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Guias e Dicas
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URBANISMO E ARQUITETURA, Provas de Engenharia Civil

CONCEITO SOBRE O ESPAÇO URBANO

Tipologia: Provas

2022

Compartilhado em 23/08/2023

roberto-simplicio
roberto-simplicio 🇧🇷

27 documentos

Pré-visualização parcial do texto

Baixe URBANISMO E ARQUITETURA e outras Provas em PDF para Engenharia Civil, somente na Docsity! Eres té usa ES e ameba, Raquel Rolnik O QUE É CIDADE a ü Q ¿D € JP ÍNDICE — Introdução............................................................... 7 — Definindo a cidade.................................................... 11 — A cidade do capital................................................... 30 — indicações para leitura............................................. 85 Q 1 Cl j p O INTRODUÇÃO Quando, no alto das montanhas de SV3achü Pücehu, pisamos nas pedras da cidade, uma emoção forte se apodera de nós. Esta estranha sensação anuncia do deserto as sete portas da muralha de Jerusalém. Quem, do avião, vê São Paulo que se avizinha, perde a respiração ao perceber-se perto das centenas de torres de concreto e luzes da cidade. Que fenômeno é es­ te capaz de se fazer sentir no corpo de quem de­ le se aproxima? Q viajante de muitos tempos e lugares reco­ nhece em seu caminho os vestígios da proximi­ dade com a cidade. Sobre montanhas, rios e pe­ dras da natureza primeira se implanta uma se­ gunda natureza, manufaturada, feita d@ milha­ res de pelas geométricas. Fruto da imaginação e 10 RAQUEL ROLNIK capitalista — sua origem, movimentos internos, conflitos e contradições. Estaremos neste capí­ tulo mais próximos das cidades conhecidas, que percorremos em nossó dia-a-dia: a grande e ex­ plosiva cidade industrial ou a metrópole infor­ matizada de um futuro presente. Finalmente, breves indicações para leituras subseqüentes fecham o livro sugerindo — espe­ ramos — futuros vóos. C T ; € DEFININDO A CIDADE Quando, ao decidir escrever este livro, me perguntei o que é cidade, a primeira imagem que me veio à cabeça foi São Paulo, a metrópole que se perde de vista. Pensei na intensidade de São Paulo, feita do movimento incessante de gente e máquinas, do calor dos encontros, da violên­ cia dos conflitos. Milhares de habitantes. Mi­ lhões. Mas logo me ocorreu uma dúvida: não se­ riam esse ritmo e essa intensa concentração, para mim tão sinônimos de urbano, próprios apenas das metrópoles, as cidades que anun­ ciam o século XXI? Pensei então em outras cidades, de outros tempos e lugares — Babilônia, Roma, Jerusalém — cidades amuralhadas, de limites precisos, cu­ jas portas permitiam ou bloqueavam o contacto 12 RAQUEL ROLNIK com o mundo exterior.,Pensei então na ironia de Wall Street» a rúa do muro que ¡imitava a cidade de Nova ¡orque, no século XVII» transformándo­ se no centro do mercado'financeiro internacio­ nal» símbolo de um mundo onde as cidades não têm fim.- No início da hisíória'americana» quem se dirigia a Nova Iorque deparava-se com seus portões. Hoje esta possibilidade não existe mais: não se está nunca diante da cidade» mas quase sempre dentro dela. O espaço urbano deixou-assim de se restringir a um conjunto denso e definido de edificações para significar, de maneira mais ampla, a predo­ minância da cidade sobre o campo. Periferias» subúrbios» distritos industriais» estradas e vias expressas recobrem e absorvem zonas agrícolas num movimento incessante de urbanização. No limite» este movimento tende a devorar todo o espaço, transformando em urbana a sociedade como um todo. Diante de fenômenos tão diferentes como as antigas cidades muradas e as gigantescas me­ trópoles contemporâneas» seria possível definir cidade? Na busca de algum sinal que pudesse apontar uma característica essencial da cidade de qual­ quer tempo ou lugar» a imagem que me veio à cabeça foi a de um ímã» um campo magnético que atrai» reúne e concentra os homens. O QUE É CIDADE 15 quanto organização política» lançando-se con­ juntamente em um projeto de dominação da na­ tureza. No castigo divino» embaralhar as línguas era impossibilitar a comunicação entre os homens» fundamental para a existência de um trabalho organizado» e com isso inviabilizar a realização da obra coletiva. Foi então que Babel» surgida, para reunir os homens» impedindo que se espalhassem por to­ da a Terra, acabou por separá-ios. O mito de Babel expressa a luta do homem por seu espaço vita!» no momento de sedentari- zação. O final da alegoria — a divisão irremediá­ vel dos homens em nações — aponta para a constituição da cidade propriamente dita. Esta será a cidadela» em guerra permanente contra os inimigos» na defesa de seu território. A cidade como escrita Como vimos anteriormente, a grande cons­ trução feita de milhares de tijolos marca a cons­ tituição de uma nova relação homem/naíureza, mediada pela primeira vez por uma estrutura ra­ cional e abstrata. Ê evidente o paralelismo que existe entre a possibilidade de empilhar tijolos» definindo formas geométricas» e agrupar letras, 16 RAQUEL ROLNIK formando palavras para representar sons e idéias. Deste modo, construir cidades significa também uma forma de escrita. Na história, os dois fenómenos — escrita e cidade — ocorrem quase que simultaneamente, impulsionados pe­ la necessidade de memorização, medida e ges­ tão do trabalho coletivo. A cidade, enquanto local permanente de mo­ radia e trabalho, se implanta quando a produção gera um excedente, uma quantidade de produ­ tos para além das necessidades de consumo imediato. O excedente é, ao mesmo-tempo, a possibüi-, dade de existência da cidade — na medida em que seus moradores são consumidores e não produtores agrícolas — e seu resultado — na medida em que é a partir da cidade que a produ­ ção agrícola é impulsionada. Ali são concebidas e administradas as grandes obras de drenagem e irrigação que incrementam a produtividade da terra; ali se produzem as novas tecnologias do trabalho e da guerra. Enfim, é na cidade, e atra­ vés da escrita, que se registra a acumulação de riquezas, de conhecimentos. Na cidade-escrifa, habitar ganha uma dimen­ são completamente nova, uma vez que se fixa em uma memória que, ao contrário da lembran­ ça, não se dissipa com a morte. Não são somen­ te os textos que a cidade produz e contém '{do­ cumentos, ordens, inventários) que fixam esta O QUE É CIDADE 17 memória, a própria arquitetura urbana cumpre também este pape!. O desenho das ruas e das casas, das praças e dos templos, além de conter a experiência da­ queles que os construíram, denote o seu mun­ do. É por isto que as formas e tipologías arquite­ tônicas, desde quando se definiram enquanto hábitat permanente, podem ser lidas e decifra­ das, como se lê e decifra um texto. Isto fica claro .quando percorremos alguns sí­ tios históricos: quem vai, por exemplo, a Machu Picchu, ruína do império inca no Peru, lê um tex­ to que fala do povo quichua e de seu mundo. Ao mesmo tempo, o abandono e destruição da ci­ dade revela a dominação daquele espaço pe­ los europeus, deixando de ser um espaço vivo para se transformar somente em traço da me­ mória. Em Salvador ou Ouro Preto, cidades ainda vi­ vas, os símbolos e significados do passado se interceptam com os do presente, construindo uma *ede de significados móveis. Sua decifra- ção é, consequentemente, rnais complexa. As­ sim, é bastante comum nas cidades brasileiras encontrarmos construções luxuosas, palacetes, que se transformaram em cortiços, casas-de- cômodos ou pensões.- Costuma-se dizer que es­ tes espaços se "deterioraram", ou seja, perde­ ram seu significado de opulência e poder (palá­ cio) para se tornarem símbolo de marginalidade 20 RAQUEL ROLNIK tes a concentração, a aglomeração de indivi­ duos, e conseqüentemente a necessidade de gestão da vida coletiva. Esta questão se coloca até para a vida urbana mais simples e rudimen­ tar: mesmo numa cidade perdida nos confins da história ou da geografia há pelo menos uma cal­ çada ou praça que é de todos e não é de nin­ guém, há o lixo que não pode se acumular nas ruas nem pode ser simplesmente enterrado no jardim, há a igreja ou o templo a construir e manter, enfim há sempre na cidade uma dimen­ são pública de vida coletiva, a ser organizada. Da necessidade de organização da vida pública na cidade, emerge, um poder urbano, autoridade político-administrativa encarregada de sua ges­ tão. Sua primeira forma, na história da cidade, é a de um poder altamente centralizado e despóti­ co: a realeza. A base do poder do rei é a guerra. Através de­ la se conquista e se defende o território, através dela o monarca mantém sèu poder, controlando seus súditos. A cidade da realeza é a cidadela: recinto murado e fortificado onde se encontram o palácio, o templo e o silo. É da cidadela que se dirigem os grandes trabalhos de construção,.se contabilizam a produção e os tributos, se co­ manda a guerra. Sua manutenção provém do trabalho de todos os súditos — por isso quem é morador da cidade está ao mesmo tempo prote­ gido e compelido por suas muralhas. O QUE É CIDADE 21 Na cidadela são os reis, sacerdotes, guerrei­ ros e escribas que ocupam a posição central; ao seu redor estão os artesãos, empregados cam­ poneses e escravos. A divisão do trabalho (ad­ ministração do excedente alimentar, comando da guerra, diálogo com os deuses, produção ar­ tesanal, produção agrícola, etc.) produz e repõe uma hierarquia que se expressa claramente em termos espaciais. A suntuosidade do palácio ou do templo, ao mesmo tempo que é signo des­ ta hierarquia, é também sua razão de ser. Sua construção e manutenção implicam o refor­ ço de uma organização baseada na exploração e privilégio, que permite à classe dominante maxi­ mizar a transformação do excedente alimentar em poder militar e este em dominação política. A origem da cidade se confunde portanto com a origem do binômio diferenciação social/centrali- zação do poder. Este se coloca tanto interna­ mente (para os vários grupos ou classes sociais da cidade em questão) quanto externamente, na conquista e ordenação dos territórios sob seu poder. A relação morador da cidade/poder urbano pode variar infinitamente em cada caso, mas o certo é que desde sua origem cidade significa, ao mesmo tempo, uma maneira de organizar o território e uma relação política. Assim, ser ha­ bitante de cidade significa participar de alguma forma da vida pública, mesmo que em muitos 22 RAQUEL ROLNIK casos esta participação seja apenas a submis­ são a regras e regulamentos. De todas as cidades é provavelmente a polis, cidade-Estado grega, a que mais claramente ex­ pressa a dimensão política do urbano. Do ponto de vista territorial urna polis se divide em duas partes: a acrópo/e, colina fortificada e centro re­ ligioso, e a cidade baixa, que se desenvolve em tomo da ágora, grande local aberto de reunião. No entanto, se perguntássemos a um grego da época clássica o que era polis, provavelmente esta não seria sua definição: para ele a polis não designava um lugar geográfico, mas uma práti­ ca política exercida pela comunidade de seus ci­ dadãos. Da mesma forma se referiríam os romanos à civitas, a cidade no sentido da participação dos cidadãos na vida pública. Se no caso da polis ou da civitas o conceito de cidade não se referia à dimensão espacial da cidade e sim à sua dimen­ são política, o conceito de cidadão não se refere ao morador da cidade, mas ao individuo que, por direito, pode participar da vida política. No caso das cidades-Estado gregas a cidadania es­ tava relacionada à propriedade de lotes agríco­ las no território abarcado pela cidade. Assim, escravos, estrangeiros e mulheres, apesar de habitantes de cidade, não participavam das de­ cisões a respeito de seu destino. A ágora ou a cidadela, de maneiras diversas, O QUE É CIDADE 25 nelândia se tornaram o grande símbolo do dese­ jo de cidadania que tomava conta do país. Na passeata» comício ou barricada a vontade dos cidadãos desafia o poder urbano através da apropriação simbólica do terreno público. Mes- tes momentos» assim como nas festas popula­ res como o carnaval ou as festas religiosas, as muralhas invisíveis que reguiam a cidade» man­ tendo cada coisa era seu lugar e comprimindo a muitidão do dia-a-dia, se salientam pela ausên­ cia. Quando o território da opressão vira cenário de festa, é a comunidade urbana que se mani­ festa como é: com suas divisões» hierarquias e conflitos, assim como com suas soiidanedades e alianças. Na hora do rito» isso vem è tona; mas no dia-a-dia tudo isso está presente, subjacente, nos gestos e palavras cotidianas dos habitantes da cidade. A cidade como mercado Falamos do poder de atração das-cidades, de como a aglomeração urbana é também uma es­ crita e de sua dimensão política. Tudo isto se re­ fere a um tipo de espaço que, ao concentrar e aglomerar as pessoas, intensifica as possibilida­ des de troca e colaboração entre os homens» 26 RAQUEL ROLNIK potencializando sua capacidade produtiva. Isto ocorre através da divisão do trabalho. Isolado, cada indivíduo deve produzir tudo aquilo que ne­ cessita para sobreviver; quando há a possibili­ dade de obter parte dos produtos necessários à sobrevivência através da troca, configura-se a especialização do trabalho e instaura-se um mercado. A cidade, ao aglomerar num espaço li­ mitado uma numerosa população, cria o merca­ do. E assim se estabelece não apenas a divisão de trabalho entre campo e cidade, a que já nos referimos, mas também uma especialização do trabalho no interior da cidade. Na cidade da anti- güidade, o atendimento a mercados urbanos possibilitou a especialização dos ofícios e, con- seqüentemente, o desenvolvimento das técni­ cas (metalurgia, cerâmica, vidraria, cutelaria, etc.}. O tamanho destes mercados era dado pe­ las fronteiras, isto é, pela extensão do domínio territorial da cidade e pelos custos de transpor­ te. Assim, em um primeiro momento, os merca­ dos urbanos eram somente locais, restritos a uma cidade, e a dimensão mercantil da cidade era secundária em relação à sua dimensão políti­ ca. Tal fato se evidencia na própria posição dos mercados e mercadores nas cidades da antigui­ dade — eram estrangeiros e ficavam fora dos .muros, em acampamentos e feiras. Â expansão do caráter mercantil da cidade se dá quando se constitui uma divisão de trabalho O QUE É CIDADE 27 _ entre cidades. Quando isto acontece, as ativida- ces podem se especializar ainda mais na medida em que a produção deverá suprir uma demanda - jito mais ampia do que a do mercado local. A I condição para que isto aconteça é que esta divi­ são de trabalho interurbana esteja politicamente .nificada, ou seja, que o território alcançado pe- o mercado esteja sob um poder único e centrali­ zado. Na antiguidade, foi a junção de uma série ce cidades antes autônomas em impérios que criou as condições para o florescimento de uma economia propriamente urbana. Entende-se aqui por economia urbana uma organização da crodução baseada na divisão de trabalho entre campo e cidade e entre diferentes cidades. Quando esta divisão do trabalho se estabelece, a cidade deixa de ser apenas a sede da classe cominante, onde o excedente do campo é so­ mente consumido para se inserir no circuito da crodução propriamente dita. Desta maneira, o mabalho de transformação da natureza é inicia- co no campo e completado na cidade, passando o camponês a ser consumidor de produtos urba- “os e estabelecendo-se então a troca entre ci­ dade e campo. O Império Romano é um grande exemplo desse crocesso. No território sob o jugo de Roma o co­ mércio circulava livremente, as cidades esía- ,am ligadas por uma rede de estradas, os portos croiiferavam. Deste modo, cerâmica manufatu- A CIDADE DO CAPITAL “ O ar da cidade, liberta” Como vimos no primeiro capítulo, é a partir de um certo momento da história que as cidades passam a se organizar em função do mercado, gerando um tipo de estrutura urbana que não só opera uma reorganização do seu espaço inter­ no, mas também redefine todo o espaço circun­ dante, atraindo para a cidade grandes popu­ lações. Embora este processo seja vivo e atual, va­ mos buscar na história das cidades européias seus primeiros sinais. Em 1 500 — enquanto portugueses e espanhóis singravam os mares na busca de novos territórios — em Nápoles, Florença ou Veneza se dizia "o ar da cidade li­ berta". Para estas cidades afluíam camponeses das províncias vizinhas, atraídos pelas "artes" O QUE É CIDADE 31 ca lã e da seda, pelas obras públicas da cidade, oeio serviço nas casas ricas, ou simplesmente cor urna vaga de servidor ou mendigo. Esta pos- 5 c idade se coloca para os camponeses no mo- mento em que a cidade, que até então existia : r a os intersticios de um mundo agrário, passa a cc-ninar a cena. Isto significa também a pas- 5 ; gen de uma economia baseada na produção :e subsistência, onde se produz para o susten­ to eos próprios produtores, para uma economia —ercantil, onde se comercializa o excedente. No caso da Europa feudal, a subsistência do ser, o era garantida por sua ligação à terra e ao senhor. O feudo era o domínio de um nobre e ec = -cava as terras senhoriais, florestas e as ter- -3 s comunais, isto é, as terras que poderiam ser ocupadas pelos servos. Ali se produzia para as -ecessidades básicas da comunidade. O feudo era autônomo tanto do ponto de vista econômi­ co quanto do ponto de vista político. O domínio ce um senhor sobre suas terras e servos era ab- so uto, assim como, para a igreja, é absoluto o ccmínio do-Senhor sobre os homens. A cidade, neste contexto, assim como o feú­ co, é também uma unidade autônoma. Estrutu­ rada em torno da Igreja e suas instituições, ela • ,e para si mesma e para sua vizinhança — ~-iitas vezes constituído apenas pela própria extensão territorial de um feudo. Em suas ruas tortuosas se produzia algum .artesanato, em 32 RAQUEL ROLNIK suas praças se instalavam pequenos mercados ou feiras periódicas, em seus conventos e cate­ drais se celebrava o cristianismo triunfante. Â produção artesanal da cidade era controla­ da pelas corporações de ofício, uma espécie de liga de mestres artesãos, que dominavam os di­ versos ramos da produção — sapateiros, olei­ ros, ferreiros, etc. Assim como toda a rede que ligava senhores a servo% e senhores entre si a estrutura da corporação era extremamente hie- rarquizada. Para se tornarem mestres os apren­ dizes passavam por um longo processo de for­ mação. Em troca de casa, comida e proteção o aprendiz ia adquirindo, através da própria práti­ ca, as técnicas, os segredos, enfim a arte do ofí­ cio. O aprendiz vivia com seu mestre que, por sua vez, tinha sua oficina como extensão ou parte de sua própria casa. O desenho das ruas e praças de um burgo — assim poderia ser chamada uma cidade medie­ val — não obedecia a qualquer traçado preesta- beiecido. Não havia portanto uma prévia demar­ cação de lotes ou desenho de uma rua. Sendo comunal, a terra urbana era simplesmente ocu­ pada pelos moradores, à medida que ali iam se instalando. No trabalho dos construtores de cidades me­ dievais, assim como na produção artesanal co­ mo um todo, era muito forte a presença da natu­ reza. O alto da montanha ou curva brusca de um O I 11 O QUE É CIDADE 35 sermonáis, cresciam a revolta dos sérvos e sua - o'scáo para as cidades. 0 arrendamento também expulsava os servos :c campo. As terras arrendadas geralmente cassavam a produzir para o mercado — princi- :a —e~te matérias-primas para manufaturas co- — : ca ã ou do linho — numa forma de produção ;_e -ão absorvia nem comportava o trabalho S6fVÜ Tudo isto gerou um movimento em direção à : cace: primeiro dos servos, mas, pouco a pou- cc também do poder. -c afluir para as cidades, os camponeses se serta vam do regime de servidão, não mais se ;_c~etendo ao vínculo com a terra e com o se­ nhor cue lhes roubava o trabalho, a comida e o te—do. Assim, para o servo, ir para a cidade, —esmo que não representasse necessariamente e -ocade, saúde ou prosperidade, significava cc-c-etamente uma libertação. Solto das amar- *bs que o prendiam ao senhor feudal, o servo cem a também o acesso à terra e portanto à s .cs stência — o que lhe conferia a dupla condi- ce livre e despossuído. com a força deste trabalhador livre e des- ccssuído, com o lucro gerado pelo grande co- - f *c o e com o mercado que as cidades criavam : . z a atividade manufatureira começa a se mul- tc ca', desafiando e deslocando o monopólio cee corporações de ofício sobre a produção ar- 36 RAQUEL ROLNIK tesanal. A intervenção crescente dos mercado- res, enriquecidos com o comércio, na produção artesanal ia cada vez mais deslocando o poder e o controle que os mestres de ofício tinham so­ bre sua produção de tal maneira que a atividade manufatureira, assim como o comércio, passam a ser controlados por este novo grupo social. Este grupo — a principio um patriciado urbano enriquecido com as atividades mercantis — não era composto nem por nobres senhores feudais nem por servos. Seu território era a cidade e seu poder a fortu­ na acumulada com o comércio, a indústria, as fi­ nanças. À medida que a atividade mercantil e manufatureira crescia e se diversificava, pouco a pouco algumas cidades passaram a sediar a administração dos empreendimentos: o finan­ ciamento e o seguro daS viagens, a contabilida­ de, a gestão da economia mercantil. Assim, di­ zia-se que Gênova no século XVI antes de ser uma cidade era um banco, por onde se contabili­ zava e controlava todo o comércio do Mediter­ râneo. A cidade, longe de estar circunscrita por suas muralhas, ou mesmo pelos seus arredores, tornava-se a cidade-mundo, nó de uma rede de cidades que passa a cobrir largas porções do planeta. Vimos até aqui como a cidade derrubou suas muralhas, como de uma economia natural pas­ sou a uma economia mercantil, e como tornou- - O QUE É CIDADE 37 se sede e ponta-de-lança da emergência de um --evo grupo social. No entanto, para entender- —os as implicações destas transformações na cganização das cidades, é preciso resgatar jma outra dimensão deste processo: a dimen­ são propriamente política. Evidentemente a emergência de patriciado ur­ ea ~o e a desarticulação do sistema feudal colo­ es .am em xeque o poder dos nobres senhores ;3-cais. A principio, esta questão se traduziu no -5*orço de um poder local urbano — a cidade- Esesáo. Em Veneza, Gênova, Barcelona ou Flo- -e~ea se constituem linhagens de famílias patrí- : s í . As torres dos palácios que lhes serviam de •es cência despontam na paisagem urbana, jun- *3 ente com os pináculos das catedrais, agora - a s suntuosos ainda, desde que a riqueza do :3 r ciado passa a ser investida também nelas. A construção de catedrais fázia parte da estra- :ég a do poder patricio frente ao grande poder rC'esentado pela Igreja e pela teocracia. As grandes construções — de palácios e catedrais — ao mesmo tempo que manifestavam a ali- 3-:= oatriciado-lgreja, significavam um aque- : —soto do mercado interno, gerado pelos tra­ es -acores envolvidos com a construção. . 3 - 0 século XVI, as grandes cidades-Estado x-c-cam a conquistar cidades vizinhas, consti- •- r>cc Estados territoriais, numa espécie de ex- •5 - 3.= : ce seu território. Assim, Veneza vira a 40 RAQUEL ROLNIK É desta redefinição do urbano e seu reflexo para as cidades de hojje que falaremos agora. Primeiro mostrando como se organiza a cidade dividida» onde a terra é mercadoria» para» em se­ guida, examinar o Estado e sua relação com a cidade e os cidadãos. Separar e reinar: a questão da segregação urbana ¡Mas grandes cidades hoje, é fácil identificar territórios diferenciados: ali é o bairro das man­ sões e palacetes» acolá o centro de negócios, adiante o bairro boêmio onde r.ola a vida notur­ na» mais à frente o distrito industria!» ou aínda o bairro proletário. Assim quando alguém, referin­ do-se'ao Rio de Janeiro» fala em Zona .Sul ou Baixada Fluminense» sabemos que se trata de dois Rios de Janeiro bastante diferentes; assim como pensando em Brasília lembramos do pla­ no-piloto, das mansões do lago ou das cidades- satélites. Podemos dizer que hoje nossas cida­ des têm sua zona sul e sua baixada» sua "zona", sua Wall Street e seu ABC. É como se a cidade fosse um imenso quebra-cabeças» feito de peças diferenciadas, ond® cada qua! conhece seu lugar e se sente estrangeiro nos demais. É a O QUE É CIDADE 41 este movimento de separação das classes so- dais e funções no espaço urbano que os estu­ diosos da cidade chamam de segregação es­ pacial. Entre as torres envidraçarias e gestos tensos dos homens de terno e pasta de executivo, me­ ninas pulando corda e jogando amarelinha esta­ riam totalmente deslocadas; assim como não há travesti que faça michê na porta do Citibank às 3 horas da tarde. Não se vê vitrinas de mármo­ re, aço escovado e neon na periferia, nem lama ou falta d'água no Leblon (Rio}, Savassi (Belo Horizonte) ou Boa Viagem (Recife). É como s@ a cidade fosse demarcada por cercas, fronteiras imaginárias, que definem o lugar de cada coisa e de cada um dos moradores. As meninas pulando corda e jogando amareli­ nha, fechadas no pátio da escola, se separam da rua por uma muralha de verdade, alta, inexpug­ nável; Já a"froníeira entre um bairro popular e um bairro chique pode ser uma rua, uma ponte, ou simplesmente não ser nada muito aparente, mas somente uma imagem, um ponto, uma es­ quina.. Em algumas cidades, como em Joanes­ burgo, na África do Sul, placas sinalizam a segre­ gação, indicando os territórios permitidos ou proibidos para os negros. Ãs áreas restritas são protegidas por forças policiais que podem pren­ der quem por ali circular sem autorização.' Neste caso, a segregação á descarada e violenta. 42 RAQUEL ROLNIK A segregação é manifesta também no caso dos condominios fechados — muros de verda­ de, além de controles eletrônicos, zelam pela se­ gurança dos moradores, o que significa o con­ trole minucioso das trocas daquele lugar com o exterior. Além de um recorte de classe, raça ou faixa etária, a segregação também se expressa através da separação dos locais de trabalho em relação aos locais de moradia. Â cena clássica cotidiana das grandes massas se deslocando nos transportes coletivos superlotados ou no trânsito engarrafado são a expressão mais aca­ bada desta separação — diariamente temos que percorrer grandes distâncias para ir trabalhar ou estudar. Com isto, bairros inteiros das cidades ficam completamente desertos de dia, os bair- ros-dormitórios, assim como algumas regiões comerciais e bancárias parecem cenários ou ci- dades-fantasmas para quem as percorre à noite. Finalmente, além dos territórios específicos e separados para cada grupo social, além da sepa­ ração das funções morar e trabalhar, a segrega­ ção é patente na visibilidade da desigualdade de tratamento por parte das administrações locais. Existem, por exemplo, setores da cidade onde o lixo é recolhido duas ou mais vezes por dia; ou­ tros, uma vez por semana; outros, ainda, onde o lixo, ao invés de recolhido, é despejado. As imensas periferias sem água, luz ou esgoto são evidências claras desta política discriminatória O QUE É CIDADE 45 propriedade do senhor, como uma máquina ou uma carroça, que faz parte portanto do inventá­ rio de seus bens, podendo ser trocada ou vendi­ da. Já a ligação do servo é, antes de mais nada, com a terra, feudo a que tem direito, por tradi­ ção ou conquista, um senhor. A existência do trabalho escravo marcava a paisagem urbana no Brasil colonial de forma pe­ culiar. Todo o trabaího, da produção doméstica ao transporte de cargas, dos ofícios aos servi­ ços gerais, era a ele entregue. Isto significa que uma das instituições fundamentais na vida de um burgo medieval — o grêmio corporativo — é impensável numa cidade colonial brasileira. Aqui, a senzala, e não a corporação, representa­ va o mundo do trabalho. Do ponto de vista espacial há no entanto al­ gumas semelhanças entre os burgos medievais europeus e as cidades coloniais do Brasil. Estas semelhanças residem sobretudo no caráter co­ munal do espaço urbano; isto é, espaços poliva­ lentes do ponto de vista funcional e misturados do ponto de vista social. Como no burgo medie­ val, na cidade colonial não existem regiões/tra- balho e regiões/moradia, praças da riqueza, pra­ ças da miséria. Isto evidentemente não quer di­ zer que não existiam nestas cidades diferenças de classe ou posição social. Pelo contrário: as distâncias que separavam nobres e plebeus, ri­ cos (popolo grasso — povo gordo, como se dizia 46 RAQUEL ROLNIK então na Itália) de pobres (popolo magro) eram enormes. Estas distâncias, assim como as dis­ tâncias entre senhores e escravos nas cidades brasileiras, não eram físicas. Ricos, nobres, ser­ vos, escravos e senhores poderíam estar próxi­ mos fisicamente porque as distâncias que os se­ paravam eram expressas de outra forma: esta­ vam no modo de vestir, na gestualidade, na ati­ tude arrogante ou submissa e, no caso brasilei­ ro, também na própria cor da pele. Estes eram sinais de respeito e hierarquia rigorosamente obedecidos porque tinham um fundamento mo­ ral: o negro se submetia ao senhor porque a ele pertencia seu corpo; o senhor impunha seu po­ der ao negro, acreditando ser ele apenas um ins­ trumento, não um ser humano. Assim a mistura de brancos e negros nas ruas e nas casas da cidade era possível porque a dis­ tância que os separava era infinita. O respeito e hierarquia introduziam a diferença social na vida comunal. Hoje essa forma de habitar e organizar a cida­ de seria considerada promíscua. É claro que quando falamos das cidades medievais ou nú­ cleos coloniais estamos falando de cidades com pequena população, no máximo 30-40 mil habi­ tantes, onde se anda a pé ou de carroça. No en­ tanto, não é apenas o aumento da população que explica a transformação deste modo de or­ ganização do espaço urbano. Examinando a his- O QUE É CIDADE 47 tória destas cidades é possível perceber que a segregação espacial começa a ficar mais evi­ dente à medida que avança a mercantilização da sociedade e se organiza o Estado Moderno. Na Europa, este quadro emerge no século XVII, no projeto barroco das cidades-capitais. Nas cida­ des escolhidas como sede pelas monarquias ab­ solutistas, logo o poder deste novo Estado se fazia notar através de sua presença na cidade. Grandes projetos de edificios públicos — muitas vezes conjuntos inteifos, como Versalhes — abrigavam um aparelho de Estado. A edificação destes conjuntos representava a permanência deste poder — cortes, arquivos, ministérios de finanças, burocracia — no coração da cidade. Para aqueles cujo poder e fortuna estavam mais diretamente relacionados a estas fontes de autoridade, isto é, para os principais funcioná­ rios do Estado e para os grandes comerciantes e banqueiros, os locais de residência passavam a se separar do local de trabalho. Com isto, novos bairros exclusivamente residenciais e homogê­ neos do ponto de vista social começam a surgir. Este é um primeiro movimento de segregação — com ele vem o bairro dos negócios (o CBD ame­ ricano) e uma reconceituação da moradia, que em sua acepção burguesa vem sob o signo da privaticidade e isolamento. No Brasil, este movimento é aparente no Rio de Janeiro — sede do poder imperial. O Paço de 50 RAQUEL ROLNIK burguês de morar que ss esboça com estas mu­ danças, “ casa" e "rua " são dois termos em oposição: a rúa é a terra-de-ninguém perigosa que mistura classes, sexos, idades, funções, posições na hierarquia; a casa é território íntimo e exclusivo. Dentro da casa se estruturam locais ainda mais privativos — a zona íntima, cujas pa­ redes definem os contactos por sexo e idade. Assim, é fechado no quarto da casa isolada do bairro homogêneo e exclusivamente residencial, que o indivíduo está totalmente protegido da tensa diversidade da cidade. Do ponto de vista da micropolítica da família, algumas mudanças importantes ocorrem no ter­ ritório familiar. A mulher — afastada da produ­ ção e do contacto com os assuntos do mundo exterior — acaba virando "a rainha do lar", uma especialista em domesticidade. Por outro lado, as crianças que até então vi­ viam desde pequenas no mundo dos adultos aprendendo na prática o que necessitariam para sobreviver, passam a ser separadas por grupos de idade e mandadas à escola. O que acabamos de descrever é o padrão bur­ guês de habitação; sabemos que, na verdade, tornou-se norma para o conjunto da sociedade, mas sabemos também que no território popular a superposição de funções e o uso coletivo do espaço é estratégia de sobrevivência.- Portanto o que vai caracterizar esta cidade dividida é, por O QUE É CIDADE 51 um lado, a privatização da vida burguesa e, por outro, o contraste existente entre este território do poder e do dinheiro e o território popular. A questão da segregação ganha sob este ponto de vista um conteúdo político, de conflito: a luta pelo espaço urbano. Para os membros da classe dominante, a proximidade do território popular representa um risco permanente de contamina­ ção, de desordem. Por isso deve ser, no míni­ mo, evitado. Por outro lado, o próprio processo de segregação acaba por criar a possibilidade de organização de um território popular, base da lu­ ta por trabalhadores pela apropriação do espaço da cidade. Vimos como a história da segregação espa­ cial se liga à história do confinamento da familia na intimidade do lar, que, por sua vez, tem a ver com a história da morte do espaço da rúa como lugar de trocas cotidianas, espaço de socializa­ ção. Vim os também como as ruas se redefinem em vias de passagem de pedestres e veículos, como a casa se volta para dentro de si e lá den­ tro se fecha e esquadrinha a familia. Esta reor­ ganização espacial, introduzida pela necessida­ de da segregação na cidade, tem urna base eco­ nômica e uma base política para sustentá-la. Do ponto de vista económico eia está diretamente relacionada à mercantilizaçãoou monetarização dos bens necessários para a produção da vida cotidiana. A moradia passa a não ser mais uma 52 RAQUEL ROLNIK unidade de produção porque os bens que nela eram produzidos se compram no mercado. Por ouíro lado o bairro residencia! exclusivo é possí­ vel e a superdensidade dos bairros dos trabalha­ dores é cada vez mais real exatameníe porque a terra urbana é uma mercadoria — quem tem di­ nheiro se apodera de amplos setores da cidade, quem não tem precisa dividir um espaço peque­ no com muitos. Do ponto de vista político, a segregação é produto e produtora do conflito social. Separa­ se porque a mistura é conflituosa e quanto mais separada é a cidade, mais visível é a diferença, mais acirrado poderá ser o confronto. De tudo o que falamos a respeito da segrega­ ção, um elemento atravessou toda a reflexão sem ter sido, no entanto, desenvolvido: a inter­ venção do Estado na cidade. Quando falamos do crescimento e transformação da cidade-capi- tal, nos referimos à intervenção e investimento do poder público no espaço. Quando falamos em regiões nobres e regiões pobres, nos referi­ mos a espaços equipados com o que há de mais moderno em matéria de serviços urbanos e es-, paços aonde o Estado investe pouquíssimo na implantação destes mesmos equipamentos. Quando falamos das altas paredes da escola que encerram as meninas no pátio, nos referi­ mos a instituições públicas, destinadas a disci­ plinar, curar, educar ou punir. O QUE É CIDADE 55 na intervenção do Estado. Para exercer esta in­ tervenção, todo um aparelho de Estado vai ser organizado. Vamos examinar aqui este exercí­ cio, suas estratégias concretas e pressupostos ao nível-das idéias que fundamentam a ação, as­ sim como suas contradições. Uma das características distintivas da estra­ tégia e modo de ação do Estado na cidade capi­ talista é a emergência, do plano, intervenção previamente projetada e calculada, cujo desdo­ bramento na história da cidade vai acabar de­ sembocando na prática do planejamento urba­ no, tal como conhecemos hoje. O que há de mais forte e poderoso atrás da idéia de planejar a cidade, é sua correspondência a uma visão da cidade como algo que possa funcionar como .um mecanismo de relajearía, mecanicamente. Esta imagem mecânica da cidade é clara nas utopias, cidades imaginárias que artistas e escritores re­ nascentistas representaram em esboços e des­ crições. Â mais famosa delas, a ¡Sha da Utopia de Thomas IVIorus, é rica em detalhes que ga­ rantem a perfeição do mecanismo: ruas retas e largas que permitem a passagem do ar e do trá­ fego; zoneamento funcional separando indús­ tria e residência, demarcação de reservas de verde no interior do tecido urbano; tudo isto aparece em um desenho simétrico e regular, or­ denado e preciso. Â utopia de Thomas Morus é talvez o mais detalhado de uma série de proje­ 56 RAQUEL ROLNIK tos de cidades ideais que estavam sendo produ­ zidos naquele momento pelos tratadistas de ar­ quitetura, como Campanelia, ■ da Virtci e Vi- trúv.io. Sabemos que no mundo medieval as cidades n io eram precedidas por pianos, pelo contrário, como já vimos, cresciam espontaneamente, na medida ern que iam ocupando o sítio circundan­ te, Projetos prévios n io eram tampouco feitos para a construção das casas, nem mesmo das grandes catedrais, Mestres da construção co­ nheciam a arte do ofício e, com suas equipes de trabalho, comandavam as obras. Esta prática de trabalho tem a ver diretamente com a forma de produção e transmissão do conhecimento me­ dieval, um saber que se concebe a transmite pe­ la própria prática do trabalho e na observação de semelhanças na natureza. Esta forma de pro­ duzir e transmitir conhecimento sofrerá uma re­ viravolta no século XVII, quando um conheci­ mento racional, baseado no princípio da repre­ sentação e nos princípios de ordem e medida, é posto em marcha. Para esta forma de pensar, conhecer é classificar, ordenando os objetos se­ gundo um critério de identidade e diferença. Neste princípio se baseavam os tratados de ar­ quitetura e urbanismo, aonde se registrava, me­ dido e calculado, aquilo que a experiência dos mestres construtores havia produzido. Eram projetados também novos modelos que, O QUE É CIDADE 57 O plano barroco. 60 RAQUEL ROLNIK foi também a cidade do México construída so­ bre as ruínas da antiga Tenochtitlan, capital do império asteea, arrasada pelos espanhóis em 1 529 . Estes são os primeiros exemplos da cida­ de barroca, modelo urbano baseado no projeto raciona! prévio que expressa o presente e prevé o futuro. Na própria Europa, a disseminação do plano e do modelo barroco vai ganhar materialização na obra dos monarcas absolutos. Â expressão mais ciara desta intervenção são as novas cidades (ou extensões de cidade) construídas especial­ mente para abrigar a realeza e sua corte, como Versalhes na França ou a Viia Real, em Nápoles. Mas através de intervenções puntuáis em seto­ res antigos das cidades é possível também reco­ nhecer esta ação. Como vimos no capítulo em que comentamos a segregação, em Roma ou Londres, no século XVII, quarteirões medievais inteiros foram demolidos para dar lugar a uma rede de avenidas e praças traçadas radialmente segundo linhas matemáticas. O elemento essencial dos planos barrocos é a circulação: ruas retas, alinhamento das casas, desobstrução dos nós que nao permitem a pas­ sagem. Vinculado a este, outro elemento impor­ tante é a visibilidade do poder — daí a constru­ ção do grande eixo monumental, bordado por edifícios públicos ou a eles convergindo. Para is­ to, uma operação limpeza arrasa o antigo ajun- O QUE É CIDADE 61 lamento irregular, substituindo-o pelo traçado das grandes avenidas planificadas. As novas avenidas abertas na cidade se transformam no espaço por onde circula a classe dominante, ge- ralmente contendo suas áreas de habitação ou centros de lazer. Nestes espaços o Estado in­ veste em infra-esírutura com o que há de me­ lhor, na época, em matéria de limpeza, ilumina­ ção, pavimentação. Enquanto as monarquias absolutas reforma­ vam suas capitais, implantavam também em seus arredores instituições disciplinares (como prisões, asilos, hospitais) destinadas a abrigar e conter a tensão gerada pelo grande fluxo de po­ bres que se encaminhava para as cidades. Além do movimento migratório campo-cidade de camponeses destituídos, as capitais eram pólos de atração maior do que qualquer outro local. Nelas as possibilidades de trabalho eram maio­ res (inclusive nos grandes trabalhos de constru­ ção) e, no mínimo, viver do lixo, ou caridade de uma grande cidade, era melhor do que vagar pe­ las estradas. Assim , a cidade vai aumentando rapidamente de população, crescendo a miséria e as tensões sociais. A construção de institui­ ções fechadas e isoladas procura confinar, sob vigilância permanente, uma população marginal que desafia e ameaça a fluidez da máquina-ci- dade. Por outro lado, a construção desses equipa- 62 RAQUEL ROLNIK méritos públicos tem a ver eom o pacto que se estabelecia entre Estado e familia, quando se constitui o " la r" burgués: o poder na familia é a garantia Joca! para o cumprimento das leis do Estado. 0 Estado, por sua vez, fornece à família os meios para conter seus membros não inte­ grados. Assim, ao mesmo tempo que se estru­ tura o lar — a casa isolada da família burguesa — os loucos, vagabundos e doentes da família são retirados do convívio com a cidade e "cu i­ dados” pelo poder público. Ã esta altura o leitor certamente deve estar lembrando de coisas conhecidas — dos asilos e penitenciárias, do eixo monumental de Brasília e sua Praça dos Três Poderes, da repetição mate­ mática dos conjuntos habitacionais do BNN, ou das grandes operações de demolição de áreas decadentes e sua substituição por vias expres­ sas ou shopping centers. Efetivamente, são ain­ da muito semelhantes os princípios da interven­ ção do Estado na cidade. E se eles ainda fazem algum sentido hoje é porque seus pressupostos econômicos e políticos ainda valem. Vamos passar então a apontá-los. Antes de mais nada, a prevalência da cidade como espaço de circulação de mercadorias é to­ talmente verdadeira para nossas cidades. Hoje, tudo é mercadoria e circula. As pessoas, ven­ dendo sua força de trabalho, os veículos despe­ jados aos milhões pelas fábricas de carros, as O QUE É CIDADE 65 go de poder urbano na cidade do capita!. Alguns exemplos — do passado e do presente — de grandes operações/investimentos públicos em nossas cidades ilustram este raciocínio. O início do século, no Rio de Janeiro, ficou conhecido como a "era do bota-abaixo". Sob o governo de Rodrigues Alves e a estratégia urbanística de Pereira Passos, o antigo centro e zona portuária do Rio foram totalmente remodelados. A aber­ tura da Avenida Central, urna das realizações do plano, substituiu uma região popular pelo co-' mércio e negócios endinheirados, contribuindo inclusive para agravar uma crise aguda de mora­ dia, que explodiu uma das maiores revoltas po­ pulares urbanas da história do país: a Revolta da Vacina. Um exemplo recente deste tipo de interven­ ção pública na cidade é a construção do metrô, pois alterou bastante o perfil e composição dos bairros onde ocorreu. Geralmente estas opera­ ções não beneficiam os antigos ocupantes das regiões atingidas; pelo contrário, estes são ex­ pulsos, literalmente, ou. através dos mecanis­ mos sutis do mercado especulativo de terras ur­ banas. Assim , do ponto de vista econômico, os pressupostos dos planos barrocos são extrema­ mente atuais. Do ponto de vista político, o desenho propos­ to pelo plano barroco das grandes avenidas e blocos regulares baseia-se na idéia de um po- 66 RAQUEL ROLNIK der urbano que possa ser visto e ao mesmo tem­ po ver e controlar a cidade. Ele se contrapõe ao casario medieval, um espaço obscuro e tortuo­ so, que era preciso iluminar, a começar, literal­ mente, pela abertura das ruas. Os estudos deta­ lhados de perspectivas forneciam os elementos arquitetônicos para construção deste espaço iluminado — as avenidas convergem para um ponto de onde tudo se controla, não há obstru­ ções, rugosidades que desviam o olhar. A fonte dessa arquitetura é sem dúvida a ex­ periência acumulada pela engenharia militar na construção de fortalezas, muralhas e quartéis. Mas a imagem de um poder urbano que tudo vê já aparece no desenho da Jerusalém Celeste, utopia religiosa medieval que representa uma ci­ dade iluminada sob um poder clarividente. No projeto das instituições de confinamento, o mesmo princípio se materializa na construção de uma torre central de onde se pode controlar simultaneamente todos os elementos (ce- las/quartos), enfileirados radialmente a seu re­ dor. É a idéia presente no Panoptikon, modelo de espaço 'institucional proposto por Jeremy Bentham no final do século XVIII, aplicável a hospitais, prisões, escolas, etc. 0 programa e o projeto dessas instituições em quase nada se modificaram atualmente: equipa­ mento coletivo como fator de disciplina e vigi­ lância está completamente presente em nossas O QUE É CIDADE 67 cidades. As incursões periódicas da polícia nas favelas resultam geralmente, além das mortes, em prisão para uns, reformatórios, hospitais e hospícios para outros. A própria rede pública de serviços de educa­ ção e saúde tem funcionado como campo de exercício de um poder urbano que vigia e disci­ plina. No hospital do INPS se adaptam os incapa­ citados para trabalhar, nas escolas se forma o cidadão normal, trabalhador e obediente às leis. Tudo isto significa que a intervenção crescente do Estado na vida dos habitantes tem se nortea­ do por produzir um certo modelo de normalida­ de e saúde aos cidadãos. O projeto normalizador dos equipamentos co­ letivos é apenas uma das instâncias onde o Es­ tado atua como produtor e conservador de nor­ mas, isto é, modelos homogêneos de cidade e cidadão impostos ao conjunto da sociedade co­ mo regra. Assim , ao mesmo tempo que para os equipamentos de saúde há o indivíduo saudá­ vel, para a legisiação urbana há a casa saudável, o bairro saudável. As casas e bairros de nossas cidades só podem ser construídos se obedece­ rem a um certo padrão, completamente adapta­ do à ocupação capitalista da terra e à micropolí- tica familiar burguesa. A reprodução infinita do projeto-padrão na cidade reforça a norma. As­ sim, para o planejamento urbano, as favelas e áreas de invasão, assim como os cortiços e os 70 RAQUEL ROLNIK Desta forma» é uma ação que va¡ no sentido da homogeneização» da conversão de um certo es­ paço singular» da reprodução do modelo "nor­ mal” da casa e da cidade. É também uma ação que responde simultaneamente ès reivindica­ ções do capital e dos moradores das favelas. O fato de que esta intervenção seja normalizadora demonstra como um território desviante é recu­ perado como se recupera um doente no hospital ou um criminoso numa prisão-modelo. Nesta acepção o poder urbano funciona na ci­ dade capitalista como uma instância que con­ trola os cidadãos, produz as condições de acu­ mulação para o capital e intervém nas contradi­ ções e conflitos da cidade. Para isto organiza uma poderosa máquina, feita de um exército de técnicos e funcionários, que em nossas cidades parece crescer indefinidamente. Apesar deste crescimento, a máquina não parece ter sido ca­ paz de eliminar o conflito, homogeneizar total­ mente o território da cidade ou acabar com seus males. E isto porque, em primeiro lugar, a má­ quina encarregada de controlar a cidade é obje­ to de disputa dos vários grupos ou forças so­ ciais que estão ali presentes. Assim, a não ser em períodos de ditadura, as reivindicações e pressões também vêm do território popular e nas disputas políticas em torno da máquina es­ tatal isto pode ter um peso significativo. Em se­ gundo lugar, porque nos espaços mais homogê- O QUE É CIDADE 71 neos e até nos piores espaços concentracionais há sempre o desvio das finalidades e previsões de certos equipamentos e a constituição de ter­ ritórios singulares» que se desviam da norma, A intervenção do Estado na cidade é, portanto, contraditória: sua ação pode favorecer mais ou menos certos segmentos da sociedade urbana — mas nunca definitivamente. O que há de per­ manente na cidade do capital é a luía pela apro­ priação do espaço urbano e a ação do Estado nada mais é do que expressão das forças enga­ jadas» voluntária ou involuntariamente» nesta lu­ ta... Cidade e industria Ao analisar a cidade capitalista apontamos para alguns traços essenciais de seu desenvol­ vimento: a privatização da terra e da moradia, a segregação espacial, a intervenção reguladora do Estado» a luta pelo espaço. Mas não fala­ mos ainda da força poderosa que dá ritmo e in­ tensidade a estes movimentos: a produção in­ dustrial. É difícil pensar um aspecto de vida urbana ho­ je que não seja, de alguma forma, investido pela indústria. Ã indústria está nos milhares de obje­ tos que existem à nossa volta, na velocidade 72 RAQUEL ROLNIK dos carros e aviões, na rapidez com que as es­ tradas avançam distribuindo produtos por todo o mundo. A indústria está também na raiz da es­ cravidão do no'sso tempo' — nossos dias, sema­ nas, meses, tomados pela noção de tempo útil e produtivo.- Nas grandes metrópoles industriais de hoje não há tempo para ócio ou devaneio. É também manifestação da indústria a homo­ geneização de nossa sociedade — somos uma multidão usando jeans, tênis e T-shirts e em nossas casas não falta a TV, A própria TV — es­ ta poderosa máquina homogemeizadora — é in­ dústria (de cultura, de modos de ser), tomando conta de nossas subjetividades. As TVs e toda a panóplta de bens oferecidos por ela são produzidas em grandes unidades produtivas onde o trabalho é dividido em milha­ res de mínigestos automáticos: a fábrica. No ca­ pítulo em que descrevemos a transição da cida­ de medieval para a cidade moderna, apontamos para a destruição da oficina do mestre artesão e a emergência de um processo de parcelamento e seriação do trabalho. Mencionamos também o controle crescente do processo de trabalho pelo capital, subordinação do trabalho manual ao tra­ balho intelectual e este ao saber científico. O in­ grediente que falta para compor o cenário da in­ dústria é apenas um: a máquina. Primeiro foram os enormes engenhos de ferro ou madeira im­ pulsionados pelo vapor. Hoje são as máquinas O QUE É CIDADE 75 senvolvimento. Por isto a grande cidade é corre­ lata à grande indústria. Vamos examinar um pouco mais detalhada­ mente a história desta revolução para podermos entender a emergência da cidade industrial e suas características. Apesar de fábrica e cidade serem hoje termos indissociáveis» o sistema de fábrica, tal como o conhecemos hoje, não nasceu na cidade, mas fora dela. Como já afirmamos anteriormente, a manufatura surge a partir do controle do nego­ ciante sobre a produção doméstica, localizada sobretudo no campo. As restrições impostas pela estrutura corporativa (que limitava o núme­ ro de mestres e excluía a competição entre eles) constituíam uma barreira para a expansão da capacidade produtiva, que a expansão comer­ cial e sua capacidade de criação de mercados requeriam. Quando a burguesia intervém na produção, o faz violando as regras de corporação e procu­ rando potencializar a produtividade do trabalho através do controle da produção. Este controle significa, por um lado, divisão e especialização das tarefas e, por outro, discipli­ na e regularidade. Com isto se poderia maximi­ zar a produção, através do aumento do número de horas, velocidade e ritmo do trabalho e si­ multaneamente centralizar o controle na distri­ buição dos produtos impedindo os desvios em 76 RAQUEL ROLNIK sua comercialização. Os avanços tecnológicos que sucederam a esta revolução manufatureira mais do que dita­ ram estas transformações» foram requeridos por elas. O trabalho parcelado tendia a desmembrar os antigos ofícios, reduzindo-os a funções par­ ciais mutuamente dependentes. Isto implicava, por um lado, ser possível empregar homens sem grande aprendizado anterior, os quais poderiam inserir-se na produção apenas com um rápido adestramento na repetição de uma mesma tare­ fa simples; por outro fado, isto implica o contro­ le e centralização do processo de trabalho cada vez maior na mão do empregador. Esta é a con­ dição para que o investimento capitalista, no instrumento de produção — a máquina —, seja factível; a aplicação de novas técnicas — novas fontes de energia e desenho de ferramentas me­ cânicas — no processo de produção proporcio­ na maiores lucros para o empregador, porque significa economia em horas de trabalho. 0 resultado deste processo é a indústria. Ao invés da manufatura, que surgiu de certa manei­ ra contra a cidade dominada pela corporação, a indústria é um fenômeno claramente urbano. Ela exige grande número de trabalhadores ao sèu redor: para tornar rentável o investimento numa caldeira que produz vapor, é preciso pro­ duzir muito, fazendo-a impulsionar várias má­ quinas simultaneamente, dia e noite. Por outro O QUE É CIDADE 77 Londres, o viaduto de Ludgate HUI (gravura de G. Doré, 1870) 80 RAQUEL ROLNIK Esta heterogeneidad® introduz uma variável bastante importante na definição da relação ci- dadão/cidade. Em primeiro lugar, se na cidade dividida em ciasses e grupos sociais não é mais possível se falar em comunidade dos cidadãos, na cidade de estrangeiros a fragmentação é um dado de saída. Por outro lado, a própria divisão social é atravessada pela divisão étnico-cultu- ral, de tal forma que a cada grupo étnico/cultu- ral corresponde uma certa posição social. Este fenômeno é particularmente visível e politica­ mente importante nas cidades industriais dos Estados Unidos. Nelas, desde o século X IX se constituíram ghettos organizados e hierarquiza- dos simultaneamente por linhas étnicas e linhas de classe. Assim, por exemplo, em Nova Iorque do início do sécülo, o proletariado urbano era constituído por italianos e eslavos, católicos e judeus, enquanto os patrões e banqueiros eram W ASPs (brancos/anglo-saxões/protestantes). Esta não foi uma situação específica dos EUA. Na França de hoje são árabes os trabalhadores manuais, portugueses os especializados, e fran­ ceses os capitães de indústrias, técnicos e go­ vernantes. Nas cidades industriais brasileiras, esta ques­ tão também se coloca desde o início. Em São Paulo ou Rio de Janeiro, cidades em que se im­ plantou a grande indústria a ritmo de ferrovia, Imigrantes, sobretudo italianos, espanhóis e O QUE É CIDADE 81 portugueses chegaram da Europa sem terra ou propriedades, sem dinheiro e, a maior parte, sem profissão. Aqui encontraram negros e mu­ latos, libertos da escravidão. Da justaposição — e às vezes mistura — destes dois grupos consti­ tui-se o território popular na cidade industrial brasileira da virada do século. Aqui, como nas cidades européias que se industrializavam, este território era constituído de proletários e autô­ nomos, operários na indústria e trabalhadores ocasionais e "viradores". Para eles a cidade oferecia a exploração do trabalho e a precarie­ dade das condições de habitação. Nos roman­ ces de Zola, Víctor Hugo ou Dickens, a imagem da cidade industrial é marcada, além da fumaça preta das chaminés que escurece as ruas, pelos buracos que servem como habitação para famí­ lias inteiras, pelas ruas onde escorre o esgoto a céu aberto e onde se acumula o lixo. Como vimos quando falamos da segregação urbana, a cidade capitalista ao mesmo tempo gera e rejeita este território popular precário; a indústria é voraz em sua fome de força de traba­ lho a baixo custo e a cidade grande é um enor­ me mercado de mão-de-obra para ela. Mas a he- terogeneidade e segregação da cidade fazem do território popular uma região explosiva: a histó­ ria da cidade industrial é marcada pela violência. A violência está antes de mais nada na espo­ liação urbana — na existência de um ambiente 82 RAQUEL ROLNIK urbano que, ao invés de repor as energias gas­ tas no trabalho, rouba-as' com violência. Está também na criminalidade, expressão clara da ci­ dade dividida; na tensão permanente em que vi­ vemos na cidade — tudo isto faz da grande cida­ de industrial um barril de pólvora, pronto para explodir de tempos em tempos. Por essa razão, a história da cidade industrial é marcada tam­ bém pela agitação das multidões: saques, que­ bra-quebras, passeatas, barricadas. A Comuna de Paris ou Maio de 68 na França, a Revolta da Vacina ou os saques a supermercados no Brasil são momentos de explosão, num cotidiano de violência permanente. Esta é, juntam ente com a concentração e extensão sem precedentes da urbanização e com a diversidade e divisão da ci­ dade, característica marcante da cidade indus­ trial. A violência urbana (dos crimes e mortes, dos acidentes de carro, da destruição da nature­ za, da precariedade da habitação, das explosões de revolta) é a expressão viva do caráter contra­ ditório da cidade industrial — ela é, ao mesmo tempo, potência de criação e destruição, catali- sadora de energia e máquina de morte. Já nos autores do século XIX que descreveram a cida­ de industrial européia, esta aparece como urna poderosa e fascinante máquina que se alimenta da energia da natureza e de muitos homens, mulheres e crianças e os leva à exaustão e po­ breza. Q L CJ £D O INDICAÇÕES PARA LEITURA Como vimos, em nosso passeio pela cidade, existem várias formas de lê-la. Por isso, economistas, sociólogos, antropólogos, filósofos e poetas têm diferentes razões para escrever sobre ela. 0 leitor apaixonado pela cidade tem, portanto, todos estes cami­ nhos para se aventurar. Neste final do livro, ousaria sugerir apenas alguns pontos de partida, escritos em diferentes áreas, que têm por objeto a cidade. Para uma vista geral da história das cidades, o livro de Lewís Mumford, Â Cidade na História !Ed. Itatiaia, Rio de Janeiro, 1965), é uma fonte de consulta. Nele, o autor percorre a cidade — do zigurate à metrópole — descrevendo-a com ilustrações e refe­ rências. Uma visão um pouco mais focalizada no desenho e arqui­ tetura urbanos propriamente ditos está na obra de Leonardo Bené­ volo, História da Cidade (Perspectiva, 1983). .Para uma análise do desenvolvimento e transformação das ci­ dades do ponto de vista econômico, o livro de Paul Singer, Econo­ mia Política de Urbanização (Brasiliense) é uma boa iniciação. Ne­ le, o autor examina a cidade enquanto local de produção e troca, localizando os diferentes grupos sociais envolvidos neste proces­ so. Além de apontar para a formação da cidade capitalista de uma maneira geral, examina especificamente as cidades brasileiras, analisando sua composição e dinâmica econômicas. Também a obra de Milton Santos, Espaço e Sociedade (Ed. Vozes, 1979), nos ajuda a compreender os circuitos econômicos de nossa cida­ de, examinando sua estrutura do ponto de vista da organização do território. 0 livro de Lucio Kowarick, A Espoliação Urbana (Ed. Paz e Ter­ ra, 1980), nos dá um quadro da situação das grandes cidades bra­ sileiras na atualidade, do ponto de vista social. Sua leitura é um bom início na trilha da sociologia urbana marxista, que tem a cida­ de brasileira contemporânea como objeto. De uma maneira geral, é da cidade grànde que trata a maior parte da literatura sobre o tema. Desde os escritos produzidos no 86 RAQUEL ROLNIK século XIX — quando ocorre a industrialização e explosão urbana na Europa —, a cidade aparece como palco de lutas, fonte de Idéias e inovação, paixão, violência e medo. Isto está presente nos poemas de Baudelaire, nòs contos de Edgard Alian Poe, nos gran­ des romances de Charles Olckens e Víctor Hugo, nos ensaios de Georg Simmel, Friedrich Engels e Karl Marx. Trata-se não só da emergência da cidade como tema, mas também de uma nova per­ cepção do urbano, que se anuncia com a industrialização. Maria Stelia Bresciani, em Londres e París no Sécu/o X IX — Tudo é His­ tória (n.° 52, Brasiliense), apresenta esta nova percepção, inter­ pretando os escritos ds alguns dos autores mencionados. Nos Estados Unidos, sobretudo a partir dos anos 30, a chama­ da Escola de Chicago (Louis Wirth, Robert Park, Redfield e poste­ riormente Herbert Gans) produziu um sem-número de estudos so­ bre a cidade norte-americana onde o assunto principal era a diver­ sidade cultural presente na grande cidade feita de grupos imigran­ tes. A coletânea organizada por Glanfranco Bettin, Los Sociólogos de ia Ciudad (Ed. Gustavo Gili, Barcelona), contém todos estes clássicos da sociologia urbana — de Simmel e Marx no século XIX até Manuel Castells e a sociologia urbana francesa contemporâ­ nea, passando pela Escola de Chicago. Alguns dos artigos edita­ dos nesse livro estão traduzidos também em português na coletâ­ nea organizada por Gilberto Velho, O Fenômeno Urbano (Zahar Editores). Para uma filosofia política do fenômeno urbano, aconselho a leitura da obra de Henri Lefebvre (há apenas um de seus livros tra­ duzido no Brasil: O Direito à Cidade, Ed. Documentos, SP, 1 969) e de Richard Sennett (The Fali o f Public Man). Em termos de cidad® contemporânea, os escritos de Paul Viri- lio (seu único livro traduzido em português é Guerra Pura, publica­ do pela Brasiliense) nos remetem à cidade pós-industrial presente e futura. Finalmente, sugiro ao leitor que não se esqueça de pegar uma carona e percorrer cidades reais (Jack Kerouac, On the Road, Bra­ siliense) ou imaginárias (ítalo Calvino, Le Città invisibiii, Ed. Einau- di, Turim, 1972) e, sobretudo, prestar muita atenção no seu cami­ nho diário, desconfiando de tudo que pareça ser apenas um cená­ rio de rotina. € 1 € m<$ Sobre a autora Nascí em São Paulo em 1956. Barra Funda e Bom Retiro deram minha primeira visão do que é cidade, na infância e adolescência paulistanas. Em 1974 entrei na FAU-USP, estudante de arquitetura numa universidade que desejava a mudança: da escola, do regime político, da cidade. Espaço e política passaram então a ser minha paixão; persegui-os no curso de Filosofia, estudando Sociologia Urbana, na pós-graduação da FAU-USP, na atividade de professora em cursos de arquitetura pesquisando temas urbanos, viajando pelas cidades. Acabei indo estudar História Urbana em Nova Iorque em um doutoramento no Departamento de História da New York University, que conclui em 1995. Fui diretora de planejamento da Secretaria de Planejamento do município de São Paulo e coordenadora do Plano Diretor da cidade, durante a gestão de Luíza Erundina. Desde então tenho combinado meu trabalho como urbanista (realizando consultorias em política urbana e habitacional para