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Guias e Dicas
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Visões de Descartes - Olavo de Carvalho, Provas de Filosofia Moderna

Livro do Olavo de Carvalho sobre Descartes

Tipologia: Provas

2020
Em oferta
40 Pontos
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Compartilhado em 30/01/2020

michell-marins
michell-marins 🇧🇷

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Baixe Visões de Descartes - Olavo de Carvalho e outras Provas em PDF para Filosofia Moderna, somente na Docsity! OLAVO DE CARVALHO Visões de Descartes Entre o Gênio Mau e o Espírito da Verdade Sobre a Obra A INTRODUÇÃO E AGRADECIMENTOS LINHAVADO ÀS PRESSAS com transcrições de aulas e outros fragmentos que fui espalhando entre meus alunos ao longo dos anos, este livro não é decerto o primor de exposição ordenada que eu desejaria ter feito dele se me sobrasse tempo. Isso não o impede de conter o essencial do que andei ensinando sobre a filosofia de René Descartes segundo um método que absorvi principalmente do Platão de Paul Friedländer.[ 1 ] Esse método envolve a convicção de que a filosofia não nasce do simples gosto pelo raciocínio abstrato, mas do impulso urgente e profundo de apreender e expressar, na medida das possibilidades individuais, o sentido universal da experiência acessível. Retornar das “idéias” às experiências reais que as originaram não é, portanto, uma tentativa de “explicar psicologicamente” uma filosofia, mas simplesmente de esclarecer o sentido efetivo que essas idéias tinham na consciência pessoal do filósofo que as pensou, para além ou por baixo do sentido formal e dicionarizado que adquiriram depois na tradição filosófica. Quando sei, por exemplo, que Hegel via em Napoleão Bonaparte a encarnação viva da “Alma do Mundo”, entendo mais concretamente o que ele queria dizer ao falar da “auto-realização de Deus na História”. Quando sei que Maquiavel apostava quase sempre no partido perdedor, entendo que sua visão amoral dos jogos de poder não era o resultado de uma fria observação científica, como tantos pretenderam, e sim uma idealização poética do mal.[ 2 ] A pura investigação psicológica de uma biografia de filósofo pode levar a compreender a sua filosofia como o perfil de uma consciência individual tomada como mero fato histórico, mas o método de Friedländer descortina o que essa consciência tem de universal como manifestação exemplar de altas possibilidades cognitivas humanas tal como se realizaram num indivíduo e numa situação em particular. A construção de uma filosofia assume assim a figura de um drama, não psicológico, mas cognitivo. Foi por isso que defini a filosofia como “busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice- versa”. Acredito que esse enfoque neutraliza e supera a antinomia assim formulada por Martial Guéroult na introdução da sua monumental Histoire de l’Histoire de la Philosophie: se a filosofia consiste em verdades universais, em princípio eternas e imutáveis, como pode haver uma história das filosofias que se sucedem no tempo? A consciência individual humana, seja a do filósofo, seja a de qualquer outro, não “contém” verdades universais, apenas as reflete simbolicamente na sua forma própria e singular. A filosofia, em suma, é uma forma simbólica, como a arte, a religião ou a ciência mesma. A sucessão das filosofias, como a das experiências religiosas, dos estilos artísticos e das teorias científicas, deriva da natureza mesma do símbolo, que não se afasta do simbolizado nem o esgota jamais, devendo por isso ser sempre recomeçado de novo e de novo à medida que a passagem do tempo vai tornando opaco aquilo que na origem parecia translúcido. A tese que exponho neste pequeno livro pode ser resumida no seguinte: O “Gênio Mau” a que se refere Descartes não é um artifício literário nem um “instrumento psicológico” (termo de Martial Guéroult) usado para dar mais credibilidade à certeza do ego cogitans, mas é o verdadeiro tema central das Meditações de filosofia primeira, a obra máxima do filósofo. O projeto de Descartes aí não é superar a mera dúvida teorética quanto à possibilidade do conhecimento, mas aplacar o temor da “morte da alma” sem recorrer à fé ou a argumentos teológicos de qualquer natureza. Três séculos depois dele, Edmund Husserl retomaria o mesmo projeto, resumindo-o como um esforço supremo para “chegar a Deus sem Deus”. Esses dois momentos da história da filosofia refletem um dos dramas mais intensos e temíveis do pensamento moderno, e só podem ser compreendidos desde o ponto de vista do drama cognitivo pessoal vivenciado pelos dois filósofos. Um estudo sobre Husserl, para o qual me exercito há vários anos, deve portanto seguir-se a este livro, mais cedo ou mais tarde, como seu complemento natural. Agradeço a Fernando Manso, a Luciane Amato, a Marcela Andrade, a Silvio Grimaldo, ao Grupo de Transcrições do Seminário de Filosofia, à minha esposa C I O EU PENSANTE E A CONSCIÊNCIA OMO RENÉ DESCARTES expõe o núcleo das suas concepções filosóficas sob a forma de uma confissão autobiográfica, julguei que, ao falar dele, seria vantajoso seguir-lhe grosso modo o exemplo, apresentando aqui, em vez de um estudo formal, a evocação singela e um tanto anárquica de algumas reações que a leitura de suas Meditações de filosofia primeira despertou em mim. Digo “evocação” em vez de “narrativa” porque não as reconstituo em ordem cronológica, apenas extraio delas o essencial do que me deixaram na memória, do qual algumas partes fui expondo em fragmentos, ao longo dos tempos, em cursos, conferências e artigos; outras aparecem aqui pela primeira vez. Além das Meditações e das Objeções e respostas que a complementam, estudei também as Regras para a direção do espírito, o Discurso do método, o Tratado das paixões e partes do Tratado do mundo. Confesso que, fora disso, não li mais nenhuma linha de autoria do filósofo, embora tenha estudado uma boa quantidade de excelentes livros a seu respeito, como os de Martial Gueroult, Alain, Henri Gouhier, Jean-Luc Marion, Maxime Leroy, Richard Watson, Lívio Teixeira, Ferdinand Alquié, John R. Cole, Geneviève Rodis-Lewis, Denis L. Rosenfield, Jorge Secada, Antonio Negri, Benjamín García-Hernández e não sei mais quantos. Meu conhecimento das partes da filosofia de Descartes que se espalham pela sua correspondência, bem como pelos seus escritos de matemática e ciências naturais, é, pois, todo de segunda mão, ainda que de boas mãos. Mas, de tudo quanto li de Descartes, nada me impressionou tanto quanto as Meditações, sem dúvida a sua obra maior. Foi delas que surgiram, no essencial, as experiências a que me refiro. À leitura das demais obras – dele ou de seus intérpretes – só recorri para me certificar de que havia compreendido o espírito das Meditações. Não tenho, por isso, a mais mínima presunção de expor aqui o conjunto do sistema cartesiano, nem de revelar suas estruturas essenciais, nem muito menos de apreciar com justeza a herança que deixou na História. Tudo o que desejo é expor com sinceridade as reações que as palavras do filósofo despertaram na alma de um leitor. Essas reações são estritamente pessoais, pontuais e limitadas. Não se referem ao sistema tomado na sua totalidade, mas somente a determinadas partes e aspectos que me chamaram a atenção durante a leitura e que continuaram atiçando minha curiosidade ao longo dos anos. Às vezes, mais que curiosidade: inquietação e angústia. O estudo que publiquei recentemente sobre Maquiavel[ 3 ] reconstituía a seqüência de visões diferentes que o pensamento do secretário florentino havia despertado em seus intérpretes ao longo do tempo. O título do presente livro pode sugerir algo de semelhante, mas é impressão falsa. As obras dos diversos e ilustres intérpretes do cartesianismo só são mencionadas aqui de raspão. Só dois tipos de “visões de Descartes” me interessam neste relato: as que ele teve e as que eu tive dele. Estas últimas, não obstante a índole pessoal do testemunho, não são, é claro, um desenho arbitrário, que ouse reconstruir as opiniões do filósofo segundo uma hierarquia de interesses que é minha, não dele. Aqueles aspectos e partes que destaquei são geralmente reconhecidos como importantes e decisivos pelos mais abalizados intérpretes de Descartes, e tenho, por isso, a certeza de que o percurso do meu foco de atenção, se não cobriu o território inteiro da matéria nem pode se gabar de ter descoberto a quintessência do cartesianismo, também não se desviou para nada de marginal e irrelevante. Onde nossas perguntas diferem, deixo isso muito claro, sem aceitar passivamente a formulação que ele lhes deu nem impor a minha como se fosse a dele.[ 4 ] Não sei em que medida minhas observações podem ou não podem concorrer para uma reinterpretação da filosofia de Descartes. Não sei e, para ser franco, nem me interessa saber. Com exceção do tempo que consagrei a Aristóteles, para fins de educação e treinamento, nunca estudei uma filosofia para conhecer essa filosofia como tal, mas sim para conhecer, através dela, algo da realidade, do destino, da vida. Dito de outro modo, nunca tomei filosofia nenhuma como objeto de estudo, mas sempre como instrumento que me ajudasse a enxergar melhor o verdadeiro objeto das minhas preocupações. Segui nisso a lição de Alain, aprendida, por sua vez, do próprio Descartes, segundo a qual cada um deve filosofar não para fazer avançar uma disciplina acadêmica, mas “pour son propre salut”.[ 5 ] A recusa geral dessa lição, nos dias que correm, dá uma boa medida do estado de corrupção mental em que o nosso país afundou. No Brasil, por influência da “geração de predadores” a que me referi em artigo de 2011,[ 6 ] só é considerado filósofo quem se atenha aos fins, temas e métodos convencionais do ensino acadêmico cada vez mais deficiente[ 7 ] ou quem, afastando-se deles porventura, o faça no intuito de “transformar o mundo” num sentido que tem de ser, é claro, o desejado pelos professores. Aqueles que filosofam como Alain, como Sócrates, como Agostinho ou – mais ainda – como Descartes são rejeitados para as trevas exteriores do “beletrismo”, do “amadorismo” ou do “ensaísmo”, ainda que revelem, como era o caso do saudoso Mário Ferreira dos Santos (não pretendo que seja o meu), um domínio das disciplinas acadêmicas muito superior ao dos seus concorrentes “profissionais”. Nesse quadro paradoxal, os filósofos de verdade – um Miguel Reale, um Vilém Flusser e os dois Ferreiras, Mário e Vicente – são oficialmente não-filósofos; e, por sua vez, os não-filósofos, os burocratas da filosofia, são chamados de filósofos precisamente porque não têm filosofia nenhuma e sim, em vez disso, a licença estatal para ensiná-la. A comicidade desse estado de coisas não escapou a alguns visitantes estrangeiros, Enzo Paci e Luigi Bagolini entre outros, como não escapará a ninguém que medite a advertência de Nicolás Gómez Dávila: “Quanto maior seja a importância de uma atividade intelectual, mais ridícula é a pretensão de avalizar a competência de quem a exerce. Um diploma de dentista é respeitável, mas um de filósofo é grotesco”. Este livro arrisca-se, portanto, a ser expelido do campo da filosofia brasileira precisamente por não ser mero trabalho escolar e sim uma obra de filosofia stricto sensu, que, se assume como ponto de partida a obra de um filósofo ilustre, não a toma como objeto de estudo e sim como ocasião e estímulo para descobrir algo que não está nela nem poderia estar.[ 8 ] Como eu ia dizendo, o interesse que me moveu a ler Descartes não foi o desejo de conhecer “a filosofia de Descartes”, mas sim o de obter dela alguma ajuda para enfrentar três problemas que me pareciam importantes e que, em parte, mas enganos? Com toda a evidência, a proclamação do cogito, a afirmação do eu pensante como fundamento único do conhecimento da verdade já estava dada desde o início como premissa oculta da hipótese do Gênio Mau, que sem ela não poderia ser nem mesmo formulada. Mas, esperem um pouco: mais tarde não será precisamente da certeza do cogito que Descartes vai obter a refutação do império do Gênio Mau? Como pode a premissa que fundamenta uma hipótese constituir também a base da sua radical impugnação? A experiência de qualquer pessoa adulta que se conheça um pouco mostra que não existem limites precisos entre a autonomia interior da consciência individual e a ação do Gênio Mau: elas se mesclam e se confundem. A fé ingênua – autêntica ou fingida – que Descartes deposita na sinceridade da sua busca da verdade separa em compartimentos estanques o eu pensante e o Gênio Mau, lançando unilateralmente sobre este as culpas que o eu compartilha, e já fundando como premissa certa e inabalável, muito antes da afirmação do cogito ergo sum, o eu como morada única da verdade universal, restando-lhe apenas, para consumação desse destino excelso, encontrar as regras do método apropriado. Todo o universo de dúvidas que Descartes dizia atormentá-lo permanecia exterior ao seu eu pensante, não o comprometia em absolutamente nada e por isso podia ser facilmente neutralizado por um “método”. E este, por sua vez, não fazia senão reafirmar retroativamente a premissa da incorruptibilidade do eu pensante, postulada entre sombras desde o início. Conhecendo-me como me conhecia, eu não podia embarcar nesse jogo. O método de que eu precisava não era aquela máquina bem azeitada que um eu soberano manejava com a segurança e a desenvoltura de quem já se imagina, desde o início, detentor ou merecedor privilegiado da verdade fundamental. Ao contrário: o que eu precisava não era um “método”: era uma luta incessante contra a mentira interior que, com ou sem a ajuda de um Gênio Mau, fazia de mim um inimigo da verdade no instante mesmo em que eu proclamava buscá-la, ao ponto de me fazer suspeitar, nos piores momentos, que eu próprio era o gênio mau empenhado em tudo falsificar. Haveria um “método” que me garantisse para sempre contra mim mesmo? Para isso seria preciso que eu me congelasse num circuito repetitivo, acionando sempre os mesmos botões do método para neutralizar sempre as mesmas mentiras. Mas já confessei que minhas mentiras interiores, como as de todo mundo, eram inventivas, auto-renováveis sob formas diversas e pretextos imprevisíveis. O mais incômodo de tudo era que Descartes julgava poder-se precaver contra o engano mediante o expediente de colocar tudo em dúvida até obter provas racionalmente inabaláveis. Mas como poderia a dúvida defender-me contra o auto-engano, se uma das minhas modalidades prediletas de auto-engano – como, aliás, as do restante da espécie humana – consistia precisamente em diluir numa turva poção de dúvidas aquilo que eu sabia perfeitamente bem? João Calvino, que era um sujeito execrável mas fino psicólogo, definiu a consciência como aquilo que, dentro de nós, inibe a tentação de negar o que sabemos. O que eu precisava não era um método lógico que permitisse ao meu eu pensante impugnar umas proposições e provar outras, mas algo, uma força, um elemento, um impulso, um x, enfim, que impedisse o meu eu pensante de sufocar a voz da minha consciência mais profunda. O que eu precisava era o contrário do que Descartes buscava: não um método pelo qual o meu eu pensante afirmasse a sua soberania, mas uma disciplina ativa que subjugasse o pensamento às exigências da consciência. Essa consciência, por sua vez, não era um ponto luminoso estável e fixo, mas uma vaga luminosidade, trêmula e intermitente, que só brilhava nos instantes fugazes em que obtinha alguma vitória, temporária e incerta, sobre as trevas revoltas que a cercavam, ora impetuosas e atemorizantes, ora entorpecentes e sedutoras. Somadas e articuladas, a consciência e as trevas constituíam a minha “alma” ou pessoa, e nesse conjunto o eu pensante não era senão um servidor da consciência, mas servidor inconstante e rebelde, traiçoeiro no mais alto grau, que volta e meia proclamava sua independência e se voltava contra a proprietária, adornando a mentira com as pompas da certeza racional ou camuflando-a sob o prestígio intelectual da dúvida cartesiana. Das “paixões da alma”, que segundo Descartes o eu pensante deve esclarecer e domar, nenhuma era mais poderosa e ameaçadora do que o próprio eu pensante. Que arrebatamento lúbrico, que acesso de temor, que ciúme doido, que explosão de cólera se compara, em sua força destrutiva, ao impulso raciocinante quando destravado de freios morais, quando livre de obstáculos sentimentais como a piedade, a compaixão, o amor ao próximo, a humildade, o medo de desagradar a Deus, isto para não mencionar a simples modéstia e um pouco de senso estético? Em poucos meses, o culto da razão, na França, matou dez vezes mais gente do que a Inquisição Espanhola matara em quatro séculos. As ideologias mortíferas que fizeram do genocídio a prática habitual de muitos governos conquistaram os povos na base do apelo emocional, é certo, mas não puderam fazê-lo antes de ganhar a adesão de hordas inteiras de intelectuais de primeiro plano, graças ao prestígio científico-racional das noções que as fundamentavam. É fácil mas inútil alegar que se tratava de “pseudociência” e não de ciência. Mesmo supondo-se que a distinção entre as duas seja em todos os casos coisa simples e improblemática, que não o é de maneira alguma, o fascínio da pseudociência vem da mesma fonte que o da ciência genuína: tanto uma quanto a outra não apelam prioritariamente a nenhuma das paixões grosseiras da alma humana, como o desejo sexual ou a cobiça de dinheiro, mas à ambição cognoscitiva do eu pensante, ao impulso de conhecer a verdade e através dela controlar, se não o universo físico, ao menos as massas de ingênuos que vivem na ilusão. O dito de Francis Bacon, “saber é poder”, tornou-se a máxima inaugural da moderna civilização científica. E o próprio Descartes não enxerga outra virtude maior na sua filosofia do que sua capacidade de dar aos homens o poder de controlar a natureza. Entre os personagens de Dostoiévski, os loucos mais perigosos não exteriorizam a sua loucura em explosões emocionais, mas em discursos filosófico-ideológicos. Albert Camus distinguia entre os crimes de paixão e os crimes de lógica – e quem negaria que estes, mais que aqueles, espalharam violência e crueldade no mundo em doses insuportáveis? Na tragédia de Eugenio Corti, Processo e Morte de Stálin, o ditador soviético, respondendo aos companheiros que lhe imputam uma lista de crimes hediondos, demonstra calmamente, metodicamente, que tudo o que fizera de mau tinha sido apenas a aplicação lógica e racional dos princípios do marxismo-leninismo. E não vejo meio de contestar a advertência de Victor Frankl: Não foram apenas alguns ministérios de Berlim que inventaram as câmaras de gás de Maidanek, Auschwitz, Treblinka: elas foram preparadas nos escritórios e salas de aula de cientistas e filósofos niilistas, entre os quais se contavam e contam alguns pensadores anglo-saxônicos laureados com o Prêmio Nobel. É que, se a vida humana não passa do insignificante produto acidental de umas moléculas de proteína, pouco importa que um psicopata seja eliminado como D A PSICOLOGIA DA DÚVIDA La verdad es lo que es y sigue siendo verdad aunque se piense al revés. ANTONIO MACHADO ESCARTES ASSEGURA-NOS que a seqüência das Meditações que o leva do questionamento do mundo exterior à descoberta do cogito não é apenas um esquema lógico, uma articulação hipotética de pensamentos pensáveis, mas uma experiência vivida, um relato fidedigno de pensamentos pensados. Mas vários indícios, no texto, sugerem que essa afirmação não deve ser tomada em sentido muito literal. Notei-os desde a primeira leitura, mas tive de voltar a eles muitas vezes, sem poder evitar a pergunta: até que ponto aquela narrativa correspondia adequadamente aos fatos, e a partir de que ponto ela se tornava um modelo inventado, concebido para dar ordem e sentido a experiências que na verdade teriam se passado de maneira muito mais imprecisa e nebulosa, se não totalmente diversa? Para piorar as coisas, aquela seqüência de pensamentos se apresentava como um modelo, um paradigma que deveria repetir-se de modo igual ou semelhante, com semelhantes ou iguais resultados, em todo homem que se dispusesse a reexaminar desde os fundamentos o edifício de suas crenças. Edmund Husserl, nas suas Meditações cartesianas, que levam esse título precisamente por isso, afirma que as coisas são realmente assim. Ao menos uma vez na vida, diz ele, todo pretendente a filósofo tem de fazer tábua rasa do seu edifício de crenças e, como Descartes, reconstruir tudo desde o grau zero, a autoconsciência do eu pensante. Para aprender a fazer isso, eu tinha de me imbuir profundamente da lição de Descartes antes de poder aprender a de Husserl, que a estendia e radicalizava. Uma simples releitura analítica dos textos principais do autor era desnecessária e insuficiente para isso. Desnecessária, porque nesse tipo de investigação o essencial já tinha sido feito por Martial Gueroult, que eu não tinha nem tenho a menor pretensão de superar. Insuficiente porque, se algum segredo o filósofo havia guardado, eu não poderia encontrar sinal dele nos textos se primeiro não o tivesse vislumbrado imaginariamente. E o fato é que, naquele momento, eu não vislumbrava coisíssima nenhuma. Decidi, então, começar pelo começo: reencenar na minha própria cabeça a sucessão das Meditações que vai da dúvida metódica à descoberta do cogito ergo sum como fundamento absoluto de toda certeza. Mas não se tratava só de repetir, pela ordem, uma série de “pensamentos”. Pensamentos supõem percepções, recordações, sentimentos, fantasias. O que eu queria não era só repetir uma seqüência de raciocínios: era reconstruir mentalmente as experiências interiores que Descartes condensara nesse raciocínio. Como uma extravagância merece outra, apelei, para isso, a um método que nenhum professor de filosofia julgaria muito respeitável, mas que me pareceu o mais adequado naquela situação: o método da “memória afetiva”, com que o grande ator russo Constantin Stanislavski – cujas obras eu andara estudando sob a direção de Eugênio Kusnet – construía seus personagens mediante a evocação de situações da sua própria vida, análogas àquelas que ele deveria representar no palco. Esse método me pareceu ainda mais adequado porque o próprio Descartes, como acabo de dizer, assegurava que suas Meditações não eram uma construção intelectual e sim o relato de experiências vividas. Muito mais tarde, ao estudar o Platão do Paul Friedländer e as obras de Eric Voegelin, confirmei que minha decisão não era tão louca quanto parecia: com esses dois autores ilustres aprendi que a compreensão das idéias filosóficas não pode ser obtida nem só pela análise de textos, nem só pela reconstituição da atmosfera cultural donde os textos emergiram, mas exige o rastreamento meditativo das experiências reais de onde as idéias nasceram. Comecei então a reler as Meditações como se fossem uma peça de teatro, na qual eu deveria representar, por meio do método Stanislavski, o papel de René Descartes na reconstituição imaginativa das suas experiências cognitivas. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que isso era muito mais difícil do que eu jamais poderia ter imaginado! Descartes resume tudo em umas poucas páginas, dando a impressão de que a seqüência de meditações havia fluído pela sua mente com a naturalidade da água corrente. Mas o esforço de puxar da minha memória afetiva algum análogo da dúvida metódica, do Gênio Mau e da certeza absoluta que o Eu Pensante tem de si mesmo esbarravam em tantos obstáculos e contradições, que não pude evitar a conclusão de que, enquanto relato de experiências vividas, as Meditações não eram muito confiáveis. Descartes simplesmente não podia ter vivenciado aquelas experiências exatamente como ele as narra. Que é possível duvidar das nossas sensações, das nossas imaginações e dos nossos pensamentos, é coisa que qualquer um de nós pode testemunhar. Também é possível colocar todo o orbe das nossas representações entre parênteses, reduzindo o “mundo” a uma hipótese evanescente. Mas, após ter feito essas operações, Descartes assegurava-nos ter encontrado, no fundo, a certeza da dúvida: a dúvida é um pensamento, e, no instante em que a penso, não posso duvidar de que a penso. A autoconfiança do ego pensante na sua própria solidez metafísica surgia como poderosa compensação psicológica para a perda da crença na realidade do “mundo”. Só que, tão minucioso em descrever os pensamentos que o induzem ao estado de dúvida integral, ele é estranhamente evasivo quanto a esse estado mesmo. Na verdade, ele nem mesmo o descreve: afirma apenas que ele aconteceu, e, saltando imediatamente da descrição para a dedução, passa a tirar as conseqüências lógicas que a constatação desse estado lhe impõe. Para dar alguma consistência verossímil à minha performance no papel de Descartes que pretendia representar no meu teatro interior, eu precisava portanto fazer o que ele não fizera: examinar e descrever não o mero conteúdo de algumas dúvidas em particular, mas o ato mesmo de duvidar, o estado de dúvida. [ 10 ] E aí a primeira constatação que se me impôs como inegável foi a seguinte: a dúvida não era propriamente um “estado” — uma posição estática na qual eu pudesse permanecer, como se permanece triste ou absorto, imóvel ou deitado. Era uma alternância entre um sim e um não, uma impossibilidade de deter-me num dos termos da alternativa sem que o outro viesse disputar-lhe a primazia. Pois o sim ou o não, tão logo aceitos como definitivos, eliminariam imediatamente a dúvida, que é feita da sua coexistência antagônica e de nada mais. Mas esse antagonismo, como vim a perceber logo em seguida, não é estático: é móvel. A mente em dúvida passa incessantemente de um dos termos ao outro, sem encontrar um ponto de apoio onde possa repousar e “estar”. Só que, como cada um dos termos é a negação do outro, a mente não poderia deter-se nele sem, estados, um vazio agitado que contém em germe vários estados possíveis – pelo menos dois – e não se resolve em nenhum deles sem suprimir-se a si mesma. A mente, portanto, nunca “está” em dúvida: apenas passa por ela, precisamente como transição entre estados. É só quando a dúvida deixa de ser experiência presente para passar a ser objeto de reflexão que surge esta certeza retrospectiva e narrativa: “Não consegui, até agora, estabilizar-me na negação ou na afirmação”. Existe, portanto, não só distinção lógica como também separação de fato entre a dúvida enquanto experiência presente e a dúvida enquanto objeto de recordação e reflexão – e é esta que é certa e indubitável,[ 12 ] não aquela, embora Descartes tome uma pela outra e nos repasse como evidência intuitiva direta o que é fruto de reflexão posterior. É somente esta reflexão que, dando um nome à alternância recém-vivenciada, confere artificialmente a unidade de um “estado” ao que é na verdade uma sucessão de estados que se suprimem mutuamente ou uma coexistência de estados puramente potenciais, dos quais cada um só se pode atualizar à custa da exclusão dos outros. Conferindo ao vazio da alternância a consistência positiva de um estado, no mesmo instante Descartes transforma a dúvida em mera negação hipotética, tomando então como estado psicológico efetivo o que é apenas o conceito lógico de um estado possível. Para piorar ainda mais as coisas, na afirmação reflexiva da realidade da dúvida estão pressupostas duas crenças: a crença na continuidade da consciência entre a dúvida e a reflexão, e o conhecimento da distinção entre verdade e falsidade. 1º) Aquele que reflete sobre a dúvida sabe que ainda é “o mesmo” que teve a dúvida; e se o ato de duvidar é formalmente distinto do ato da reflexão, o eu consciente, ao refletir, sabe que é ele mesmo o sujeito de dois atos distintos – distintos logicamente e distintos no tempo –, donde se conclui que esse eu é logicamente e temporalmente anterior aos dois atos e independente deles: não é o ato da dúvida que funda a certeza do eu, mas, ao contrário, a certeza da continuidade do eu é a garantia única de que a dúvida foi realmente vivenciada. Pois a dúvida, se não recebesse da reflexão posterior o nome que lhe confere a aparente unidade de um estado, acabaria por se reduzir à mera sucessão de negações e afirmações irrelacionadas, sucessivas alucinações de um sujeito esquizofrenicamente plural, destituído do domínio de si e dissolvido no fluxo atomístico dos seus estados.[ 13 ] Para poder ser objeto de reflexão, a dúvida recebe a artificial unidade de um nome; e se logo em seguida a mente se esquece de que essa unidade é um mero ente de razão e a toma como unidade substancial, então se trata de um desses casos de auto-hipnose retroativa em que o nome produz magicamente, a posteriori, a realidade do seu objeto. 2º) Sendo formalmente distintos, os dois atos são distintos também empiricamente, isto é, no tempo: primeiro duvido (isto é, vou e venho entre sucessivas afirmações e negações), depois reflito que duvidei (isto é, unifico sob o nome “dúvida” essa multiplicidade de vivências antagônicas). Mas a unidade do eu, que está subentendida nessa reflexão mesma, e portanto na certeza da dúvida, é continuidade no tempo, é memória e recordação: a memória, estando pressuposta como condição indispensável da reflexão, é lógica e temporalmente anterior a ela: longe de poder fundar a confiança que temos na memória, é a dúvida que depende da memória para tornar-se psicologicamente possível. Mas, se a dúvida depende da garantia que lhe é dada pelo eu e pela memória, então ela não tem nenhum poder fundante. É coisa fundada, é certeza secundária e derivada, é mero disfarce de um agente mais profundo e mais inquestionável. 3º) Porém, a dúvida subentende algo mais. Como é possível duvidar? A possibilidade da dúvida repousa inteiramente no nosso poder de conceber que as coisas sejam de um outro modo que não aquele com que se nos apresentam num dado momento. A dúvida assenta-se numa suposição; ela requer e subentende o poder de supor. Ora, tendo as coisas se apresentado ao sujeito de um certo modo, e não de outro, este outro e suposto modo só pode apresentar-se à consciência como invenção do sujeito mesmo, como produto de imaginação ou conjetura. Para saber que duvida, é necessário então que o sujeito saiba que supôs; que se reconheça portanto como sujeito não apenas de dois atos, mas de três: o ato de duvidar, o ato de refletir sobre a dúvida e, antes de ambos, o ato de supor ou imaginar. 4º) Mas, se o sujeito não percebesse nenhuma diferença entre as coisas tal como se lhe apresentam e as coisas tal como as supõe, não poderia tomar consciência de que supôs, pois não haveria para ele diferença entre supor e perceber. Eis, portanto, que a consciência dessa diferença é, ela também, um requisito e um fundamento da possibilidade da dúvida. Para duvidar, necessito distinguir, na representação, o dado e o construído, o recebido e o inventado, aquilo que me vem pronto e aquilo que faço e proponho. Logo, está aí pressuposta a consciência da diferença entre o objetivo e o subjetivo e, portanto, a crença na objetividade do objetivo e na subjetividade do subjetivo. 5º) Mais ainda: se o sujeito confundisse esses dois domínios, acreditando que supôs o percebido e percebeu o suposto, teria perdido a continuidade da consciência e da memória, que é, como vimos, condição de possibilidade da dúvida. Logo, a dúvida sobre a realidade do mundo não pode se apresentar como simples escolha entre duas possibilidades de valor igual e idêntica origem, mas sempre como escolha entre um dado e um suposto, entre o recebido e o inventado. 6º) Não é possível portanto duvidar da realidade do mundo sem saber de antemão que esta dúvida, e a suposição que a fundamenta, são puras invenções do próprio sujeito, e que esta invenção é formal e temporalmente distinta do ato perceptivo, bem como do conteúdo percebido. A dúvida é a suposição de que um mundo inventado é mais válido que o mundo percebido, suposição que se funda por sua vez na consciência de inventar, de supor e de fingir. A dúvida quanto à realidade do mundo é sempre e necessariamente um fingimento, e quanto mais o fingidor se esforce para levar esta dúvida a sério, para torná-la cada vez mais verossímil, tanto mais o brilho mesmo da performance atestará a diferença entre o verossímil e o verdadeiro, assim como, no teatro, aplaudimos o ator precisamente porque sabemos que ele não é o personagem. 7º) Mas esta consciência de fingir seria impossível se não se fundasse, por sua vez, na consciência da diferença entre pensar e ser, imaginar e agir. Pois, subentendida a consciência da diferença entre supor e perceber, paralelamente à consciência que o eu tem de suas próprias ações, não haveria como negar que o eu pensante tem consciência da diferença entre ação suposta e ação realizada, de vez que a ação realizada não é somente pensada, mas percebida fisicamente, exatamente como os seres do mundo sensível. Não posso portanto colocar em dúvida os seres do mundo sensível sem no mesmo ato colocar também em dúvida os atos físicos que me vejo realizando, como por exemplo os movimentos de minhas mãos e pernas. Mas, ao mesmo tempo, não os posso colocar em dúvida sem questionar, no mesmo instante, a continuidade e unidade do eu, a qual no entanto está pressuposta, como vimos, no ato mesmo de duvidar do que quer que seja. Eis aí outro motivo pelo qual a dúvida cartesiana, sendo dúbia por definição, não poderia instalar-se senão pondo-se também a si mesma em PARTE 2 – CONSCIÊNCIA E ESTRANHAMENTO III E REVISÃO DO ITINERÁRIO XAMINEI NO CAPÍTULO II o passo inicial da filosofia de René Descartes, a dúvida radical ou metódica. Nas célebres conferências que pronunciou na Sorbonne em 23 e 25 de fevereiro de 1929, e que depois viriam a ser publicadas sob o título bem significativo de Meditações Cartesianas, Edmund Husserl afirmou categoricamente que as meditationes de Descartes não eram apenas um assunto pessoal do filósofo, “menos ainda uma simples forma literária da qual ele usasse para expor suas opiniões filosóficas, mas, ao contrário, elas desenham o protótipo do gênero de meditações necessárias a todo filósofo que comece sua obra, as únicas que podem dar nascimento a uma filosofia”.[ 15 ] Em nota de rodapé, ele acrescentava que tal era a maneira de ver do próprio Descartes. Se Descartes tinha sido, nas palavras de Charles Péguy, “ce chevalier français qui partit d’un si bon pas”,[ 16 ] todos os que depois dele se aventurassem pela mesma senda deveriam, portanto, imitar-lhe o exemplo e o estilo. Husserl, no entanto, deixava claro que alguns aspectos do empreendimento cartesiano tinham “um alcance eterno” – subentendendo que outros não tinham. O eterno nas Meditações, o que fazia delas o modelo por excelência de toda filosofia, estava em dois pontos: a) A aspiração de encontrar princípios universalmente válidos, auto-evidentes, que pudessem servir de fundamento e critério último de validade para todos os conhecimentos científicos. b) A descoberta de que para encontrar esses princípios o filósofo, em vez de examinar o mundo em torno, deveria voltar-se para dentro de si mesmo, para o âmago da sua consciência. Nenhum desses dois pontos era novo no tempo de Descartes. O segundo ecoava as palavras de Agostinho pronunciadas onze séculos antes: “Noli foras ire, in te ipsum reddi: in interiore hominis habitat veritas”.[ 17 ] O primeiro era a própria definição da filosofia segundo Aristóteles. O que restava de propriamente cartesiano na proposta era o método adotado para realizar essa dupla aspiração, isto é, o método da dúvida. Husserl não dizia objeto B, as duas afirmações não se contradizem necessariamente e o seu confronto não tem por que suscitar dúvida. Só dois predicados opostos do mesmo sujeito podem contradizer-se. Se me dizem que José é gordo, mas Antônio é magro, isso não é contradição; porém, se dizem que José é gordo e magro, então entro em dúvida. Não há, portanto, possibilidade de dúvida sem a admissão prévia da identidade do seu objeto e sem que essa admissão, por sua vez, esteja fora de dúvida. Além disso, os próprios fundamentos do raciocínio lógico também estão pressupostos na dúvida. Se não existe princípio de identidade, de não- contradição e de terceiro excluso, não tenho como formar a dúvida. Também está pressuposta na dúvida a continuidade da língua na qual ela se transmite. Eu não poderia formular uma dúvida sem o auxílio da minha língua natal, e essa língua, evidentemente, sei que não a estou inventando no momento em que formulo a dúvida, sei que estou usando regras de gramática que existem de antemão e que, se eu não as tivesse recebido, também não poderia produzi-las na hora. Por fim, a própria conclusão que René Descartes vai extrair desta parte do exame – que, enquanto estamos duvidando, não podemos duvidar de que duvidamos, e que, portanto, o próprio ato da dúvida seria a primeira certeza filosófica inabalável –, também não é inabalável, porque, se a dúvida é uma alternância entre duas convicções opostas, ela não apenas admite a dúvida a respeito de si mesma, mas a exige. No fim das contas, não é possível alguém duvidar sem duvidar de que duvida, porque, se a certeza, ainda que hipotética, fosse excluída do horizonte, não haveria mais dúvida, haveria simplesmente a negação.[ 19 ] Em suma, por baixo do ato da dúvida, nominalmente uma dúvida radical da qual nada escapa, há toda uma montanha de certezas. Esta conclusão, a que chegamos no capítulo II, mostra que, a rigor, não existe dúvida radical, total ou abrangente. A dúvida cartesiana não pode ser realizada como um ato ou estado efetivo de um espírito pensante, de um eu humano existente e concreto. Ela só pode ser concebida como uma hipótese hiperbólica, como a ampliação ilimitada – e por isso mesmo irrealizável – do estado de dúvida normal que questiona uma coisa enquanto afirma outra. No máximo, a dúvida ampliada se aproximaria da dúvida total como numa assíntota, sem jamais poder alcançá-la. Isso quer dizer, em resumidas contas, que nenhum ser humano jamais teve uma dúvida total. Nem o próprio René Descartes. Mas, se a dúvida total não existe nem pode existir, ela é um mal imaginário que não ameaça os seres humanos no mais mínimo que seja. E nisso reside, creio eu, a estranheza que Husserl viu no método cartesiano. De um lado, a dúvida total bem parece aquilo que em retórica se chama um “boneco de palha”: um espantalho imaginário concebido propositadamente para ser demolido com dois ou três golpes e dar ao seu autor a glória fácil do triunfo obtido sobre um adversário inexistente. De outro lado, ela aparece com uma feição mais horrível e ameaçadora que a de qualquer outro desafio cognitivo que tenha jamais se apresentado à mente humana. Afinal, a completa ausência de certezas corresponderia à total privação de conhecimento e à aterradora solidão de um “eu” isolado de tudo, até de si mesmo. Por que, entre tantos caminhos possíveis para a realização dos dois objetivos máximos da filosofia, Descartes foi escolher logo esse, tão exagerado, tão forçado, tão hiperbólico? Notem que, se a dúvida radical é irrealizável como operação concreta da mente pensante, ela é perfeitamente concebível como hipótese imaginária, como limite último de uma espécie de inconsciência idealizada. Ela é uma fantasia, um sonho mau, cujo conteúdo não pode ser expresso logicamente, mas apenas conhecido pela emoção, pelo temor que desperta no coração humano. Dito de outro modo, a dúvida radical não é a formulação de um problema, mas uma experiência imaginativa que pode ter tanto mais impacto sobre a mente humana quanto menos esta consegue formulá-la em termos “claros e distintos” (para usar os termos do próprio Descartes). Não espanta, pois, que o filósofo, abdicando de toda clareza e distinção, apelasse, para descrevê-la, ao fantasma sinistro do Gênio Mau. Na verdade, ele não descreve esse vazio cognitivo de maneira alguma, nem poderia fazê-lo. O fato mesmo de haver chegado ao cogito mostra que, em última instância, a privação de toda certeza é impossível, é, até mesmo por definição, uma suposição sem conteúdo cognitivo. Nem por isso deixa de ser uma experiência, mas reconhecível somente pela reação de espanto e horror ante a expectativa de um abismo sem fundo nem forma. A pergunta que se segue inexoravelmente é: como Descartes chegou a essa experiência? Como chegou ao confronto com o Gênio Mau? [ 15 ] Méditations Cartésiennes. Introduction à la Phénoménologie, trad. Gabrielle Pfeiffer et Emmanuel Levinas, Paris, Vrin, 1986, p. 2. [ 16 ] “Esse cavaleiro francês que partiu com um passo tão bom”. [ 17 ] “Não vás para fora, permanece em ti mesmo: no interior do homem habita a verdade”. [ 18 ] A expressão é de Mário Ferreira dos Santos. [ 19 ] Há um aspecto que não examinei ali, mas que tem sua importância. A pura e simples suspensão do juízo não pode ser identificada com a dúvida: ela é antes uma superação psicológica da dúvida mediante um distanciamento da pergunta. nascida, como quase tudo o que é humano, de motivações secretas e insondáveis. A mim me parece, ao contrário, que o mistério irresolvido e insolúvel está no coração mesmo desse sistema. Veremos no fim. Por enquanto, o que temos de perguntar é: como pôde René Descartes, ou como poderia qualquer outro em seu lugar, imaginar-se em estado de dúvida total e chegar a acreditar, ainda que por alguns dias apenas, que estava realmente nesse estado? Como poderia um homem imaginar que colocava “todo” o mundo entre parênteses, se sua consciência nunca esteve desprovida de um “mundo” externo e interno? Como é possível duvidar de “todo” o conhecimento se nunca ninguém teve a experiência do total desconhecimento e se, como dizia Aristóteles, todo conhecimento provém de algum conhecimento anterior? Não temos realmente a experiência de ficar “fora” dos nossos sentidos, da nossa memória, da nossa imaginação, muito menos dos nossos próprios pensamentos – simplesmente não temos essa experiência. Se não a temos, de onde obtivemos a possibilidade de concebê-la e de tentar colocar-nos nesse estado imaginariamente? É claro que nenhum outro animal, além do homem, experimenta isso. Você pode ver que, às vezes, um animal pode ficar num estado de perplexidade entre duas alternativas, mas você nunca verá um animal paralisado por uma dúvida cartesiana. A vítima primeira e mais óbvia da dúvida cartesiana é o “mundo exterior”. Mas muito mais interessante do que o velho problema de como podemos ter a certeza do mundo exterior é o de como podemos chegar a duvidar dele, se nunca tivemos a experiência de estar fora dele por um instante sequer. Podemos, é claro, refugiar-nos dele nos nossos próprios pensamentos, mas, como estes não ocupam lugar no espaço, a própria noção de exterior e interior cessa aí de fazer sentido. Fugir para um mundo interior não é “negar” o exterior, é simplesmente desviar-se dele e pensar em outra coisa. Na introdução à Filosofia do Direito, Georg Wilhelm Friedrich Hegel afirma que uma das capacidades essenciais do ego humano é a de suprimir mentalmente todo dado exterior ou interior, quer se imponha como presença física ou por quaisquer outros meios – a capacidade, em suma, de negar o universo inteiro e fazer da consciência de si a única realidade. Se não fosse essa faculdade, diz ele, estaríamos presos no círculo dos estímulos imediatos, como os animais, e não teríamos acesso aos graus mais elevados de abstração. A negação do dado – “a irrestrita infinitude da abstração absoluta ou universalidade, o puro pensamento de si mesmo”, segundo Hegel – é uma das glórias peculiares da inteligência humana. Mas isso é, com toda a evidência, um exagero. O que a inteligência humana pode fazer é negar este ou aquele dado isoladamente ou negar o mero conceito abstrato da totalidade, não a totalidade em si. Negar a totalidade não como conceito, mas como presença concreta, implicaria realizar, na escala miúda da inteligência humana, o infinito quantitativo em ato. Toda negação da totalidade é apenas hipotética e afirma categoricamente aquilo que nega em hipótese. O mais estranho no solipsismo experimental de René Descartes é precisamente que o filósofo imagine entrar nele a despeito de saber que, mesmo durante esse período de radical isolamento, necessitará de uma “moral provisória” para se arranjar de um modo ou de outro naquele mesmo mundo exterior que, enquanto isso, ele está negando. Querendo colocar em dúvida todos os seus conhecimentos, mas sabendo que enquanto isso vai continuar vivendo, agindo, conversando com as pessoas, tomando decisões, pagando suas dívidas etc., Descartes pergunta-se: como vou orientar-me no mundo enquanto estou em dúvida com relação a tudo? Então, ele concebe os princípios do que chama “moral provisória”, que vai seguir, sem questioná-la nem legitimá-la, durante o período em que estiver realizando esse experimento interior. A função da moral provisória no método cartesiano é mais complexa e ambígua do que pode parecer à primeira vista. A um exame superficial, ela parece sugerir apenas a divisão de trabalho entre a razão pura e a razão prática, esta afirmando o que aquela nega ou suspende. Haveria nisso nada mais que uma precaução de bom senso, e foi realmente assim que a maioria dos intérpretes entendeu a coisa. Mas, a um segundo exame, aparece a pergunta: para que necessitaria Descartes formular regras práticas explícitas, a fim de continuar se orientando no mundo durante a experiência, se não temesse que esta poderia afetar profundamente sua psique e sua conduta, a ponto de deixá-lo completamente desorientado? O primeiro desses pontos de vista indica que Descartes estava consciente, desde o início, da incongruência lógica da dúvida total, a ponto de saber que não deveria se deixar arrastar por ela nos atos da vida real. O segundo mostra que, ao contrário, a dúvida total, como experimento imaginativo, podia ser algo de mortalmente sério e perigoso. Isso não apenas deixa a questão irresolvida, mas parece tê-la tornado mais difícil ainda. Temos, então, de examiná-la por outro ângulo. O conhecimento começa com o estranhamento. O primeiro passo da investigação filosófica é colocar-nos num estado no qual possamos perceber ou conceber a estranheza de alguma coisa. Normalmente não notamos essa estranheza, mas, quando prestamos mais atenção, a estranheza pode aparecer. Quando estamos lendo René Descartes, deslizamos sobre o texto e não nos lembramos de perguntar: mas como ele conseguiu se transportar imaginariamente a um estado de dúvida total no mesmo instante em que, pela moral provisória, admitia que essa dúvida era apenas parcial? Quase tudo o que os filósofos descobriram ao longo dos milênios foi estranhando coisas que habitualmente não nos parecem estranhas. Para estranhar, temos de nos colocar mentalmente “fora” do envolvimento direto com o objeto e olhá-lo como se fôssemos um turista de outro planeta. Decorridos três séculos, já nos acostumamos com a idéia da dúvida metódica, mas, se Descartes acredita poder avançar no conhecimento colocando-se mentalmente “fora” do mundo, por que deveria eu tentar envolver-me nessa proposta, saltando para dentro dela e deixando-me embeber dela como uma esponja, em vez de colocar-me fora dela e olhá-la com a mesma estranheza com que Descartes olhou o mundo? A natureza da proposta cartesiana é tal, que não podemos aceitá-la sem lhe sermos infiéis no mesmo instante: se aceito a dúvida radical como um ato natural e improblemático, deixo de aplicá-la ao próprio ato de duvidar e, assim, faço arbitrariamente desse ato uma exceção ao método, reduzindo a uma pobre petição de princípio a minha posterior afirmação de que não posso duvidar da dúvida. Se Descartes exige explicitamente que olhemos o mundo com estranheza, sei que essa mesma exigência está sendo formulada no mundo e deve também tornar-se alvo de estranheza. Notem bem que, durante todo o exercício da dúvida metódica, Descartes sabe que está pensando; ele coloca entre parênteses não o pensar, mas o saber. Ele está pensando, mas aquilo que ele sabe lhe parece duvidoso, portanto, ele não assume o que sabe, ele assume apenas que está pensando. Ora, como é que investigação filosófica. Se não estivéssemos vivos, não pensaríamos nem filosofaríamos. Todos sabemos disso, e então, podemos dizer que o pensamento é o exercício de uma faculdade vital, que ele supõe, portanto, a vida. Como é que, sendo o exercício de uma faculdade vital, sendo uma espécie de manifestação da vida, ele pode, ao mesmo tempo, negar a vida, ainda que hipoteticamente? Tão antinatural é essa operação, de tal modo ela se opõe a todo o potente dinamismo psicofísico que deseja viver e que ademais tem de estar vivo para realizá-la, que temos de admitir que ela não se realizaria sem que esse dinamismo pudesse ser “suspenso” – mentalmente, é claro – pela ação de um dinamismo contrário dotado de poder equivalente, embora certamente descontínuo. Foi nesse sentido que Fichte disse que “filosofar é não viver; viver é não filosofar”. Tudo o que fazemos, pensamos, rememoramos etc. é, certamente, uma expressão do nosso impulso de viver e de perseverar na existência. É isso o que chamo dinamismo. Ora, o ato de colocar tudo em dúvida contraria de tal modo esse impulso vital, que não conseguiríamos realizá-lo a não ser que nos apoiássemos num impulso igual e contrário, não permanente (porque senão ficaríamos definitivamente paralisados), mas temporário. Isso quer dizer que o impulso vital pode ser detido por instantes. Se ele pode ser detido, é por uma força capaz de detê-lo. Que força é essa? Se alguém deseja e consegue imaginar-se desprovido de todo o saber, colocando para isso todas as funções vitais entre parênteses, quer dizer que, nesse momento, é levado por uma motivação que não é aquela mesma que o faz pensar, sonhar, sentir, viver etc. É uma “outra” motivação diferente e que se opõe a tudo isso, e essa motivação tem de ser muito forte. Com isso, a nossa pergunta inicial – “Como é possível a dúvida radical?” – se converte numa outra pergunta. Essa mutação das perguntas é um dos elementos fundamentais da técnica filosófica: a conversão da pergunta numa outra pergunta mais explícita, mais detalhada e mais fácil de ser examinada. A segunda forma que a nossa pergunta assume é a seguinte: de onde tiramos, do nosso ser vivente, a força para realizar a torção da nossa consciência da atitude de crença natural, ou da dúvida corriqueira, para a de negação cartesiana ou suspensão husserliana? Husserl vai tornar a dúvida cartesiana um processo muito mais preciso, muito mais detalhado. Comparar a dúvida cartesiana com a suspensão, como a denomina Husserl – a epokhé, com a qual ele coloca tudo entre parênteses – é como comparar um relógio de areia com um relógio suíço a quartzo: a máquina tornou-se muito mais precisa, mas a função continua exatamente a mesma. Esta análise realizada aqui valeria até certo ponto tanto para Husserl quanto para Descartes. Husserl chegava a dizer que a “atitude fenomenológica”, como ele a chama, é não só diferente, mas é radicalmente oposta à atitude natural. A atitude natural é crer no que se pensa, crer no que se sente, crer no que se imagina. Crer ou descrer: ou afirmamos, ou negamos, mas em ambos os casos cremos – cremos na afirmação ou na negação. Ora, a atitude fenomenológica não afirma nem nega, ela simplesmente descreve o que está se passando diante da nossa consciência, ou seja, o próprio conteúdo intencional do ato cognitivo é aí observado, sem que o afirmemos ou neguemos. Não se trata sequer de “introspecção”, porque aquilo que observamos no processo cognitivo pela técnica fenomenológica não são os atos reais do pensamento, é simplesmente o fenômeno enquanto dado presente à consciência, sem afirmar que ele seja verdadeiro ou falso, real ou irreal. É claro que essa mesma atitude pode ser adotada para se estudar o próprio processo cognitivo, considerado enquanto fenômeno presente à consciência. Também neste caso não é uma observação pessoal, mas transcendental. Essa atitude é de fato muito estranha, tão estranha quanto o método cartesiano. Husserl dizia que ela é tão antinatural que tem de ser treinada: o fenomenólogo precisa passar por um treinamento especial da consciência. Um dos discípulos de Husserl, Raymond Abellio, dizia que a fenomenologia era uma escola ascética, uma seita iniciática. Por quê? Porque o treinamento necessário para o discípulo colocar-se na atitude fenomenológica é um autodomínio do espírito. Nesse exercício de autodomínio, em que nos desidentificamos das sensações naturais, da memória etc., e adquirimos a posição de observador fenomenológico, nos colocamos “acima” de nós mesmos. Começamos a pensar num outro estrato, num outro andar, num outro nível, que é o nível da validade universal, e aí estamos instalados em pleno Eu transcendental. Abellio comparava isso a um processo iniciático. De onde nos vem a força para entregar-nos à experiência desse processo? Essa força certamente não pode ser o simples impulso vital, pois este nos impeliria a fazer exatamente o contrário. Notem bem que, se o desejo de conhecer é natural no homem tanto quanto o desejo de viver, o desejo de comer etc., o fato é que, sendo desejos diferentes, eles podem entrar em choque uns com os outros, e teremos de escolher, por exemplo, entre continuar fazendo os exercícios ascéticos ou parar para comer. Mas, no caso de René Descartes, existe algo mais que o desejo de conhecer. Isso se torna óbvio quando formulamos a questão da seguinte maneira: o simples desejo de conhecer pode nos levar a negar todos os nossos conhecimentos? Aristóteles, que dizia que o conhecer começa com o estranhamento, investigou o mundo e a alma, mas nunca estranhou que a alma pudesse conhecer o mundo. Portanto, uma coisa é o estranhamento aristotélico, outra o estranhamento cartesiano. Aquele nos leva a fazer as perguntas: como é possível?; por que isto acontece?; o que é tal coisa?. Quando estranhamos algo e isto suscita uma pergunta, qual é o ato seguinte? Buscar a resposta, evidentemente. Mas nada disso, por si, poderia nos levar à dúvida geral e radical sobre todos os nossos conhecimentos. Ao contrário, o impulso aristotélico do conhecimento leva-nos naturalmente a restringir a pergunta àquele aspecto específico que estamos investigando no momento. Aí não fazemos todas as perguntas ao mesmo tempo, porque isso nos paralisaria. Então, se estamos investigando, por exemplo, a fisiologia do coelho, não vamos, ao mesmo tempo, fazer uma pergunta sobre a estrutura do Estado, muito menos sobre as relações entre as duas coisas. Podemos tratar de uma coisa e de outra, mas não misturá-las na poção dissolvente de uma dúvida universal. Portanto, existe em toda a busca do conhecimento um princípio de rendimento que faz com que encaminhemos a pergunta da melhor maneira possível. Nada disto nos impeliria à dúvida total. Entendemos, então, que mesmo o desejo do conhecimento, por mais profundo e obsediante que fosse, não explicaria a vontade de dúvida total. O próprio Descartes, no Discurso do Método, diz que, quando estamos diante de uma questão muito grande e complexa, o melhor a fazer é subdividi-la em questões mais simples. Aparentemente, essa regra não poderia levar jamais à dúvida total sobre o universo dos conhecimentos humanos. Mais ainda, colocar “tudo” em dúvida, para encontrar o princípio fundador de todo conhecimento, subentende que o princípio possa ser encontrado fora desse “tudo” – uma idéia que jamais ocorreu a Aristóteles e que, realmente, é antinatural. A curiosidade natural busca a explicação de uma coisa dentro dessa coisa ou em alguma outra coisa em torno. A idéia de afastar-se de tudo para conhecer a explicação de tudo jamais ocorreria a um homem por simples impulso natural. Quando o desejo de conhecimento se opõe, em nós, ao desejo de viver, os dois desejos são naturais. É natural que o homem queira comer e é natural que ele deixe de comer para fazer exercícios ascéticos e adquirir conhecimento. Trata-se de um conflito que se dá dentro da natureza, mas ainda aí estamos muito longe do impulso que pode nos levar a negar todos os conhecimentos. VII VIII “Q FENOMENOLOGIA DO ESTRANHAMENTO (1) PRECAUÇÕES DE MÉTODO UE É?”.QUID EST? Esta é a pergunta filosófica fundamental. Uma definição nominal do objeto não basta para respondê-la. A definição nominal declara apenas o que queremos dizer com determinada palavra, mas, para saber o que algo “é”, temos de tornar presente a própria coisa da qual estamos falando e tentar enxergar aquilo que, de certo modo, ela nos impõe como sua natureza, aquilo que ela própria nos apresenta como sua identidade, seu quid, seu modo próprio de ser e revelar-se. Ora, as palavras estão à nossa disposição, elas são instrumentos para manifestarmos o que desejamos. Nós as usamos como instrumentos de nossa auto-expressão, mas as coisas não são bem assim. As coisas nos resistem mais que as palavras, e é justamente nessa resistência que elas nos mostram que são algo em si mesmas e por si mesmas, independentemente do que projetamos sobre elas do nosso próprio estado interior.[ 20 ] Então, é justamente essa resistência das coisas que o filósofo procura, porque sabe que ela é preciosa, ela é o aspecto das coisas que transcende a nossa subjetividade. Mas a palavra “coisas”, aí, não significa apenas os entes materiais, e sim também os fatos e situações, tudo o que é “real”, inclusive na nossa experiência interior considerada como realidade factual, como fato psíquico. Quando pergunto “que é estranhar?”, posso definir a palavra “estranhar” como bem entenda, mas isso não me dirá o que acontece realmente quando se estranha alguma coisa. Para saber o que é estranhar, terei de traduzir num conteúdo verbal as experiências internas do ato de estranhamento, com as quais não me preocupei no momento mesmo em que estranhava. Por exemplo, se alguém que conheço aparece de repente pintado de verde, naturalmente eu o estranho; mas, justamente por isso, não estranho que o estranhe. Então, nessa hora, não vou me perguntar: “o que é estranhar?”, “o que se passa na minha mente no momento em que estranho?”. Estranhar o estranhamento não coincide no tempo, em geral, com o ato de estranhar. Se estranho alguma coisa, é porque ela me parece estranha e, por isto mesmo, não vejo nada de estranho em estranhá-la. Perguntar “que é o estranhamento?” exige algo mais que o estranhamento natural, exige um estranhamento de segundo grau, um estranhamento do estranhamento. Quando perguntamos: “que é?”, quid est?, devemos, com efeito, tornar presente aquilo do qual perguntamos, seja um objeto físico, seja um estado interior etc. Mas esse tornar presente não é um reviver no sentido direto. Para investigar o que é tristeza não preciso ficar triste, mas preciso que a tristeza me esteja presente de algum modo; preciso ter a recordação eficaz e suficientemente completa da tristeza para que eu possa dizer o que ela é. Não estou triste, mas a minha tristeza está presente. Poderia perguntar-me, por exemplo, o que é o medo. Ora, só podemos perguntar o que é o medo num momento em que não estamos com medo; porque se, na hora do medo, conseguíssemos nos distanciar intelectualmente do medo a ponto de estranhá-lo e perguntar “que é o medo?”, o medo se dissolveria como vivência direta para reaparecer como objeto de reflexão. Entre viver uma certa experiência e filosofar a respeito existe uma diferença e existe uma afinidade. A diferença é que não estamos revivendo existencialmente aquele estado; a afinidade é que esse estado tem de estar presente, tão presente quanto se o estivéssemos vivenciando, mas de uma forma diferente daquela pela qual ele se apresentava na vivência direta. Na vivência direta, o estado, de certo modo, nos possui e nos envolve, ao passo que na reflexão ele está “diante” de nós e só muito parcialmente nos deixamos afetar por ele. A diferença provém de que, além de esse estado estar presente, existe um outro estado que também está presente, que é o estado de pergunta, o qual não estava presente no momento em que vivíamos aquela situação em sentido existencial. Então, se pergunto: “que é o medo?”, o medo tem de estar tão presente quanto na hora em que eu o sinto, só que agora ele está, de certo modo, neutralizado, porque está presente também uma curiosidade que o domina ou pelo menos o abranda. É esta coexistência entre a curiosidade e um determinado estado interior que me permite perguntar sobre ele. Mas, se nos contentamos com a definição de uma palavra ou com a primeira resposta que apareça, movidos por um impulso espontâneo de dizer o que sentimos, então não permitimos que esse objeto esteja novamente presente: o que está presente é o nosso impulso de falar, de comunicar-nos, e este impulso encobre o objeto do qual queríamos falar, desviando o foco da nossa atenção para a nossa própria fala. É um mecanismo dispersante. Para superá-lo, é preciso E FENOMENOLOGIA DO ESTRANHAMENTO (2) ESTRANHAR E ASSUMIR STRANHAR UM OBJETO ou um estado é desidentificar-nos dele, é olhá-lo a uma distância desde a qual ele aparece injustificado, desprovido de fundamento, irrazoável, absurdo; o estranhar é recusar-se a assumir algo como natural, óbvio, costumeiro, improblemático. Estranhar é o contrário de assumir. Assumimos algo – um encargo, um dever, uma idéia, um amor, uma pessoa – quando o damos por justificado, por fundamentado, por dotado de um valor e de uma razão de ser. Como pode a mente que conhece, no instante em que conhece, recusar-se a assumir que conhece? A questão agora ficou mais precisa ainda: conheço, mas não assumo que conheço – isto é a dúvida cartesiana. Então, deixo de ser o sujeito executivo do ato de conhecer e me coloco fora do campo de minha própria ação, dizendo: “conheço, mas não sou propriamente eu que conheço”. Toda essa operação se dá no pensamento. É pelo pensamento que conhecemos, é pelo pensamento que assumimos ou não assumimos. Então, pelo mesmo meio – o pensar – é que vamos fazer a desidentificação entre o sujeito que conhece e o sujeito que pensa. Nesse ponto, deparamo-nos com uma dificuldade das mais temíveis: se me desidentifico daquele que em mim conhece, se me separo do meu eu cognoscente, onde precisamente “estou” nesse instante? Quem, em mim, fala e pensa, se não é o eu cognoscente? Dito de outro modo, se me coloco fora daquela área que para mim é iluminada, e se o faço precisamente com o propósito de enxergar a luz mesma que vem de mim e não os objetos que ela ilumina, mas ao mesmo tempo recuso assumir que essa luz é luz, que ela é minha e que ela ilumina alguma coisa, tenho então de olhar desde as trevas. Torno-me inconsciente para examinar a consciência, como um homem que arrancasse os olhos para examiná-los. Mas, ao mesmo tempo, como o foco iluminante do que conheço é a própria atenção que projeto sobre os objetos, isto é, como o eu cognoscente se desloca comigo para onde quer que eu vá, tenho apenas a ilusão de entrar nas trevas para ver a luz, porque de fato levei a luz comigo e a projeto sobre aquela outra luz que sou eu mesmo. O eu reflexivo, duplamente cognoscente, ilumina o eu cognoscente simples e, ao mesmo tempo, o objeto do conhecimento. Se sei, sei que sei; e se sei que sei, sei que sei que sei: as trevas resolvem-se num jogo de luzes e espelhos.[ 21 ] O resultado parece esplêndido, ao menos do ponto de vista estético: a tentativa de estranhamento resultou numa aproximação, a desidentificação numa identificação intensificada. Esta é a questão: aqui está o objeto do conhecimento, aqui está o eu que conhece, mas eu me desidentifico e me coloco fora da relação entre eles. Ora, existem duas maneiras de se fazer isso. Uma delas pode ser formulada assim: aqui está o objeto do conhecimento, ali está o sujeito que conhece, e dentro ou acima de mim existe um terceiro que diz: “Eu sei que conheço, eu tomo consciência de que conheço”. Ora, se diante de mim está o objeto e o ato de conhecer está em mim, a consciência de que conheço não pode estar somente em mim; ela está em mim, mas de certo modo ela me transcende porque me mostra as relações que tenho com um objeto que não sou eu. Esta é a primeira maneira de refletir sobre o ato de conhecimento. Então, aqui, não é que eu me desidentifique de mim; eu subo um grau acima de mim mesmo e olho, desde um plano mais elevado, o que estou fazendo. Logo, eu sei, e sei que sei. É claro que a função saber é, em si, mais elementar do que o saber que sabe, porque esta abarca a primeira. Porém, não é disso que se trata no estranhamento cartesiano: este não olha o ato do conhecer de um ponto de vista mais elevado, mas se coloca “fora” do ato de conhecer; ele não assume o conhecimento. A primeira operação que descrevi, a reflexão que nos leva à conclusão de que sabemos que sabemos, longe de se desidentificar do ato de conhecimento, intensifica-o e aprofunda-o. Ela tanto se identifica com esse ato, que ela diz não apenas: sei, mas também: sei que sei; ou seja, assume o conhecimento duplamente. Não estamos aí apenas vivenciando o ato, mas, por assim dizer, estamos assinando embaixo dele, passando recibo dele, reconhecendo-o. Ora, o estranhamento cartesiano não é isso, é exatamente o contrário. Ele também se coloca “fora” do ato de conhecimento; só que esse fora não é um acima, é um “fora” em sentido estrito. Ele não assume o ato de conhecimento, ele o desassume, ele o rejeita. Como é possível isso? Por enquanto não temos nenhuma solução. Até o momento só temos problemas. Conseguimos converter um problema noutro problema, noutro e noutro e estamos no meio da elaboração da equação. [ 21 ] Não apelemos preguiçosamente, neste ponto, ao “eu transcendental” de que falariam Kant e Husserl. Primeiro, porque ele é apenas o ponto de observação mais privilegiado e mais poderosamente iluminante para o qual me retirei, sem sabê-lo, no instante em que imaginava recuar para as trevas. Segundo, porque a mesma operação que se fez com o eu cognoscente natural se pode repetir com o eu transcendental – e depois com quantos eus transcendentais se suponha existirem por cima dele –, sempre com o mesmo resultado. deixava entrever essa possibilidade que depois constatamos ser mesmo inexistente? Por que quisemos tentar isso? A dúvida metódica suprime-se a si mesma porque se transforma espontaneamente em reflexão completa. Mas se é assim, por que é que quisemos a dúvida integral? Não poderíamos simplesmente ter feito a reflexão completa? Existe aí a interferência de um outro elemento, totalmente estranho, parece, ao impulso natural de conhecer. É claro que às vezes a natureza se contraria a si mesma, porque ela abrange impulsos contraditórios, mas ela se contraria a si mesma dentro da naturalidade dos dois impulsos: temos o impulso da ira, mas temos o da piedade também; queremos fugir, mas queremos atacar ao mesmo tempo; porém, no caso presente estamos falando de um impulso que não apenas não é natural, mas que não pode ser atendido por vias naturais. O desejo de conhecer, já vimos, não explica isso, porque o natural não explica o antinatural. Temos de buscar a explicação, parece, nesse “anti”. Que é que, no homem, se opõe à natureza, ao desejo de conhecer? Aqui está o ponto crucial de toda esta trajetória: o estranhamento total não pode acontecer só por desejo de conhecer, porque o desejo de conhecer impele à reflexão natural e não à negação total. No entanto, a negação total existe como possibilidade imaginativa, e precisa apoiar-se numa força capaz de deter o curso natural do pensamento ao menos temporariamente. Ora, se se trata de uma detenção ou de uma desidentificação do ato de conhecer, e se isso não pode ser explicado pela própria dinâmica do ato de conhecer, então, é porque é um impulso oposto ao ato de conhecer. Assim como na vida pode haver um desejo de viver e um desejo de morrer, também existe um desejo de conhecer e – digamos assim – um desejo de não conhecer. Esta é a primeira conclusão positiva a que chegamos. Deve haver um outro impulso, que não tem nada a ver com o desejo de conhecer e no qual se apóia a possibilidade da dúvida integral. [ 22 ] V. Robert E. Wood, “Plato’s Line revisited: the pedagogy of complete reflection”, Review of Metaphysics 44 (March 1991): 525-547. XI V NO FUNDO DO POÇO AMOS PARTIR DE UM exemplo mais simples. Um leão alimenta-se de carne. É natural, então, que procure um bicho para comer – uma zebra, um veado, uma ovelha, pelo menos um coelho. Alimentar-se desses bichos, compor com as proteínas deles seu sangue e seus músculos, crescer e mover-se às custas deles está na natureza do leão. Não é, portanto, natural que ele deixe de comer esses bichos. Mas, se for privado desse tipo de alimentos, ele perde energia, passa a economizar movimentos e por fim definha e morre. Imaginem que pegamos um leão, o prendemos numa jaula e só lhe damos bananas para comer. Mesmo que aceite esse humilhação de viver de bananas, ele vai definhar. Por sua natureza, por si mesmo, ele jamais deixará de comer outros bichos para preferir bananas. Leão vegetariano não existe, mas se por algum fator alheio à sua natureza ele ficar privado dos alimentos adequados à sua natureza, de onde virá o decreto de que em tais circunstâncias ele deve definhar e morrer? Virá da sua natureza mesma, que não suporta a vida senão em condições que sejam propícias ao exercício dos dons naturais do leão. Então, a natureza do leão contém não apenas o mandamento referente às coisas que ele vai fazer, mas já contém esse programa alternativo que decretará o seu definhamento e a sua morte no caso de essa mesma natureza ser contrariada além de um certo ponto. Isso faz parte da própria natureza, quer dizer, a natureza tem não só o decreto positivo, mas o negativo também. Nesse sentido, a patologia está prevista na fisiologia: o órgão funciona de tal ou qual maneira, mas, se for agredido, ele funcionará de outra maneira. A natureza prescreve não apenas o que um animal vai fazer em vida, mas em quais condições ele estará condenado a morrer. Não digo que em tais condições o leão “quererá” morrer, a não ser que o verbo querer, aqui, tenha um sentido diverso daquele que tinha quando o leão “queria” comer uma ovelha ou, cheio de carne de ovelha na barriga, “queria” brincar com os outros membros do bando para expelir a energia sobrante. Privamos o leão da sua comida específica, ele começa a definhar e então dizemos que ele “quer morrer”. Porém, o verbo “querer” tem aqui um sentido diferente. Não é que ele “queira” morrer no XII N MAIS PROBLEMAS O CASO DO MÉTODO de Descartes, estamos falando de um experimento de privação realizado imaginariamente. Privação de quê? Não podemos dizer que, materialmente, é privação de conhecimento, porque o ato de conhecimento está lá. É privação, em primeiro lugar, do reconhecimento desse conhecimento, privação da identidade entre o eu pensante e o eu cognoscente. É como se eu estivesse me olhando conhecer, mas este que olha não reconhece aquilo que esse mesmo eu conhece naquele mesmo instante. Ora, não existe situação de sofrimento intelectual mais intensa do que essa. Porque aí eu me olho a mim mesmo, mas não sinto que esse que me olha sou eu mesmo. Podemos chamar isso de esquizofrenia? Até certo ponto, sim, mas é uma esquizofrenia limitada, controlada, porque não compromete a conduta de Descartes fora do estrito domínio das suas investigações epistemológicas. É uma espécie de esquizofrenia intelectual. Ora, e se eu estivesse olhando a minha própria consciência e, ao mesmo tempo, não pudesse ter consciência dos conteúdos que essa mesma consciência está conscientizando naquele mesmo momento? Essa situação não é humanamente vivenciável. Ela é apenas imaginável como hipótese, e é temível, mesmo sendo apenas imaginária. Em segundo lugar, é um experimento imaginário de privação da certeza. Desprovido de qualquer elemento de certeza, nenhum conhecimento é possível: todas as hipóteses se anulam umas às outras, todos os pensamentos se mesclam numa massa escura de possibilidades incertas e mesmo as dúvidas passam a ter significados vacilantes e escorregadios. Conhecer um objeto qualquer é saber o grau de certeza do que se pensa dele. Se você não consegue discernir se o conhecimento de que dispõe sobre isto ou aquilo é absolutamente verdadeiro, provável, verossímil ou meramente possível, isto significa que você não sabe rigorosamente nada a respeito. A certeza é a medida da incerteza e de si própria.[ 24 ] Assim descrita, a experiência coloca diante de nós dois problemas inquietantes: a) A ruptura entre o eu pensante e o eu cognoscente Como é que, privado da sua própria identidade, do reconhecimento da unidade entre o eu pensante e o eu cognoscente, pode o primeiro deles, em seguida, acreditar que o simples fato de admitir que está pensando tem algum valor cognoscitivo a ponto de constituir uma certeza e até mesmo a mais inegável das certezas? Se o mero pensar não tem por si nenhum conteúdo cognoscitivo válido ou confiável, das duas uma: ou a constatação de que “estou pensando” é uma intuição imediata cuja certeza transcende o mero pensamento e o determina, ou é apenas mais um pensamento e não fornece, portanto, nenhuma certeza. Nesta hipótese, o cogito é cem por cento inválido. Naquela, a unidade do eu pensante e do eu cognoscente é instantaneamente restaurada e é preciso confessar que a dúvida integral jamais existiu ou pode existir, sendo portanto nada mais que uma fantasia temporariamente atemorizante e não um método sensato para alcançar a verdade. b) O ego e Deus Descartes acredita que a certeza do cogito é válida e inabalável, mas admite que daí nada se pode concluir quanto à existência do mundo exterior e de tudo o mais; que, portanto, essa certeza, por si, não pode ser o fundamento único do sistema das ciências. O eu seguro de si mesmo está encerrado numa prisão solipsista, incapaz de conhecer qualquer coisa além dele próprio. Para sair dessa enrascada, Descartes apela à noção de “Deus”. Deus fará a ponte entre o eu e o mundo. Daí as três famosas “provas” cartesianas da existência de Deus. As três, como demonstrou A. D. Sertillanges,[ 25 ] reduzem- se no fim das contas a uma só: o sujeito cartesiano tem dentro de si idéias como as de infinitude, eternidade etc., as quais, transcendendo-o ilimitadamente, não poderiam ter sido criadas por ele mesmo e só podem ter entrado nele desde fora, vindas portanto do próprio Deus. Como Deus é infinitamente bom e não poderia ter intoxicado o eu com mentiras e ilusões para induzi-lo propositadamente ao erro, segue-se que essas idéias são verdadeiras e garantem o contato do eu com o restante do mundo real. Esse raciocínio aparentemente simples e persuasivo é, no entanto, um dos enigmas mais cabeludos do sistema cartesiano.[ 26 ] Em primeiro lugar, a certeza fundamental, a certeza do cogito, fora alcançada XIII S A SEGUNDA MORTE E A DÚVIDA UNIVERSAL é autocontraditória e logicamente impossível, se ela não corresponde a nenhum conteúdo de consciência racionalmente expressável, se ela só pode ser aludida indiretamente através desta ou daquela dúvida em particular sem jamais conseguir unificá-las todas, e se, ademais, ela abre uma pista falsa que desemboca no império ilusório do eu pensante, logo destronado em favor da boa e velha fonte divina das certezas, nada disso impede, como já vimos, que ela seja, enquanto experiência emocional e imaginativa, perfeitamente real. A presença e a força de um estado imaginativo ou emotivo não dependem, de maneira alguma, da realidade do objeto que o desperta. O temor insensato de um perigo imaginário é tão real, na mente que o experimenta, quanto o temor razoável ante uma ameaça efetiva e iminente. Que Descartes experimentou e sentiu a dúvida universal, ele próprio o declara e não temos razão para questioná-lo. Já não é tão segura a fonte, a origem de onde tirou a idéia. Ele diz que ela brotou espontaneamente da experiência vivida, do estado de incerteza em que o deixaram os ensinamentos recebidos desde a infância. Mas isso simplesmente não é verdade. Ele encontrou o argumento da dúvida universal pronto, com Gênio Mau, cogito e tudo o mais, numa comédia de Plauto escrita dezessete séculos antes, que estava entre os seus livros de cabeceira e que ele não cita jamais. Esta revelação pode parecer chocante o quanto se queira, mas não creio que as provas coligidas por Benjamín García-Hernandez em favor dela possam um dia ser impugnadas, nem restaurada jamais a crença na originalidade absoluta da hipótese cartesiana.[ 30 ] O argumento da dúvida universal é um plágio em toda a linha, mas isto não resolve, é claro, o problema de saber por que Descartes decidiu cometê-lo, não sendo estúpido o bastante para imaginar que passaria despercebido para sempre. O gosto do filósofo pela ocultação e pelo fingimento é bem conhecido dos historiadores. A divisa que ele adotou como regra de vida já diz tudo: larvatus prodeo, “eu caminho mascarado”. Ele completava esse lema com uma segunda máxima: “Quem bem se escondeu, bem viveu”. No meio de uma colorida vida social, ele sempre encontrou um jeito de manter-se escondido por longos períodos e de apagar tão habilmente as pistas dos seus passos, que até hoje os estudiosos não conseguiram decifrar alguns enigmas essenciais da sua biografia, como, por exemplo, o de saber se esse católico professo foi um aliado secreto dos protestantes na Holanda ou um espião a serviço dos jesuítas. Também não se tem a menor idéia da origem dos recursos financeiros que lhe permitiram manter um padrão de vida de grand seigneur sem nenhum emprego regular e sem que a venda das suas propriedades de família bastasse nem de longe para isso. É ainda notável, no mesmo sentido, que justamente a obra na qual esse pioneiro da ciência moderna explica a sua concepção científica do universo, o Tratado do mundo, seja construída como uma obra de ficção, uma especulação imaginária, e que versasse, não sobre o cosmos físico acessível à experiência, mas sobre um universo hipotético que Deus teria ou deveria ter construído se Ele fosse René Descartes; de modo que até hoje não sabemos exatamente se Descartes acreditava nas suas concepções cosmológicas ou se apenas se divertia em construí-las. Tudo isso, no entanto, não explica por que Descartes escolheu o artifício da dúvida, que na peça de Plauto aparecia como uma farsa demencial. A dúvida universal nada tem, com efeito, de uma simples hipótese filosófica. Ela é a antecipação atemorizante de um estado que, a rigor, nenhum ser humano pode vivenciar no mundo terrestre, só conceber imaginativamente por meio da ampliação hiperbólica de um temor irracional. Sobretudo se amputada da dimensão cômica que tem em Plauto, ela se torna a imagem temível da condenação eterna, da privação de todo contato com a fonte da certeza. A Bíblia descreve esse estado como “segunda morte”.[ 31 ] É o destino reservado àqueles que, em vida, se fizeram discípulos e seguidores impenitentes do “pai das mentiras”. O Catecismo da Igreja Católica ensina que esse estado se define essencialmente pela separação eterna, pela privação irrevogável de toda visão de Deus,[ 32 ] portanto também pelo esquecimento irremediável das idéias eternas, pelo naufrágio da mente numa agitação frenética, estéril, sem finalidade e sem fim, que a imagem do inferno como fogo sem luz bem apropriadamente resume. A incerteza total a que Descartes alude no começo das Meditações só pode ser compreendida com a atemorizante antecipação imaginária da “segunda morte”. argumentação lógica é um empreendimento tão deslocado, tão utópico quanto tentar desviar um tsunami desenhando-o em outro lugar do mapa. Como o problema de fundo não aparece senão sob a forma idealizada de uma questão epistemológica, o mistério permanece latente por trás do tratamento “claro e distinto” dado a essa questão. Se lemos as Meditações com olhos guéroultianos, atendo-nos exclusivamente à “ordem das razões”, entendemos a figura do Gênio Mau como “um artifício resolutório ou instrumento psicológico (sic)” usado pelo filósofo para expor sua argumentação filosófica.[ 34 ] Se, atendendo ao conselho de Paul Friedländer, buscamos por trás de cada idéia filosófica a experiência real que a origina, então o confronto com o Gênio Mau se torna o centro vivo das Meditações, camuflado em argumento epistemológico mediante um “artifício” encontrado pronto no Anfitrião de Plauto. O problema central das Meditações resume-se, então, nesta pergunta: “Como posso, por meio da pura racionalidade humana, precaver-me contra a morte da alma?”. É este o verdadeiro problema de Descartes. [ 30 ] V. Benjamín García-Hernández, Descartes y Plauto. La Concepción Dramática Del Sistema Cartesiano, Madrid, Tecnos, 1997. [ 31 ] Ap 2:11, 20:6 e 20:14. [ 32 ] §1035 da edição João Paulo II de 1992. [ 33 ] A. C. Grayling, Descartes. The Life and Times of a Genius, New York, Walker & Co., 2005. [ 34 ] Martial Guéroult, Descartes selon l’Ordre des Raisons, Paris, Aubier, 1968, t. I, p. 39. PARTE 3 – CONCLUSÕES E ACRÉSCIMOS XIV uma capela onde ele quer buscar abrigo e rezar para que Deus o proteja do perigo circundante. Mas, quando está caminhando para a igreja, ele vê que passou por alguém, talvez um conhecido, e que se esqueceu de cumprimentá-lo. Ele então volta para pedir desculpas ao cidadão. Na hora em que ele está voltando, o vento fica mais forte ainda, empurrando-o na direção da igreja, e, nesse instante, ele passa por outro transeunte, que o chama pelo nome e lhe informa ter-lhe trazido um melão enviado por alguém de outra cidade. E aí termina o sonho. Descartes acorda, assustado. Sente que o sonho tem alguma referência aos pecados que ele havia cometido durante a vida e começa a rezar para que Deus o perdoe. Ele não diz que pecados são esses, e Baillet comenta que, aparentemente, Descartes não tinha tantos pecados assim, tinha levado uma vida bastante devota. Nessa época, de fato, Descartes não tivera ainda seu caso amoroso com a criada, e, excetuando um breve período de vida mundana do qual não se sabe quase nada, não consta da sua biografia nenhum grande pecado exterior capaz de lhe infundir um sentimento permanente de culpa, sem o qual seria inexplicável que ele atribuísse ao sonho, imediatamente e quase que por reflexo, o sentido do anúncio iminente de um castigo divino. Quando ele fala, portanto, dos seus pecados, é mais plausível que se tratasse de culpas interiores, de um estado de confusão espiritual que ponha a sua fé religiosa em risco. Então, Descartes adormece de novo e tem um segundo sonho. Ele ouve uma explosão e vê que ela vem da mesma ventania, da mesma tempestade do sonho anterior. Só que, agora, ele está dentro do quarto e sente que a tempestade não pode atingi-lo, não pode fazer-lhe mal algum. E, no instante em que ele percebe isso, aparecem várias luzes que iluminam o cômodo inteiro. Esse foi o segundo sonho. No terceiro sonho, Descartes está no mesmo quarto e vê, em cima da mesa, uma enciclopédia. No momento em que ele está prestes a tocá-la, a enciclopédia já não é mais uma enciclopédia, mas uma antologia de poesias latinas, o Corpus poetarum, no qual descobre um verso do poeta romano Ausonius, que diz “quod vitae sectabor iter” (“que caminho de vida devo seguir?”). Mais adiante, vê o título de outra poesia, Sic et non (“Sim e não”), do mesmo autor, que ele entende imediatamente como referência às oposições pitagóricas entre a verdade e o erro. Em seguida, volta a olhar a enciclopédia – o Corpus poetarum transformara-se novamente em enciclopédia –, mas esta já não estava tão completa quanto antes. Aí, ele acorda. Meditando o significado desses sonhos, Descartes entende o vento como um espírito maligno que o estava perseguindo. Quanto à oferta do melão, achou que representava a solidão meditativa na qual ele gostaria de viver. Descartes, embora tivesse também um lado sociável, chegando a ser um homem do mundo (conhecia muita gente, recebia amigos etc.), gostava muito da solidão e de que ninguém soubesse o que ele estava fazendo. Daí os dois lemas: “Eu caminho mascarado” e “quem bem se escondeu, bem viveu”. Existem muitos estudos sobre esses sonhos hoje em dia. Os primeiros intérpretes de Descartes, que eram apologistas do cartesianismo, não sabiam exatamente o que fazer com aquelas imagens porque, principalmente, Descartes as interpretava como mensagens divinas, e isso parecia um pouco estranho, já que, em outras épocas, ele havia manifestado extrema hostilidade para com toda atividade mística, esotérica etc. Não sabendo o que fazer com aquele material, esses intérpretes passavam rapidamente por cima do assunto e seguiam em frente. Foi Maxime Leroy que, em 1929, mudou todo esse panorama. A biografia de Descartes, tal como reconstituída por Leroy, é cheia de mistérios e ambigüidades, a ponto de que a fé católica do filósofo, que era afirmada resolutamente por todos os seus biógrafos e admiradores, se tornou, depois de Leroy, um tanto duvidosa. Há muitos elementos heterodoxos na sua atitude, em que, sobretudo, aparecem as marcas de um indiferentismo religioso surpreendente. Uma delas – é incrível que ninguém antes de Leroy tenha percebido isso – é a famosa “moral provisória”, segundo a qual Descartes diz que, enquanto está colocando tudo em dúvida e procedendo à busca da verdade, agirá como se tais ou quais regras vigentes na sua sociedade fossem certas, ainda quando não o sejam. Isso quer dizer – observa Leroy – que, segundo Descartes, para uma boa conduta na vida não é preciso a verdade; a boa conduta pode ser inteiramente baseada num fingimento ou numa crença hipotética. Esse método já fere de tal modo a moral religiosa, seja católica ou protestante, que Leroy fala em favor da ambigüidade da propalada fé católica de Descartes. Voltando aos sonhos, Descartes interpreta-os como mensagens divinas que lhe estavam mostrando o caminho a seguir, o que ele deveria fazer da sua vida. Baseado em teorias psicanalíticas, John Cole diz que o sonho revela a ruptura de Descartes com seu pai, porque o pai era um juiz de direito e queria muito que o filho seguisse a mesma carreira: o sonho marcaria a declaração de independência de Descartes em relação ao pai e, ao mesmo tempo, em relação a toda autoridade existente. Para essa interpretação, Cole se baseia, entre outros indícios, no fato de que, no sonho, Descartes sente a fragilidade do seu lado direito (le côté droit). Acontece que droit é o lado direito mas, ao mesmo tempo, é o direito, a lei. Do mesmo modo, o próprio Freud, na resposta que deu a Leroy, diz que, universalmente, o lado esquerdo representa aquilo que é proibido, pecaminoso, errado etc. Então, Descartes, quando anda apoiando-se no pé esquerdo, teria rompido não só com a profissão jurídica, mas com a norma do direito de modo geral, e teria, portanto, o sentimento de estar fazendo algo que, segundo essa norma, seria errado. Da minha parte, levei muito a sério aquela sugestão de Freud de que os sonhos de Descartes eram “sonhos vindos do alto”. Tenho de afastar a hipótese de revelação divina, mas é muito plausível a hipótese de que fossem “sonhos do alto” – sonhos que trazem em si o seu próprio significado evidente, não necessitando de interpretação, mas apenas de uma descrição fenomenológica para que o seu sentido se torne claro. Quando examinei os sonhos por esse prisma, vi que, de fato, o sentido deles é auto-evidente, tão logo os tratamos como totalidades estéticas, conectando os elementos dos sonhos uns com os outros. John Cole é um autor materialista, moderno, cientificista, e para ele só existem duas hipóteses a respeito do sonho em geral: ou é uma revelação divina (no que ele não acredita), ou é uma espécie de pensamento inconsciente, um pensamento que vem em forma mais ou menos cifrada, de acordo com todos aqueles processos de ocultação e de racionalização que Freud foi o primeiro a estudar com algum sucesso. Mas, para aqueles que conhecem a doutrina cristã, o Espírito Santo é uma função permanente de Deus, que nem sempre nos traz revelações, mas também sustenta a nossa inteligência nas suas operações usuais. A inteligência humana tem assim uma base divina permanente, e o seu mero funcionamento já pressupõe isso: a inteligência humana não pode ser totalmente explicada apenas por fatores naturais.[ 40 ] Então, é normal que a percepção de certas realidades, de certas verdades fundamentais, nos seja inspirada pelo Espírito Santo, sem a necessidade de uma revelação especial. Quer dizer: não é vezes ele se desvia do caminho da igreja para atender a interesses mundanos; quarta, depois de desperto, ao interpretar o vento com sentido invertido. Para nós, hoje em dia, é muito difícil entender o que um melão podia representar àquela altura, mas, não por coincidência, Descartes havia nascido em uma região que produzia os melhores melões da França, e em inúmeros exemplos da época aparece o melão como um símbolo de tudo quanto é mais delicioso na vida. Freud tem razão ao assinalar que o melão tem de representar um objeto de prazer, mas isso não impede que Descartes encontrasse prazer genuíno na solidão, de vez que ela não significava para ele o simples sossego necessário para ler e meditar, mas o símbolo condensado de uma ambição intelectual avassaladora, como veremos logo adiante. Se Descartes achou que a coisa mais deliciosa na vida era ficar fechado num quarto, sem que ninguém o incomodasse, e onde ele tivesse liberdade para dar curso a seus próprios pensamentos, foi exatamente isso o que aconteceu no segundo sonho, quando ele está fechado num quarto e o vento já não pode atingi-lo. Ele tem consciência de que esse vento é o mesmo do primeiro sonho. Dentro do quarto aparecem luzes e o quarto todo se ilumina, ou seja, Descartes rompe com o chamamento do Espírito e se fecha na sua própria mente, onde encontra satisfação e segurança. Para fazer isso, ele corta o canal com o “coração”, entendido como símbolo tradicional da sede da percepção intuitiva e imediata da verdade. Quando queremos que uma pessoa tome consciência da realidade da sua vida, da qual ela se defende por meio de racionalizações, não dizemos a ela que “ouça o seu próprio coração”? Qual é a diferença entre a intelecção “cardíaca” e a intelecção cerebral? A intelecção cerebral é pensada, é criada, é montada pela própria mente; ao passo que a percepção cardíaca é uma coisa inteiramente passiva e espontânea. A percepção do coração é simplesmente o reconhecimento de coisas que você sempre soube, que sempre estiveram aí. Não deixa de ser interessante que, na mesma semana em que eu estava estudando isso, chegasse às minhas mãos um DVD de Roy Masters, famoso hipnólogo alemão que viveu nos Estados Unidos. Ele se chamava inicialmente Reuben Obermeister, mas, como era um nome muito difícil, simplificou para Roy Masters. Nesse DVD, ele ensina uma técnica de meditação que consiste em você concentrar sua atenção na circulação do sangue na sua mão direita. Seus pensamentos desaparecem, e você entra num estado de tranqüilidade no qual simplesmente toma consciência daquilo que sabe. Ele diz: “Faça isso um certo número de vezes e você vai ver que a solução de muitos problemas aparece sozinha, sem você pensar”. Aí não existe aquele elemento de construção deliberada, que é típico do eu pensante. Ao contrário, para entrar nesse estado de calma e de evidência, você precisa deter o impulso conseqüencialista do pensamento, que vai construindo silogismos, formas, figuras etc. Observem que a interpretação que Descartes dá ao vento é realmente invertida, forçada; ela denota o desejo de romper com esse conhecimento intuitivo e de se fechar dentro da mente construtiva, da mente pensante, do ego. No meu curso A consciência de imortalidade, dividi o eu humano em várias camadas: temos um eu corporal, um eu social, um eu biográfico (sua história, tal como você a conhece), o eu reflexivo, que opera sobre o material do eu biográfico, e o eu substancial, aquele que você verdadeiramente é por baixo e para além de tudo quanto você sabe ou pensa a seu respeito. Esse que você verdadeiramente é não é acessível ao seu pensamento, pelo simples fato de que o pensamento é momentâneo, transcorre no tempo, enquanto o eu substancial é permanente. Sendo assim, é claro que a mente humana – o eu biográfico e reflexivo – não pode apreender o eu substancial; ela só pode calar-se e deixar que o eu substancial fale; que é exatamente o que ocorre no exercício de Roy Masters e em tantas outras práticas do mesmo tipo. Se, ao despertar do primeiro sonho, Descartes ficasse calmo e deixasse o sonho falar por si, o significado dele se evidenciaria: você está se desviando do chamamento do Espírito em função de meros mundanismos, e este é o seu pecado. Ora, Descartes começa a raciocinar sobre todos os pecados que cometeu ao longo da vida, mas não se lembra de ver o pecado que ele acaba de cometer naquele momento mesmo, do qual fora alertado no sonho, e que está cometendo de novo na própria interpretação que dá ao sonho. Ninguém ali o estava acusando de outra coisa, senão daquilo que ele acabava de fazer. Sondar outros pecados, naquele momento, era completamente despropositado: o sonho não falava deles, mas de um pecado único e presente, a fuga ao apelo do Espírito. Descartes volta as costas ao Espírito e opta pela mente, pelo eu pensante. Ele se fecha dentro do eu pensante, onde o vento – o Espírito – já não pode mais alcançá-lo. Defendido da inspiração do Espírito, agora está livre, fechado e protegido dentro da sua própria mente. Descartes sempre gostou de trabalhar num ambiente fechado e muito aquecido, que ele via como um símbolo da sua própria mente pensante, e é dentro dessa mente pensante que aparecem então as luzes. Se a “solidão” aparece como um objeto de prazer, é porque, para Descartes, ela representava algo mais do que o mero isolamento social. O que fosse esse algo mais é revelado pelo sonho seguinte. No terceiro sonho, ele entende a enciclopédia como o conjunto, o sistema dos conhecimentos humanos – um sinal da ciência universal pela qual ele poderia alcançar, mediante o simples exercício da faculdade pensante, os princípios supremos, as causas fundamentais de todas as coisas e, portanto, a chave de todas as ciências existentes e por existir. Então ele vê o Corpus poetarum e lê aquele verso de Ausonius. É muito estranho que ele visse nisso uma insinuação do conhecimento universal, uma mensagem divina, porque Ausonius é o poeta mais prosaico que existiu na Antigüidade; só falava da vida cotidiana, da agricultura, das flores etc. Não há nenhuma profundidade em Ausonius e, sobretudo, não há nada de pitagórico nele. Portanto, o que interessa não é o significado objetivo das poesias de Ausonius, mas aquilo que Descartes desejava enxergar nelas. Descartes, quando vê o título da poesia de Ausonius – Sic et non (“Sim e não”) –, entende isso como a oposição pitagórica da verdade e do erro. Essa interpretação me parece bastante forçada, e forçada precisamente pelo desejo do próprio Descartes de se fechar ao conhecimento intuitivo e construir tudo dentro de sua própria mente. É neste instante que ele reconhece claramente sua ambição – o verdadeiro objeto de prazer – de negar todo o conhecimento recebido e reconstruir tudo desde si mesmo, desde a sua própria mente. Por um lado, ele acreditava numa inspiração divina; por outro lado, quando a inspiração divina aparece, ele a rejeita e escolhe outra coisa, acreditando, ou dizendo acreditar, que esta sim é inspiração divina. Aparece, já aí, uma certa confusão demoníaca – não aquela confusão geral espetacular que aparece em Maquiavel, mas algo que, por assim dizer, é a confusão essencial, a raiz de todas as confusões. No último sonho podem-se distinguir pelo menos dois níveis de sentido: o sentido com que o verso de Ausonius aparece como veículo da mensagem espiritual vinda do eu profundo do sonhador; o sentido que Descartes lhe atribui ex post facto ao interpretar o sonho. No primeiro nível, tanto a pergunta “que caminho de vida seguirei?” quanto a oposição do sim e do não denotam, com toda a evidência, baseada na hipótese do gênio maligno. Que é o gênio maligno? Gênio maligno é uma força oculta que semeou na mente humana um conjunto de impressões falsas – a imagem deste mundo –, de modo a induzir a mente em erro. O personagem de O anfitrião escapa dessa hipótese aterradora justamente pela descoberta da certeza do cogito ergo sum. Benjamín García-Hernández[ 46 ] mostra que o argumento é exatamente o mesmo e que essa comédia de Plauto estava entre os livros de cabeceira de Descartes, que, portanto, não poderia alegar legitimamente ignorância da dívida para com o antecessor ilustre que ele não cita. O fato de que ele tenha manifestamente ocultado a fonte do seu argumento principal mostra que o desejo de se impor como um inovador revolucionário predominava, na sua alma, sobre o intuito sincero da busca da verdade. Se um pensador pode ocultar sob uma construção raciocinante até um fato material bruto como a existência de uma fonte histórica, com quanto mais facilidade ele não encobrirá, sob essa construção, a voz da consciência interior que lhe mostra em símbolos a verdade da sua vida? A paralaxe cognitiva, que em casos posteriores se mostrará de maneira muito mais vistosa, já aparece aí sob camuflagem sutil, mas com toda a força do seu potencial deformante. Essa deformação, com toda a evidência, não afeta somente a obra de Descartes, mas toda a visão que, com base nela, a Modernidade construiu a respeito das suas próprias origens. Descartes chegou a ser celebrado como o “descobridor da subjetividade”, quando, de fato, o que ele fez foi substituir à subjetividade profunda e genuína do eu confessante a pseudo-subjetividade, periférica e artificial, da mente construtiva. Pensadores subseqüentes, como David Hume, Kant e Karl Marx, mostrarão um estado de alienação ainda mais avançado, mas a rachadura entre a verdade da alma e a construção mental já se evidencia plenamente em René Descartes. É também característico o fato de que, no Tratado do mundo, em que Descartes expõe pela primeira vez suas concepções científicas sobre a constituição do universo, ele não tente explicar como o mundo foi criado e construído por Deus, mas como Deus construiria, no próprio momento em que Descartes escreve, um outro mundo, se simplesmente encontrasse os materiais para fazer isso. O mundo inteiro descrito no Tratado é um mundo artificial e hipotético, construído inteiramente na mente de Descartes – e é construído exatamente como uma máquina, onde tudo funciona movido por impulsos mecânicos.[ 47 ] Há uma passagem de Alain, não lembro em qual livro, em que ele diz que Descartes olhava pela janela, via as pessoas andando na rua e tinha a impressão de que eram bonecos mecânicos, não seres humanos dotados de alma. Isso quer dizer que a concepção mecânica que ele cria do mundo é toda inventada na sua mente, e ele não afirma que esse é o mundo real – nem afirma, nem nega. Ele diz apenas que, se Deus fosse criar o mundo agora, Ele o faria assim e assado. Quer dizer, ele está oferecendo a Deus um projeto de universo. Está não apenas refazendo a filosofia, refazendo a teologia, refazendo todo o conhecimento, mas está refazendo o próprio mundo a partir da sua mente. Não é preciso dizer que toda essa concepção foi desmoralizada com o tempo – acho que já não existe nenhum mecanicista puro no mundo, sobretudo depois da física quântica. Mas, na época, aquilo impressionou muito, fez um grande sucesso, e, durante mais ou menos dois séculos, pode-se dizer que o mecanicismo, reforçado pelas contribuições de Newton e Galileu, se tornou a filosofia dominante no mundo Ocidental.[ 48 ] Mesmo desmoralizado enquanto doutrina explícita, o mecanicismo sobreviveu, sem nome, através das marcas profundas que deixou na cultura européia. A mais característica foi, sem dúvida, a crença de que a conduta humana pode – e deve – ser controlada de maneira puramente maquinal por meio do jogo de impressões e estímulos. Essa idéia foi posta em circulação pelo abade Dubos em 1740, nas suas Réfléxions Critiques.[ 49 ] Ninguém mais se lembra do livro nem do autor, mas quem pode negar que a mesma idéia inspira a engenharia comportamental que hoje se substituiu à pedagogia como matriz de praticamente todos os programas de educação infantil no mundo Ocidental?[ 50 ] Existem aí vários elementos perturbadores. Desde logo, o passo inicial da Modernidade foi copiado de um autor do século II a.C., havendo então um salto cronológico enorme. Restaria explicar o que essa descoberta do eu pode ter de propriamente moderno, se ela já estava dada com tanta antecedência. A explicação é que, no tempo de Plauto, ela estava dada num contexto em que esse eu não tinha a imensa capacidade construtiva que Descartes lhe atribui, capacidade que só surgiu com o enorme desenvolvimento das matemáticas no começo da Modernidade, desenvolvimento ao qual o próprio Descartes fez contribuições tão importantes. Fortalecido pela confiança recém-adquirida no poder das matemáticas, o eu pensante proclama-se a única fonte do conhecimento. Se o preço disso é a falsificação histórica e a queda do eu num estado de alienação existencial, pouco importa: o entusiasmo que a descoberta da capacidade construtiva da mente despertou na época foi ilimitado. Spinoza – um dos discípulos e, ao mesmo tempo, antagonista de Descartes – chegará a negar totalmente a validade do conhecimento por experiência: só lhe interessa o conhecimento que é construído mentalmente. Ele dá o exemplo da geometria, na qual o conhecimento das figuras consiste em saber construí-las. Por exemplo, você toma um segmento de reta, marca um ponto qualquer, usa este ponto como centro, traça um semicírculo, imagina o semicírculo girando, e com isso constrói uma esfera. Você entende uma esfera porque é capaz de construí-la mentalmente. Para Spinoza, somente esse tipo de conhecimento, que é a pura construção mental, tem validade. Descartes não chega ao extremo de negar o conhecimento por experiência – ao contrário, ele se dedica a muitas observações diretas da natureza –, mas, no fim das contas, o fator decisivo para ele é sempre a construção mental. Essas duas obras fundamentais, que são as Meditações de filosofia primeira e o Tratado do mundo, aparecem-nos sob um aspecto extremamente inquietante. A primeira, como um plágio, e um plágio extemporâneo, anacrônico, no qual a descoberta da certeza do eu por si mesmo é deslocada do ano 200 a.C. para o século XVII, tornando-se então a grande novidade histórica que inaugura a Modernidade. No outro livro, em que aparece a expressão da ciência cartesiana do mundo físico, ela nos é apresentada inteiramente como uma construção hipotética que não tem satisfações a prestar à realidade, mas que se fundamenta apenas na sua própria coerência interna de tipo mais ou menos maquinal. Assim descrito, o mundo cartesiano assume para nós a figura de um delírio que se mantém em pé tão-somente pela força da coesão lógica, que se assemelha muito com aquele mundo louco de Nicolau Maquiavel. Maquiavel também era um construtor de mundos – ele constrói a Terceira Roma, que é um projeto explícito de Estado mundial, onde o Estado tem o controle de tudo na sociedade e nem mesmo os funcionários do próprio Estado têm alguma autonomia, porque há um sistema de fiscalização interna no qual eles estão sempre apavorados uns com os outros, com medo de perder o emprego ou a cabeça. A máquina do Estado aí predomina sobre qualquer poder pessoal, sobre qualquer iniciativa humana. Há uma certa semelhança entre a Terceira Roma e o mundo de