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Velhos Mapas Novas Leituras Revisitando a História da Cartografia.pdf, Provas de Português (Gramática - Literatura)

Livro crônicas e poesias e versos

Tipologia: Provas

2021

Compartilhado em 12/07/2021

wanderson-mendes-22
wanderson-mendes-22 🇧🇷

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Baixe Velhos Mapas Novas Leituras Revisitando a História da Cartografia.pdf e outras Provas em PDF para Português (Gramática - Literatura), somente na Docsity! GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 16, pp. 67 - 79, 2004 VELHOS MAPAS, NOVAS LEITURAS: REVISITANDO A HISTÓRIA DA CARTOGRAFIA Maria do Carmo Andrade Gomes* RESUMO: O artigo trata do processo de renovação teórica e metodológica que atingiu o campo da história da cartografia nas duas ou três últimas décadas. A partir de um profundo questionamento do estatuto de objetividade e transparência dos mapas, os novos estudos e pesquisas tratam os documentos cartográficos como objetos técnicos, produtos de construções sociais e culturais e meios de comunicação dotados de linguagem visual própria. O artigo aponta os principais autores, eventos e idéias que promoveram essa nova história da cartografia, um movimento rico e multifacetado ainda pouco conhecido no Brasil. PALAVRAS-CHAVE: História da Cartografia; Teoria da Cartografia; Cartografia Histórica; Metodologia ABSTRACT: The article deals with the theoretical and methodological innovation that has taken place in the field of the history of cartography in the last two or three decades. By questioning the statute of objectivity and transparency of maps, new studies and researches consider cartographic documents as technical objects, products of social and cultural constructions, and means of communication based on a visual language of their own. The article points out to the main authors, events, and ideas that promoted this new history of cartography, a multifaceted and rich movement still little known in Brazil. KEY WORDS: History of Cartography; Cartographic Theory; Old Maps; Methodology. “... o mapa tornou-se um objeto O presente artigo busca traçar um painel opaco, que retém o olhar sobre ele sobre as recentes contribuições metodológicas mesmo. O mapa entrou na era da e epistemológicas de um campo de suspeita. Ele perdeu sua inocência. Não conhecimento ainda muito pouco explorado no se pode mais, atualmente, considerar a Brasil: a história da cartografia. Domínio história da cartografia sem uma dimensão interdisciplinar por excelência, a história da antropológica, atenta à especificidade dos cartografia tem passado por um profundo contextos culturais, e teórica, que reflita processo de renovação nas duas ou três últimas sobre a sua natureza de objeto e os seus décadas e qualquer reflexão sobre o mesmo poderes intelectuais e imaginários.” deve empreender um corte transversal por Christian Jacob diferentes campos temáticos, países e tradições * Pesquisadora da Fundação João Pinheiro e Doutoranda em História pela UFMG. E-mail: mdcarmoQuai.com.br 68 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 16, 2004 GOMES, M. C. A. científicas. Busca-se dar conta desse movimento rico e multifacetado, mas sem ambição de completude ou de balanço global das produções, dada sua diversidade e contemporaneidade'. | - A constituição da história da cartografia como disciplina O geógrafo inglês J. Brian HARLEY (1987), um dos teóricos que mais influenciaram o processo renovador da história da cartografia (HC), em um dos seus ensaios seminais, mostrou como esse campo disciplinar consolidou-se ao longo do século XIX, quando se intensificou o interesse pela pesquisa dos mapas antigos, enquanto uma arena distinta da cartografia contemporânea. Segundo esse autor, o impulso principal desse movimento crescente, especialmente após 1850, decorreu da emergência e institucionalização da Geografia enquanto ciência, aliado ao crescimento dos acervos cartográficos das nações em formação e ao desenvolvimento, na Europa e nos Estados Unidos, de um mercado antiquário de mapas. O desenvolvimento da Geografia e o surgimento das bibliotecas especializadas em mapas antigos, favoreceram a infra-estrutura institucional para o estudo histórico da cartografia, enquanto que os colecionadores privados e o comércio de antiquários contribuíram na pesquisa e na escrita da HC, ainda que marcada pela ênfase excessiva na apreciação artística dos mapas, especialmente da Renascença. Esses fatores condicionaram os objetivos e métodos da história da cartografia e moldaram parte essencial da tradição acadêmica da disciplina, até meados do século XX. Considerada como um campo auxiliar da história da Geografia, a qual, por sua vez, compreendia basicamente a história dos descobrimentos e das explorações, a história da cartografia tradicional permaneceu marcada por essa origem, e epistemologicamente condicionada pela idéia de que deveria servir primeiramente para tornar os documentos cartográficos acessíveis a outros domínios do conhecimento. Como exemplo, publicações de atlas com fac- símiles permaneceram importante objetivo ao longo de todo o período. Quanto aos bibliotecários especialistas, sua maior contribuição para a HC, além, é claro, da disponibilização dos documentos, foi a construção de um campo específico, o bibliográfico (publicação de catálogos, introdução de listas de mapas como elementos centrais nos atlas fac-similares). Os estudos clássicos em HC sempre tiveram uma forte dimensão bibliográfica, que se mantém ainda hoje. As bibliotecas especializadas também contribuíram através da promoção de exposições, quase sempre acompanhadas pela publicação de catálogos. A terceira força no desenvolvimento da HC desde o século XIX, o comércio antiquário, também teve seu impacto historiográfico, pela publicação dos atlas fac- similares e de bibliografias especializadas, além de ter exercido forte influência no aparecimento de uma face popular da história da cartografia. No mesmo estudo, Harley mostrou como, a partir dos anos 1930, a HC afirmou-se como um campo de estudos com sua própria identidade acadêmica, afastando-se gradativamente da fase anterior. Essa mudança decorreu de três fatores: a publicação de histórias gerais da cartografia, com intenções de síntese; a influência da Imago Mundi, então a única revista internacional devotada ao tema; e, mais importante, a emergência da cartografia como uma disciplina acadêmica e uma atividade prática independente da Geografia, providas de estruturas teóricas que reforçaram a razão de ser da história da cartografia. Como as principais obras de síntese sobre a história da cartografia? permaneceram muito restritivas em suas análises, com excessiva ênfase na produção da Renascença, e a revista Imago Mundi, apesar de sua qualidade, não conseguiu superar sua tendência europocêntrica, pouco mudou na história da cartografia no tocante ao seu alcance geográfico e nacional.' Os maiores avanços na construção da HC, como um campo acadêmico próprio, estariam relacionados ao crescimento da cartografia como objeto de pesquisa e como atividade prática independentes. A promoção da cartografia gerava oportunidades de encontros Velhos, Mapas, Novas Leituras: Revisitando a história da Cartografia, pp. 67 - 79 Mm mapa, que não menosprezava a sua dimensão técnica, da qual era profundo conhecedor. Recusava-se, porém, a ver toda a cartografia e, consequentemente, a sua história, reduzida a uma questão técnica, como era até então tradição nesse campo disciplinar. Brian Harley apontou para as diferentes formas de traduzir as imagens cartográficas como representações culturais carregadas de mensagens políticas, seja nos seus conteúdos explícitos, nas distorções e ausências, nos signos convencionais ou no claro simbolismo das decorações de suas margens, cartuchos e vinhetas. Sublinhou também a necessidade de estudos mais aprofundados sobre cada contexto histórico específico, para compreender como o poder opera através do discurso cartográfico, e os efeitos desse poder na sociedade. 11.3 - Comemoração e reflexão Dois importantes programas comemorativos de eventos históricos foram também determinantes no estímulo às novas produções e reflexões ligadas ao tema: o bicentenário da revolução francesa em 1989 e os 500 anos da descoberta da América, em 1992. Dentro das comemorações francesas, destacamos a publicação da série Atlas de la Révolution Française, e especialmente o volume intitulado Le territoire; réalités et répresentations (NORDMAM e OZOUF-MARIGNIER, 1989). Esse volume discutiu o conteúdo do chamado espaço francês ou, mais acertadamente, do território francês, um território reestruturado nos anos revolucionários e sobre o qual se distribuíram realidades políticas, econômicas e culturais. Sua relevância encontra-se na proposição metodológica, que inovou ao reunir duas tradições cartográficas: de um lado, a reconstituição cartográfica a posteriori, segundo fontes documentais, ou seja, a tradição da cartografia histórica; de outro, a reprodução e análise dos documentos figurativos produzidos no momento histórico em estudo, a própria história da cartografia. Das inúmeras iniciativas de compilação documental e reflexão crítica, promovidas com as comemorações dos 500 anos da chegada de Colombo à América, parte significativa foi dedicada à intensa produção cartográfica daquele momento, revelada em exposições e publicações”. Outros trabalhos responderam a uma reflexão acadêmica sobre as relações entre mapeamento, colonialismo e imperialismo*. Uma vez mais, Brian Harley esteve à frente desse movimento crítico, como exemplifica sua participação na exposição itinerante denominada Maps and the Columbian Encounter (HARLEY, 1990), cuja concepção e texto exploraram o significado dos mapas então produzidos para ambos os lados do Atlântico. Em artigo publicado à época, Harley e Woodward propuseram mais reflexão e menos comemoração, conduzindo sua análise da cartografia das descobertas e da colonização em direção a um explícito manifesto político: (...) ao mesmo tempo em que inventariava os lugares descobertos pelos europeus e identificava as terras para a evangelização, o espaço coordenado dos novos mapas era instrumental na apropriação simbólica do território dos nativos americanos. Reconhecendo os povos indígenas como vítimas da cartografia européia nós também reinstauramos sua contribuição nos registros cartográficos da história americana (HARLEY & WOODWARD, 1991:6). Toda a história da cartografia desenvolvida nos EUA nos anos noventa seria profundamente marcada por essa ótica pós- colonialista. 1.4 - Dois autores, um desafio comum Além do marco comemorativo dos 500 anos, o ano de 1992, distingue-se pela publicação de duas obras individuais de enorme relevância nessa vaga de reflexões epistemológicas sobre a história da cartografia: os livros L" empire des cartes, (JACOB, 1992) e The power of maps (WOOD, 1992). 72 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 16, 2004 GOMES, M. C. A. Em seu erudito e desafiador ensaio, o pesquisador francês Christian Jacob considerou que o novo programa da história da cartografia somava aos seus objetos tradicionais - descobertas progressivas das partes do globo, fontes de informação e dos modelos, datação e atribuição de documentos — um especial interesse pela dimensão técnica da carta e pelo contexto social - meio dos cartógrafos, dos gravadores, dos impressores, das livrarias, dos encomendantes e dos usuários. Jacob desenvolveu largo esforço teórico na conceituação do mapa, percebido como um artefato resultante de um conjunto de operações e escolhas gráficas (geometria, traços, imagens figurativas, ornamentos, escrita), que acionam códigos de representação organizados em uma verdadeira linguagem. Esse artefato é um meio de comunicação que permite a transmissão visual de informações que se prestam também a manipulações retóricas (persuasão, engano, sedução, decisão). Tanto por sua complexidade semiótica como pelas instâncias sociais que o produzem, utilizam ou controlam, o mapa é um instrumento de duplo poder, no qual a eficácia não se reduz à representação objetiva de um fragmento da superfície. Como acontece com a linguagem escrita e falada, não se presta atenção à carta no seu uso cotidiano ou técnico. A condição de sua eficácia intelectual está precisamente nessa suposta transparência. Jacob discutiu também as possibilidades de um novo programa epistemológico para a história da cartografia. Será sempre preciso conduzir as pesquisas na dimensão diacrônica, mas repensando o estatuto da evolução, das mudanças e do chamado progresso. Jacob propôs uma história que privilegiasse o objeto por ele mesmo, e não pelos seus conteúdos geográficos. Uma história do mapa e não uma história da descoberta da Terra. O livro The Power of Maps, do americano Denis Wood, não é propriamente um trabalho de ou sobre a história da cartografia, e sim um contundente ensaio sobre as bases epistemológicas da própria cartografia em fins do século XX. Mas a perspectiva crítica de Wood, que apontou diretamente para a relação entre mapa e poder, pode ser largamente aplicada às produções e práticas cartográficas mais antigas. Questionando a pretensa neutralidade dos cartógrafos, o autor mostrou como a naturalização dos mapas na cultura ocidental, ou seja, a aceitação de sua autoridade como perfeita representação do território e fonte de informação objetiva, foi uma construção social e histórica. Para Wood, o mapa não registra silenciosa e inocentemente uma paisagem, mas responde a atos deliberados de identificação, seleção e nomeação do que é observado, mostrando ou escondendo elementos de acordo com os interesses em jogo no projeto cartográfico. 11.5 - Desdobramentos: uma nova constelação de interesses Deflagrado no início dos anos oitenta, o processo de renovação da HC desdobrou-se em congressos, exposições e iniciativas editoriais diversas, que buscaram dar vazão e impulso a uma produção crescente sobre as cartografias dos diferentes períodos históricos e regiões do globo?. Os congressos e as revistas especializadas, são os fóruns de discussão e repercussão mais sensíveis aos processos de mudança nos seus domínios disciplinares. No caso da HC, destacam-se os periódicos Imago Mundi e Cartographica que, nos anos 90, reproduziram ou promoveram o debate teórico e metodológico em curso. Número especial da revista Cartographica, intitulado Introducing Cultural and Social Cartography (1993), reuniu artigos sobre o tema e apontou para essa nova tendência dos estudos, voltados para as interações entre mapas, mapeamentos e o contexto sócio-cultural. A 16º Conferência Internacional de História da Cartografia, ocorrida em Viena em 1995, inaugurou uma sessão dedicada aos aspectos teóricos da disciplina, resultado de uma carência observada em conferências anteriores e pontuada em artigos diversos. Em seus papers exploratórios, publicados pela Velhos, Mapas, Novas Leituras: Revisitando a história da Cartografia, pp. 67 - 79 73 Imago Mundi, Christian JACOB (1996), Matthew EDNEY (1996) e Catherine DELANO-SMITH (1996) sublinharam a necessidade de maiores aportes teóricos para a superação do modelo de desenvolvimento linear e progressivo da cartografia e sugeriram conceitos operatórios para tal. M. Edney afirmou que a HC era dominada por um empiricismo que desconsiderava a necessidade de aportes teóricos. Baseando-se na sua própria pesquisa em curso'º, Edney negou qualquer evidência histórica de um progresso linear da cartografia e incitou a comunidade dos especialistas a enfrentar esse debate teórico. Christian Jacob buscou demonstrar como a teoria determina a pesquisa, as escolhas metodológicas, sua orientação e limites. Jacob recorreu às imagens em contraste do mapa transparente — aquele que o olhar atravessa em busca de um saber exterior - e do mapa opaco — aquele que retém o olhar sobre sua própria estrutura e seus níveis de representação gráfica. O pesquisador inglês Denis COSGROVE (1999) chegou a identificar uma explosão de interesse e fascinação pelos mapas para além do circuito dos especialistas, espalhando-se pelos domínios dos estudos culturais e da produção artística. Para Cosgrove, as novas práticas de espaço decorrentes das novas tecnologias, o redesenho geopolítico do globo e a superação definitiva das técnicas tradicionais de mapeamento conduziram a um questionamento do estatuto de autoridade do mapa no mundo contemporâneo. A onda de interesse carregou consigo um desafio epistemológico que a história da cartografia tradicional não poderia resolver: dar conta da complexidade das relações culturais que sustentam a autoridade do mapa significava tratar o mapa como um produto cultural e inseri- lo nos circuitos de uso, troca e significação de cada sociedade. 11.6 - Trocas e empréstimos com outros campos disciplinares O alargamento do objeto da nova HC não se produziu isolada ou internamente à disciplina, mas constitui uma resposta a um processo de trocas e empréstimos com outros campos disciplinares correlatos. E o caso da renovação da história da ciência, que tem se voltado para a dimensão material, técnica, econômica e discursiva das produções científicas. Em artigo sobre a nova história social e cultural da ciência, Dominique PESTRE (1995) inventariou novos objetos e abordagens com os quais podemos relacionar trabalhos específicos de HC, como a história dos instrumentos, das práticas científicas, dos protocolos de prova, e das instituições ". A nova HC expandiu suas fronteiras para além da sua clássica relação com a Geografia, atingindo campos como a estatística, como na obra de Gilles PALSKY (1996) sobre a cartografia temática, ou quantitativa, que se impôs a partir do século XIX. Informado pelos avanços teóricos da semiologia gráfica, o trabalho de Palsky concebeu as cartas quantitativas como meios de comunicação, traduzidos numa linguagem gráfica. Palsky criticou a historiografia tradicional por não valorizar as produções cartográficas do século XIX em diante, concentrando-se nos mapas anteriores a 1800. A cartografia quantitativa rompeu com o esquema comum de expressão cartográfica desenvolvida desde a Renascença, distinguindo-se da topografia e tornando-se a expressão gráfica da estatística. Parte significativa da nova HC é também um desdobramento das novas abordagens da história do imperialismo e do nacionalismo, inscritas nos chamados estudos pós-coloniais. Nessa produção revisionista, os empreendimentos cartográficos são analisados como processos estratégicos do estado-nação moderno que visavam a construção de territórios e o controle dos seus recursos, fossem populacionais ou naturais. O livro de Jeremy BLACK, Maps and history (2000), insere-se nessa gama de estudos que tomam a cartografia como instrumento político, estratégico no processo de expansão do nacionalismo e seu desdobramento, o imperialismo. O livro trata dos atlas históricos, ou seja, do mapeamento e da mapeabilidade do passado. Usualmente considerados como obras de referência (como 76 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 16, 2004 GOMES, M. C. A. Muitas obras começam por essa discussão (Cosgrove, Wilford, Buisseret, Harley, Woodward) que é tratada em profundidade no livro de Jacob. Para Buisseret, “temos que nos convencer que um mapa não precisa nem ser gráfico nem representar a superfície da Terra” (BUISSERET, 2003: XI) e que o conceito mais aceito hoje parece se assentar simplesmente na sua qualidade de representação locativa, uma imagem locativa, ou seja, cuja primeira função seria fornecer uma informação de localização. A chave para o entendimento do aspecto mais profundo dessa renovação reside, a nosso ver, no alargamento do foco dos estudos. Ao interesse pelos mapas antigos enquanto fontes objetivas para uma outra história (da Geografia, da Arte ou da ciência) somaram-se os estudos do artefato cartográfico e dos processos de mapeamento como objetos de uma história em si mesma reveladora e significativa. Nesses termos, o produto mapa - a imagem codificada - é parte substantiva, mas não exclusiva, da história da cartografia, e o estudo do processo cartográfico necessariamente conduz à interrogação histórica mais complexa e abrangente. Uma última questão merece ser aqui comentada. Em função das novas bases metodológicas, tem crescido a preocupação com as fontes disponíveis para a história da cartografia, que não pode mais se contentar com acervos monumentais seletivos, compostos pelas obras de grande apelo geográfico ou artístico, desconectados de seus contextos documentais de origem. E uma herança distorcida, na expressão de COSGROVE (1999: 14), distorção histórica que sempre privilegiou os mapas trabalhados artisticamente ou de importância estratégica, enquanto os mapas de uso cotidiano, a everyday cartography, foram sistematicamente descartados. A preservação fortemente seletiva foi um fator determinante na composição de um acervo fragmentado, que tendeu “a subestimar as qualidades abertas, parciais e contingenciais do mapa enquanto objeto em favor daquelas fechadas, totalizantes e estetizantes” (COSGROVE, 1999: 14). Se a História, enquanto disciplina, é construída sobre vestígios dispersos, essa herança documental esgarçada no tempo pode ser ainda mais frágil, como parece ser 0 caso do patrimônio cartográfico, não só quanto aos mapas propriamente ditos, mas a todo registro documental relativo aos mesmos, sejam públicos ou privados'*. Entendidos como objetos técnicos, utilitários, os mapas sempre estiveram sujeitos ao crivo impiedoso da obsolescência e, em desuso, tinham prazo de validade vencido e eram sistematicamente descartados. Especialmente aqueles que, a partir do século XIX, foram despojados de seus atributos ornamentais e, sem o antigo apelo artístico para colecionadores e antiquários, não sustentavam mais o interesse dos seus produtores e usuários imediatos, como administradores, planejadores urbanos e geógrafos, sempre ávidos por informações atualizadas. Outra dificuldade está associada aos processos históricos de guarda e acumulação dos mapas, processos que sempre se caracterizaram pela separação dos documentos visuais e textuais. Em termos da constituição dos acervos, essa clivagem significou a separação dos mapas dos contextos de sua produção documental — correspondências, processos jurídicos, relatórios técnicos — seja pelo seu alto valor no mercado antiquário, seja pela estratégia de sigilo de estado ou mesmo pelas políticas de preservação de arquivos, museus e bibliotecas, pela tradicional prática (ainda hoje em uso) da museologização da imagem cartográfica em detrimento do seu valor documental. Seja pela clivagem entre imagem e texto, seja pela acelerada obsolescência ou pela seletividade monumentalizante, os acervos cartográficos hoje constituídos nos mais diversos países não dão conta das exigências documentais da nova historiografia. Esse deverá ser o desafio metodológico maior a ser enfrentado pelos pesquisadores empenhados em reescrever a história da cartografia. Velhos, Mapas, Novas Leituras: Revisitando a história da Cartografia, pp. 67 - 79 77 Notas * Este ensaio é produto do estágio realizado na França, como parte do doutoramento em História pela UFMG. Nossas leituras concentraram -se na literatura de língua francesa e inglesa. Apesar das inúmeras contribuições de outros paises com forte tradição na história da cartografia, acreditamos que as produções aqui estudadas são extremamente significativas e dão conta do processo de renovação teórica e metodológica que pretendemos abordar. 2 A partir do estudo de HARLEY (1987) podemos identificar três autores principais dessas obras de síntese: BAGROW (1964), BROWN (1949) e CRONE (1953). * Até os anos 1980, a Imago Mundi era uma revista de especialistas no tema, concentrando seus artigos na cartografia pré-1800 e na Europa e EUA. * Nesse ponto permitimo-nos discordar de B. Harley, quando este afirma que na França havia pouco interesse nos temas teóricos da HC, entre os “poucos” praticantes da disciplina. Se na França a constituição da disciplina enquanto campo autônomo não foi favorecida, isto se deveu muito mais a uma postura crítica em relação às histórias internalistas do que a uma submissão empobrecedora ao campo da história da Geografia, como sugeriu Harley. Exemplo marcante do vigor e pioneirismo teórico da produção francesa foi a exposição e a publicação do respectivo catálogo Cartes et Figures de la Terre, que comentaremos no próximo item. 5 A série é financiada pelas agências The National Endowment for the Humanities e The National Science Foundation, por fundações privadas e colaboradores individuais. $ Autor prolífico, Harley publicou, até a sua morte prematura em 1991, mais de 140 artigos e ensaios, além de dezenas de resenhas e contribuições em obras coletivas. Para conhecer um pouco dessa imensa obra, ver as coletâneas: GOULD (1995) e HARLEY (2001). ” Portugal promoveu diversos eventos nesse campo por intermédio da Comissão Nacional para Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, como a exposição A nova Lusitânia; a cartografia do Brasil nas Coleções da Biblioteca Nacional, subproduto do projeto História da Cartografia, da Biblioteca Nacional de Lisboa. $ Ainda que não trate do continente americano, uma primeira e fundamental referência nesse campo é o livro de Benedict Anderson, Imagined Communities. O estudo de Anderson situa-se entre as novas pesquisas que empreenderam uma revisão dos estudos sobre o nacionalismo no conjunto dos estudos pós-coloniais. O capítulo intitulado Census, Map, Museum aportou sugestiva reflexão sobre as estratégias cartográficas dos estados coloniais e o surgimento dos nacionalismos no Sudeste Asiático. (ANDERSON, 1991). * É importante ressaltar que a HC ainda está marcadamente concentrada na Europa e nos EUA, como campo de elaboração e como objeto de pesquisa. A abordagem histórica da cartografia dos demais paises é essencialmente conduzida no conjunto dos estudos sobre as atividades de exploração das antigas colônias e da história do imperialismo, à exceção do projeto monumental e declaradamente plural The History of Cartography, acima comentado. Sua tese de doutoramento, posteriormente publicada (EDNEY, 1997). ” Citamos como exemplos de trabalhos que exploram essas dimensões: BOURGUET, M. N. et al (2002) e LICOPPE (1996). '2 Em seminário ministrado na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, 13/11/2003. 1º O evento deu sequência a dois outros encontros importantes promovidos sob sua coordenação: a exposição Les couleurs de la Terre e o seminário internacional L" oeil du cartographe. '* Cumpre salientar, ainda que de forma breve, outras reflexões que transitam por tradições nacionais igualmente importantes, como a Itália. Ali, desde os anos noventa, estudos ligados à ecologia histórica e á formação territorial do país vem promovendo uma retomada da abordagem “realista” das fontes cartográficas, em contraponto à ótica cultural e simbólica que dominaria a HC na Itália já no período. Não se trata de uma volta ao uso das dos mapas como 78 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 16, 2004 GOMES, M. C. A. Bibliografia ANDERSON, B. “Census, Map, Museum”. In: - Imagined Communities: reflections on the origins and spread of nationalism. London: Verso, 1991. BAGROW, L. The history of cartography. Cambridge: Harvard University Press; London: C. A. Watts, 1964. BLACK, J. Maps and history; constructing images of the past. New Haven, London: Yale University Press, 2000. BOURGUET, M. N., LICOPPE, C., SIBUM, O. 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