ser uma pesquisa epistemológica, não houve o desenvolvimento empírico, bem como trabalhos de campo e de laboratório. Considera-se uma pesquisa de suma importância devido ao valor que se tem dado à loucura e aos inúmeros estudos acerca de suas manifestações, sobretudo porque demonstra que loucura não é categoria científica neutra. Um estudo epistemológico sobre o conceito de loucura, segundo Michel Foucault Em seu livro História da Loucura, Foucault apresenta o fenômeno da loucura desde o Renascimento até o seu total estabelecimento na sociedade. Sendo que, não só a maneira de o homem lidar com a loucura sofreu transformações com o passar dos séculos, mas também o modo pelo qual esta foi encarada pela razão. Toda a narrativa de Foucault começa com a disseminação da lepra através das Cruzadas. Estas, por motivos diversos, iam até o Oriente, principal foco de contaminação da enfermidade, e de lá traziam a doença, que começou a se espalhar rapidamente por toda a Europa, atingindo muitas pessoas. Inúmeros estabelecimentos precisaram ser construídos para abrigar tanta gente. De início, o poder real mantinha e assumia o controle e a reorganização dos bens dos leprosários. No entanto, as rendas obtidas por estes bens eram empregadas não só no tratamento de soldados, como também na alimentação de homens pobres. Em 1672, dois leprosários na França – Saint Lazare e Mont Carmel – assumem a função do poder real e passam a administrar os outros leprosários. Em 1695, os bens passam a ser administrados por outros hospitais e estabelecimentos de assistência. No entanto, a lepra já começa a desaparecer (pelo fim das Cruzadas), e os bens e as rendas destinados a ela são direcionados com bem mais freqüência aos pobres. O personagem do leproso é como um ser que já carrega consigo uma marca, um estereótipo, com inúmeras atitudes já predeterminadas pela população, por isso excluído desta. Há realmente uma contradição a respeito do tratamento dos leprosos pela Igreja e pela população porque, segundo a Igreja, a existência dos leprosos é uma manifestação de Deus – ainda que os leprosos sejam retirados da sociedade e da “comunidade visível da Inúmeras imagens, telas, quadros, com faces enigmáticas de difíceis compreensões, surgem. A imagem dá margem a diferentes interpretações. Daí o fato de ela e a palavra expressarem diferentes significados. Essas imagens surgem através dos sonhos, e por isso exercem tanto fascínio através dos tempos. A loucura representada é vista como um saber obscuro, que esconde segredos e que por isso mesmo precisam ser desvendados. Na Idade Média, a loucura divide sua soberania com mais doze fraquezas da alma humana, como luxúria, discórdia e outras. No entanto, na Renascença, a loucura passa a dominar todas as fraquezas humanas. Isso porque a loucura é visível, não esconde nada, não obscurece; ela atrai as pessoas pelo fato de conseguir manter uma dominação sobre as coisas. A loucura faz um sarcasmo do saber. Segundo Erasmo de Rottterdam (apud Foucault, 1972, p. 24), pelo fato de a loucura ser uma fraqueza humana, “ela é um sutil relacionamento que o homem mantém consigo mesmo”. A partir do momento que o homem se apega a si mesmo, ele se ilude, surgindo, então, o primeiro sinal da loucura. A loucura aparece como uma suposição para esta ignorância humana. Ela não diz respeito à realidade do mundo, mas sim à realidade que o homem acredita existir. No século XV, a loucura aparece como sátira moral na Literatura e Filosofia. O mundo é facilmente dominado pela loucura. Tanto Bosh quanto Brueghel (apud Foucault, 1972, p. 25) tinham uma visão muito próxima da loucura – levando-os a fazer uma reflexão moral a seu respeito, isto porque ela estaria ligada ao homem, com suas fraquezas, sonhos e ambições (Foucault, 1972, p. 24). Já Erasmo (apud Foucault, 1972, p. 26) via a loucura estabelecendo uma certa distância, distância esta que permitia uma visão mais crítica. (Foucault, 1972, p. 26) As pinturas de Bosh (apud Foucault, 1972, p. 26) são pinturas que mostram e revelam a essência dos homens, o homem visto através do seu interior. Com o silêncio das imagens, a loucura desenvolve seus poderes. Erasmo, com sua tradição humanista, afirma a existência da loucura através do discurso. Este discurso seria expresso através da consciência crítica dos homens. Com isso, “o homem era confrontado com a sua verdade moral, com as regras próprias à sua natureza e à sua verdade”. (Foucault, 1972, p. 27) Por conseqüência, enquanto esta visão crítica ia fortalecendo-se, a visão trágica ia enfraquecendo-se, embora nunca tenha deixado de existir – como se pode comprovar nas obras de Sade, Goya e Freud. Esta visão crítica ganhava força através da racionalidade, ao passo que a visão trágica se enfraquecia devido à carga emocional empregada. Dessa forma, a razão se tornou predominante sobre a emoção. A loucura, até o final do século XVIII, teve existência relacionada com a razão. Elas estavam extremamente implicadas. Esta se integrava na razão podendo até ser uma forma de sua manifestação. A loucura levava à sabedoria, e a razão toma consciência da loucura. A loucura é a “força viva e secreta da razão” para os renascentistas, por exemplo. (Foucault, 1972, p. 31) No século XVII, em Cervantes e Shakespeare (apud Foucault, 1972, p. 39), a loucura sempre ocupa um lugar extremo no sentido de que ela não tem recurso. É uma loucura que opera sobre a morte, que precisa da “misericórdia divina” (Foucault, 1972, p. 39). No entanto, a loucura ainda triunfará, pois a morte não trouxe a paz. Após abandonar estas regiões em que estava situada, a loucura passa a ser relacionada com a aparência de um crime. Sua seriedade dramática só existe na medida em que se trata de um falso drama. “A partir dela, a ilusão se desfaz” (Foucault, 1972, p. 40). Esta é a troca do real pelo ilusório. A loucura é capaz de levar as pessoas a desenvolver uma falsa percepção dos sentidos, levando a crer que determinadas partes do corpo não fazem parte do corpo do insano. Assim, é importante ter consciência do conceito de loucura e se o indivíduo é ou não louco, não bastando ter um pensamento lógico e coerente se ele não acredita que é são. Descartes, através da sua dúvida metódica e de seu subjetivismo transcendental, mostra a razão pura como meio de se chegar à verdade, alocando a loucura ao lado do sonho e de todas as formas de erro (Foucault, 1972, p. 45). Para ele, um ser que cogita (pensa) não pode estar louco. Dessa forma, para ele, que submete tudo à dúvida, até mesmo os próprios sentidos, chega à conclusão de que não é possível duvidar do pensamento: “Penso, logo existo”. Assim, se duvido, não posso estar louco, pois duvidaria de minha própria loucura. Esta dúvida metódica fez com que na dialética razão-não-razão (século XVII) a vencedora fosse a razão. A partir do século XVIII, a loucura está fora da interlocução com a razão. Por isso, o homem da contemporaneidade deixou de se comunicar com o louco. Assim, a ciência a transformou numa patologia. Para ela, quem percebia o verdadeiro, a essência das coisas, estava longe de ser um insensato. E o louco era desprovido destes atributos. A exclusão topográfica foi substituída pela exclusão lógica. Para exercer sua cidadania no seu território, só há duas alternativas ao louco: zanzar pelos rios e mares ou ser confinado sob grade. E agora, de explosão expressiva na Literatura, passa a ser silenciado na sua voz inefável. Não tem o que dizer. O século XVII chega com a criação de uma quantidade bastante razoável de casas de internamento. Muitas pessoas são enviadas para estas instituições. Assim, a loucura podia ser mais bem percebida através da quantidade de internamentos. Nestes locais, os insanos tinham péssimas condições de vida, viviam em condições subumanas, em locais sujos, frios, lotados de gente e sem comida. Para que fosse internado, o insano não dependia da idade, nem do sexo, nem se seu caso fosse curável ou não. Era dever dos hospitais dar não apenas atendimento médico aos insanos, mas também ter o direito de decidir por eles e julgá-los, quando necessário. Logo no início, a instância da ordem era ligada ao poder real. Aos poucos, este poder foi concedido à burguesia. Em toda a Europa o internamento surge pelos mesmos motivos: diminuição do salário, escassez de moeda, desempregos e outros problemas econômicos. A Inglaterra, mesmo sendo a mais independente entre todas as nações, também está infestada de mendigos. Pelo fato de estar fora do continente, os mendigos são mandados em comboios para as terras recém-descobertas no lado oriental. [1] Sempre que surgia uma crise econômica, as casas de internamento se enchiam e retomavam a sua significação original. O século XVIII estava em crise, inúmeras manufaturas se fecharam e muitos desempregados surgiram. Fora da crise, o internamento era uma forma de dar trabalho àqueles que estavam presos, e no período da crise o internamento protegia a sociedade contra a agitação decorrente do desemprego. Isso justifica o fato de que as primeiras casas de internamento foram construídas em regiões industriais como Worcester, na Inglaterra. É importante ressaltar que o trabalho não servia apenas como ocupação, mas também como um meio de produção.[2] Alguns empresários faziam acordos com as casas de internamento fornecendo a matéria-prima e sendo depois devolvido a eles o produto já pronto e feito pelos internos. As casas de internamento desaparecem no começo do século XIX, quando o seu real objetivo ficou mais visível: o de “recepção de indigentes e prisão da miséria” (Foucault, 1972, p. 70). É no século XIX que os loucos irão ocupar os lugares antes ocupados pelos vagabundos e miseráveis, sendo também submetidos aos trabalhos obrigatórios. No entanto, distinguem- se dos outros pela incapacidade de seguir os ritmos da vida coletiva. Os hospitais gerais tinham o poder de autoridade, direção, administração, correção e punição. Nas cidades onde o Protestantismo predominou, as instituições ensinaram, além da religião, o necessário para o descanso das cidades (Foucault, 1972, p. 76). No século XVII “a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo” (Foucault, 1972, p. 77). O internamento “é a eliminação espontânea dos a-sociais” (Foucault, 1972, p. 78). Na era clássica, a loucura era apreendida como desorganização familiar, desordem social e perigo para o estado. Aos poucos, este conceito evoluiu e chegou-se à conclusão de que a loucura era uma doença de natureza médica. Algumas práticas de profanação e de formas de sexualidade mantinham um arentesco com a loucura, segundo era evidenciado no final do século XVIII. Os doentes venéreos eram tratados no hospital geral, e cabia a este indicar o melhor tratamento. Homens e mulheres eram mantidos separados e a assistência que recebiam era precária. Isto segue a crença de que estes doentes estavam internados para pagar as dívidas, e devia-se prepará-los para o castigo e a penitência. Assim, só eram recebidos aqueles que queriam se corrigir, e, para isso, precisavam ser chicoteados. Logo no início, os doentes venéreos recebiam o mesmo tratamento que as pessoas atingidas pela fome, pelas pragas. Sua doença não tinha relação com a imoralidade e não eram vistos como pessoas diferentes. Porém, é ao final da Renascença que esta visão muda. A doença é vista como punição e vingança pela luxúria cometida. Era uma resposta à vida libidinosa dos homens. Passam a ser excluídos e são exilados dentro dos hospitais gerais. É dentro destas instituições que eles se agrupam com “intenção purificadora” (Foucault, 1972, p. 85) mediante as chicotadas, os medicamentos e as penitências. O flagelo designa a culpa. No entanto, estes ritos eram assimilados ao pecado, isto é, estas medidas só valiam para quem contraísse a doença antes do casamento. Assim, homens e mulheres eram amontoados nos hospitais; recebiam no máximo seis semanas de cuidados e os casos mais graves eram deixados isolados para que morressem. Fazia-se sangrias, dava-lhes banhos, aplicava-lhes mercúrios. Era preciso que cuidassem do corpo, pois ele levava ao pecado. Era preciso “deixar marcas dolosas no corpo, castigá-lo porque é a saúde que nos leva ao pecado” (Foucault, 1972, p. 86). Neste ponto, verifica-se que o louco não era proprietário do seu próprio corpo. Durante alguns séculos, os doentes venéreos viveram lado a lado com os insanos. Isso levou para o mundo moderno um “obscuro parentesco que destinou a ambos o mesmo lugar no sistema de punição” (Foucault, 1972, p. 87). O espaço do internamento seria, então, um ponto comum entre “os pecados contra a carne e as faltas contra a razão” (Foucault, 1972, p. 87). O pecado começa a rondar a loucura e aí se estabelece o parentesco entre a culpa e a falta de razão. Em 1726, um homem foi condenado a ser queimado vivo por ter cometido crimes de sodomia. A sodomia era condenada por razões morais, ao lado da homossexualidade. O que para a Renascença era liberdade de expressão, para a Era Moderna vai ser o lado proibido desta liberdade. A homossexualidade sempre foi vista como não pertencente ao amor racional e sim ao desatino. Com isso, aos poucos ela se encaixou nas subdivisões da loucura. A Psicanálise afirma que toda loucura se origina na sexualidade perturbada. (Foucault, 1972, p. 90) O internamento e toda estrutura social que o envolve serviu para controlar e dar ordem não só à estrutura familiar, mas também à sociedade. Um outro motivo para o internamento surgiu com a blasfêmia. Penas como incisão nos lábios com ferro em brasa, fogueira, pelourinho eram dadas aos que cometiam este crime. No entanto, com o passar dos anos, diminuiu-se a punição aos blasfemadores devido ao fato de as casas de internamento estarem cheias deles. Em Bagdá, “o primeiro hospital foi fundado no fim do século XII” (Foucault, 1972, p. 120). Na Europa, o primeiro país a construir hospitais foi a Espanha,[7] espalhando-se, depois, por outros países. O fato é que na Idade Média o louco estava presente na vida diária das pessoas, era visto e se agrupava na sociedade. Na Renascença ele é reagrupado de uma maneira que o isola de todos, tornando-se um objeto desumanizado. O louco internado com outras pessoas (homossexuais, libertinos, doentes venéreos) perdeu sua individualidade. Dentro dos hospitais ficava difícil diferenciar o louco, que se perdia no meio de muitos tipos de aberrações. Na era clássica surgiram os hospitais de internamento, as casas de correção – instituições diferentes, que separavam o louco do criminoso. Nesta época, a loucura era de âmbito médico, isto é, só era reconhecida pelo médico. Este, através de todos os sinais e sintomas visíveis, bem como ciente da história de vida da pessoa, podia determinar a natureza da doença e verificar quais áreas psíquicas haviam sido atingidas. Somente ele podia “distinguir o normal do insano, o criminoso do alienado irresponsável” (Foucault, 1972, p. 127). Porém, não era assim em todos os países. Enquanto na França era o médico quem dava a última palavra, na Inglaterra era o juiz de paz que decidia sobre o internamento. Em 1692 surge a carta régia, um procedimento em que a família do insano fazia o pedido ao rei, que lhe concedia o internamento após a assinatura do ministro. Até mesmo os vizinhos ou a paróquia local podiam tentar conseguir internamento, caso a família não quisesse e o doente não estivesse obedecendo às leis sociais. Enquanto o insano libertava-se das responsabilidades e deveres por ser louco, ele comprometia sua vizinhança e toda a sociedade. Nesse ponto, a Medicina deixava de ser a única a ‘dar as cartas’, fazendo com que surgisse uma análise jurídica de extrema importância. A Medicina atribuiu a doença mental como objeto, e o homem insano será “juridicamente incapaz de pertencer ao grupo” (Foucault, 1972, p. 131) por perturbá-lo moral e politicamente. Apesar de os asilos terem surgido antes da Revolução Francesa (1778), o manicômio só surgiu após a obra de Pinel (1745-1826), que rompe com a tradição demoníaca da loucura e passa a considerá-la como doença mental. Segundo Pinel, o louco necessitava de cuidados, remédios e, principalmente, do apoio de outras pessoas. É nesse sentido que surge a primeira “revolução” psiquiátrica, fazendo com que o século XIX fosse considerado o século dos manicômios em decorrência da enorme quantidade de hospitais que foram construídos e destinados aos doentes mentais. Para justificar a quantidade de internações, surgiu uma variedade de diagnósticos para a loucura. Toda essa revolução fez a medicina psiquiátrica florescer, tornando o manicômio o seu núcleo gerador. Dentro deste, a loucura era tomada como um objeto bem discriminado e delineado. Pinel sustentou a concepção de que a causa da alienação era de origem moral e sua “essência era o desarranjo das funções mentais” (Pessoti, 1999). O manicômio, ao invés de um lugar de enclausuramento de loucos, passou a ser instrumento de cura. Na Idade Clássica, o louco perde o valor mágico adquirido na Idade Média e passa a ocupar o lugar dos vagabundos e pobres. Nessa época, ainda era muito difícil determinar o motivo pelo qual as pessoas eram internadas,[8] bem como para descobrir as doenças que elas tinham. As fórmulas de internamento não falavam de análises patológicas ou doenças, mas de uma “experiência da loucura” (Foucault, 1972, p. 135) que nunca poderia ser avaliada na totalidade. Internava-se o louco quando este não tinha ‘consciência’ de que sua loucura poderia perturbar moralmente uma sociedade e não sentia remorso pelo crime feito. Para este insano, a sua moral era intransferível, diferente de todas as outras. Assim, a “loucura na era clássica torna-se perceptível na forma da ética” (Foucault, 1972, p. 136). Durante a Idade Média e parte da Renascença, a loucura esteve ligada a causas malignas. No entanto, no século XIX (Idade Clássica), ela se repousava sobre a moral, a ética, sendo por isso chamada de “loucura moral” (Foucault, 1972, p. 137). Percebe-se, com clareza, a oposição da idade clássica quanto à divisão alienação x maldade. Neste caso, a loucura e o crime não se confundem, nem tampouco se excluem, mas são tratados com a mesma racionalidade. Existem dois tipos de loucuras: a involuntária (que se apodera do homem sem seu consentimento) e a intencional (que é fingida pelos homens lúcidos). Para a Medicina, elas se inter-relacionam, e as pessoas são internadas com ou sem intenção pelo fato de ambas as loucuras terem a mesma origem perversa. Mas, para o Direito, a loucura só é crime se o indivíduo tem ‘consciência’ de seus atos.[9] Quem fora atingido pela loucura involuntária não seria punido. Esta afirmação deve-se ao fato de que a loucura atinge a razão, alterando assim a sua vontade e indo de encontro com seus desejos. Quanto mais grave, maior será a inocência. Contudo, como já foi dito, a Medicina não diferencia o tratamento dado à loucura real da intencional. O internamento vale para ambas, e é a forma mais eficaz de evitar escândalos. Enquanto na Renascença a loucura era exibida publicamente, com o internamento ela se torna menos visível, porém presente. Mesmo assim, em alguns hospitais como Bethleem e Bicêtre, os insanos são exibidos aos domingos para a população, sendo paga uma taxa pela visita, aumentando a renda institucional. “A loucura era o teatro do mundo” (Foucault, 1972, p. 147). Com risadas maldosas, atitudes inconseqüentes, os insanos eram objeto de curiosidade das pessoas da sociedade, que os viam por detrás das grades. Tanto os alojamentos de Bicêtre quanto os de Salpetrière tinham péssimas condições de higiene; algumas pessoas ficavam próximas a esgotos que, com as chuvas, traziam ratos e outros tipos de sujeiras. perturbam a razão) e quatro ordens (alucinação, bizarrias, delírios e loucuras anormais). Linné (1763) divide as doenças em ideais, imaginativas e patéticas. E, finalmente, Weickhard (1790) fala em doenças do espírito e doenças do sentimento. No entanto, no século XIX esta divisão é abandonada e pressupõe, porém, “não mais uma tentativa de cobrir em sua totalidade o espaço patológico” (Foucault, 1972, p. 196). Assim, as doenças serão definidas através da “afinidade dos sintomas, identidade das causas, sucessão no tempo, evolução progressiva” (Foucault, 1972, p. 196) e outras categorias que agruparão as diferentes manifestações da doença. As classificações da loucura multiplicaram-se porque elas eram feitas mediante as imagens, isto é, por meio das manifestações da loucura. E isto nem sempre se constituía uma verdade, já que importava também a origem e significação destas manifestações. Segundo Foucault (1972, p. 197), uma classificação deveria interrogar apenas as doenças do espírito. Remetendo-se a isso, Arnould (apud Foucault, p. 198) fala de uma loucura que incide sobre as idéias e seu conteúdo e uma outra que incide sobre o trabalho reflexivo que elaborou as idéias. Desta forma, a classificação de Arnould parte de poderes do espírito para chegar às “caracterizações morais”. “No momento em que quer alcançar o homem concreto, a experiência da loucura encontra a moral” (Foucault, 1972, p. 197). As classificações que pretendiam encontrar as formas da loucura identificaram apenas deformações da vida moral. Assim, a noção patológica de doença se altera para uma noção crítica. Até o começo do século XIX nota-se que as formas da loucura não se modificaram. O que mudava era o seu nome e suas divisões. É a partir do século XX, portanto, que as neuroses serão separadas das psicoses, a paranóia da demência precoce, etc. Os loucos que cometiam crimes eram internados, porém não perdiam seus direitos civis. O internamento seria apenas uma medida, cuja finalidade seria a médico-terapêutica. A loucura atingia apenas os limites do corpo, a alma do louco, mas permanecia pura. Era com esta explicação que juízes e advogados inocentavam loucos que cometiam crimes. O mundo exterior também podia provocar a loucura através do “tipo de clima, da vida em sociedade, de espetáculos de teatro...” (Foucault, 1972, p. 222). Paixões profundas, tristezas, cólera, amores não-correspondidos também eram eventos da alma, e quer sejam poucos, quer sejam muito intensos, não escaparam do círculo das causas distantes da loucura. Tudo isto mostra a heterogeneidade das causas na origem da loucura. As causas distantes da loucura não pararam de aumentar, e no século XVIII elas foram catalogadas sem organização. Até mesmo as fases da lua foram confirmadas como sendo influentes sobre o sistema nervoso, alterando assim a agitação e a fase maníaca dos doentes. A paixão, além de fazer parte das causas distantes da loucura, também estava bem próxima do corpo e da alma por ser a “superfície de contato entre ambas” (Foucault, 1972, p. 226). “A paixão predispõe os espíritos e sob o efeito desta eles circulam” (Foucault, 1972, p. 227). Algumas emoções podiam provocar loucura. Histórias, peças teatrais, cólera ocasionavam alterações nervosas, chegando, às vezes, a ser violenta. Agitações, “recaídas histéricas” (Foucault, 1972, p. 230), crises, quando se multiplicavam, podiam levar ao delírio. Sauvages (apud Foucault, 1972, p. 230) define o delírio como: “Uma certa impressão de temor está ligada ao ingurgimento ou à pressão de tal fibra medular; esse temor se limita a um objeto, assim como é estritamente localizado esse ingurgimento. À medida que esse temor persiste, a alma atribui-lhe mais atenção, isolando- o e destacando-o cada vez mais de tudo aquilo que não é ela”. Havia na loucura clássica duas formas de delírio. “Uma particular, própria das doenças do espírito” (Foucault, 1972, p. 236). Neste caso, o delírio é sempre manifesto. E o outro delírio “que não aparece, não é formulado pelo doente, mas que não deixa de existir” (Foucault, 1972, p. 236). Ele aparece nos gestos silenciosos e comportamentos estranhos. A definição que se pode dar à loucura clássica é a mesma de delírio: “Esta palavra deriva de lira, sulco, de modo que delírio significa exatamente afastar-se do sulco, do caminho reto da razão”.[10] A linguagem e o discurso eram e são muito importantes para a loucura. A linguagem é a principal fonte para detectar todos as perturbações e alterações (delírios) provocados pela loucura, sendo precisa para o psicólogo, que tem na escuta o meio mais eficiente de detectar algum problema no discurso do paciente. No século XVIII, a parte prática da Medicina não está nas mãos dos médicos, mas sim de curandeiros, charlatões, monges, religiosos, vendedores de ervas que não possuíam o conhecimento teórico das doenças. Se por um lado, ao ser internado, o louco escapava dos médicos, por outro corria perigo estando nas mãos dos empíricos. Seguindo a influência do pensamento de Descartes, a idade clássica separa o corpo da alma. A concepção que está em voga é que a essência da alma é o pensar e a do corpo ser um objeto no espaço. O funcionamento do corpo assemelha-se a uma máquina, onde é possível explicar as funções fisiológicas através de mecanismos semelhantes aos que movem as máquinas. E as máquinas são movidas por “espíritos”. Para cada tipo de loucura um espírito age em determinada parte do corpo, entupindo veias, obstruindo poros e vísceras, trazendo fraquezas e furores até chegar no ponto de aplicação da alma ao corpo. Assim, a loucura seria a agitação irregular dos espíritos, movimento desordenado das fibras e idéias, entupimento do corpo e da alma, estagnação dos humores, imobilização e rigidez das fibras, fixação das idéias (Foucault, 1972, p. 318). Segundo Foucault (1972, p. 359), na época clássica, a consciência da loucura e a consciência do desatino não se haviam separado uma da outra. Mas na segunda metade do século XVIII, o medo da loucura cresce ao mesmo tempo em que o pavor diante do desatino, e desta forma ambas apóiam-se uma na outra. O pensamento médico do século XVII e XVIII relacionava a loucura como um efeito do mundo exterior. Assim, a lua, o clima, exerciam uma influência sobre o homem pondo em risco seu sistema nervoso e suas paixões. Segundo Cheyne (apud Foucault, 1972, p. 363), a riqueza, a alimentação fina, a abundância de que se beneficiam todos os habitantes, a vida de lazeres e preguiças que tornam a sociedade cada vez mais rica são causas das perturbações nervosas. Assim, a loucura na Inglaterra, mais do que qualquer outro lugar, é apenas o preço da liberdade e da riqueza que ali reina (Foucault, 1972, p. 363). A liberdade, ao invés de aproximar o homem da sua essência, estaria afastando-o cada vez mais. Outro fator que podia ter implicação diretamente na loucura seriam as crenças religiosas. Elas trariam uma falsa imagem, com idéias ilusórias e pensamentos irreais, sendo, inclusive, proibida ao doente mais devoto a leitura de livros sacros. A civilização também seria um mal e o meio mais favorável para o desenvolvimento da loucura. A vida dentro dos escritórios, sem respirar ar puro, trabalhos freqüentes e em excesso, contribuiria para isso. A miséria também propagaria a loucura, através de profissões perigosas, moradias em lugares populosos ou sem higiene, e tornar-se-ia o estigma de uma classe que abandonou as formas da ética burguesa. Na economia mercantilista, o pobre, não exercendo papel nem de produtor, nem de consumidor, não tinha lugar, sendo exilado e abstraído da sociedade. Assim, para Foucault, “a loucura se tornou possível em virtude de tudo aquilo que o meio pode reprimir, no homem, que dependia da existência animal (Foucault, 1972, p. 371)”. Dessa forma, vemos como a relação que o homem estabelece com a loucura evolui através dos tempos. Enquanto na Idade Clássica o homem relacionava-se com ela pelo caminho da falta, onde a consciência da loucura implicava uma experiência da verdade, no século XVIII o homem não perde a verdade na loucura, mas a sua própria verdade, que é a razão e o seu domínio ético. Assim, pode-se perceber que muita coisa mudou na loucura no século XVIII. Os internamentos apresentaram bastantes flutuações e mostravam que o aumento do número de internos decorria da miséria e do rigor da repressão e a diminuição dos internamentos provinha de momentos de recuperação econômica. A partir do início da Revolução Francesa, em 1789, houve uma queda brutal nos internamentos. Um outro aspecto importante que exerceu influência quanto à diminuição do número de internamentos foi a abertura de casas destinadas a receber apenas os insensatos. Antes eles se misturavam com criminosos, prostitutas e inúmeros outros marginais. Porém, estas novas casas não diferiam das anteriores quanto à estrutura. Segundo Foucault (1972, p. 388), o internamento é que distingue na loucura os perigos de morte que ela comporta. Assim, foi neste contexto que a loucura conquistou uma linguagem própria, cada vez mais se instalando como objeto de percepção diferentemente do poder de fascinação que o desatino trazia consigo. Ao longo do século XVIII foram feitos protestos em prol dos alienados e suas condições de vida dentro das casas de internamento. Estes eram jogados “como criminosos de estado, em subterrâneos, em celas onde o olhar da humanidade nunca penetrava” (Foucault, 1972, p. 394). Isto mostra a individualização da loucura, extremamente ligada ao crime, porém por razões ainda não esclarecidas. Quando a loucura começa a ser separada do crime, e de outras formas de desatino, uma imagem bastante conhecida volta a habitar o ambiente social. Os loucos que não eram encaminhados às novas casas de internamento eram mandados para as ilhas. Novamente a imagem da nau se fazia presente, e este louco era obrigado a habitar e explorar os territórios coloniais. O internamento se ligava cada vez mais aos aspectos complexos. O espaço social no qual situava a doença também estava renovado. Entre a Idade Média e a Clássica todo homem pobre e doente tinha o direito a receber cuidados. No século XVIII, pensa-se em dar assistência também, mas de uma forma diferente da que era dada. Um auxílio às famílias seria suficiente para que o doente tivesse apoio sentimental (vendo a família todos os dias), médico e menos gasto econômico (já que o internamento seria dentro de sua casa). Então, a imagem que se tinha do internamento como sendo criador de pobreza e o hospital como criador de doenças é eliminada. A prática do internamento é reduzida. Não se interna mais pelas faltas morais, nem por conflitos familiares, mas agora o espaço asilar era reservado aos loucos. Porém, as dificuldades eram muitas, já que os hospitais não eram suficientes para tratar sequer dos insanos. Dessa forma, a família passa a ser responsável pela vigilância do alienado, impedindo que este cometesse desordens. Assim, o louco continua sem liberdade, só que desta vez mais disfarçada, porque, ao invés de estar sob as garras do internamento, ele se encontra sob as ordens da família. Para os insanos que continuam internados, a melhor forma de pagar pelos erros que cometeram é a dedicação ao trabalho. O controle dentro das casas gera lucro econômico, fundamento da ética burguesa. Aquilo que o insano produz “cabe inteiramente à administração e à sociedade e por outro lado, o trabalhador recebe o certificado de moralidade” (Foucault, 1972, p. 427). Ao receber os cuidados médicos dentro das casas, o internamento recebe uma outra imagem: já não carrega aquele peso como sendo um lugar de exclusão social, de correção, e