Baixe Zetologia - Olavo de Carvalho e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Filosofia, somente na Docsity! Seminário de Filosofia Como tornarse um buscador da verdade (Introdução à Zetologia) Olavo de Carvalho I. A zetologia Mesmo as pessoas que negam a existência da verdade ou a possibilidade de conhecêla acreditam que aquilo que dizem é verdade. Isso basta para mostrar, ou ao menos para sugerir, que o ceticismo integral é apenas um jogo mental, não uma atitude séria. Todo mundo se acredita detentor de alguma verdade, e o autoproclamado cético não é uma exceção. Até mesmo aqueles que enaltecem o poder universal da mentira sabem que ela só serve para alguma coisa se tiver uma força persuasiva de verdade, não só de mentirinha. Também é certo que ninguém pode mentir sem conhecer a verdade que sua mentira deforma ou encobre. Todos, portanto, de maneira mais consciente ou menos consciente, admitem que a verdade é um bem, e um bem altamente desejável. Muitas pessoas até criam ou cultivam certas práticas que, segundo elas, são meios de alcançar verdades: a lógica, o método experimental, a crítica histórica de documentos, a arte da investigação policial etc. Todos esses métodos pressupõem no seu estudante ou praticante a habilidade natural de conhecer a verdade. Os métodos só adaptam essa habilidade aos requisitos especiais de determinados campos do conhecimento, de acordo com regras e normas geralmente admitidos pelos profissionais da área respectiva. Eles são ensinados nas universidades, e quem os aprendeu se considera, com certa dose de razão, mais habilitado que o leigo para descobrir verdades no seu campo de interesse profissional, se não em todos os demais também. Mas, quando se fala de “habilidade natural”, o que se concebe como seu detentor é o homem em geral, o homem como membro de uma espécie animal, o homem como representante da humanidade. Uma habilidade natural, afinal de contas, pressupõe uma natureza, e dizemos que todos os homens possuem essa habilidade porque têm a mesma natureza humana. O problema é que, quando não estamos falando desse homem genérico, mas de indivíduos reais e concretos, a experiência nos mostra que não possuem essa habilidade em doses iguais, mas que a capacidade de descobrir ou admitir a verdade difere enormemente de indivíduo para indivíduo. Desde logo, há diferenças de nível de inteligência, que tornam uns indivíduos mais aptos ou menos aptos que outros a aprender a lógica, o método científico ou qualquer outra técnica ensinada nas universidades para a busca da verdade. Mas há diferenças maiores ainda. Algumas pessoas podem ser cegas para determinadas verdades. Outras podem deformálas segundo seus interesses ou paixões. E alguns indivíduos podem negar obstinadamente as verdades mais óbvias e patentes, quando sentem que elas põem em risco a sua segurança psicológica ou a sua autoimagem. Outros simplesmente deixam de buscar certas verdades porque acreditam que já as conhecem. E alguns nem imaginam que elas poderiam ou deveriam ser conhecidas. Ora, se a habilidade natural de conhecer a verdade está presente em todos os seres humanos, também o está, necessariamente, alguma dificuldade individual de conhecêla, algum Em suma, a sanidade da consciência cognitiva, condição primeira e mais básica para a busca da verdade em todas as disciplinas intelectuais – ou mesmo nas situações da vida pessoal – é totalmente negligenciada no ensino, nas psicoterapias e nas práticas religiosas. Todo mundo aí dá por pressuposto que essa condição se cumprirá de maneira natural e espontânea, sem necessidade de nenhuma ajuda especial, o que só acontece por pura sorte e num número ínfimo de casos. Em princípio, a tarefa de preservar a sanidade da consciência cognitiva (ou, para abreviar, da inteligência) caberia à filosofia, tal como compreendida na tradição socráticoplatônica, mas no século XX a filosofia se reduziu cada vez mais a uma profissão especializada, desinteressandose da formação pessoal do estudante. Algumas escolas ocupamse de limpar obstáculos isolados, como as falácias lógicas ou as distorções ideológicas, mas apegandose a esses pontos como se fossem as únicas dificuldades existentes e enfocandoas desde interesses que nada têm a ver com o desenvolvimento pessoal do aluno. Em alguns casos tratase de impor uma concepção diminutiva da filosofia como mera análise da linguagem; em outros, de combater ideologias que não sejam a do professor. O aluno é usado como instrumento para a realização desses fins em vez de ser ele próprio o fim a que se dirige o processo educativo. A filosofia, tal como geralmente entendida hoje no meio universitário, também não resolve o nosso problema: como adestrar o estudante para a busca da verdade? Foi em vista desse estado de coisas que criei, desenvolvi e tenho aplicado no Curso Online de Filosofia, com razoável sucesso, um conjunto de práticas autoeducativas para uso dos estudantes com a finalidade de (1) tornálos conscientes dos obstáculos cognitivos, internos e externos, que os incapacitam para a busca da verdade; (2) ir derrubando esses obstáculos ao longo do tempo. Explicarei em seguida alguns desses procedimentos, a cujo conjunto dei o nome de zetologia (do grego ζητεώ, zeteo = “buscar”, “procurar”), mas sem a pretensão de que constituam já uma ciência.[1] [Continua na exposição oral.] [1] Esse nome é aqui usado pela primeira vez para designar uma ciência, técnica ou arte. A única ocorrência de um uso anterior que encontrei na internet foi como autodenominação flagrantemente inapropriada de uma seita que não tem nada a ver com a busca do conhecimento, já que só trata de promover casamentos entre homens e animais – uma prática que, espero, será evitada pelos alunos deste curso e leitores desta apostila.