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Guias e Dicas
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Livros de leitura que estao num pdf, Manuais, Projetos, Pesquisas de Literatura Ensino Médio

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Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2023

Compartilhado em 04/05/2023

beatriz-leal-17
beatriz-leal-17 🇧🇷

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Baixe Livros de leitura que estao num pdf e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Literatura Ensino Médio, somente na Docsity! dh - Ss MA 7 To E RS DADOS DE COPYRIGHT SOBRE A OBRA PRESENTE: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo SOBRE A EQUIPE LE LIVROS: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.love ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste LINK. RAÍSSA SELVATICCI GAROTAS (IM)PERFEITAS Qualis. Para todas as garotas que abraçam diariamente as suas (im)perfeições. E para todas as outras que ainda estão aprendendo a fazer isso. “Mamãe disse ‘você é uma garota linda’ O que você tem na cabeça não faz diferença Penteie o seu cabelo, corrija os seus dentes O que você veste é tudo o que importa” (Pretty Hurts, Beyoncé) Á ustria Fontes foi ameaçada de morte naquela manhã de quarta-feira. Aconteceu nos corredores brilhantes da American Saint de São Paulo, quando um aluno engraçadinho decidiu colocar um bilhete anônimo no seu armário. Odiava bilhetes anônimos. Ao longo dos seus dezessete anos, havia assistido séries de suspense o bastante para saber que nada de bom vinha deles. Por alguns minutos – o tempo de tirar o bilhete do armário, colocar na bolsa, fechar o armário e correr até a sala de aula vazia para ler – ela preferiu pensar que o papel cheio de corações era obra de algum idiota sem autoestima que, em um estado avançado de delírio, pensou que poderia ter alguma chance com ela. Já tinha recebido declarações de amor anônimas antes, mas, dessa vez, não poderia estar mais errada. Eu sei. Essas duas palavras eram as únicas que podiam ser vistas no bilhete, escritas com um canetão de quadro azul que Dentro do bar, fez uma careta para a silhueta feminina de seios enormes que enfeitava o corredor dos banheiros. A decoração do espaço era pavorosa, pensada para agradar homens de meia idade, viciados em cerveja artesanal. Áustria odiava cada centímetro do espaço, desde as mesas feitas com barris reaproveitados até a iluminação meia luz, que deixava sua pele num tom mórbido de cinza e seus cabelos loiros estranhamente opacos. Se não fosse por seu pai, ela nunca colocaria os pés em um lugar como aquele. Quando chegou no corredor principal do estabelecimento, Áustria agradeceu por terem poucos clientes naquele horário. Ela já conseguia imaginar as manchetes nos principais canais de moda: “Modelo prodígio e aposta dos maiores concursos de beleza de São Paulo é vista em boteco copo sujo em plena luz do dia”. Seria suficiente para que os juízes dos concursos lembrassem dela e a desclassificassem, numa próxima oportunidade. Se o ensino médio era um jogo de risco, os concursos eram um jogo cruel. Doloroso, porque a perfeição é cansativa, mas ninguém nunca está disposto a desistir dela. — Tri! — O chamado de Osmar fez com que se aproximasse do bar, onde ele servia uma porção de batatas assadas para Hélia. Ela cerrou os olhos e inspirou profundamente, tentando descobrir, pelo cheiro, se haviam sido afogadas com azeite ou com manteiga. Manteiga era um terror. — Não me disse que foi eleita presidente da turma este ano. Áustria passou os olhos por Hélia, sentado há poucos centímetros de distância de Osmar. Ele abriu um sorriso malicioso, declarando-se culpado antes mesmo que a garota proferisse sua suspeita. Não havia dito nada para o pai, porque suas conversas não costumavam ser muito produtivas. Era um amontoado de “sim”, “pois é”, “tudo bem” e “que ótimo”. Áustria tinha para si a teoria de que, ao longo da vida, não trocaram mais de duzentas palavras. Isso até aquele fatídico ano, quando sua mãe resolvera largar sua carreira brilhante de neurocirurgiã e fazer trabalho voluntário em países subdesenvolvidos. As pessoas elogiavam a mulher, dizendo que fora uma escolha bonita e altruísta. Áustria só conseguia pensar que era maluca e que odiava ter que morar com seu pai até que a médica se recuperasse daquele surto. — Eu devo ter esquecido — ela deu um sorriso amarelo. Gostava de Osmar, mas o homem não fora alguém presente em sua infância e agora toda interação parecia forçada, como se levasse consigo um lembrete de “tarde demais”. Ele não parecia seu pai, mas um estranho simpático. Toda vez que esse tipo de pensamento percorria a cabeça de Áustria, ela se forçava a lembrar que havia pais muito piores, então se sentia grata por ele. — Você sabe. Com toda a correria dos concursos, minha memória não é das melhores. Mas foi divertido. Eu nem tinha me candidatado e me escolheram mesmo assim. — O que um presidente de turma faz — Miguel se intrometeu na conversa, recém-saído da cozinha. Ele limpou os dedos sujos de detergente no avental com a logo do bar e começou a arrumar a bancada. —, além de trabalhar de graça numa escola de gente rica e mimada? Áustria cruzou os braços, frustrada. A pior parte de morar com seu pai não era o apartamento pequeno ou o cachorro soltando pelos em suas roupas. Ela podia lidar com isso, com as visitas frequentes ao bar e a falta de alimentos saudáveis na geladeira, mas Miguel era um caso à parte. Se Osmar era um estranho simpático, seu meio- irmão era um estranho inconveniente. — Somos pessoas de confiança dos professores — Áustria respondeu, empinando o nariz —, mantemos a ordem, ajudamos outros estudantes… Não espero que entenda o que significa, porque sempre foi um péssimo aluno. É por isso que está aqui, limpando mesas, como todos os seus professores do ensino médio previram que faria. — Tri — Osmar repreendeu —, não seja tão dura com o seu irmão. Sabe que ele está estudando pra faculdade. — Não crie falsas esperanças, pai. — Áustria moveu a cabeça em negativa. — Ele não vai passar — resmungou ela, como quem roga uma praga. Miguel não respondeu. Ele se limitou a levantar o dedo médio na direção dela e se afastou, levando consigo o pano que usava para limpar a bancada. Era uma reação típica de quando estavam perto do pai. Se estivessem sozinhos, Miguel não perderia a oportunidade de dizer que Áustria era uma garotinha mimada e que sua mãe preferira cuidar de crianças mortas de fome a lidar com seus chiliques. O celular de Hélia tremeu na bancada. — Nosso motorista chegou. — Ele sorriu abrindo a carteira e tirando uma nota de cinquenta para Osmar. Áustria gostava da forma como ele dizia nosso, mesmo que o motorista fosse privilégio único e exclusivo dele. — Ele acariciou os dedos dela com o polegar à medida que andavam. — Que tipo de mensagem estranha? — Áustria não respondeu. Dizer que havia se preocupado com um mero bilhete escrito “eu sei” era assinar um atestado de culpa, colocar um alvo na própria cabeça. Ela deu de ombros e olhou para o chão, truque que usava, com frequência, para desviar de um assunto. Como esperado, Hélia mordeu a isca: — Tri, nós somos a realeza da escola. É normal que as pessoas nos amem e nos odeiem na mesma proporção. O que foi? Alguma garota te chamou de vadia? — Tipo isso. — Áustria passou a língua pelos lábios antes de encarar seu rosto de novo. Os olhos cor de mel estavam cerrados, mas não havia preocupação neles. Poucas coisas no mundo podiam tirar a paz de um garoto que tinha tudo. — Mas pense em um tom mais… ameaçador. — Quero te matar, sua vadia? Áustria riu. Ele não estava levando o assunto a sério, mas, de certa forma, isso era bom. Se não levava a sério, não fazia perguntas demais. — Não chega a ser tão agressivo assim. — Ótimo — ele sorriu, dentes brancos se destacando na pele escura. — Desde que não te ameacem de morte, estamos bem. Sorte a nossa não morarmos nos Estados Unidos. Áustria arqueou uma sobrancelha. Sebastian buzinou quando se aproximaram do carro, destravando as portas automáticas. — Por quê? Hélia puxou a porta para que Áustria entrasse. — Aqueles casos de atiradores malucos que rolam por lá. — Ele entrou no carro logo depois dela. — Já reparou? Eles sempre matam os bonitos primeiro. Deve ser uma forma de fazer reparação histórica ou sei lá. Não sei como a cabeça de gente pirada funciona. Dentro do carro, Áustria deu um meio sorriso para Sebastian, enquanto Hélia o cumprimentou com um aceno de cabeça. O homem se limitou a sorrir para os dois, sem dizer meia palavra. — Estamos indo pra escola — informou Hélia. — Suba os vidros, por favor. Sebastian assentiu. Não era dos vidros da janela que Hélia falava, mas das divisórias automáticas que separavam o banco do carona do motorista. Todos os veículos da família Golucci tinham separações como aquela. Segundo o rapaz, seu pai era um homem ocupado e costumava fazer reuniões importantes no carro, a caminho do trabalho. Era uma forma de evitar que dados importantes vazassem para os concorrentes, garantindo o máximo da privacidade. Hélia colocou uma das mãos na cintura de Áustria, apoiando a cabeça em seu ombro. — Me acorde quando chegarmos lá. Áustria fez que sim, enrolando uma mecha do cabelo claro nos dedos, empurrando-os de um lado para o outro. Em silêncio, torceu para que demorassem o máximo possível naquele trajeto. Depois de remoer o bilhete que recebera de todas as formas possíveis, o último lugar onde gostaria de estar era a escola. Alguém sabia. E não tinha nada que pudesse fazer quanto a isso, além de esperar. O horário de trabalho era o melhor momento para se ter uma conversa com Lúcia Jeong. A mulher, nos seus quase quarenta anos, trabalhava no departamento de marketing de uma marca de maquiagens consolidada e odiava seu chefe o bastante para aproveitar ao máximo cada pausa para um cafezinho. De quinze em quinze minutos, ela acreditava estar dando um grande prejuízo para o homem ranzinza, de quem era subordinada. Embora Maya achasse mais inteligente – e maduro – se demitir, não discutia. No fundo, até achava que a mãe se divertia com aquele jogo de gato e rato. — Então — Lúcia murmurou do outro lado da linha —, você precisa de três mil reais? — a ênfase na palavra deixava claro que a mulher não enxergava tal necessidade da mesma forma que a filha. Também transparecia a sua pior característica: Era sovina, ainda que dinheiro não fosse um problema. sempre que diria algo que Maya não gostaria de escutar. — Ouvi dizer que as inscrições do concurso de beleza Fibonacci encerram hoje. — Ouviu dizer? — Maya riu. — Como se você não fosse inscrita em todas as newsletters sobre concursos de beleza que existem no mundo. — Não importa. — Maya teve a impressão que a mulher estava gesticulando. — O prêmio é de dez mil reais. Pode comprar sua mesa e ainda sobra. De quebra, deixaria sua velha avó muito feliz. — Eu não sirvo pra essas coisas — ela protestou. Seus dedos empurravam o bilhete de Gabriela de um lado para o outro. O pedaço minúsculo de fita adesiva que pregava o papel na superfície metálica cedeu, derrubando-o no chão. — Prefiro lavar banheiros do que participar desse concurso. — É uma pena que lavar banheiros não sirva como crédito escolar, hum? — disse Lúcia, casualmente. — As inscritas são liberadas das aulas vespertinas e recebem todo material dos professores para estudar em casa. Pelo que eu vi, American Saint está patrocinando o concurso. Maya se abaixou para pegar o bilhete. Cerrou os olhos para o desenho de troféu mal feito que enfeitava a página, acompanhado de vários números um. No verso, uma letra embolada dizia: primeiro lugar na categoria de garota mais feia da escola. Maya deu um soco na própria testa. Em pleno 2018 e as pessoas não tinham evoluído nada. Ainda estavam no tempo das cavernas, só trocaram as tochas de madeira por smartphones. — Eu vou pensar — disse, desconcertada pelo bilhete. — Obrigada, mãe — agradeceu, arrependendo-se em seguida. A mulher não tinha ajudado em nada. Desligou o telefone, antes que Lúcia respondesse, analisando as palavras grafadas no papel com um pouco mais de atenção. Não se lembrava de ter visto aquela letra em nenhum dos cadernos da sua turma e tinha certeza que era feia o suficiente para que se lembrasse. Chegou a caminhar na direção da sala do diretor, mas recuou. Da última vez que tinham conversado, Gabriela dissera que era melhor deixar o assunto de lado. A voz de Hélia quebrou o silêncio do corredor, fazendo seu coração disparar de susto. — Precisando de dinheiro? — Seus pais não te ensinaram que ouvir a conversa dos outros é falta de educação? — ela reclamou, cruzando os braços. — E sim, preciso, mas não do seu. Hélia abriu um sorriso. — Te peguei num mau dia? Maya apoiou as costas no armário, mal humorada. — Péssimo dia. — Ela esticou uma das mãos na direção dele, evidenciando o bilhete. — Isso não tem nada a ver com você, tem? O rapaz deu alguns passos para frente, tomando o papel das suas mãos. Ele fez questão que seus dedos se esbarrassem no processo, deixando-a apreensiva. — Não é minha letra — deu de ombros, encostando-se ao lado dela. — Mandaram pra você? — Ele riu, incrédulo. — Pra Gabriela. — Pra sua amiga feia — Hélia zombou. Maya passou os olhos por ele. Respirou fundo antes de seguir a conversa. — Prometeu que isso ia parar. — Eu prometi parar — disse, amassando o papel. Fez uma bolinha e mirou na lixeira mais próxima do corredor, dando um sorriso ao acertar. — E parei, tá? Tem séculos que não falo com a Gabriela. — Ele ergueu as mãos em sinal de rendição. — Juro. Nenhuma humilhação pra conta. — Diga aos seus amigos que façam o mesmo — Maya pediu, séria. Hélia franziu o cenho. Seus dentes morderam o lábio inferior, num gesto que Maya acompanhou atentamente. — Meus olhos são aqui. — Ele apontou para o próprio rosto, fazendo a garota desviar sua atenção. — E não sei porque você acha que tenho controle do que meus amigos fazem. Maya bufou. — O príncipe da escola não tem controle dos seus súditos? Hélia moveu a cabeça em negativa. O sorriso irônico que despontava em seus lábios não combinava com o gesto. Não quero levar uma advertência por comportamento inapropriado. Passe lá em casa mais tarde. Minha mãe e minha avó vão sair pra jantar. Hélia assentiu, deixando que suas mãos caíssem ao lado do corpo. Maya caminhou até o próprio armário, tirando sua carteira e colocando-a no bolso. Hélia fez uma careta. — Não vai voltar pra aula? — Vou me inscrever nesse concurso de merda — falou, tirando os fones de ouvido de dentro do armário e colocando nas orelhas. — Talvez… — ela deu uma pausa, mordendo o lábio. — Eu até destrone a sua princesa. Ele achou graça do comentário. — Boa sorte. Áustria é do tipo que mataria por uma coroa. Mas a música já tocava alto nos fones de Maya e ela nem sequer ouviu. Á ustria sentiu sua língua formigar quando bebeu um gole de água. O líquido gelado consumia a bala de menta extra forte em seus lábios. Certa vez, Hélia tinha dito que a combinação afastava o sono, mas ela continuava sonolenta – e agora com a boca ardendo. Em definitivo, confiar nas sugestões do garoto não tinha sido uma boa ideia. Depois das últimas aulas da tarde, ela tirou um tempo para ficar na biblioteca e adiantar seus deveres. Com a proximidade do concurso, não teria muito tempo para focar nos estudos e, mesmo que American Saint fosse um dos patrocinadores oficiais do Fibonacci, não perdoariam notas ruins vindas de uma bolsista. Ela ainda se lembrava do olhar chocado que recebeu quando, no ano retrasado, entrou na diretoria para se informar sobre os programas de assistência financeira. O homem deu um sorriso e, primeiro, perguntou se Áustria tinha algum amigo interessado em estudar lá. Depois, perguntou se seus pais tinham falido. — Você não precisa de uma escola tão cara assim — Paula dissera, poucos minutos depois de anunciar que faria trabalho voluntário. Áustria não podia entender como a mãe queria que aceitasse tal colocação. Havia pagado um colégio de elite por anos e, então, do dia para noite, decidiu que não precisavam disso. Da mesma forma que decidiu que não precisavam de uma casa no bairro Jardins, nem precisavam ser uma família. Passar no programa de bolsas foi uma questão de honra. Ela, que era uma aluna nota 6-, precisou se esforçar para se manter entre as notas 8 e 10. Parou de dormir nas aulas, sorria para os professores e até elogiava seus cortes de cabelo fora de moda. Se fechasse bem os olhos, ainda veria o slogan de American Saint estampado na prova: Somos humildes quanto aos nossos talentos e generosos de espírito. Áustria moveu a cabeça na direção da porta da biblioteca, quando um estrondo chamou sua atenção. Era Karen Matos entrando, com uma bolsa cheia de cadernos a tiracolo e os olhos castanhos atentos, feito os de um predador. Evidente que tinha novidades para contar. Ela apoiou a bolsa na mesa e sorriu para Áustria, sentando-se ao seu lado. — Dever atrasado? — Dever que vai estar atrasado — explicou. — Temos a primeira reunião do concurso amanhã à tarde. Não me diga que esqueceu? Karen fez que não, dedilhando o próprio colar de cristal no pescoço. Ela era obcecada com pedras, um verdadeiro dicionário ambulante de misticismo. — Não é como se eu me importasse com o prêmio. Só me inscrevi pra te fazer companhia. — Passou os olhos pelos blocos de exercício. — E não me importo com os deveres também. Eu mal sei falar inglês – riu, o que conquistou uma risada de Áustria também, embora ela soubesse se tratar de uma mentira. Ter inglês fluente era pré-requisito para estudar em uma escola americana como American Saint. Karen tinha o costume de fingir ser mais burra do que realmente era, para atrair a atenção das pessoas. Preguiçosa, dispensava formas complexas de conquistar o foco dos holofotes. — Já soube da última? Áustria fez que não, fingindo ler o enunciado de uma questão de matemática. Irritada com sua aparente falta de interesse, Karen empurrou a folha de exercício para o outro extremo da mesa. — Verona, sabe? A outra garota com nome de cidade que estuda aqui. Você podia estar no meio de alguma coisa importante — resmungou. — Deixa eu atender e fazer uma gracinha com ela. — Não! — Áustria recuperou seu telefone do centro da mesa, dando um sorriso amarelo ao perceber que tinha se exaltado. — Quer dizer, não precisa. É uma amiga do meu pai. Vai reclamar se eu for grosseira. — Recusou a chamada. — Falo com ela depois. Karen arqueou uma das sobrancelhas ruivas. — Você tá bem? Parece — cerrou os olhos — meio nervosa. Aconteceu alguma coisa que eu não sei? Áustria passou uma das mãos pela nuca. A frase da amiga fez com que se lembrasse automaticamente do maldito bilhete. — Não, tudo bem — sorriu, mais calma e mais convincente. — Estou ansiosa com a proximidade do concurso, só isso. É normal. Fico uma pilha de nervos. — Ela enfiou seus blocos de exercício dentro da bolsa. — Vou pra casa. Tomar um chá de camomila, eu acho. Quer carona? O motorista do Hélia vem me buscar. — Ela desbloqueou a tela do aparelho em mãos. — Ele já chegou, na verdade. — Áustria também viu uma mensagem do namorado dizendo que não se sentia muito bem naquela noite. Tinha mandado Sebastian sozinho. — Vou dar uma olhada no treino do time de futebol feminino. — Karen sorriu, apoiando a própria bolsa nos ombros. — Elas acabam às nove. Quem sabe eu não saio acompanhada daqui. Áustria deixou uma risada escapar. Por um instante, sentiu inveja da amiga e da sua segurança em dizer que estava de olho em uma garota. Parecia tão natural nos lábios dela que, por alguns segundos, Áustria se permitiu esquecer que não era aquilo que esperavam de meninas finas da alta sociedade. Karen tinha sorte. Estava no alto da cadeia alimentar adolescente, mas não no topo. Era bonita, mas nunca ganhava nenhum concurso. Era comum, não era perfeita. Tinha direito a mais deslizes que alguém como Áustria. — É melhor que saia — murmurou, observando o campus pelas janelas da biblioteca. — Essa escola, à noite, me dá arrepios. — T ive um sonho estranho, envolvendo zumbis — Maya comentou, encarando o céu. Eram pouco mais de dez da noite e ela gostaria que o terraço da cobertura onde morava servisse para mais do que ocupar espaço. Gostaria de ver as estrelas, mas estavam em São Paulo. — Zumbis? — Hélia passou o cigarro de uma mão para a outra, sem nunca o levar até os lábios de fato. —Tipo The Walking Dead? — Eram zumbis diferentes. Não cheguei na parte da explicação científica, mas o vírus afetava animais também. Tive que matar um monte de cachorros na base da marretada. — Ela fez uma careta. — Fui mordida no final, mas acordei antes de saber como era ser um zumbi. — Acho que se livrou da parte mais assustadora do sonho. — Os olhos de Hélia acompanhavam a chama do próprio cigarro, interessado. — Deve ser uma merda. Morrer e não morrer de verdade. E ainda ser um estorvo pra todo mundo, atacando os outros. Maya concordou. — São monstros sem graça. Prefiro vampiros — disse, convicta. — O que tem sonhado? — Com fogo. — Hélia, finalmente, deu um trago no cigarro. A forma como a chama incandescente iluminava seus olhos fazia a cena parecer ensaiada. — Fogo? — É. Cidades inteiras pegando fogo, esse tipo de coisa. — Dizem que é mau presságio. — Sonhar com fogo? — Sonhar com cidades pegando fogo. Hélia riu. — Acho que meu subconsciente se preocupa demais com o aquecimento global, só isso. — Ele observou as cinzas do cigarro caírem, se espalhando pela espreguiçadeira onde estava sentado. — A vida é boa demais comigo. Não tem nada que possa dar errado, no momento, então, não tem por que eu me preocupar. — Odeio o céu de São Paulo — Maya bufou, frustrada, uma mudança repentina de assunto. — Acho que morar em uma cidade onde não podemos ver as estrelas nos impede de refletir. Levantar a cabeça, olhar pra cima e perceber o quanto somos pequenos em relação ao universo. Hélia ergueu o rosto na mesma direção que Maya observava. — Besteira. Eu sou meu próprio universo. — Não seria tão egocêntrico se tivesse crescido em uma cidade com estrelas. — Meu pai me levou pra ver as estrelas no deserto do Atacama quando eu tinha dez anos, sinto muito por destruir sua teoria. Não foi a falta de constelações que moldou meu péssimo caráter. Maya revirou os olhos. — A resposta é não. Não terminaria se fosse pobre. Eu até gosto um pouquinho de você, príncipe cruel. Hélia se levantou da espreguiçadeira que ocupava, girando o corpo para se sentar em frente a ela. — Acho que você é a única — ele soltou o ar pelo nariz com um pouco de deboche, fazendo o comentário parecer uma grande piada. Maya nunca conseguia identificar se Hélia se importava ou não com as opiniões dos outros ao seu respeito, mas, olhando de longe, sua posição parecia difícil. Ele comandava a escola. As pessoas o amavam. O odiavam. Queriam estar no seu lugar. Tudo ao mesmo tempo. Hélia se aproximou do rosto de Maya, agora apoiada nas costas da espreguiçadeira. Ele levou o cigarro até os arcos de madeira e apertou a brasa contra a superfície. — Minha mãe gosta desse móvel mais do que gosta de mim — ela protestou. — Vai matar você. Hélia negou. — Ela não pode saber que eu estive aqui. — Você é um arruaceiro — ela riu, enquanto movia a cabeça em reprovação. — Um arruaceiro aproveitador. Sua resposta veio no formato de um meio sorriso irônico. Hélia se levantou, incapaz de ficar quieto por mais de cinco minutos. Contornou a espreguiçadeira de Maya, parando em frente seus pés. Desceu uma das mãos até suas pernas e dedilhou a pele, dos joelhos até as canelas. Com cuidado, puxou seu corpo pelos tornozelos, fazendo com que deitasse, arrancando de seus lábios uma risada surpresa. Apoiou as mãos ao redor do seu corpo, como se estivesse prestes a fazer uma flexão e murmurou, próximo de seu ouvido: — Você é a única estrela que nós vemos em São Paulo — disse, e como em todas as vezes que dizia algo que saía do comum, pressionou os lábios nos dela, impedindo que expressasse verbalmente qualquer reação. No aniversário de doze anos de Maya, Hélia havia roubado um buquê de flores do jardim premiado do seu vizinho, só para dar a ela. Ele tinha contado a peripécia com um sorriso no rosto e os olhos brilhando, como se as flores tivessem mais valor por terem sido roubadas. Naquela ocasião e em muitas outras, Maya percebeu que fazer as pessoas se apaixonarem por ele era o que Hélia fazia de melhor. Mas não se tratava de amor, nunca. Era uma competição. Quando alguém demonstrava qualquer reciprocidade, Hélia ia embora. Talvez por isso ainda estivesse ali, com Maya. Ela não tinha dificuldade alguma em fingir que suas artimanhas não surtiam efeito algum. Para ele, Maya era um jogo frustrante que nunca conseguia zerar. Por esse motivo, Maya não parou o beijo para agradecer o elogio. Seus dedos percorreram o cabelo escorrido de Hélia, parando em seu pescoço e puxando-o para mais perto. O gosto de cigarro dos seus lábios se misturava ao gosto de menta dos dela, causando uma sensação inebriante. Era exatamente o que Maya queria: Inebriar qualquer sentimento que estivesse aparecendo demais. Não só inebriar, mas afogá-lo nos beijos dele. Suas mãos estavam prestes a se infiltrar na calça de moletom de Hélia, quando ouviu seu nome ser chamado dentro do apartamento. — Maya, você está aí em cima? — a voz ecoou pelos cômodos vazios, atingindo-os em cheio. — Estou subindo. — Não precisa! — Maya se viu gritar, ainda um pouco zonza por ter sido tão bruscamente interrompida. — Eu já vou descer. — Quem é? — Hélia perguntou, movendo os lábios, sem emitir som algum. Era sempre desconcertante para Maya estar tão perto dos seus olhos cor de mel. — Gabriela — disse, após alguns segundos. — Nós moramos no mesmo prédio. — E como ela entrou? — Eu também — disse, fingindo interesse. — Um primeiro encontro de peso, eu acho. Aconteceu alguma coisa? Não me mandou mensagem dizendo que viria. — Ah! — Gabriela abriu um sorriso. — Fiz um vaso de crochê pra suas pimenteiras. — Ela correu até a sala e voltou para cozinha em um instante, animada. — Tinha deixado no seu sofá. O que achou? Ele ficou um pouquinho molenga, mas dá pra usar. Não sou muito boa em firmar os pontos. Maya abandonou o refrigerante na pia e se aproximou para pegar o objeto. Era vermelho e preto, as cores favoritas de Maya. Enquanto dedilhava a lã, sentiu-se muito mal por esconder as coisas de alguém tão doce quanto Gabriela. Ela merecia amigas muito melhores. — Eu adorei — sorriu, agradecida. — Vou colocar na pimenteira hoje mesmo. — Que bom que gostou. — Gabriela esticou o pescoço para enxergar as plantas na sala. — Posso fazer pra suas outras plantas. Quantas são? — Sete — Maya disse, de cabeça. — Mas não precisa se preocupar com isso. — Eu preciso treinar — explicou. — Minha mãe costuma crochetar entre uma audiência e outra. Diz que relaxa. Depois, ela doa tudo que faz para moradores de rua. Quero fazer o mesmo. Maya a encarou. — Nunca tinha me dito isso. — Ela não gosta que eu fale — Gabi riu —, pra manter a pose de juíza séria. — Deve ser difícil. — Ela rodou o vasinho de crochê nos dedos. — Quer dizer, ser juíza. A maioria dos colegas dela são homens, não são? Gabriela assentiu. — Ela se tornou uma pessoa mais fechada, desde que passou no concurso, com certeza. — Ela arrastou os olhos pela cozinha. — Bom, eu vou voltar pra casa. Aproveitei o intervalo da novela pra vir. Já deve ter terminado. — Crochê e novela. Você é mesmo uma garotinha de oitenta anos — Maya debochou, acompanhando a amiga até a porta. — Valeu mesmo. — Ela ergueu a peça em suas mãos. Gabriela deu de ombros, como quem diz um “deixa disso”. Ela saiu pela porta, e Maya ficou na ponta dos pés para ver o olho mágico, sentindo que invadia um espaço que não era mais seu. Esperou a amiga desaparecer dentro do próprio apartamento para mandar uma mensagem para Hélia. Maya (22:43) diz: Barra limpa. — A sequência de Fibonacci foi descoberta por Leonardo de Pisa. Para chegar a essa sequência devemos considerar que o primeiro termo é um… — Áustria precisou se esforçar para não dar um bocejo diante da fala mansa do professor Aurélio. A primeira reunião do concurso Fibonacci aconteceria naquela tarde e os professores de American Saint foram encarregados de relacionar o tema com a aula. No caso da matemática, era um assunto que raramente usariam no ENEM, mas ela duvidava que os diretores da escola estivessem preocupados com o Exame Nacional do Ensino Médio. Uma universidade pública não era nada para pessoas que saíam da formatura com cartas de recomendação em Harvard e Yale. Às vezes, dentro daquela bolha, Áustria nem se lembrava que estava no Brasil. Seu celular vibrou. Na mesa ao lado, Karen moveu os olhos na direção do aparelho, ansiosa por ver a reação da amiga ao que tinha enviado. Áustria observou o professor antes de esconder o celular debaixo da mesa, abrindo a aba de mensagens. Karen (08:32) diz: Acabou de sair no site do concurso o nome das inscritas que foram aprovadas. Divulgaram cedo. Áustria deu de ombros. Era bom que divulgassem com antecedência, para que as garotas pudessem se organizar para a reunião. É claro que Áustria já tinha o feito, porque sabia, desde o começo, que não corria o risco de não ser selecionada. Ela virou a cabeça na direção da ruiva, sem entender. Os dedos de Karen digitaram freneticamente contra a tela do celular. Karen (08:32) diz: Maya Jeong. Não sabia que ela iria participar Áustria cruzou o corredor, parando atrás dela no bebedouro. Maya ainda estava com os fones nos ouvidos, cantarolando alguma música desconhecida pela loira, enquanto enchia sua garrafinha. A frase “eu nunca poderia ser uma Kardashian porque eu tenho talento” enfeitava o vidro, agora suado por causa da água gelada. Áustria quase achou graça. — Soube que vai participar do concurso esse ano — comentou. — É muito corajoso da sua parte, depois do que aconteceu da última vez. Maya tirou apenas um fone do ouvido, franzindo o cenho. — Por que está falando comigo? — Não posso falar com você? — Não — Maya respondeu, colocando o fone de volta. Aumentou o volume da música, o suficiente para que Áustria conseguisse ouvi-la de onde estava. — Não seja grosseira — reclamou, puxando um dos fones para fora de sua orelha. Maya a fuzilou com os olhos, irritada. — Você deveria ter falado comigo que pretendia participar. Maya arqueou uma das sobrancelhas. Terminou de encher sua garrafa d’água e suspirou, impaciente. — Por quê? — Porque sou vencedora de todos os concursos juvenis por três anos seguidos — disse, orgulhosa — Todas as garotas novas pedem minha benção antes de se inscrever neles. É um ritual de iniciação. Ela deu longo gole na garrafa. — Sei, tipo uma seita? Vou ter que sacrificar alguma virgem e me banhar no sangue dela pra participar? Áustria fez uma careta enojada. — Que tipo de pergunta é essa? — Você não tem senso de humor, entendi. — Os lábios de Maya se transformaram em uma linha fina, enquanto ela assentia. — Enfim, sem interesse em participar da sua seita, mas é muito gentil da sua parte me convidar — ironizou. — Eu já me inscrevi no concurso, então, imagino que seja um pouco tarde demais pra pedir sua benção. — Não quero que peça. — Áustria cruzou os braços. — Mas é importante que alinhe as suas expectativas. Ninguém ganha esses concursos. — Ninguém além de você? — Eu não quero ser egocêntrica. — Maya revirou os olhos cheios de delineador, diante do comentário. — Mas as últimas coroas que recebi me dizem que sim. Maya concordou, pensativa. Passou as mãos pela própria cabeça, ajeitando a touca que usava por cima do cabelo. Ia contra as regras de vestimenta da escola e ela seria punida mais cedo ou mais tarde. — Eu não quero ser egocêntrica — repetiu —, mas parece que eu fiz você se sentir ameaçada. Áustria soltou ar pela boca. — Por sua causa? — riu. — De jeito nenhum. Só não queria que corresse o risco de entrar no concurso sem entender como as coisas funcionam. Estou sendo gentil. Te alertando. Competir é divertido, de qualquer forma. Ela bebeu mais um gole de água, antes de fechar sua garrafa, dando de ombros. — Então tá, patricinha — Maya murmurou, sem interesse. — Não faço ideia do que eu faria sem seus gestos tão amáveis — ela deu um sorriso falso na direção de Áustria, ao se afastar, caminhando na direção da sala, antes que a conversa pudesse ser prolongada. Áustria fez uma careta. Se aproximou das janelas do corredor para enxergar melhor o próprio rosto. Ajeitou a franja cor de pérola que caía na testa com as unhas, sorrindo para o reflexo. Ela se virou para voltar para sala, mas notou algo estranho nos jardins, com o canto dos olhos. Voltou a olhar para fora, mais atentamente dessa vez. Hélia estava caminhando pela grama, ignorando o caminho de pedras por onde os alunos costumavam passar. Diferente do usual, não havia ninguém com ele. Seu cabelo estava preso em um rabo de cavalo frouxo, que escorregava, de um lado para o outro, cada vez que ele andava. Em uma olhada rápida, Áustria não encontrou seu maço de cigarros ou sua mochila. Hélia andava de uma forma esquisita, sem a confiança arrogante – e atrativa – de sempre. Com uma das mãos, Áustria bateu no vidro, tentando conquistar sua atenção. O namorado seguiu sua caminhada desengonçada, Mais receosa que antes, pressionou o último botão. Um estrondo brusco fez seu corpo inteiro tremer. Por um instante, achou que tinha levado outro choque. Ela respirou fundo, quando percebeu se tratar da cobertura retrátil da piscina se abrindo aos poucos. — Hélia? — tentou de novo, ainda sem resposta. Uma silhueta que não conseguiu identificar de cara surgiu na porta. Ela hesitou por um instante. — Pensei que tivesse voltado pra aula. — Lembrei que esqueci minha touca na última aula de natação. — Maya deu um sorriso amarelo, no que era uma mentira visível. Ela se aproximou da piscina recém-aberta, cerrando os olhos. — Tem alguma coisa… — Levantou os olhos para Áustria, rugas de preocupação contornando sua testa. — Acende as luzes do fundo. Áustria quis retrucar, mas a sensação de estar sendo observada se intensificava a cada minuto, olhos invisíveis presos em suas costas. Queria fechar a piscina e voltar para sala de aula, o mais rápido que conseguisse, onde se sentiria segura pela presença dos outros colegas. Ela não conhecia Maya o suficiente para que a garota servisse como um tranquilizador. Muito pelo contrário. Relutante, Áustria apertou o botão que julgava ser o certo. — Merda! — Maya exclamou, de repente, os olhos arregalados. Áustria deu um passo em sua direção, mas ela ergueu um dos dedos em riste. — Não vem aqui — pediu, o rosto se contorcendo em uma careta. Ela parecia enjoada. — O que foi? — Áustria deu mais um passo. — Tem um animal afogado na água? Maya fez que não. — Fica aí! — insistiu, movendo as mãos. — Eu vou ligar pra polícia. No mesmo instante, Áustria ignorou o pedido de Maya, aproximando-se da borda da piscina. A primeira coisa que notou foi a pele escura, reluzente sob as luzes que tinha recém- acendido. A segunda foi o cabelo negro, solto e bagunçado, parecendo uma mancha de óleo boiando na água. A respiração de Áustria ficou estranha, como se o mundo tivesse parado de rodar. Tinha certeza que seu peito estava subindo e descendo, mas não conseguia absorver o oxigênio que entrava em seu corpo. Ela piscou, como se isso fosse suficiente para que o cadáver na água desaparecesse. Piscou várias vezes, mas continuou ali, bem em sua frente. Como podia estar morto se tinha o visto minutos antes? Maya a empurrou contra a parede, antes que pudesse absorver mais detalhes da cena. Áustria percebeu que suas mãos eram macias e que seu cabelo tinha cheiro de morango, o que parecia inapropriado diante da cena que tinha acabado de presenciar. Ela cerrou os olhos, irritada, encarando as mãos da garota pressionadas contra seus ombros. Percebendo sua indignação, Maya deu um passinho para trás. — Vai por mim, você não quer ficar olhando pra um cadáver — disse, a voz um tanto mais fina que o de costume, como se estivesse dividida entre o escândalo e o choque. Então, Hélia Golucci estava morto. “ J á pensou em quantas pessoas iriam no seu velório? ”. Maya se lembrava de Hélia ter feito essa pergunta no seu aniversário de dezesseis anos. Segundo ele, seu pai costumava sugerir esse exercício mental para descobrir quem são suas amizades mais verdadeiras. Se você não consegue imaginar alguém jogando a própria rotina pelos ares para prestar uma última homenagem, são amigos de verdade? Hélia tinha o costume de imaginar seu velório vazio. Dizia que estaria morto aos trinta anos, com um rastro de destruição tão grande que ninguém teria vontade de ser condolente. Depois, acrescentava que talvez seu motorista estivesse presente, para levar seus pais e tirar uma foto bonita para os jornais que anunciariam o seu falecimento. Maya tinha prometido ir no velório, mesmo que fosse só pra depredar seu túmulo. Hélia estava errado. Tanto sobre morrer aos trinta anos, quanto sobre o velório vazio. Na verdade, havia tanta gente que Maya tinha dificuldade em localizar as pessoas da família Golucci no mar de roupas pretas e óculos escuros. Maya sentiu um par de mãos esguias se apoiarem em seu ombro, segundos antes de localizar a presença da mãe. — Você quer comer alguma coisa? — Lúcia perguntou, com um sorriso complacente no rosto. Lúcia assentiu. — Bom — mordeu o lábio —, pelo menos, não tem um assassino na sua escola. Maya achou graça. A ideia era absurda. Os alunos de American Saint não tinham o costume de apelar para violência física e, ainda que tivessem, ninguém teria coragem de matar um aluno tão notório quanto Hélia. A família Golucci colocaria São Paulo a baixo apenas para descobrir o responsável. Seria impossível provocar uma família tão influente e sair vivo para contar a história. Qualquer um sabia disso. — É melhor eu cumprimentar os pais dele — Maya disse. — Não parece que vão sair de perto do caixão tão cedo. Lúcia fez que sim, apontando com a cabeça na direção da lanchonete, metros distante. Maya conseguia imaginar, perfeitamente, a mulher de cabelos longos e pele pálida pedindo um suco verde para o atendente, que respiraria fundo na tentativa de não rir do pedido. Duvidava que tinham suco verde no cemitério. Maya seguiu o caminho de pedras até o velário, incerta sobre sua capacidade de vivenciar aquela cena. Encontrar Hélia na piscina era diferente. Quando seu primeiro cachorro morreu, a psicóloga infantil da escola havia dito que era importante que os pais de Maya fizessem um enterro, para que ela entendesse o que tinha acontecido. O caixão simbólico, as flores, o corpo peludo e duro. Tudo isso eram confirmações. Absorver tais elementos era fundamental para que o cérebro processasse a morte. Maya não tinha certeza se queria processar alguma coisa. Se manter absorta, como de costume, parecia uma boa opção. No carro, enquanto sua mãe praguejava o trânsito péssimo, encarou a câmera frontal do celular e forçou os olhos para que o choro saísse. Estava tentando se sentir melhor, mas só terminou frustrada. Não conseguia chorar. Nunca conseguia. — May! – como intervenção divina, a voz de Gabriela interrompeu os passos de Maya antes que ela entrasse na sala. — Oi. — Ela acenou, dentro do seu vestido preto. Gabriela odiava preto, porque sua pele era branca demais, e a cor parecia intensificar o tom azedo. Ela fez uma careta triste antes de continuar. — Eu soube. Maya deu de ombros, porque não tinha o que responder. — A escola deve ter mandado e-mails — disse, embora não tivesse checado os seus. — Notas de falecimento. Gabriela fez que sim. — É. Que merda. Ela cruzou os braços. Conversas em velórios eram sempre estranhas. Se eram felizes, pareciam inadequadas. Se eram tristes, deixavam o clima pesado. Maya não fazia ideia do tipo de diálogo que poderia ter com uma amiga num momento daqueles. — Ele sempre disse que morreria cedo — murmurou, como se tal fato melhorasse as coisas. Como se, de alguma forma, Hélia conquistasse autonomia diante de seu destino trágico. Os lábios de Gabriela se transformaram em uma linha fina. Não concordou nem discordou da fala da amiga. — Vai conversar com os pais dele? Maya assentiu. — Quer que eu vá com você? — Não precisa — agradeceu com um aceno. — É bad vibe demais. Você já fez muito vindo aqui. — Tudo bem. — Gabriela deu um meio sorriso, puxando Maya para um abraço. — Se precisar de alguma coisa… Me disseram que você teve que falar com a polícia. Sabe que minha mãe entende dessas coisas, então, se te chamarem pra depor de novo… — Obrigada. Eles ficaram um pouquinho no meu pé. Por causa do meu pai… Mas era só um depoimento de testemunha. Nada que vá me comprometer mais tarde. Mas sabe o que vai fazer eu me sentir melhor? Vasos de crochê. Gabriela achou graça. — Seu pedido é uma ordem. Maya observou a amiga desaparecer pela imensidão de visitantes. Antes de entrar na sala, ela notou um rosto muito conhecido no meio das roupas pretas, como se sua fala anterior tivesse invocado sua presença. Leonardo acenou para ela, os fios de cabelo longos presos em um respeitoso rabo de cavalo. Maya olhou para os lados, conferindo que Lúcia não estava por perto. Maya respirou fundo. — Foi uma fatalidade, eu acho. — Uma irresponsabilidade — o senhor Golucci corrigiu, surgindo ao lado da esposa. Bem como Maya se lembrava, Renato era um homem grande e intimidador na mesma proporção. Hortênsia parecia uma boneca ao seu lado, pequena e delicada. Não deveriam ter deixado aquela piscina aberta. Até uma criança poderia ter caído e se afogado. — Não estava aberta, senhor — Áustria murmurou. Só então Maya percebeu sua presença, dentro de um conjunto preto de terno e saia que lembrava As Patricinhas de Beverly Hills. — Talvez tenha sido um problema no fechamento retrátil. Acredito que a escola deva ser responsabilizada, de qualquer forma. É uma perda muito grande pra todo mundo. Renato assentiu. Seu rosto branco estava rosado, o que fez Maya perceber que a garrafa que passava de uma mão para outra não continha água. Os problemas com a bebida haviam persistido, durante todos aqueles anos. — Tenho uma reunião com o diretor na segunda. Espero que tenham ótimas explicações. Hortênsia apoiou uma das mãos nos ombros do homem. — Tenho certeza que não é do interesse deles nos deixar no escuro, querido — tranquilizou. Ela era muito mais parecida com Hélia do que o pai. Tinham os mesmos olhos, a mesma pele negra e o mesmo cabelo escorrido. — Não vamos falar de assuntos chatos, hum? — se virou para Maya — Hélia nos disse que ia tocar na formatura. Maya teve a impressão de ver Áustria revirar os olhos. — Ele sempre falava muito de você — a loira comentou. Seu tom não era aborrecido, mas neutro. Era impossível saber o que estava sentindo. — Ainda tenho que competir com alguns outros alunos — explicou. — E minha mesa de som está estragada, por enquanto, mas ainda devo ter algum tempo pra resolver isso. — Estava ensinando o Hélia a tocar? — Renato perguntou. Maya fez uma careta confusa. — Não. — Ele comprou uma mesa de som — Hortênsia disse. — Chegou ontem. –— Ela respirou fundo, os olhos adquirindo um tom vermelho aos poucos. Estava perto de desabar, mas Maya torceu para que a mulher não chorasse. Enterros eram assim. Quando alguém começa a chorar, todas as outras pessoas aproveitam a deixa. Maya mordeu o lábio. Se lembrou da conversa com a mãe no corredor, quando Hélia perguntara se precisava de dinheiro. “Meu Deus! ”. Ainda que o velário fosse grande e arejado, Maya sentia o lugar cada vez mais claustrofóbico. Era como se o caixão de Hélia agora tivesse um dardo, incitando que olhasse em sua direção, se despedisse do cadáver mais uma vez. Se pudesse voltar no tempo alguns minutos, ela voltaria. Aquele era o tipo de informação que tornava as coisas mais difíceis, mas não contribuía em nada. — É uma pena — Maya murmurou. — Tenho certeza de que ele se sairia bem... como de costume, eu acho. Depois de alguns segundos, Maya percebeu que estava se esforçando demais para não transparecer sentimentos ruins. Tanto que, talvez, até tivesse soado insensível. Um dos funcionários do cemitério se aproximou de Renato. Ele cochichou algo que Maya não conseguiu ouvir e terminou a conversa com um aceno. Renato se virou para a pequena roda onde conversavam e deu um sorriso. Era difícil entender se ele estava tentando passar algum tipo de conforto ou se só estava bêbado. — Vão tirar o caixão agora — disse mais para Hortênsia do que para o resto. Maya aproveitou o momento para sair do velário. Teve a impressão de ter passado por um ou dois colegas de sala, mas, naquele momento, não tinha a paciência necessária para cumprimentá-los. Suas mãos estavam tremendo. Parecia questão de tempo até que sua alma descobrisse que precisava sair do corpo. Maya se sentou em um banco nos fundos do velário, fechando os olhos. Respirou e inspirou várias vezes, focada nos sons alheios a ela. Ouviu um passarinho cantar. O barulho de passos esmagando folhas secas. Uma criança chorando. Uma cigarra, anunciando que uma tempestade estava por vir. — Você não se importa se eu ficar com isso, não é? — Áustria deixou seus pensamentos de lado para observar a cena que se desenrolava no final do corredor. Ela não se lembrava do nome do garoto que falava, mas tinha a impressão que fazia parte do time de esportes da escola, principalmente pelo seu tamanho. Talvez fosse filho de um senador importante. Áustria precisava prestar mais atenção nas pessoas que estudavam com ela. — Eu não tive tempo de fazer esse trabalho. Ele balançava um pendrive na frente de Gabriela, de um lado para o outro. Ela se apoiava em um dos armários do corredor, desejando ser engolida por um deles. O garoto estava perto demais, dando um tom desconfortável à conversa. — Se usar os meus arquivos, os professores vão perceber que nossos trabalhos estão iguais — Gabriela argumentou, sem olhar para ele. — Você faz outro. — O garoto encarou o próprio relógio. — Tem uns quarenta minutos até a aula de química começar. Você consegue. É uma garotinha inteligente. — Ele deu dois tapas leves em sua cabeça, como se estivesse cumprimentando um cachorro. Colocou o pendrive dentro do bolso do casaco e sorriu para ela. Gabriela soltou um longo suspiro. Ela percebeu a presença de Áustria e a encarou, como se esperasse algum apoio de sua parte. Áustria queria fazer alguma coisa a respeito, mas, caramba, seu namorado tinha acabado de morrer. Alguém sofrendo bullying não era problema seu. Estava pronta para dar meia volta e fingir não ter visto nada quando o garoto se afastou de Gabriela, levando seu pendrive consigo. — Ei, Áustria — ele também tinha reparado nela —, sinto muito pelo que aconteceu com Hélia. — E deu um sorriso complacente. Agora, seu tom era quente e simpático, o oposto do que usava com Gabriela. Era como se enxergasse Áustria como uma pessoa e Gabriela como… um objeto. Ou alguma coisa abaixo disso. Áustria agradeceu com um aceno. Com o canto dos olhos, viu quando Gabriela fez uma careta. — Valeu pela ajuda — ela murmurou, enfiando seus livros dentro do armário. — Reclame com um funcionário — Áustria revirou os olhos. — Eu não trabalho aqui. Agradeça por eu não estar roubando seus deveres também. Gabriela não disse nada. Bateu a porta do armário de uma forma que Áustria julgou indelicada e seguiu em direção aos laboratórios de ciência, disposta a refazer o maldito trabalho. — Que grosseria — Áustria reclamou. Desejar pêsames seria o mínimo da boa educação, como a maioria dos outros alunos tinha feito. — É por isso que as pessoas sofrem bullying — murmurou, ciente que a garota não podia ouvi-la. Áustria dedilhou a própria nuca. Queria voltar para sala, mas sentia-se ansiosa demais para prestar atenção na matéria. Os professores haviam entrado em um acordo de não registrar faltas pelos próximos três dias e, ao se levantar naquela manhã, ela pensara em faltar, porém a ideia de ficar enfurnada dentro do próprio quarto, por um dia inteiro, era desconfortável. Não queria correr o risco de discutir com o irmão de novo, embora imaginasse que ele fosse mais compreensivo que o de costume. Ouvira Osmar contando a ele sobre o acontecido. Áustria escolheu não convidar nenhum dos dois para o velório. Tinha passado horas tentando analisar o que Hélia faria no lugar dela e chegou à conclusão de que os falecidos mereciam ter as pessoas certas presentes na sua última celebração. Seu raciocínio não previa a quantidade de alunos irrelevantes marcando presença, é claro. Em dado momento, Áustria temeu que Hélia levantasse do túmulo apenas para expulsá-los. Com um sorriso irônico, ele perguntaria: “Quem te chamou aqui?”, como fazia com os penetras que entravam em suas festas na surdina. A decisão de Áustria viria a deixar Hortênsia curiosa. Ao longo do dia, ela havia se esforçado para arrancar alguma informação sobre seus pais, mas Áustria apenas dava de ombros. — Paula deve estar adorando o trabalho voluntário. É uma experiência que muda vidas, não acha? — Sim, com certeza — Ela é tão altruísta — Demais — Você não tem vontade de fazer também? — Claro, quem sabe. Como se o pensamento atraísse a mulher, o celular de Áustria vibrou, anunciando uma nova mensagem de Paula. Paula (09:54) diz: Seu pai me contou Paula (09:54) diz: — o homem bufou. — Estamos lidando com uma família influente, cada passo precisa ser cuidadoso. Um caso como esse é prato cheio pra mídia. Entende que tivemos um aluno morto por overdose na semana passada? Uma herdeira foi convidada a se retirar da escola por conta disso. Nem nos recuperamos desse baque e agora essa mer… É evidente que vão destruir a nossa imagem! — A polícia entende seu ponto, senhor, mas não podemos escolher a narrativa que seja mais conveniente com a reputação do colégio e ignorar as evidências. Isolamos o ginásio e pegamos o celular do garoto. Ele mandou uma mensagem dizendo que estava na cena do crime, às nove e dez da manhã, mas a necropsia apontou oito e cinquenta e sete como hora da morte. — Áustria fez uma careta. Ele não tinha mencionado o ginásio na mensagem que tinha mandado para ela. — Nossa teoria é que o assassino queria que encontrassem o corpo logo. Um barulho tomou conta da sala. Áustria imaginou que o diretor tinha dado um soco na mesa. — Nenhum assassinato aconteceu na minha escola. — Senhor… — De quanto precisa pra manter a história da morte acidental? — Vai ter que subornar o departamento inteiro, se é isso que pretende. — Diga o valor e nós conversamos — o diretor insistiu. — Disse que havia substâncias ilícitas no corpo do garoto, certo? Seria terrível pra imagem da família que algo assim fosse amplamente divulgado. — Onde o senhor quer chegar? — Não acho que vão aceitar bem essa história de morte acidental, mas uma mão lava a outra. Vamos manter essa informação em sigilo se eles não insistirem em uma investigação mais complexa. O garoto já está morto. Ficar fuçando nessa história só vai machucar mais pessoas. Áustria engoliu em seco. Viu quando o policial desligou o gravador que levava consigo e entregou para o diretor, uma forma silenciosa de dizer que concordava com o acordo. Ela deu um passo para trás, desconcertada. Pensou em ligar para os pais de Hélia, mas seria sua palavra contra a do diretor. Talvez Hortênsia lhe desse algum crédito, mas não podia contar com Renato. E se a investigação estivesse errada? A maioria dos alunos de American Saint estudavam ali há anos. Era uma escola exclusiva. As pessoas tinham boa parte da sua vida investigada durante o processo de admissão. Miguel, por exemplo, não tinha sido aceito quando sua mãe tentara matriculá-lo há alguns anos, quando queria fazer o papel de madrasta “gente boa”. Ele tinha dado um soco em um colega de sala, na sétima série, e, segundo a papelada que recusara sua matrícula, não era o perfil de aluno que estavam procurando. Mas se Paula tivesse assinado alguns cheques, talvez… “ Ninguém teria motivos para matar o Hélia ”, Áustria pensou, tentando convencer o próprio cérebro de que sua teoria tinha sentido. “ T ê m medo e são apaixonados por mim na mesma proporção ”, era o que ele sempre dizia. O relógio do celular poderia ter pifado em contato com a água. As horas da morte e da mensagem não baterem poderia ser um problema técnico. Não provava nada. Áustria mordeu o lábio. Estava mentindo para si mesma, talvez porque não quisesse lidar com sua vida perfeita desmoronando. Seu namorado estava morto, sua mãe não se importava e o diretor da melhor escola de São Paulo subornava policiais. Áustria deu alguns passos para trás. Observou o diretor Felipo guardar o gravador dentro de uma gaveta e se abaixou, quando ele virou a cabeça em sua direção, escondendo-se atrás de um vaso de plantas. Ainda abaixada, foi até as escadas. Precisava de uma segunda opinião sobre o assunto. Pensou em Karen, mas a ruiva não sabia manter a boca fechada. Em dois segundos, a escola inteira saberia sobre o suborno e, o que deveria ser chocante e sério, seria resumido à fofoca adolescente. Já tinha descartado os pais. Não tinha nenhum outro amigo próximo. Áustria deu um soco na própria testa. Estava sozinha com aquela bomba em mãos. Ela se sentou nos degraus da escada, respirando fundo. Tirou o celular do bolso, mais uma vez, pensando em anotar tudo que sabia sobre o acontecido, para que não esquecesse mais tarde. Antes que pudesse abrir o bloco de notas, uma notificação tomou conta da tela: @HeliaGolucci postou um novo vídeo. Áustria sentiu seu sangue gelar. Ela hesitou antes de clicar na para a sua paz de espírito, porque a postagem era um recado direto demais para ser ignorado. Era uma regra implícita do Ensino Médio. Quem está no topo, defende o território. Ninguém espera provocar a rainha da escola sem sofrer as consequências e, agora, o restante dos alunos mortais aguardavam ansiosamente os próximos passos de Áustria. Felizmente para os amantes da fofoca, ela sabia exatamente o que fazer com todas as informações que reuniu naquela manhã. M aya acreditava piamente que o mundo seria um lugar melhor sem a internet, onde ninguém correria o risco de ter suas fofocas viralizadas nas redes sociais. Não era culpa da enorme rede de computadores, na verdade, ela era ótima. Maya beijaria o Google, se ele fosse uma pessoa, por todas as vezes que a livrara de gastar tempo com pesquisas em livros. Uma vez, sua avó dissera que fazia as pesquisas, para a escola, em barsas, uma coleção de enciclopédias de conhecimentos gerais que era passada de geração em geração. Maya se viu espirrando só de pensar. Ela não podia culpar a internet. Computadores não tem discernimento, não são bons ou maus, pessoas são. Não era a primeira vez que usavam ferramentas aparentemente inofensivas para prejudicar alguém e, com certeza, não seria a última. Todos os aplicativos com opção de anonimato acabavam se tornando um espaço livre para o ódio, o que era interessante de se analisar. Todo mundo é bonzinho, até que não tenha ninguém olhando. Maya estava fingindo não saber sobre seu vídeo com Hélia rodando pelo Instagram. Não fazia ideia de quem podia tê-los filmado por tanto tempo e por que alguém seguraria uma fofoca daquelas para soltar em um momento tão delicado, mas estava grata por não ser um vídeo de cunho sexual. Isso sim poderia trazer problemas. Lidaria com os olhares atravessados, as perguntas indiscretas e os comentários no corredor. Em uma semana ou duas, a elite de American Saint teria outros assuntos mais importantes para comentar. — Maya, você fica no gol. — O professor de educação física estalou os dedos, chamando sua atenção. Apontou na direção das traves brancas e jogou um par de luvas para Maya, pouco interessado em sua opinião. — Carla — apontou para uma garota baixinha —, vai ser goleira do outro time. Gabriela sorriu para Maya, incentivando-a. Ela agradeceu com um aceno, enquanto caminhava para o gol, satisfeita em não precisar ficar correndo de um lado para o outro. Ao mesmo tempo, tinha medo que sua participação no jogo se transformasse em humilhação. Os alunos de American Saint levavam as disputas da educação física muito a sério. Como crianças mimadas e cheias de ego que eram, não podiam perder a oportunidade de se mostrarem melhores que os outros. — Estão sete minutos atrasadas — o professor Elias comentou, apontando para as duas garotas que se aproximavam da quadra. Áustria e Karen já estavam dentro de seus uniformes esportivos, com uma expressão pouco simpática. Maya se apoiou nas traves do gol e vestiu suas luvas. Evitou olhar demais para Áustria, esperançosa em passar despercebida no radar da loira. Ela era responsável pelos próprios atos e entendia que estava errada na situação com Hélia. Era ele o responsável pelo seu compromisso com Áustria, mas quando um não quer, dois não se beijam. Em silêncio, Maya torceu para que Elias colocasse a garota em seu time, para não precisar enfrentar os chutes furiosos que viriam em sua direção. Era tão fácil que chegava a ser patético: Cinquenta minutos de aula e inúmeras oportunidades para Áustria acertar uma bola na sua cara. Elias apontou para a ruiva primeiro. — Karen, está no time da Maya — disse, gritando. — Áustria, time da Carla. — Apontou para o lado extremo da quadra. Maya moveu os lábios na direção do professor. Uma desculpa esfarrapada sobre estar sentindo cólicas horríveis quase saiu, mas ela resolveu continuar no gol e enfrentar o seu destino. Quis acreditar que Áustria estava chateada demais para uma briga. O corpo de Hélia mal tinha esfriado no túmulo, e as pessoas sempre diziam que era mais fácil perdoar os erros dos mortos do que dos vivos. De qualquer forma, Maya estava bem viva. Não duvidava que lhe cobrassem lidar com os erros dele e os dela. Elias colocou a bola no centro da quadra e se afastou, deixando os passos marcados no chão de grama sintética. Maya observou a movimentação dos dois times, feliz em perceber que Junia Morais, uma das jogadoras oficiais de futebol da escola, estava no seu time. Esperava que a garota fizesse um bom trabalho deixando Áustria longe do gol e, principalmente, longe dela. Maya pensou em como o rosto de Karen ficaria inchado se levasse um tapa com aquelas luvas, mas segurou o impulso até que se tornasse apenas uma ideia maldosa. Felizmente, não poderia ser punida por pensar. — Karen, não é esse o tipo de palavreado que almejamos ouvir de nossos alunos — Elias corrigiu. Áustria abriu um sorriso, parecendo satisfeita com a atenção do professor. — Eu sugiro que use um palavreado melhor na próxima, Karen. Nós podemos usar trahi, em francês. Cheater, em inglês. Imbrogliona, em italiano… Qual você prefere, Maya? Tenho um vocabulário extenso, posso te dar opções o dia inteiro. — Certo, garotas, acho que chega por hoje — Elias se intrometeu mais uma vez. As outras alunas mal olhavam para ele, ansiosas por um confronto que alimentasse ainda mais a pauta da semana. — Vou buscar os cones na sala de materiais. Vamos tentar corrida até o fim da aula. Um silêncio sepulcral acompanhou a saída do professor. — Não vai dizer nada? — foi Karen quem perguntou, diretamente para Maya. — Acho que um pedido de desculpas é o mínimo. Maya soltou ar pelo nariz, incrédula. — Um pedido de desculpas? Pra pessoa que acabou de tentar arrancar a minha cabeça? — Não seja tão dramática — Áustria revirou os olhos. — Eu teria te acertado se quisesse. Quer ver? O silêncio tomou conta, mais uma vez, quando Áustria cruzou a quadra. Havia vinte alunas ali, ansiosas para descobrir o que o cérebro maldoso da rainha da escola estava maquinando. Maya tinha a impressão de que não esperavam coerência da parte dela, talvez porque tinha descoberto seu namorado morto e uma traição na mesma semana. Faziam parecer que Áustria Fontes era o novo coringa e, na verdade, gostavam da hipótese de uma rainha enlouquecida. Maya se sentiu desconfortável pela forma como aquelas pessoas tratavam a morte. Não tinham nem sequer respeitado os sete primeiros dias de luto para vazar aquele vídeo. Agiam como se Hélia tivesse se ausentado, ao invés de falecido, como se acreditassem que o garoto surgiria com seu sorriso irônico na entrada de American Saint, a qualquer momento. Não que não estivessem tristes, mas pareciam ansiosos para que a morte de Hélia deixasse de ser uma pauta. Como se fosse um acontecido simples e ignorável, como o sol nascendo todos os dias. Áustria pegou a garrafa transparente de Elias no banco próximo às arquibancadas. O professor era fã de energéticos em tons neon, daqueles que se pareciam muito com detergentes. Maya entendeu o que Áustria pretendia desde o início, mas deixou que a garota continuasse. Queria ver até onde ela teria coragem de ir. Esperar qualquer tipo de bom senso vindo de Áustria Fontes foi seu erro. Ela voltou com a garrafa em mãos e parou a poucos centímetros de distância de Maya. Seus olhos verdes traziam consigo um desafio implícito. Esperava que Maya a contestasse, mas ela não moveu um dedo. Poderia fazer um discurso inflamado sobre rivalidade feminina, ainda que Áustria e sororidade fossem palavras incompatíveis na mesma frase. Ela preferiu se manter com os braços cruzados, acompanhando seus passos, da mesma forma que os outros, atenta a cada segundo do espetáculo. Áustria girou a tampa da garrafa e, em um movimento de segundos, despejou sob a cabeça de Maya. Foi um coro de “nossa”, “uau”, risadas e gritos contidos. Alguém, que Maya não conseguiu identificar com os ouvidos cheios de energético, comentou que era impressionante: Hélia estava mantendo o caos vivo mesmo depois de morto. Áustria abriu um sorriso. Seus dedos alcançaram seu rosto, puxando, para o lado, uma mecha de fios brancos que grudou contra a testa, uma mistura nojenta de energético colorido e cabelo. — Viu? — Ela estava extremamente satisfeita com a multidão que se formava ao redor delas. Alunos saindo de salas, pessoas se aproximando para conseguir o ângulo perfeito em um storie, funcionários chocados, um verdadeiro show para os estudantes entediados de uma escola de elite, onde as discussões eram sempre polidas. — Acertei você. Maya não imaginou que seria mandada para a diretoria por um erro de Áustria. Segundo Elias, agressão física era um assunto muito sério e ela fora extremamente grosseira ao inferir que sua colega de classe estava tentando acertar seu rosto com uma bola. Também havia feito um discurso enorme sobre Áustria estar sofrendo com a morte do namorado e como precisava do apoio dos seus colegas. Maya quase perguntou se ele não achava melhor que recolhesse a própria insignificância e fosse para a diretoria sozinha. camiseta social. Apesar de mais velho, era um homem que se cuidava. Estava com a academia em dia. — Mas entendo que todos estamos com os ânimos aflorados. Enfrentar a morte de um aluno nunca é uma tarefa fácil, principalmente sendo alguém tão jovem e presente. Não vou colocar no currículo de vocês. — Áustria deu um sorriso aliviado. Maya estranhou. — Vão organizar a biblioteca depois da aula amanhã. Nossa bibliotecária acabou de entrar em trabalho de parto e estamos a ver navios até encontrar um novo profissional. Quero todos os livros limpos, separados por gênero e ordem alfabética. São mais de mil títulos, com certeza, vão aprender a trabalhar juntas nesse meio tempo. O telefone da mesa de Felipo tocou, interrompendo seu sermão. Ele revirou os olhos discretamente antes de atender, cansado: — Alô? Maya não conseguiu ouvir o que diziam do outro lado. — Tudo bem, já estou indo. — E voltou o telefone para o gancho. — Como eu disse, todos estamos com os ânimos aflorados. Me esperem aqui, eu já volto. Áustria assentiu para o homem, apoiando o queixo contra a palma das mãos. Seus olhos o acompanharam até a parte externa da sala e ela se levantou, assim que ouviu o som do elevador se fechar. Maya arqueou uma das sobrancelhas. — O que está fazendo? Áustria não respondeu. Caminhou até a mesa de Felipo e tentou abrir as gavetas, conquistando cinco tentativas frustradas no total. A mesa era feita com uma imponente madeira de mogno e cada uma das gavetas contava com uma fechadura de prata. Estavam trancadas. — O que está fazendo? — Maya insistiu, levantando-se. — Eu não quero levar outro esporro do diretor por sua causa. — Por minha causa? — Áustria zombou. —– Você não estaria fedendo a energético se tivesse seguido uma das regras básicas do feminismo. Não pode pegar o namorado de outra garota. — É irracional brigar comigo por um cara que já morreu! — Maya disse, então se arrependeu da forma como as palavras soaram. — Eu sei que é a pior situação possível pra se descobrir que foi traída, mas… A risada irônica de Áustria a interrompeu. — Fala sério, você e o Hélia se acham tão inteligentes... — Ela balançou a cabeça em negativa, insistindo na gaveta. — Dois meses. — Dois meses o quê? — Foi o tempo que levei pra descobrir que estavam transando. — Ela desistiu da gaveta, tentando o computador. Fez uma careta para a tela exigindo uma senha. Maya não entendeu. — E você nunca disse nada? Áustria a encarou, franzindo o cenho. — Por que eu diria? — achou graça. — Era uma situação muito cômoda pra todo mundo. Você estava vivendo seu romance proibido, eu e o Hélia ainda éramos os pombinhos da escola. As pessoas amavam a gente! Por que estragar tudo falando de uma coisa tão insignificante? — Então você não liga? — Não dou a mínima. Maya deu uma risada nervosa, descrente. — Então, por que você… — Ela apontou para si mesma. — Estou coberta de energético por porra nenhuma?! Áustria moveu a cabeça em negativa. — É diferente agora que todo mundo sabe. Essa reputação de garota traída não é boa pra mim, principalmente num momento tão… tenso. Meu namorado foi assassinado, os concursos estão chegando. Eu precisava fazer alguma coisa pro resto dos alunos saberem que não podem mexer comigo. Sabe quando a coroa portuguesa esquartejou Tiradentes e colocou a cabeça dele exposta em praça pública? É tipo isso. Maya estava pronta para rebater seu argumento, então parou. Ficou alguns segundos em silêncio, tentando recobrar a fala de Áustria. — O seu namorado o quê? — Foi assassinado. — Meu Deus, você enlouqueceu. — Como você disse, eu conhecia o Hélia melhor do que você. — Maya se soltou das mãos dela. — Então, aqui vai o que aconteceu: Ele provavelmente teve uma briga fodida com os pais, usou droga pra caramba e se afogou na piscina. Fim da história, não precisamos saber mais que isso. Áustria revirou os olhos. Ela ficou alguns instantes em silêncio, como se estivesse dividida em dizer ou não o que passava por sua cabeça naquele momento. Acabou dizendo. — Agora eu entendo por que você e o Hélia se davam bem. — Seus olhos verdes se mostravam mais tempestuosos que horas mais cedo. Agora, Maya conseguia interpretá-los: Ela estava furiosa. — É tão egoísta quanto ele. Feito um furacão, Áustria marchou para fora da sala do diretor, deixando uma Maya confusa – e ainda encharcada – para trás. — E u quero ser você quando eu crescer. — Karen abriu um sorriso de orelha a orelha, enquanto cruzavam o pátio de American Saint, com um pirulito em formato de coração preso entre os dentes. — Sério, não acredito que sua única punição vai ser organizar os livros da biblioteca. E nem vai contar pro seu currículo! Eu já fui suspensa por muito menos. Áustria deu de ombros, o nariz ligeiramente empinado em uma postura convencida. — O diretor sabe que estou de luto. Ficou com pena de mim, eu acho. — As pessoas estão te amando no Instagram — disse Karen, empolgada. — Ganhou uns mil seguidores, desde a aula de educação física pra cá. — Hélia costumava dizer que as pessoas se divertem vendo os outros serem humilhados. — Áustria ajeitou a mochila nas costas. — Parece que ele nunca esteve errado, não é? — Era costume que Hélia cuspisse seu desprezo pelos alunos de American Saint sempre que tinha oportunidade. Isso não significa que podia viver sem o amor deles. Queria todos por perto, mesmo que fosse para odiá-los. — Só espero que os jurados do concurso não pensem que sou barraqueira. — Ah, não. Na verdade, acho que vão gostar. Vai te dar mais personalidade. Pulso forte, como os mais velhos dizem. A garota pegou seu namorado, sabe? Não é como se você pudesse ficar quieta batendo palmas. Particularmente, acho que a culpa não foi só dela, mas o outro responsável está morto, então… — Passividade é o que esperam de uma miss — Áustria suspirou. — Ainda posso sofrer as consequências disso, mas coisas mais importantes estavam em jogo. — Sim — Karen assentiu, sem perceber que não sabia do que a amiga falava. — Você não podia virar uma piada entre os alunos. Conteve a situação, fim da história. Sugiro tampar o umbigo, pra afastar as energias negativas e seguir em frente. Áustria deu um sorriso complacente para a amiga. Estava pensando em contar a verdade sobre a conversa que ouvira na sala do diretor, mas tinha medo que Karen reagisse da mesma forma que Maya. Se o plano de Áustria tinha um erro, era não ter previsto a reação da garota corretamente. Pensou que gostava de Hélia o bastante para superar as diferenças que existiam entre elas e tentar entender o acontecido. No final das contas, Maya era só mais uma garotinha egoísta e não tinha como ser diferente. Se envolver com Hélia era como assinar um contrato com o próprio diabo, abdicando metade do seu caráter. Áustria resolveu tentar outra estratégia. — Acha que American Saint é uma escola segura? Karen franziu o cenho. — Sim? Tem câmeras em todo canto. — Mas elas têm pontos cegos. A da piscina, por exemplo. Se tivesse alguém com Hélia… — ela deixou o comentário solto no ar, esperando que Karen seguisse sua linha de raciocínio. — Onde está querendo chegar? — Lugar nenhum. —– Ela ergueu as duas mãos, como se estivesse se rendendo. — Estava vendo uns filmes de terror sobre assassinatos misteriosos em escolas. Acho que fiquei impressionada, só isso. — O que eu vou dizer agora vai parecer doido. — Karen parou, de repente, segurando um dos braços da amiga. — Mas quando soube da morte, achei que fosse um assassinato. — Não — disse, pensativa. — Ele era meu amigo. Estou no seleto grupo de pessoas que não tinham motivos. Eu seria uma péssima assassina. Teria preguiça de limpar a cena do crime. Áustria arqueou uma das sobrancelhas finas. Antes que pudesse tecer qualquer comentário, Karen prosseguiu a conversa. — Nada disso importa. — Ela balançou o celular na frente do rosto de Áustria, mostrando a notificação de um aplicativo de notícias. Seus pais eram jornalistas, o que explicava seu vício por assinaturas online. — Acabou de sair a nota oficial. — Tem razão. — Áustria deu um meio sorriso. — Que bom que ele não foi assassinado, eu acho. — Espero que desativem o Instagram logo. — Karen mordeu um pedaço do pirulito, partindo o coração em dois. — É tão insensível hackear o perfil de uma pessoa morta. Áustria concordou, uma expressão de nojo despontando na face. Enquanto se dirigiam para a saída de American Saint, Áustria começava a pensar que era melhor manter as coisas como estavam. Maya tinha razão em dizer que eram só adolescentes. Apesar de tudo, o diretor Felipo tinha um bom coração – tinha? Ele não iria subornar a polícia se essa não fosse sua última alternativa. Situações extremas pedem medidas extremas. E uma investigação não traria Hélia de volta. — Áustria — ela parou quando ouviu chamarem seu nome —, meninas — Yuri se corrigiu, dando um sorriso simpático ao notar a ruiva. — Estão indo almoçar? Karen fez que sim. — Áustria quer experimentar o novo restaurante de sushi do Jardins — respondeu, sem muito interesse, só porque a amiga não tinha o feito. Áustria deu um sorriso para parecer mais simpática. Tinha trocado poucas palavras com Yuri Pimenta ao longo do ano letivo, mas os corredores o chamavam de Leonardo DiCaprio. Segundo as boas línguas, ele se parecia muito com o ator, no auge dos seus dezoito anos, mas Áustria achava que os dois eram apenas loiros e de pele branca. — Meu pai foi lá na semana passada. — Yuri parecia radiante por ter encontrado um assunto em comum para aquela roda de conversa. Áustria não prestou atenção no que ele falava. Deu uma boa olhada em seu rosto – maxilar quadrado, pele bem cuidada, olhos bonitos – e desceu por sua roupa, tentando encontrar algum sinal de personalidade. Ele parecia ser do tipo que preferia usar as próprias roupas ao uniforme de American Saint, o que era permitido, desde que não usassem nada colorido. Em sua bolsa, não encontrou nenhum botton. Nenhum fone embolado no meio de embalagens de bala e moedinhas de dez centavos. Era uma bolsa tão neutra quanto ele. O primeiro indício de que era uma pessoa e não um manequim estava nos pés. Seu tênis ostentava a marca Yeezy, assinada pelo Kanye West. Era preto com solas verde-fluorescentes, e Áustria sabia que custava uma fortuna, mesmo que não fosse tão bonito. Levantou os olhos para o rosto de Yuri, então percebeu que Maya estava logo atrás dele, sentada em um dos bancos do pátio. Seu cabelo ainda manchado de verde, mas uma touca colorida – não permitida pelo código de vestimenta – disfarçava o estrago. Tinha trocado suas roupas sujas por limpas e refeito a maquiagem. Parecia distraída demais para notar que Áustria olhava em sua direção e, se notasse, talvez levantasse o dedo médio. Rabiscava alguma coisa em um caderno de anotações, os fones de ouvido no lugar de sempre e os dentes pressionando o lábio inferior, como se a vida dependesse disso. Era um fenômeno interessante de se observar, porque ela se mexia demais no banco, girando e cruzando as pernas, mudando de posição a cada minuto. Como assistir uma chuva de meteoros, talvez. Se você pisca, perde algo importante. — O que você acha? — Yuri perguntou, um tanto incisivo. Áustria percebeu que tinha passado tempo demais olhando para Maya e perdido boa parte daquela conversa que, por sua culpa, se tornara um monólogo. Ela cerrou os olhos. Ele tinha um olhar doce e um quê malicioso no sorriso, então Áustria deduziu que estava sendo convidada para sair. Tentou calcular as vantagens e as desvantagens, antes que o silêncio ficasse vergonhoso. Ele era bonito e relativamente popular, mas não tinha certeza se cairia bem sair com uma pessoa dias depois da morte de Hélia. — Claro, você pode almoçar com a gente. — Ela sorriu e apoiou uma das mãos em seu ombro ao responder, esperando que fosse suficiente para que o garoto relevasse qualquer gafe. No fundo, Yuri sabia que ela não tinha prestado atenção em nenhuma palavra que saíra de sua boca, mas não diria nada porque queria conquistá-la.