Baixe Memórias de Cego: o auto-retrato e outras ruínas - Jacques Derrida e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Filosofia, somente na Docsity! Jacques Derrida FÚNDAÇÃÔ CALOUSTE G u Lb ENKIAN Serviço de Educação e Bolsas Jacques Dcrrida (1930-201)4) é, no dizer de Paul Ritoeur, «o pensador mais criacivo do nosso tempo» - o seu nome está ligado à Desconstrução, um pensamento filosófico de recorte aporérico que, apesar da aparenre negacividade que se dá a ouvir na sua designação, está sempre do lado da afirmação incondicional c, por isso, incondicionalmcnte sempre do lado da resposta, da resposta responsável, da justiça, da invenção e do porvir. Professor convidado de diversas universidades europeias e norte-americanas a partir do Outono de 1968, (Berlim. San Scbasrian, Johns Hopkins, Yale, Irvinc, New School for Social Research, Cardozo Law School, Cornell, New York Univcrsiry. ...); membro fundador do Coüègs International de Philosopbie de Paris, de quem foi o primeiro dircctor eleito: membro estrangeiro honorário, desde 1985, da American Academy of Am and Sciences e da Modem Language Association o f América, presidente honorário do ParUment International des Feri vai nr, Doutor Honoris Causa por mais de duas dezenas cc universidades - nomeada mente pela Universidade de Coimbra, a 16 de Novembro de 2003 nomeado, em 2002, para a Cátedra Gadamer na Universidade dc Hcidclberg por designação expressa do próprio filósofo alemão; depois dc ter leccionndo na Sorbonne (1960-1964) c na fcole Normale Supericure dc Paris (1964-1984), J. Dcrrida foi D irector de Estudos na Écolc des Hautes Études en Sciences Socialesde Paris, onde ensinou de 1984 a Março de 2003, e é autor de uma obra imensa a que entretanto se junta a edição em curso dos seus Seminários. Uma obra imensa a rondar os cem títulos que repensa todas as áreas dos sabores e das artes, repensando também, a partir da sua singular distinção entre pensamento c filosofia, as diversas áreas que ixadicionalmence compõem o próprio corpus filosófico, c da qual, entre nós, ate ao momento se contam traduzidos pouco mais de uma vintena de títulos - um quase nada que poe a nu o tanto que, para nós, que tanto aspiramos a ser contemporâneos, há a fazer no horizonte dc uma União Européia e de um mundo que sc diz em mundiali/ação onde a única língua admitida só pode mesmo ser a da "tradução": a saber. “A estrurura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”; Posições; Margens da Filosofia: O Outro Cabo; A Voz e o Fenômeno; 'Fé c saber”: Dc um Tom Apocalíptico adaptado há pouco em Filosofa; Cosmopolitas de rodos os Países, mais um Esforçai, O Monolinguismo do Outro-, Véus... à oe.be, “A Língua do Estrangeiro - Discurso de recepção do Prêmio Adorno em Frankfurt"; Che cos> la Poesiai, Da Hospitalidade; A Universidade sem Condição; Força de Lei', Políticas da Amizade, O Soberano Bem; Sob Palavra. Instantâneos Filosóficos; Morada. Maurice Rlanchot, “Auto-imunidades: Suicídios' reais e simbólicos”; Aprender Finalmente a Viver. Carneiros. O Diálogo Ininterrupto: entre Dois Infinitos, o Poema e Vadios. Fernanda Bernardo é professora dc Filosofia na Universidade de Coimbra: de longa dara filosoficamente posicionada na Desconstrução, tcm-sc dedicado à investigação e ao ensino do pensamento de Jacques Dcrrida e à tradução da sua obra para a nossa língua. Autora do livro Nomes do Impossível J. Em memória da esperança e de vários artigos em torno do pensamento desce filósofo (mas também de Heidcgger, Lévinas, Blanchor e Nancy) em revistas e livros nacionais e internacionais, organizou, dc 17 a 19 dc Novembro de 2003, o Colóquio Internacional A Soberania. Critica, Desconstrução, Aporias (actas in Dcrrida em Coimbra! Dcrrida à Coimbra) que trouxe Dcrrida c alguns dos seus principais especialistas internacionais a Coimbra que, a partir desse momento, c como um reflexo concreto do seu pensamento da “soberania” política em tempos de ■‘mundialização". passou também a integrar a Rede Internacional das Csda des-Refúgio, afecta ao Parlemem International des Écrivains (Strasbourg), de que Fernanda Bernardo foi também a representante portuguesa por Coimbra. Jacques Derrida - Deverei eu apenas escutar? Ou observar? Olhá-lo em silêncio a mostrar-me desenhos? - Ambas as coisas, uma vez mais, ou entre ambas. Fá-lo-ei observar que a leitura não procede diferentemente. Escuta olhando. Eis uma primeira hipótese. o desenho é cego, senão mesmo o desenhador ou a desenhadora. Enquanto tal e no seu momento próprio, a operação do desenho teria qualquer coisa a ver com a cegueira [aveuglement*]. Nesta hipótese abocular (aveuglevem de ab oculis*. não tanto a partir ou pelos olhos mas sem os olhos), há que entender isto: o cego pode ser um vidente, tem por vezes vocação de visionário. Segunda hipótese, enxertia do olho, enxertia de um ponto de vista no outro: um desenho de cego é um desenho decego. Duplo genitivo. Não há aqui nenhuma tautologia mas uma fatalidade do auto-retrato. De cada vez que um dese nhador se deixa fascinar pelo cego, de cada vez que ele faz do cego um tema do seu desenho, projecta, sonha ou alucina uma figura de desenhador ou, mais precisamente por vezes, de alguma desenhadora. Mais precisamente ainda, começa a representar uma potência desenhadora a operar, o próprio acto do desenho. Inventa o desenho. O traço [trait] não se paralisa então na tautologia que dobra o mesmo ao mesmo. Pelo contrário, está à mercê da alegoria, deste estranho auto-retrato do desenho abandonado à palavra e ao olhar do outro. Subtítulo então de todas as cenas de cego: a origem do desenho. Ou, se prefe rirem, o pensamento do desenho, uma certa pose pensativa, uma memória do traço que especula em sonhos acerca da sua própria possibilidade. A sua potên cia desenrola-se sempre à beira da cegueira. A cegueira mergulha nela, e ganha justamente aí em potência: ângulo de visão ameaçada ou prometida, perdida ou devolvida, dada. Há neste dom como que um re-traimento/re-traçamento do traço [re-trait *), ao mesmo tempo a interposição de um espelho, a reapropriação ou o Indecidibilidade com que o filósofo joga nesta obra na sua desconstrução do privilégio da autori dade do olhar, do óptico, do cidético, do theorein ou do teorético: um privilégio que, como o filósofo referirá, desde o ridos platônico até ao objecto ou à objectividade moderna, permite ler a his tória da filosofia como uma história da visibilidade - destino que ela partilha com as artes do visível. N.T.: «Aveuglement» e «Cécitê» são as palavras aqui usadas para «cegueira»: optám os por traduzi-las quase sempre por «cegueira», optando em bora por indicar entre parênteses as situações, mais raras, nas quais o filósofo usa a palavra «cécitê». Uma ou outra vez, em função do contexto, traduzimos tam bém «aveuglement» p o r «enceguerimento» e por cegamento. N.T.: A palavra «retrait» consente no idioma derridiano um a dupla escuta - duplici dade que, notem o-lo, dobra o sentido de cada uma delas à outra. Assim, «retrait» é passível de, ao mesmo tem po, se dar a ouvir com o o substantivo do verbo «retirer» (retirar, retrair), mas tam bém , e não sem um «abuso violento» no dizer do próprio D errida, com o o substantivo do verbo «retracer» (retraçar). Esta a razão pela qual optám os por traduzir aqui «re-trait» por «re-traimento/re-traçamento do traço» a fim de - não sem tautologia, dado o sentido de «traço» para Derrida, que pressupõe sempre o retraimento, o apagamento, a interrupção ou a suspensão 10 M em órias de Cego luto impossíveis, a intervenção de um Narciso paradoxal, por vezes perdido em abismo, em suma, uma dobra ou prega [repli\ especular - e um traço suplemen tar. Mais vale nomear em italiano esta hipótese do retraimento/retraçamento do traço [retraii\ em memória de si a perder de vista: lautoritratto do desenho. Precisamente por esta razão, perdoar-me-á por eu começar o mais rente a mim. Acidentalmente, e por vezes à beira do acidente, acontece-me escrever sem ver. Não, sem dúvida, com os olhos fechados. Mas abertos e desorientados na noite; ou, pelo contrário, de dia, com os olhos fixos noutra coisa, olhando algures para outro lado, diante de mim, por exemplo, quando vou ao volante: rabisco então alguns traços nervosos com a mão direita, num papel preso ao painel de bordo ou caído ao pé de mim no assento. Algumas vezes, sempre sem ver, em cima do próprio volante. São anotações para não esquecer, grafites ilegíveis, dir-se-ia em seguida uma escrita cifrada. O que é que se passa quando se escreve sem ver? Uma mão de cego aven tura-se solitária ou dissociada, num espaço mal delimitado, tacteia, apalpa, acaricia tanto quanto inscreve, fia-se na memória dos signos e suplementa a vista, como se um olho sem pálpebra se abrisse na ponta dos dedos: o olho a mais acaba de brotar rente à unha, um único olho, um olho de zarolho ou de ciclope. E dirige o traçado [tracé| - é uma lâmpada de mineiro na ponta da escrita, um substituto curioso e vigilante, a prótese de um vidente ele mesmo invisível. Do movimento das letras, do que assim inscreve este olho no dedo, a imagem esboça-se sem dúvida em mim. A partir do retraimento [retraii\ absoluto de um centro de comando invisível, um poder oculto assegura à distância uma espécie de sinergia que coor dena as possibilidades de ver, de tocar, de mover. E de ouvir e entender [entendre], *• daquilo mesmo que «traça» dar conta do «suplemento de traço», isto é, de um «traço» (trait) que, • retira ndo-se» ou «retraindo-se» (e justamente porque se retrai ou se retira ao grafar-se) se retraça, reiterando-se ou suplementando-se. Por sua vez, «retrait» foi quase invariavelmente traduzido por - retraimento/retraçamento» - salvo nos momentos em que Derrida explicita cada um destes gestos. Um quase sinônim o de «rastro» [trace1, «retrait» dá conta da singular relação de Derrida a Heidegger e à sua concepção do «caracter cam inhante do pensamento» ( Wegscarachkter des Denkens): «retrait» visa justam ente traduzir a «Entziehung> (sentido suspensivo de «retrait») do ser. a partir da qual, para o filósofo alemão, se desenrola a metafísica ocidental, dos pré-socrá- ticos a Husserl: «A palavra retrait - ao mesmo tempo intacta, e forçada, excepto na m inha língua e sim ultaneam ente alterada presumi-a eu como a mais própria para captar a maior quantidade de energia e de informação no texto heideggeriano (...)», J. Derrida, «Le retrait de la métaphore» in Psycbé. Inventions de lautre. Galilée, Paris, 1987, p. 77. N. [.: É sobretudo em «La double séance», e no âm bito da sua leitura de Mallarmé, que Derrida salienta a relação existente entre dobra ou prega [plí\ ou re-prega [repli] (a própria textura ou abissal idade do texto, no fundo a própria (arqui-)escrita) e a disseminação como gesto próprio à desconstrução como pensamento na sua diferença com a polissemia e a reflexão em geral - nomeadamente a inerente à Aufhebttng hegeliana, cf. J. Derrida, opus cit., in La Dissémination, Seuil, Paris, 1972 - sobretudo pp. 290-303. 11 Jacques Derrida porque são já palavras de cego que eu assim desenho. É sempre preciso lembrar que a palavra, o vocábulo se ouve e se entende [entend\, que o fenômeno sonoro permanece invisível enquanto tal. Preocupando em nós o tempo mais do que o espaço, ele não se endereça somente de cego a cego, como um código para não-vidente, na verdade fala-nos, todo o tempo, da cegueira que o constitui. A linguagem fala-se, o que quer dizer da cegueira. Ela fala-nos sempre da cegueira que a constitui. Mas quando ainda por cima escrevo sem ver, aquando da experiência excepcional que evocava há instantes, na noite ou com os olhos algures noutro lado, já um esquema se anima na minha lembrança. Virtual, potencial, dinâmico, este gráfico ultrapassa todas as fronteiras dos sentidos, o seu ser-em-potência é ao mesmo tempo visual e auditivo, motor e táctil. Mais tarde, a sua forma aparecerá à luz do dia como uma fotografia revelada. Mas de momento, no preciso momento em que escrevo, não vejo literalmente nada destas letras. Por mais raras ou teatrais que sejam - eu dizia-as «acidentais» - , estas experiências impõem-se todavia como uma encenação exemplar. O extraor dinário lembra-nos ao ordinário do que acontece todos os dias, à própria experiência do dia, ao que sempre conduz a escrita através da noite, (não) mais longe [plus loin] do que o visível ou o previsível. «Plus loin» pode significar aqui o excesso ou a privação. (Não) mais saber, (não) mais poder: a escrita entrega-se antes à antecipação. Antecipar é tomar a dian teira, tomar (capere) antecipadamente {ante). Diferentemente da preci pitação, que expõe a cabeça (praecaput), que se atira de cabeça, de cabeça no ar, a antecipação seria antes coisa da mão. O tema dos desenhos de cego é antes de mais a mão. Esta aventura-se, precipita-se, é certo, mas desta vez nas vezes da cabeça, como que para a preceder, prevenir e proteger. Parapeito. A antecipação protege da precipitação, adianta-se ao espaço para ser a primeira a agarrar, para se lançar para diante no movimento da preensão, do contacto ou da apreensão: de pé, um cego explora às apalpadelas a extensão que deve reconhecer sem ainda a conhecer - e o que na verdade ele apreende é o precipício, a queda - e ter já franqueado alguma linha fatal, com a mão desprotegida ou armada (a unha, a bengala ou o lápis). Se desenhar um cego é, em primeiro lugar, mostrar mãos, é dar assim a observar o que se desenha com a ajuda daquilo com que se desenha, o corpo próprio como instrumento, o desenhante do desenho, a mão das manipu lações, das manobras, das maneiras, os jogos de mão ou o trabalho da mão, o desenho como cirurgia'. O que quer dizer «com» na expressão «desenhar com N. T.: Nesta passagem em que Derrida joga com o próprio «jogo da mão» (manobras, wá«ipulações, mane iras) para pensar a origem invisível do desenho ou do traço em geral, lembremos que a própria palavra cirurgia, que vem do grego kheir, kheiros (mão), significa literalmente «o trabalho das mãos». 12 Jacques Derrida o u a m ã o c a r id o s a , a m ã o d o o u t r o q u e lh e s p r o m e te a v is ta . G o s ta r i a m d e s e g u ir o o lh a r d o o u t r o q u e n ã o v ê e m . G o s t a r i a m d e p r e v e r a li o n d e n ã o v ê e m a in d a , q u e r p a r a e v i ta r e m c a ir , n o s e n t id o fís ic o d a q u e d a , q u e r p a r a se r e e r g u e r e m d e u m a q u e d a e s p i r i tu a l , e é e n tã o J e s u s q u e , d i a n t e d e le s , e s te n d e a m ã o , e le c u jo m in i s t é r io fo i p r im e i r a m e n te a n u n c ia r « ao s c e g o s a r e c u p e r a ç ã o d a v is ta » 2. «“ R e c u p e r a a v is ta . A t u a fé te s a lv o u ” , d iz C r i s to a o c e g o d e J e r ic o . N a q u e le m e s m o in s t a n t e r e c o b r o u a v is ta e s e g u iu J e s u s , g lo r i f ic a n d o a D e u s .» 3 O m e s t r e d e v e r d a d e é a q u e le q u e v ê e g u ia o o u t r o p a r a a lu z e s p i r i tu a l : « P o d e u m c e g o g u ia r o u t r o ceg o ? N ã o c a i r ã o o s d o is n a lg u m a co v a? N ã o e s tá o d is c íp u lo a c im a d o m e s tr e , m a s o d is c íp u lo b e m f o r m a d o s e rá c o m o o m e s tre . P o r q u e re p a ra s n o a r g u c i r o q u e e s tá n a v is ta d o t e u i r m ã o , e n ã o r e p a ra s n a t r a v e q u e e s tá n a t u a p r ó p r i a v is ta ? » 4 U m d e s e n h a d o r n ã o p o d e n ã o se r a t e n to a o d e d o e a o o lh o , s o b r e tu d o à q u i lo q u e toca o o lh o , à q u i lo q u e o a p o n ta o u to c a c o m o d e d o [le touche du doigt] p a r a d a r f in a lm e n te a ver. J e su s c u r a p o r v ezes o s c e g o s a tra v é s d e s im p le s to q u e , c o m o se lh e b a s ta s se d e s e n h a r n o a r o c o n to r n o d a s p á lp e b ra s p a ra lh e s d e v o lv e r a v is ta . A ss im : « Q u a n d o ia m a s a ir d e J e r ic o , u m a g r a n d e m u l t id ã o s e g u iu J e su s . N is to , d o is c e g o s q u e e s ta v a m s e n ta d o s à b e ira d a e s t r a d a , ao o u v i r e m d iz e r q u e J e su s ia p a ssa r, c o m e ç a r a m a g r i ta r : “ S e n h o r , f i lh o d e D a v id , t e m m is e r ic ó rd ia d e n ó s !” A m u l t id ã o re p re e n d ia -o s p a r a o s fa z e r ca la r, m a s eles g r i ta v a m c a d a v ez m a is : “S e n h o r , f i lh o d e D a v id , t e m m is e r ic ó r d ia d e n ó s !” J e su s p a r o u , c h a m o u - o s e p e r g u n t o u - l h e s : “ Q u e q u e r e i s q u e v o s fa ç a ? ” R e s p o n d e r a m - lh e : “S e n h o r , q u e o s n o s s o s o lh o s se a b ra m !” D o m in a d o p e la c o m p a ix ã o , J e su s to c o u - lh e s n o s o lh o s . I m e d ia ta m e n te r e c u p e r a r a m a v is ta e s e g u ir a m -n o .» 5 C o m o o t o q u e , a im p o s iç ã o d a s m ã o s o r i e n t a o d e s e n h o . É s e m p r e 4 p re c is o l e m b r a r a o u t r a m ã o o u a m ã o d o o u t r o . L a F a g e d i s t r i b u i a s m ã o s d e ta l m a n e i r a q u e , n o m o m e n t o e m q u e o in d i c a d o r d a m ã o d i r e i t a m o s t r a , tocando-o, o o lh o e s q u e r d o d o c e g o , e s te ú l t im o to c a c o m a s u a m ã o d i r e i t a o b r a ç o d e C r i s to , c o m o q u e p a r a a c o m p a n h a r o s e u m o v im e n to , e e m p r im e i r o lu g a r p a r a d e le se c e r t i f i c a r n u m g e s to d e p re c e , d e im p lo r a ç ã o o u d e g r a t id ã o . C a d a u m a d a s m ã o s e s q u e r d a s p e r m a n e c e r e t r a íd a [en retrait]. C o m p a r e - s e - a s 5 às m ã o s e s q u e r d a s d o d e s e n h o d e R ib o t : a d e C r i s to e s tá a b e r t a e v o l t a d a p a r a 2 5. Lucas, 4: 18 (D e rrid a c ita a p a r tir d a trad u ção francesa de L. S cgond , N ouveile éd itio n d e G enève, Paris, 1979). N . T.: Seguim os aqu i a trad u ção p o rtuguesa da B íblia sob a coordenação geral dc H c rcu lan o Alves (ofm cap) (D ifuso ra Bíblica, Franciscanos C ap u ch in h o s , I.isboa/Fátim a, 200 0 ). 3 S. Lucas, 14: 4 2 -4 3 , cf. tam b ém 5. João 9: 1 ss; S. M arcos 8: 22 ss. 4 S. Lucas, 6: 3 9 -4 2 . 5 S. M ateus , 20: 2 9 -3 4 ; cf. S. M arcos, 10: 4 6 -5 3 ; S. Lucas, 18: 3 5 -4 3 . 16 3. Antoinc Trouvain, segundo Antoine Coypcl, Cristo,! Curar os Cegos tU Jrricà. Biblioteca Nacional. - *o«nnc Cnvpel risudo ã t Ctgo, Museu do Louvre. V • ; ia Fxptmção) Jacques Derrida e le , e n q u a n to a d o c e g o se a b re p a ra o a l to (o fe re n d a , p re c e , s ú p lic a , im p lo ra ç ã o , g ra ç a ) . C o m a m ã o d ir e i ta e le s e g u ra a in d a f i r m e m e n te , e n t r e as p e rn a s , a b e n g a la d e q u e n ã o e s tá p r o n to a e s q u e c e r q u e e la fo i o se u o lh o d e s o c o r ro , p o d e r - s e - ia d iz e r a s u a p ró te s e ó p t ic a , m a is p re c io s a d o q u e a m e n in a d o s seu s 6 o lh o s . Q u a n t o a F e d e r ic o Z u c c a r o , p o v o a o e sp a ç o d a c u ra , é u m a im e n s a m u l t id ã o , e n t r e u m a c o lu n a e n o r m e e m r e d o r d a q u a l se e n r o la u m h o m e m d e n á d e g a s c a r n u d a s e o a l t ís s im o b o r d ã o d o c e g o s e n ta d o , c o m as m ã o s j u n t a s d e s ta fe ita , e a m p la m e n te u l t r a p a s s a d o p e la d im e n s ã o d o s e u in s t r u m e n to . 7 O c e g o d e L u c a s d e L e y d e é m e n o s p a s s iv o . E le m e s m o , c o m a p r ó p r i a m ã o , t e r á d e s ig n a d o o s s e u s o lh o s , te r á m o s t r a d o a s u a c e g u e ir a a C r is to . A p re s e n ta n d o - s e a si m e s m o , c o m o se u m ceg o fizesse o se u r e t r a to , o a u to - r e t r a to d e u m c e g o c o n t a n d o a s u a p r ó p r i a h i s tó r i a n a p r im e i r a p e s s o a , e le te rá in d ic a d o , lo c a liz a d o , c i r c u n s c r i to a c e g u e ira [cécite] c o m a s u a m ã o d ir e i ta v ira d a p a ra o ro s to , a p o n ta n d o o in d ic a d o r p a ra o o lh o d ire i to . V ir a d o p a ra o s e u o lh o , o g e s to d o d e d o m o s t r a , m a s n ã o to c a o p r ó p r io c o r p o . A u m a d is tâ n c ia c o n v e n ie n te o u r e s p e i to s a , d e s e n h a u m a e s p é c ie d e a u to d e í c t i c o o b s c u r o , n o c t u r n o m a s s e g u ro . E s t r a n h a f le x ã o d o b r a ç o o u re f le x ã o d a p re g a . A u to - -a fe c ç ã o s i le n c io s a , r e t o r n o a si, r e la ç ã o a si s e m v is ã o n e m c o n ta c to . D ir - s e - ia q u e o c e g o se r e fe re a si m e s m o , c o m o b r a ç o d o b r a d o , a li o n d e , in v e n ta n d o u m e s p e lh o s e m im a g e m , u m N a r c is o c e g o d á a v e r q u e n ã o v ê . E le m e s m o se m o s t r a , m a s a o o u t r o . M o s t r a - s e c o m o d e d o como c e g o . E a s s im , e i- lo q u e g u ia a m ã o d o S a lv a d o r c o m o se o o u t r o n ã o v is se a in d a o o lh o a c u ra r . O e n f e r m o m o s t r a e n t ã o e s p e r a n d o , i m p lo r a n d o , r o g a n d o . D e s e n h a , e n o e s p a ç o d e u m a p r o m e s s a j á r e c e b id a . A o m o s tr a r , faz a lg u m a c o is a . T a l c o m o q u a lq u e r d e s e n h o , o m o v im e n to d a m ã o d i r e i t a n ã o se c o n t e n t a e m d e s e n h a r , d e s c re v e r o u c o n s t a t a r a v e r d a d e d o q u e é. N ã o r e p r e s e n ta , n e m a p r e s e n ta a p e n a s - ag e . Q u a n t o à m ã o e s q u e r d a , s e g u r a f i r m e m e n te u m lo n g o b o r d ã o c o la d o à p e r n a d i r e i ta . O a u x i l ia r d e m a d e i r a r íg id a p a s s a c u r io s a m e n te e n t r e e le e a c r ia n ç a , ta lv e z o s e u f i lh o , e m t o d o o c a so o s e u g u ia , u m a u x i l ia r a m a is , m a s v iv o d e s ta v e z , p o r q u e se v ê , d e c o s ta s , a s e g u r a r o c e g o p o r u m a p re g a d o s e u v e s tu á r io . O jo g o d o s d e d o s c a lc u la - s e . E n q u a n t o a m u lh e r , p o r d e t r á s d o e n f e r m o , a p o n t a o i n d i c a d o r d a m ã o e s q u e r d a n a m e s m a d ir e c ç ã o q u e o d o c e g o , c o m o q u e p a r a m o s t r a r a c e g u e i r a [cécite] d o o u t r o d e q u e e la a c o m p a n h a n o e n t a n t o a a u to m o s t r a ç ã o , o r a p a z in h o , p o r s u a v ez , o r i e n t a o i n d i c a d o r d a s u a m ã o d i r e i ta , a m e s m a q u e a d o c e g o , e m s e n t id o c o n t r á r io , d e s ta v ez n ã o p a ra m o s t r a r , m a s p a r a to c a r , a g a r r a r e s e g u ra r . A m ã o d i r e i t a d e J e s u s e s te n d e - s e , e m b o r a a in d a à d is tâ n c ia , e e s b o ç a o g e s to d e a c o m p a n h a r , como a mulher diante dele, a m ã o d i r e i t a d o c e g o : e m e s p e lh o , e m t o r n o d a q u i l o a q u e c h a m á m o s o e s p e lh o s e m im a g e m . Q u a n t o à m ã o e s q u e r d a d o S a lv a d o r , 18 Jacques D errida a f a d ig a - s c s o b r e o s e u v e n t r e , c o m o a d a c r i a n ç a e m r e d o r d a s p r e g a s d o f a to , d o s e u d e s ta fe i ta , p a r a as a g a r ra r , s e g u ra r , r e te r , d i r - s e - ia , à a l tu r a d o o lh a r p a r a a c r ia n ç a . P e c a d o , f a l ta o u e r ro , a q u e d a s ig n if ic a t a m b é m q u e a c e g u e ir a viola a q u i lo a q u e se p o d e c h a m a r a q u i a N a tu r e z a . E u m a c id e n te q u e i n t e r r o m p e o c u r s o d a s c o isa s o u t r a n s g r id e as le is n a tu r a is . E d e ix a p e n s a r , p o r v eze s , q u e o m a l a fe c ta , a o m e s m o t e m p o q u e a N a tu r e z a , u m a n a tu r e z a d a v o n ta d e - a v o n ta d e d e s a b e r [savoir'] c o m o v o n ta d e d e v e r [voir], U m a m á v o n ta d e te r ia le v a d o o h o m e m a f e c h a r a si m e s m o o s o lh o s . O c e g o n ã o q u e r s a b e r o u a n te s g o s ta r ia d e n ã o s a b e r : o u se ja , d e n ã o v er. Idein, eidos, idea: t o d a a h i s tó r ia , t o d a a s e m â n t ic a d a ideia e u r o p e ia , n a s u a g e n e a lo g ia g re g a , s a b e m o - lo , v e m o - lo , 8,9 c o n s ig n a o v e r a o sa b e r . V e d e a a le g o r ia d e O Erro, o h o m e m d e o lh o s v e n d a d o s d e C o y p e l . Naturalmente o s se u s o lh o s poderíam v e r. M a s e s tã o vendados ( le n ç o , x a ile , te la , v é u , c o m u m tê x t i l , e m to d o o c a so , q u e se a ju s ta a o o lh a r e se a ta a t r á s d a c a b e ç a ) . V e n d a d o s , o s o lh o s n ã o o e s tã o n a tu r a lm e n te , m a s p e la m ã o d o o u t r o , o u p e la s u a , o b e d e c e n d o a u m a lei q u e n ã o é n a tu r a l o u f ís ic a , u m a v e z q u e o n ó , p o r d e t r á s d a c a b e ç a , p e r m a n e c e a o a lc a n c e d a m ã o d o s u je i to q u e p o d e r ia d e s fa z ê - lo : c o m o se o s u je i to d o e r r o c o n s e n t is s e n a q u i lo q u e a s s im lh e v e n d a o s o lh o s , c o m o se e le f ru ís s e c o m o s e u s o f r im e n to e a s u a e r r â n c ia , c o m o se a e sc o lh e s s e , n o r is c o d a q u e d a , c o m o se b r in c a s s e a p r o c u r a r o o u t r o n o d e c u r s o d e u m s u b l im e e m o r ta l jo g o d a c a b ra -c e g a . E s tá e m jo g o o s e u q u e r e r , é e le q u e se e n c o n t r a a s s im « v e n d a d o » , c o m os o lh o s v e n d a d o s . Q u e d iz D e s c a r te s d o e r ro , e s te p e n s a d o r d o o lh o q u e a n a l is o u u m d ia a s u a in c l in a ç ã o « p a ra g o s ta r» d a s « p esso as vesgas»? P a ra o a u to r d e La dioptrique, q u e t a m b é m s o n h a v a f a b r ic a r ó c u lo s e d e v o lv e r a v is ta a o s c e g o s , o e r ro é c m p r i m e i r o lu g a r u m a c r e n ç a o u a n t e s u m a opinião: c o n s i s t i n d o e m a q u ie s c e r , e m d iz e r s im , e m opinar d e m a s ia d o c e d o , e s ta fa lta ào juízo, n ã o d a p e rc e p ç ã o , tra i o ex cesso d a v o n ta d e in f in i t a e m re la ç ã o a o e n te n d im e n to f in i to . E s to u n o e rro , e n g a n o - w e p o r q u e , c a p a z d e m o v e r a m i n h a v o n ta d e a o in f in i to e n o p r ó p r io in s ta n te , p o s s o q u e r e r ir p a r a a lé m d a p e rc e p ç ã o , q u e r e r p a ra a lé m d o ver. E n g a n a r - m e - e i e u p o r m i n h a vez? A c a s o s o u v í t im a d e u m a a lu c in a ç ã o q u a n d o c re io v er, a tr a v é s d e s te Erro d e C o y p e l , a f ig u ra d e u m d e s e n h a d o r a t r a b a lh a r ? E x p l ic a r - m e -e i m a is ta rd e . N .T .: N ote-se q u e no idiom a de D crrida a palavra «voir» (ver) in tegra o corpo da palavra «savoir», (saber): coincidência explorada p o r H élène C ixous no texro in titu lado «Savoir» - quase traduzido ou m a l traduzido para português por «Saber ver» - e p o r Jacques D errida na leitura que dele faz em «U n ver à soie»: am bos os textos integram a obra Voiles (Galilée, Paris, 1998) - trad. p o rt. V éus... à Vela, trad . F e rn an d a B ernardo , Q u a r te to , C o im b ra , 20 0 1 . 20 9. Louis Dc»placi$. segundo Antoinc Coypd. O Ifm po Desvelando <7 Verdade, Biblioteca Nacion.il. Jacques Derrida Em todo o caso, a este Erro de um homem de pé, só, curioso, preocupado em ver e em tocar, com as mãos inquietas, entregue dos pés à cabeça ao esboço tanto quanto à finta, eu não lhe encontro nenhuma semelhança, embora se trate ainda de uma aventura do conhecimento, com os prisioneiros acorrentados à opinião na caverna de A República. A própria espeleologia platônica revela, não o esqueçamos, uma «imagem» de todas as cegueiras possíveis, um «ícone», diz frequentemente Platão, palavra que também se traduz por alegoria. Ainda cegos para com a ideia das próprias coisas, de que contemplam as sombras projectadas pelo fogo na parede que está diante deles, os prisioneiros estão acorrentados desde a infância, «de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente, são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões»6. Uma conversão libertá-los-á da prisão fenomenal do mundo visível. Mas antes desta fulgurante anabasis, que é também uma anamnésia, antes desta paixão da memória que, no risco de uma outra cegueira [cécite], virará o olhar da alma para o «lugar inteligível», estes prisioneiros sofrem da vista, é certo, e sofrerão ainda, porque «as perturbações visuais são duplas, e por dupla causa, da passagem da luz à sombra, e da sombra à luz»7. Mas Platão representa-os imóveis. Nunca eles estendem as mãos para a sombra (skia) ou para a luz (phós), para as silhuetas ou para as imagens que se desenham na parede. Em direcção a esta skia- ou />/wío-grafia, com vista a esta escrita de sombra ou de luz, eles não se aventuram, como o homem sozinho 6 Platão, A República, trad. Maria Helena da Rocha Pereira, ed. Fundação C. Gulben- kian, Lisboa, 514 a. [N. T.: Derrida cita a partir da trad. fr. Chambry, ed. Budé, Paris.] 7 Platão, A República, 518 a. Que diz ainda Sócrates, aquele que Nietzsche [N.T.: na Origem da Tragédia, secção 14] denom inou «olho de ciclope»? No Fédon, ele propõe prudente mente, e a seguir finge retirar uma analogia (um tropo, tropos, um desvio de retórica) para explicar esta espécie de conversão que desvia da intuição directa ou que vira ainda o olhar para o invisível: tal como o medo da cegueira pode levar a olhar um astro deslumbrante de forma indirecta (virando-se, por exemplo, para o seu reflexo na água), também é necessário refugiar-se nos «logoi», para ver (skopeiri), é certo, a «verdade das coisas que são» (tôn ontôn tem aletheian), mas para a ver nestas formas invisíveis que são justamente os logoi (idéias, palavras, discursos, razões, cálculos): «[...] e uma vez que me tinha desiludido da investigação dos seres, decidi que devia acautelar-me, para que não me sucedesse o mesmo que aos que contemplam e observam um eclipse do Sol, pois alguns chegam a perder a vista, a não ser que na água ou em algum outro meio semelhante observem a sua imagem. Pensava em qualquer coisa desta natureza, com medo de ficar completamente cego da alma, por olhar directamente as coisas com os olhos e tentar percebê-las com os sentidos. Pareceu-me então que me devia refugiar nas idéias, e ver nelas a verdadeira essência dos seres. Talvez seja verdade que a minha comparação, cm certo aspecto, não seja exacta, [...]», Platão, Fédon, 99 d e - 100, trad. Elísio Gala, Guimarães ed., Lisboa, p. 134. [N. T.: Derrida cita a partir da trad. fr. de L. Robin, ed. Budé.] 22 M em órias de Cego éculos? Como é que se ficava cego? Como é que se cuidava ou se suplemen- :ava a cegueira [cécite\ ? Qual era o lugar dos cegos na família e na sociedade? Havia realmente mais homens do que mulheres cegas? etc.). Edipo fatiga um pouco, envelhecemos com ele. Mais ainda com Tirésias, este cego divino, ou seja, este vidente que salta por cima da diferença sexual e das gerações. Tirésias fica cego por ter visto o que não se deve ver, o acasalamento de duas serpentes, a menos que não seja a nudez de Atena, ou até a Górgona nos olhos da deusa de olhar penetrante (oxyderkes)xx. E depois prediz a Narciso que ele viverá tanto tempo quanto não se vir, e a Pentheus que ele perderá a vida por ter visto os ritos sagrados de Dionísio ou por se ter deixado w co m o javali pelas Bacantes. Não, a lembrança de Tirésias está ainda demasiado próxima de Edipo. Mitologia ou não, quando se trata de interrogar a hoste dos nossos grandes cegos, o ocidente tem outros fundos, mergulha nas reservas de uma memória grega mas an-edipiana, pré- ou extra-edipiana, e sobretudo nas criptas ou nos apócrifos de uma memória bíblica. Há tantos cegos no Antigo quanto no Novo Testamento. Ora a relação de um ao outro representa frequentemente uma partilha da vista. E uma partição da luz. É sempre o outro que não via ainda. É sempre o outro que via com um olho demasiado natural, demasiado carnal, demasiado exterior, a saber, literal. Enceguecimento à letra e pela letra. Símbolo: a sinagoga com os olhos vendados1 2. Os fariseus, estes homens da letra, são no fundo cegos. Não vèem nada porque olham para fora [au-dehors], apenas (olham) o exterior [dehors]. É preciso convertê-los à interioridade, é preciso virar os seus olhos para dentro, e denunciar em primeiro lugar uma fascinação, acusar o corpo e a exterioridade da letra: «Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas, que percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito e, depois de o terdes seguro, fazeis dele um filho do inferno, duas vezes pior do que vós! Ai de vós, guias 11 Cf. Nicole Loraux, Les expériences de Tirésias. Le fém inin et Thomme grec, Paris, 1989 nomeadamente o cap. XII, Ce que vit Tirésias). 12 A propósito de um «fosso infranqueável entre civilização pagã e cristã», Panofsky nota: •.•] por um lado, a sinagoga era representada como cega e associada à Noite, à Morte, ao demônio e aos animais impuros; do outro, os profetas judeus eram considerados inspirados pelo Espírito Santo e os heróis do Antigo Testamento eram venerados como antepassados de Cristo», Essais d ’iconologie. Les thèmes humanistes dans Cart de la Renaissance, trad. fr. Cl. H erbette e B. leyssèdre, Paris, 1967, p. 41, n. 1. Panofsky nota noutro sítio (p. 167): «A Sinagoga com os olhos vendados (frequentemente descrita pelo aforismo: ‘kVetus testamentum velatum, novunt testa- mentum revelatum) era comummente posta em relação com estes versículos de Jeremias: “Caiu a coroa da nossa cabeça; / desgraçados de nós, porque pecámos! / Por isso, o nosso coração está amargurado / e os nossos olhos banhados de lágrimas!” (Lamentações, 5: 16-17).» 25 Jacques Dorida cegos (odegoi typhloi} duces caecí) [...] Insensatos e cegos (moroi kai typhloi, stulti et caecí)\ [...] Fariseu cego! Limpa antes o interior do corpo, para que o exterior também fique limpo.»13 E antes ele havia recordado a profecia de Isaías: «[...] vereis, mas não percebereis. [...] Fecharam os olhos, não fossem ver com os olhos [.. .]»14. Os Judeus não teriam visto a verdade, a saber, que Cristo tenha por exemplo podido curar um cego de nascença com a sua própria saliva misturada com lama aplicada nos olhos15. Este não tinha, é claro, pecado, nem os seus pais, mas era preciso que, pela visão recuperada, testemunhasse pelas obras de Deus. Por uma singular vocação, o cego torna-se uma testemunha - deve atestar pela verdade ou pela luz divina. Arquivista da visibilidade - como o desenhador, em suma, de que ele partilha a responsabilidade. É uma das razões pelas quais um desenhador está sempre interessado pelos cegos: é o seu próprio interesse, ele está interessado, quer dizer, também compreendido entre eles. Pertence à sua sociedade, assumindo à vez [tour à tour\ as figuras do cego vidente, do cego visionário, do curandeiro ou do sacrificador, quero dizer, daquele que priva da vista para dar finalmente a ver e para testemunhar pela luz. Outra testemunha, João lembra que a verdade e a luz (phôs) vem através de Cristo. Os Judeus, esses, repeliram esta luz porque «não acre ditaram de todo» que o cego curado «tivesse sido cego [.,.]»16. Os Evan gelhos podem ler-se como uma anamnésia do enceguecimento: palavra enviada, palavra de julgamento ou de salvação, sempre a boa nova chega ou acontece ao enceguecimento [arnve à laveuglemeni\. A adveniência [avènement\ tem lugar segundo a história do olho - desenha esta partilha interior da visão: «Jesus decla rou: “ Eu vim a este mundo para proceder a um juízo: de modo que os que não veem vejam, e os que veem fiquem cegos/' Alguns fariseus que estavam com Ele ouviram isto e perguntaram-lhe: “Porventura nós também somos cegos?” 13 S. Mateus, 23: 16 ss e 26. [N.T.: As citações em grego foram acrescentadas a partir da citação de Derrida.] 14 S. Mateus, 13: 13 ss. 15 S. Marcos, 8: 22; S. João 9: 6. 16 5. João, 9: 18. N.T.: Um pensamento da incondicionalidade, a desconstrução derridianaé um pensa mento do evento, do acontecim ento, da vinda ou da visitação - o que na obra se marca através do léxico do arriver (com o duplo sentido de acontecer ou chegar), do venir e do viens, do èvênement ou do avenement, do por vir (à venir) ou do porvir, etc.: «eu prefiro antes dizer do porvir (avenir) que do futuro para acenar para a vinda de um evento mais do que para qual quer presente futuro», esclarece Derrida a propósito do term o «à-venir», M aldarchive , Galilée, Paris, 1995, p. 109. Para esta mesma questão, veja-se também, J. Derrida, Parages, Galilée, Paris, 1986; Apories, Galilée, Paris, 1986. 26 M em órias de Cegoo Jesus respondeu-lhes: “Se fôsseis cegos, não estarieis em pecado; mas, como dizeis que vedes, o vosso pecado permanece.”»17 Os cegos do meu sonho eram antepassados, pais sobretudo, ou mesmo avós, em todo o caso anciãos. E eram vários, dois pelo menos. Um «duelo», tinha eu anotado na noite. Esqueçamos então Édipo, de momento, os dois Édipos. Esqueçamos o do «cego harmonioso», «o grande Homero»18 cujo 10 Édipo, há que sublinhá-lo, não fura os olhos. Mas esqueçamos também o de Sófocles, o Édipo do «mito» e do «complexo», o cego lúcido que desenha no ar com o bordão, mistura ou franqueia as gerações a dois, três ou quatro pés. Há pelo menos três gerações no meu sonho de duelo, de luto, de velhos e de olhos: a figura branca dos avós, a seguir a minha própria geração, no lugar do filho, mas de um filho que já é pai, uma vez que os seus filhos estão, por sua vez, ameaçados. E estas gerações saltam: uma por cima da outra, uma sobre a outra que assim ataca. Eu oriento-me antes para o testamento. Precisamente para as narrativas de legados ou de delegação no interior, como que em abismo, daquilo a que se chama o néo- ou o paleotestamentário. Uma cena testa- mentária supõe pelo menos, com o suplemento de uma geração, o terceiro que vê, a mediação de uma testemunha lúcida. Com uma narrativa ou com uma assinatura, esta atesta que viu bem, autenticando assim o acto de memória, e a última vontade. Que teria então a cegueira a ver, se assim se pode dizer, com esta cena de família? E porque pode o terceiro, a testemunha que autentifica o testamento, intervir também na cena, enganar, brincar por sua vez com o cegamento? Elias, Isaac, Tobite, todos os velhos cegos do Antigo Testamento estão mal de filhos. Sofrem pelos seus filhos, por sempre os esperarem, por vezes para serem tragicamente desiludidos ou enganados, por vezes para deles receberem também o signo da salvação ou da cura. À data do meu sonho, não conhecia a história de Elias, o luto daquele que, já privado de olhos, perde ou chora ao mesmo tempo os seus dois filhos. E morre do mesmo mal, assim perdendo a vida a seguir à vista - e a seguir aos filhos. Deus já lhe tinha anunciado que Hofni e Fineias morriam no mesmo dia por nunca terem respeitado os 1 5. João, 9: 39 18 São as últimas palavras de L'Aveugle [O Cego], o longo poema que Chénier escreveu ao estilo de Homero, cm harmonia com o canto do «cego harmonioso» que parece assinar a sua obra, uma vez que o seu nome não é proferido senão no fim. A última palavra confunde-se com o nome próprio do cego abençoado, «amado dos Deuses», que, não o esqueçamos mais, é convidado para os -muros» de uma «ilha»: «Vem para os nossos muros, vem habitar a nossa ilha; / Vem, profeta doquente, cego harmonioso. / Conviva do néctar, discípulo amado dos Deuses; / Jogos, todos os anco anos, tornarão santo e próspero / O dia em que recebemos o grande HOM ERO.» [N.T.: Derrida cita a partir das Éditions de la Pléiade, Paris.] 27 11. Primaiicc. Iwtat Atxn<<\mAo Jj<ob. Muku do Louvre. (N.° 38 dj Exposição) M em órias de Cego Como escolher entre dois filhos? E é, multiplicada por dois, a mesma questão, a única questão do único . Como escolher entre dois irmãos? Entre dois gêmeos, em suma, porque Jacob era o irmão gêmeo de Esaú, mesmo se nasceu depois dele e o irmão lhe tivesse vendido o direito de primogenitura (ele «renunciou ao seu direito de primogenitura»)* 23? Não ê isto mais difícil do que escolher entre as meninas dos seus dois olhos, que podem, eles, suplementar-se um ao outro? Sacrificar um filho é pelo menos tão cruel quanto renunciar à própria vista. O filho representa aqui a luz da vista - ê, em suma, o que Tobite diz ao seu. Por contraste, de facto, no livro que porta o seu nome, e no decurso de uma narração que circula de boca em boca, Tobite conta ele mesmo em primeiro lugar, na primeira pessoa, conta-se relatando a história do seu próprio enceguecimento. Lamentando-se, refere-se a si mesmo, refere uma cegueira [cécité\ cuja ocorrência, neste caso, não foi natural. Ele interpreta-a na verdade como um obscuro castigo. Outro contraste, ele curar-se-á dela, oito anos volvidos, pelas mãos do seu filho Tobias. Estão lembrados: o órfão Tobite tinha desposado Ana. Ele gosta de enterrar os mortos da sua comunidade (também o meu pai gostava de fazê-lo em Alger, dezenas de anos a fio), por vezes às escondidas, por medo do rei Senaquerib (que aliás morreu assassinado pelos seus dois filhos). Tobite é atingido de cegueira [cécite] depois de ter chorado... - Far-lhe-ei notar que já prometeu falar das lágrimas ou dos olhos velados, lembre-se... - Não esqueço. Tobite tinha derramado lágrimas, e a seguir enterrado um dos seus, abandonado na praça pública depois de ter sido estrangulado. E conta, e é ainda uma história de luto: «... recordando-me das palavras do profeta Amós, ditas sobre Betei: “As vossas festas converter-se-ão em luto e os vossos cantos, em lamentações.” E eu chorei. Quando mais tarde o Sol se pôs, saí, cavei uma cova e sepultei-o. Os meus vizinhos, porém, zombavam de mim, dizendo: “Ainda agora não tem medo. Já o procuraram para o matar por causa disso e teve de fugir; contudo, ei-lo de novo a sepultar os mortos” . Naquela N. T.: Lembremos que a desconstrução derridiana se pretende um pensamento do único ou do singular, tão necessário quanto impossível. Derrida afirma-o, nomeadamente em O Monolinguismo do Outro (trad. Fernanda Bernardo, Campo das Letras, Porto, 2001, p. 41): «Porque é como um pensamento do único, justamente e não do plural, como demasiadas vezes se julgou, que um pensamento da disseminação se apresentou outrora [in La Dissémination, Seuil, Paris, 1972] como um pensamento dobrante da dobra - e dobrado à dobra.» 23 Gênesis, 25: 34. 31 bias e o Anjo, Museu do Louvre.
13. Pietro Bianchi, Tobias Devolvendo a Vista ao Pai, Museu do Louvre
14. Segundo Pierre-Paul Rubens, Tobias Devoltendo « Vista ao Pai, Museu do Louvre
M em órias de Cego inventário: «Tobias devolvendo a vista ao pai, idem desenho proveniente de Versailles onde era designado sob o título de Cirurgião Fazendo o Penso a Um Ferido e igualmente atribuído a Livens.» Nunca, em todas as representações desta cura, aparece o fel de peixe. São sempre manipulações, operações de palpação, com a mão nua ou armada. Luz velada, lágrimas e véus, amortalhamento dos corpos e dos olhos: antes de perguntarmos o que são ou o que fazem as lágrimas, haveria que seguir a composição enredada destes motivos num Livro que foi primeira mente tido por apócrifo. O filho é a luz, o olho suplementar ou excessivo do pai, o guia do cego, o seu próprio bordão, mas também o da mãe em lágrimas que incessantemente o lembra. Primeiro, a seguir à partida de Tobias: «Ana, sua mãe, pôs-se a chorar, dizendo a Tobite: “Porque foi que mandaste o meu filho? Ele era o arrimo da nossa velhice; era ele que ia e vinha para nós.”» Tobite responde-lhe. «[...] “hás-de vê-lo com os teus olhos [...] um anjo bom acompanhá-lo-á” [...] Ela, então, deixou de chorar»27. Raguel, Edna e Sara choram abundantemente ao descobrirem que Tobias é o filho de Tobite e que este perdeu a vista28. Mais tarde, enquanto Tobias ainda não voltou, Ana chora ainda: «Não há dúvida de que o meu filho morreu [...] Infeliz de mim, filho, que te deixei partir, tu, que eras a luz dos meus olhos!»29 Aquando da cura, também Tobite se desfaz em lágrimas, e aquilo que ele vê em primeiro lugar é o seu filho. Dá graças não apenas por ver, de ver por ver, mas por ver o filho. Chora de reconhecimento, não tanto por finalmente ver, mas porque o filho lhe devolve ([rend*\ a vista ao tornar-se [en se rendant\ visível: ele devolve-lhe [lui rend\ a vista ao tornar-se [se rendre] visível e para se tornar [se rendre] visível, ele, o seu filho, ou seja, a luz dada como luz recebida, emprestada, devolvida, permutada. Filho quer dizer: os olhos, ambos os olhos: «Enquanto lhe ardiam os olhos, esfregou-os, e as escamas desprenderam-se. Ao ver o filho, Tobite lançou-se-lhe ao pescoço e, chorando, disse: “Vejo-te, filho, tu que és a luz dos meus olhos! E continuou: “Bendito seja Deus e bendito o seu grande nome! [...] mas eis que volto a ver Tobias o meu filho!”»30 Filho: os olhos, os dois olhos, o nome de Deus. Nestes termos, mais do que isto ou aquilo, este ou aquela, não é a sua própria vista, aquilo mesmo, aquele mesmo, o seu filho, 2 Tobite, 5: 18 ss. 28 Tobite, 7: 6-9. 29 Tobite> 10: 4-5. N.T.: Traduzimos geralmente «rendre» por «devolver» tendo em consideração que, subjacente a este verbo, está não apenas o gesto de recuperar ou de recobrar, mas sobretudo o de restituir, de voltar a dar\ de dar de volta. 30 Tobite, 11: 12-15. 35 Jacques Dcrrida que lhe devolve a vista, que Tobite vê finalmente? Não se poderia dizer que ele vê no seu filho a própria origem da sua faculdade de ver? Sim e não. O que lhe devolve a vista, não é na verdade o seu filho finalmente visível. Por detrás do filho há o anjo, um vem anunciar o outro. A mão do filho é guiada pelo anjo Rafael. Ora este acaba por se apresentar como um ser sem desejo carnal, senão mesmo sem corpo: é um simulacro de visibilidade sensível. Não fazia senão «tornar-se visível», não sendo na verdade senão uma «visão». Rafael fala de si mesmo e diz a verdade sobre o que era a sua própria visibilidade: «Louvai a Deus por toda a eternidade. Quando eu estava convosco, não era por minha própria iniciativa, mas pela vontade de Deus [...] Todos os dias na vossa presença [ Todos os dias me tomava visível para vós J, eu nada comia nem bebia na realidade, apenas vos parecia que o fazia [mas é uma visão que haveis visto].»31 Ora é a partir desta «visão» do «invisível» que, imediatamente a seguir, ele dá a ordem de escrever: épreciso inscrever a memória do evento para dar graças. É preciso absolver-se com palavras no pergaminho, por outras palavras, com sinais visíveis do invisível: «[...] “ [/ uma visão que haveis visto] apenas vos parecia que o fazia. Agora, bendizei o Senhor, aqui na terra, e louvai a Deus, porque eu volto para aquele que me enviou. Escrevei tudo o que sucedeu convosco” . Dito isto, elevou-se. Então Tobite e o seu filho levantaram-se, mas não o tornaram a ver. Louvaram e glorificaram a Deus, dando-lhe graças pelas suas grandes obras, já que um anjo de Deus lhes tinha aparecido.»32 Arquivo da narrativa, a história escrita dá graças, como o farão todos os desenhos que mergulharão na narrativa. Na descendência gráfica, do livro ao desenho, trata-se menos de dizer o que é tal como é, de descrever ou de constatar o que se vê (percepção ou visão) do que de observar a lei para além da vista, de ordenar a verdade à dívida, de dar graças ao mesmo tempo ao dom e à falta, ao devido, à falha [la faille] do «é preciso» [«//faut»] , seja ele o «é preciso» [«// faut»] do «é preciso ver» [«//faut voir»] ou de um «resta ver» [«// reste à voir»] N. T.: «Tous les jours je me rendais visible pour vous» (Todos os dias me tornava visível para vós») e «mais cc s t une vision que vous avez vue» («mas c um a visão que haveis visto»), diz a versão francesa. 31 Tobite, 13: 17-19. 32 Tobite., 12: 20-22. * N . T.: De notar que o sintagma «// fa u t» consente, cm francês, uma dupla escuta c, ipso factOy um duplo entendim ento: com efeito, c passível de ser escutado com o sendo a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo «fa llo it» (serpreciso) ou do verbo « fa illir» (fa ltar). Esta tensão, que marca a indicidibilidade, serve a Dcrrida para enfatizar, quer o registo meta- ou ultra-ético da desconstrução, apenas possível como impossível, quer o seu registo aporético. Tal com o cm Adieu — à Em manuel Lévinas (Galilcc, Paris, 1997), Dcrrida 36 M em órias de Cego que conota ao mesmo tempo a superabundância e a fraqueza [défaillance] do visível, o demasiado e o demasiado pouco, o excesso e a falência [faillite]. O que guia a ponta gráfica, a caneta, o lápis ou o escalpelo, é a observação res peitosa de um mandamento, o reconhecimento antes do conhecimento, a gra tidão do receber antes de ver, a bênção antes do saber. Por isso insisti na aparição central e depois na desaparição do anjo Rafael nas curas de Tobite. De acordo com a ausência ou a presença do anjo, poderiamos classificá-los em «desenhos com visão» e «desenhos sem visão». O que é que se passa, por exem plo em Rembrandt, quando o desenho se vê desertado pelo anjo, pela aparição da invisível criatura que devolve a vista mas que também dita o livro? Terá Rafael desaparecido porque a cena começa a tornar-se simples cirurgia natural? Ou antes porque, como literal mente conta o Livro de Tobitey uma vez que o anjo deu a ordem para dar graças, os actores humanos «se voltaram a erguer e não o viram mais»? Quer se trate de escrita ou de desenho, do Livro de Tobite ou das repre sentações que se lhe reportem, a graça do traço [trait] significa que na origem do graphein há a dívida ou o dom mais do que a fidelidade representativa. Mais precisamente, a fidelidade da fé importa mais do que a representação que ela ordena e cujo movimento precede. E, no seu próprio movimento, a fé é cega. Sacrifica a vista, mesmo se é em vista de finalmente ver. O performativo que aqui se põe em cena é o de um «devolver a vista» [«rendre lã vue»\ mais do que o objecto visível, mais do que a descrição constativa do que é ou do que se observa diante de si. A verdade pertence a este movimento de restituição que procura em vão tornar-se adequado à sua causa ou à coisa. Esta, pelo contrário, não surge senão no hiato da desproporção. A justa medida do devolver» [«rendre»] é impossível - ou infinita. Devolver [rendre] é a causa das mortes, da morte dada ou pedida. Tobite não foi apenas o homem do enterramento, o homem do «último dever», aquele que tinha por uma obrigação dar a última mortalha. Este pai não pára também de pedir ao filho para o amortalhar decentemente na sua vez, quando chegar o momento de lhe fechar os olhos. Ele pede-lho antes ^depois da cura, antes da partida e depois retende que a «ética» levinasiana (uma meta- ou uma hiperética, justamente, para se furtar ao “-abitual registo dóxico-ideológico c filosófico da ética) só é possível com o impossível, em .■tvAé. hiventions de l'autre, o filósofo «definirá» a desconstrução como um pensamento do ^.possívelapenas, por isso mesmo, im-possivel(marcando esta grafia a aporia que o magnetiza). - --> que. se é esta aporia que dá conta do registo meta-ético da desconstrução derridiana, é lim bém ela que a subtrai à doxa, à ideologia e mesmo à filosofia ética. C om o o filósofo Merende, é porque a ética falta, é porque ela está sempre em falta que ela é justamente precisa. 37 Jacques Derrida pas voir [Louvre onde não ver], que no meu regresso se torna um ícone, ou seja, uma janela a «abrir» no ecrã do meu computador. Como lhe disse, isto não deve ler-se como o diário de uma exposição. Dele apenas retenho a fortuna ou o lugar de uma questão pensativa: como seria um diário de cego, o íntimo ou o outro? E como o dia, o ritmo dos dias e das noites sem dia, as datas e os calendários que escandem as memórias? Como se escreveríam memórias de cegos? Digo as memórias, não digo ainda os cantos, nem as narrativas, nem os poemas de cegos, na grande filiação da noite que 10 sepulta Homero e Joyce, Milton e Borges. Deixemo-los à espera na sombra. Contento-me de momento em acoplar entre si estas duas vezes dois grandes velhos com olhos mortos da nossa memória literária, como que na dupla rivalidade de um duelo. O autor de Ulisses, uma vez escrita a sua própria odisséia (ela própria assombrada por um «blindman»), acaba a sua vida quase cego, operação à córnea atrás de operação à córnea. Os temas da íris ou do glaucoma invadem então Finnegans Wake («[...] the shuddersome spectacle ofthis semidemented zany amid the inspissated grime ofhis glaucous den making believe to read his usylessly unreadable Blue Book ofEccles, édition des ténèbres....»37). Toda a obra joyciana cultiva os bordões vivos. Quanto a Borges, de entre os antepassados cegos que ele identifica ou reivindica na galeria da literatura ocidental, é visivelmente com Milton que ele rivaliza, é com Milton que ele gostaria de se identificar, é dele que espera, com ou sem modéstia, as cartas de nobreza da sua própria cegueira [cécite]. Esta ferida é também um sinal de eleição que é preciso saber reconhecer em si, o privilégio de uma destinação, a missão confiada: na noite, pela própria noite. Para evocar a grande tradição dos escritores cegos, Borges gira então em torno de um espelho N.T.: Dc notar que, em francês, Louvre se pronuncia exacramente como Louvre: «Louvre ou nepas voir», «Louvre onde não ver» ou «O aberto onde não ver» — ou ainda, num a certa proximidade fônica, «a obra (1’aeuvre) onde não ver». 3 James Joyce, Finnegans Wake, New York, p. 179: « ... spectacle quelque pcu frissonnant de ce bouffon semi dem ente, par lepaisse crasse de son antre glauque, que l'on fit semblant de lire son Initulyssible parce quillisible Livre Bleu de Klce, édition des ténèbres...» (trad. tr., Ph. Lavergne, Paris, 1982, p. 194). Fatalmente, esta tradução perde muito: não apenas, aquilo que não era inevitável, o tacto de «édition de ténèbres» estar cm francês no texto, e eis como a língua original assim se torna invisível, nas suas próprias trevas, mas, mais gravemente, ela perde a vista, melhor, a alusão à perda do olho: «usylessly», quer dizer também «como que sem olho», eyeless. [N.T.: «(...] espectáculo algo arrepiante deste palhaço meio dem ente que, por entre o espesso nevoeiro do seu antro glauco, fazia crer que lia o seu enceguecente ilegível Livro Az.ul de Klee, édition des ténèbres [...]». 40 M em órias de Cego invisível. A par de uma celebração da memória, esboça um auto-retrato. Mas descreve-se a si mesmo designando o outro cego, Milton, sobretudo o Milton autor deste outro auto-retrato que foi Samson Agonistes. A confidência tem por título Cegueira [cécite]: «Wilde disse para consigo: “Os Gregos afirmaram que Homero era cego para significar que a poesia não deve ser visual, que o seu dever é ser auditiva.” [...] Passemos ao exemplo de Milton. A cegueira de Milton foi voluntária. Ele soube desde o princípio que ia ser um grande poeta. Isto aconteceu também a outros poetas. [...] eu também, se é que posso mencionar-me. Sempre senti que o meu destino era, antes de mais, um destino literário, quer dizer, que me sucederíam muitas coisas más e algumas boas. Mas sempre soube que tudo isso, a longo prazo, se transformaria em palavras [...] Voltemos a Milton. Gastou a sua vista a escrever folhetos em defesa da execução do rei pelo Parlamento. Diz Milton que a perdeu voluntariamente, defendendo a liberdade; fala dessa nobre tarefa e não se queixa de estar cego [...] Passava grande parte do tempo sozinho, compunha versos e a sua memória foi aumentando. Conseguia reter quarenta ou cinquenta hendecassílabos brancos na memória e a seguir ditava-os a quem vinha visitá-lo. Assim compôs o poema. Recordou e pensou no destino de Sansão, tão parecido com o seu, porque já Cromwell morrera e soara a hora da Restauração. [...] Mas Carlos II - filho de Carlos I, o Executado - , quando lhe trouxeram a lista dos condenados à morte, pegou na pena e disse, não sem nobreza: “Tenho uma coisa na mão direita que se recusa a assinar uma pena de morte.” Salvou-se Milton, e muitos outros com ele. Escreveu então o Samson Agonistes.»58 38 38 Jorge Luís Borges, «Cegueira», in Obras Completas III, trad. José Colaço Barreiros, Teorema, Lisboa, 1998, pp. 294-295. [N.T.: Derrida cita a trad. fr. de Françoise Rosset, in ConférenceSy ed. Folio, Paris, 1958, pp. 138-142]. A esta conferência, que haveria que citar na íntegra, devemos também associar as páginas intituladas «O autor» (in Uauteur et autres textes, tr. fr. Roger Caillois, Paris, 1958, pp. 17-21). Os motivos da memória e da descida rccorram-se regularm ente nela cm torno de uma lembrança que foi talvez um sonho: «Quando ele soube que estava em vias de ficar cego, gritou ... 1 Depois, ao acordar de manhã, olhou (já sem espanto) as coisas confusas que o rodeavam. E compreendeu [...] que tudo isto já lhe havia acontecido [ ...] Então desceu na sua memória, que lhe pareceu interminável, e conseguiu extrair desta vertigem a lembrança perdida, que brilhava como um a moeda à chuva, sem dúvida porque ele nunca a tinha olhado, excepto talvez num sonho. A lembrança era a seguinte. Havia sido injuriado por um outro rapaz. Tinha corrido para o pai e tinha-lhe contado o assunto. O pai deixou-o falar como se não escutasse ou não compreendesse, e depois desprendeu da parede um punhal de bronze, soberbo e carregado de poder, que a criança tinha secretamente cobiçado. T inha-o agora entre as mãos, e a surpresa de o possuir anulava a injúria sofrida. Mas a voz do pai dizia: “Q ue alguém saiba que és um hom em ’, e havia um a ordem na voz. A noite enceguecia os caminhos. Abraçado ao 41 Jacques Derrida Genealogia singular, singular ilustração, ilustração de si entre todos estes cegos ilustres que se lembram uns dos outros, se saúdam e se reconhecem na noite. Borges tinha começado por Homero, acaba com Joyce e, sempre com igual modéstia, com o auto-retrato do autor como cego, como homem da memória, imediatamente a seguir a uma alusão à castração: «Joyce trouxe uma música nova ao inglês. E disse corajosamente (e men tirosamente) que “de todas as coisas que me aconteceram creio que a menos importante é o eu ter ficado cego” . Deixou parte da sua vasta obra executada na sombra: burilando as frases na sua memória [...] Demócrito de Abdera arrancou os olhos num jardim para que o espectáculo da realidade exterior não o distraísse; Orígenes castrou-se. Enumerei suficientes exemplos; alguns tão ilustres que me envergonho de ter falado do meu caso pessoal; salvo pelo facto de as pessoas esperarem sempre confidências e eu não ter razões para lhes recusar as minhas. Embora, evidentemente, pareça absurdo pôr o meu nome junto dos nomes que tive ocasião de recordar.»^ Fiz notar que Borges tinha «começado por Homero». Na verdade, ele tinha começado por Wilde que falava, ele, de Homero. Ora Wilde é o autor do Retrato de Dorian Cray, história de assassínio ou de suicídio, de ruína e de confissão. É também a narrativa de uma representação que traz a morte: um retrato mortífero reflecte primeiramente os progressos da ruína no rosto do seu modelo, que é também o seu espectador, o sujeito assim olhado, e a seguir condenado pela sua imagem: «It was his beauty that bad ruinedhim. [...] There was bloodon thepaintedfèet, as tbough the thing bad dripped - blood even on tbe hand that bad not held the knife. Confessi Did it mean that be was to confess? To give bimselfup, and be put do death punhal no qual pressentia um a força mágica, desceu a encosta abrupta que rodeava a casa e correu até à beira-mar, sonhando-sc Ajax e Pcrseu e povoando de feridas e de batalhas a obscuridade molhada de sal. O exacto sabor deste instante era o que ele hoje procurava. O resto pouco lhe importava: os ultrajes do desafio, o combate ignominioso, o retorno com a lâmina ensanguen tada. Uma outra lembrança onde havia igualmente um a noite e um a iminência de aventura, germinou daquela. Um a mulher, a primeira que os deuses lhe enviaram, tinha-o esperado na sombra de um hipogeu [ ...] Nesta noite dos seus olhos mortais onde ele agora descia [...] o rumor de llíades e de Odisséias que o seu destino era cantar e fazer ressoar na côncava memória humana. Sabemos estas coisas, mas não as que ele sentiu ao descer à última sombra.» & Jorge Luís Borges, «Cegueira», in op. cit.y pp. 296-297. 40 Oscar W ilde, The Picture o f Dorian Cray, New York, 1985, p. 246 («Foi a sua beleza que o arruinou [...] Havia sangue na imagem pintada do pé, como se a coisa tivesse escorrido - sangue até mesmo na mão que não tinha pegado na faca. Confessar? Significava isto que ele tinha de confessar? Entregar-se e ser morto?») 42 M em órias de Cego Donde uma espécie de paixão do desenho, uma paixão negativa e impotente, o ciúme de um desenho em sofrimento. E que eu vejo sem ver. A criança diz-se em mim: como pretendem eles olhar ao mesmo tempo um modelo e os traços que, com a própria mão, votam ciosamente à própria coisa? Não tem de se ser cego a um ou ao outro? Contentar-se sempre com a memória do outro? A experiência desta enfermidade vergonhosa pertence a um romance familiar de que não reterei senão um traço, uma arma e um sintoma sem dúvida, não menos que uma causa: o ciúme ferido diante de um irmão mais velho de quem eu admirava, como toda a gente em seu redor, o talento de desenhador - e o olho, em suma, que não cessou sem dúvida nunca de acusar no fundo de mim, 16 no m eu fo ro ín tim o [à p a r t m o í\y um desejo fratricida. As suas obras, devo dizê-lo com toda a fraternidade, não eram senão cópias: frequentemente retratos a lápis ou a tinta-da-china que reproduziam fotografias de família (lembro-me do retrato do meu avô a seguir à sua morte, boné, pequena barbicha e óculos de aros arredondados) ou quadros já reproduzidos em livros (lembro-me ainda daquele velho rabino a rezar; mas o meu avô Moisés, sem ser rabino, incarnava para nós a consciência religiosa: uma rectidão venerável colocava-o acima do padre). Sofria por ver os desenhos do meu irmão permanentemente expostos, religiosamente emoldurados nas paredes de todos os quartos. E tentava por minha vez imitar as suas cópias: uma lastimável falta de jeito confirmava-me na dupla certeza de ter sido punido, privado, lesado, é certo, mas também, e por isso mesmo, secretamente eleito. Eu havia enviado a mim mesmo, que não existia ainda, a mensagem indecifrável de uma convocação. Como se, nas vezes do desenho, ao qual o cego em mim renunciou para sempre, eu fosse chamado por um outro traço \tra it], por esta grafia de palavras invisíveis, por este acordo do tempo e da voz a que se chama verbo - ou escrita. Substituição, portanto, troca clandestina: um traço para o outro, traço por traço. Falo de um cálculo tanto quanto de uma vocação, e o estratagema foi quase deliberado. Estra tagema, estratégia, tempo de guerra. Palavra de ordem fratricida: econom ia do desenho. Do desenho visível, do desenho enquanto tal, como se eu tivesse dito a mim mesmo: eu, eu escreverei, votar-me-ei às palavras que me apelam. E mesmo aqui, vedes bem que eu ainda as prefiro, traço em redor do desenho fiozinhos de língua, ou antes teço, com a ajuda de traços, travessões e letras, uma túnica de escrita onde capturar o corpo do desenho, mesmo à sua nascença, comprometido como estou em compreendê-lo sem artifício, porque, verdade se diga, tudo isto nos chega, não é assim, num movimento de olhos [yeux] e de velhos [vieux], pelos deuses [dieux] e pelo dois [deux], pelo luto [deuil\ e pelo duelo \duel| (d’ «ela» [du «elle»\ espera-nos talvez, e d’«ele» [du «ii>>], 45 Jacques Derrida e devido/ilha [dü/ilé\, e devido/«ela» [dü/ellé\ e coda a família de olhos cm «pers» [garça]: Atena Glaukopis —, «perçanrs» [«penetrantes»]: Atena Oxyderkes ou Gorgopis - , ou «percés» [«penetrados»], todos os «per» que em segredo imploramos, através da filiação homonímica dos «pais» [«pères»] cegos, dos «pares» [«paires»] de olhos, da vista que se «perde», abandonada ao acaso dos significantes ou ao jogo da cabra-cega dos nomes próprios (Perseu) de que parece pródiga a Fortuna com olhos vendados. Entre as duas séries que acabo de evocar, o pai e o olho, desenha-se a figura do avô (avus). Os velhos cegos atravessam em catadupa, é a própria experiência dos pais, o espaço das nossas memórias. Se a experiência é a autoridade, como dizia Bataille, acaso não é ela também a cegueira [cécité[i Não se trata aqui de ceder à jubilação lúdica, nem de manipular vitoriosamente palavras ou vocábulos. Pelo contrário, ouvide-los ressoar por eles mesmos no fundo do desenho, por vezes mesmo como a sua pele; porque o rumor destas sílabas brota antecipadamente dele, bocados de palavras parasitam-no, e para aperceber esta assombração, temos de nos entregar aos fantasmas do discurso fechando os olhos). Economia do desenho, portanto. O desenho volta sempre. Alguma vez se renuncia? Alguma vez se faz o luto do desenho? A minha hipótese de trabalho significava também: trabalho do luto. O inconsciente não renuncia a nada. Nunca mais na vida desenhei, nem sequer tentei desenhar. Excepto no último Inverno - e guardo ainda o arquivo deste desastre - , quando me veio o desejo, e a tentação, de esboçar o perfil da minha mãe que eu velava junto ao seu leito de hospital. Acamada há um ano, sobrevivente, entre a vida e a morte, quase murada no silêncio desta letargia, ela já não me reconhece, e os seus olhos estão velados pelas cataratas. Até que ponto é que ela vê, e que sombras lhe passam diante dos olhos, depois se ela se vê morrer, de tudo isto não podemos senão tecer hipóteses. (Disse espontaneamente da minha mãe que ela estava «murada»? Naquilo a que se poderia chamar a retórica da cegueira, esta é uma das figuras típicas. A cega de Rilke (die Blinde é uma mulher, desta vez42, e, em francês, a gramática de «1'aveugle» não permite distinguir um cego de uma 42 Dc entre os cegos e as cegas \les aveugles] de Rilke, que todos e todas cantam também a condição poética, a saber, o próprio lirismo enquanto ele abre para além do visível, demos apenas a palavra ao de um sonho. Diferentemente de D ie Blinde, o sonho do cego diz respeito a um hom em . Um homem parece fazer falar outro para dar olhos ao homem. Olhos que são as estrelas. Invertendo uma alegoria astral ou ocular tão velha como o céu, ele dá os seus olhos ao homem ao responder à pergunta suscitada por um a rapariga. Esta havia dito a um jovem cego que, sem o conseguir, «fazia um esforço visível para despertar» enquanto o seu olho «parecia vazio»: «Isso de nada vale, diz a jovem com a sua voz transparente de riso diluído, não podemos despertar antes de os olhos estarem de volta.» 46 M em órias de Cego cega) diz os seus «olhos murados» (verm auerten A ugen). Esres muros plúmbeos encerram na noite da cova (os fariseus cegos são «sepulcros caiados», o Sansão de Milton apresenta-se como um morto-vivo, exilado da luz, enterrado em si mesmo num túmulo em andamento: «M y s e lf m y sepulchre, a m oving grave, b u r ie d .. .»'13), e enclausuram também por detrás dos muros de uma prisão. Sansão diz-se duplamente confinado, «na prisão dentro da prisão», não sabendo já qual delas mais «deplorar» (bew aii), se a literal, a de pedra, ou a outra, mais interior ainda, como que «em abismo» por detrás dos muros do olho («W hichshall I first bewaii, / Tby bondage or lost sight, / Prison w ith in prison / lnseparably dark? Thou a r t become (O worst im prisonm en t) / The dungeon o fth y se lf »44). A reclusão do cego pode assim isolá-lo por detrás de duras paredes. Ele tem então de pôr nelas as suas mãos ou as suas unhas à prova. Mas o abismo do isolamento pode também permanecer líquido, como a substância do olho, como as águas de um Narciso que nada mais veria para além de si próprio, que nada veria em seu redor. O isolamento especular apela então à insularidade da imagem ou ainda, para reflectir o «abandono» do cego e a sua solidão enlutada, à imagem da ilha: ••Sou uma ilha», diz ela. D ie B linde. «Ich b in von a liem verlassen. - Ich b in ein Insel.» E ao estrangeiro vindo do mar: «Ich b in eine Insel u n d alle in»4h Mas a «Eu ia colocar um a pergunta: "Q ue queria ela dizer?” Mas de repente compreendí. L.embrava-me de um jovem operário russo do campo que, quando chegou de Moscovo, ainda acreditava que as estrelas eram os olhos de Deus e os olhos dos anjos. T inham -no dissuadido. Na verdade, não se podia provar o contrário de nada, mas podia-se dissuadi-lo. E com razão. Porque as estrelas são os olhos dos homens que se furtam das suas pálpebras fechadas, e que sobem, e se tornam claros, e repousam. Razão pela qual no campo, onde todos dorm em , o céu tem todas as estrelas, pelo contrário, por cima das cidades há poucas, porque há tantos homens que se inquietam, choram, lêem, riem ou velam, e que conservam os seus olhos», Rainer Maria Rilke, Le livre des rèves, 7.° Sonho, trad. fr. M. Betz in Oeuvres en Prose, Seuil, Paris, 1966, p. 281-2). Em Gong, Rilke escreve também: «E preciso fechar os olhos e renun ciar à boca, / permanecer m udo, cego, maravilhado: / o espaço com pletamentc abalado, que nos toca / não quer do nosso ser senão a escuta.» In Poésie ( QBtvres, 2, Paris, 1972), editado por Paul de Man, o autor de Blindness andInsigh t (Minneapolis, 1983) que tam bém cita estes versos em Allégories de la lecture, trad. fr. T h. Trezise, Paris, 1989, p. 81. 4 ̂ «Sou o meu próprio sepulcro, um túm ulo andante, enterrado...», J. M ilton, Samson Agonistes and Shorter Poems, ed. A. E. Barker, AH M Publishing Corporation, Arlongton Heights, Illinois, 1950, linha 102. 44 «Qual delas chorarei eu primeiro, / A catividade ou a visão perdida, / Prisão numa prisão / Inseparavelmente escura? / Eis no que te tornaste (Ó pior das prisões) / A masmorra de ti próprio», j. M ilton, Samson Agonistes and Shorter Poems, ed. A. E. Barker, AHM Publishing Corporation, Arlongton Heights, Illinois, 1950, linhas 151-156. 45 «Fui abandonada por todos. / Sou uma ilha ( ...) . Sou uma ilha e só.», Rainer Maria Rilke, “A cega”, in Gesammelte Werke, Insel, Leipzig, vol. 2, 153-158. 47 17. Escola do GiKxchin. DtlLt volpiurj ti. iltlLt pittura no. Museu do Louvre. (S.o 9 da Kxposiçio) DELL a ScoLTvfíA D E L i - A P J T r v ü A A I O - .a M em órias de Cego já vês). Acontece também que os olhos de escultura estão sempre fechados, -murados» em todo o caso, como dizíamos, ou virados para dentro, mais mortos do que vivos, mais mortos do que os das máscaras. Mas o que é uma máscara? Resta-nos ainda dizer a memória do cego como experiência da máscara. - Interrompo-o um instante, antes que vá demasiado longe. Se não nos lembramos de n en h u m desenhador cego, propriamente privado da vista e dos olhos (ah oculis), não é então ir contra o próprio bom senso, não é ceder a uma provocação fácil pretender exactamente o contrário, a saber, que todo o desenha dor é cego? Que ele esteja a braços com uma devorante proliferação do invisível, ninguém o contesta, mas bastará isso para fazer dele um cego? E para justificar esta contraverdade? O próprio Monet só no fim andou quase para perder a vista. - Falamos aqui de desenho, não de pintura. Deste ponto de vista, há para o olho, parece-me, pelo menos três espécies de impoder, digamos antes três aspectos para, de um traço, sublinhar ainda o que vota a experiência do olhar (aspicierê) à cegueira. Aspectus é, ao mesmo tempo, o olhar, a vista e o que se dá a ver: de um lado, o espectador e, do outro, o aspecto, ou por outras palavras o espectáculo. Spectacles: óculos em inglês. Este impoder não é impotência ou desfalecimento, pelo contrário, dá o seu recurso quase-transcendental à experiência do desenho. O p rim eiro aspecto, designemo-lo assim, vê-lo-ia na aperspectiva do acto gráfico. No seu momento de rompimento [frayage] originário, na potência traçante do traço \tra it], no instante em que a ponta na ponta da mão (do corpo próprio em geral) avança para o contacto com a superfície, a inscrição do inscrevível não se vê. Improvisada ou não, a invenção do traço [trait] não segue, não se regula pelo que é presentemente visível, e estaria ali pousado, diante de mim, como um tema. Mesmo se o desenho é mimético, como se diz, reprodutivo, figurativo, representativo, mesmo se o modelo está presentemente diante do artista, é preciso que o traço [trait[ proceda na noite. Ele escapa ao campo da visão. Não somente porque não é a in d a v isíve l48, mas porque não 48 «O que é desenhar?», pergunta Van Gogh. Com o se consegue fazê-lo? É a maneira d-c se abrir uma passagem através dc um m uro de ferro invisível». Esta carta é citada por Artaud O . C. XIII, p. 40). Num a passagem consagrada aos desenhos e retratos de A ntonin Artaud Forcener lesubjectiUy in Artaud, Portrairs et Dessitis, Paris, 1986), tento nomeadamente interpretar i reiação entre o que Artaud chama a necessária má direcção [mal-adresse] do desenho no rompi mento do invisível e a rejeição de uma certa ordem teológica do visível, uma outra “inabilidade” 'maladresse’] de Deus como “arte do desenho”. Com o se Artaud contra-assinasse aqui o encegue- om ento decidido de Rimbaud: «Sim, eu tenho os olhos fechados à vossa luz. Eu não sou cristão.» 51 Jacques Derrida pertence à ordem do espectáculo, da objectividade especular - e aquilo que ele então faz advir não pode ser mimético em si. A heterogeneidade permanece abissal entre a coisa desenhada e o traço [trait[ desenhando, seja ele entre uma coisa representada e a sua representação, o modelo e a imagem. A noite deste abismo pode interpretar-se de duas maneiras, quer como a véspera ou a memória do dia, por outras palavras, como uma reserva de visibilidade (o dese- nhador não vê presentemente, mas viu e verá: a aperspectiva é a perspectiva antecipadora ou a retrospectiva anamnésica), quer como radical e definitiva mente estrangeira à fenomenalidade do dia. Esta heterogeneidade do invisível ao visível pode assombrar este como a sua própria possibilidade. Sublinhe-se-o com as palavras de Platão ou de Merleau-Ponty, a visibilidade do visível, por definição, não pode ser vista, tal como a diafanidade da luz de que fala Aristóteles. A minha hipótese - lembrai que estamos sempre na lógica da hipótese é a de que o desenhador se vê sempre à mercê daquilo a que, de cada vez universal e singular, haveria que chamar invisto [invu], tal como se diz ignoto [insu]. Ele lembra-o a si mesmo, ele é apelado, fascinado ou lembrado por ele. Memória ou não, e o esquecimento como memória, em memória e sem memória. is Por um Lido, então, anamnésia: anamnésia da própria memória. Baudelaire relaciona a invisibilidade do modelo à memória que o terá portado. «Restitui» a invisibilidade à memória. E o que diz o poeta dos Aveuglesé tanto mais con vincente quanto ele fala da imagem gráfica, do desenho representativo. O que vale a fortiori para o outro. Haveria que citar aqui toda Lart mnémonique. Por exemplo: «Quero falar do método de desenhar de M. G. Ele desenha de cor, e não segundo o modelo [...] codos os bons e verdadeiros desenhadores desenham de acordo com a imagem escrita no seu cérebro, c não de acordo com a narureza. Se nos objectam com os admiráveis esboços de Rafael, de Watteau e de muitos outros, diremos que eles são notas muito minuciosas, é verdade, mas puras notas. Quando um verdadeiro artista logrou alcançar a execução definitiva da sua obra, o modelo ser-lhe-ia mais um embaraço do que um auxílio. Acontece mesmo que homens como Daumier e M. G., de há muito acostumados a exercitar a sua memória e a preenchê-la com imagens, sentem diante do modelo e da multiplicidade de detalhes que ele comporta a sua principal faculdade perturbada e como que paralisada.»49 49 Baudelaire, «L’art m némonique» in CEuvres Completes (Éditions de la Pléiade, Paris, pp. 895-897). Foram propostas duas referências ao poema Les aveugles que, por razões essenciais, relacionadas com a es tru tu ra da referência e do poem a, não passam de m eras hipóteses. A primeira diz respeito a uma gravura ou a uma litografia segundo a tela de Bruegel o Velho 52 M em órias de Cego ver, o medo de ver sem ver o eclipse entre os dois, «a execução inconsciente» e, sobretudo, as figuras que substituem uma arte pela outra, a retórica analógica ou econôm ica (quer dizer fam iliar) de que falávamos há instantes, o traço- -por-traço \tra it-pour-trai{\\ «Assim, na execução de M. G. mostram-se duas coisas: uma, uma contenção de memória ressurreccional, evocadora, uma memória que diz a cada coisa: «Lázaro, ergue-te»; a outra, um fogo, uma embriaguez de lápis, de pincel, que quase se parece com um furor, fi o medo de não ir suficientemente depressa, de deixar escapar o fantasma antes de a sua síntese estar extraída e apreendida; é este medo terrível que se apodera de todos os grandes artistas e que tão ardentemente lhes faz desejar apropriarem-sc de todos os meios de expressão, para que nunca as ordens do espírito sejam alteradas pelas hesitações da mão; para que finalmente a execução, a execução ideal, se torne tão incons ciente, tão deslizante quanto o é a digestão para o cérebro do homem saudável que jantou.» Ordenando a origem do desenho à memória, mais do que à percepção, Baudelaire faz por sua vez ofício de memória. Inscreve-se numa tradição iconográfica que remonta pelo menos a Charles Le Brun50. A origem do desenho e a origem da pintura dão aí lugar a múltiplas representações que subs tituem a memória à percepção. Em primeiro lugar porque são representações, 50 É a hipótese de George Levitine que pretende assim precisar ou corrigir as de Robcrt Rosenblum no seu riquíssimo estudo, «The origin oi painting: A problem in the Iconographv oi Romantic Classicism», The A rt Bulletin, XXXIX, 1957. Este último tinha considerado The Origin o f Painting, de Runciman (1771), a inauguração desta inesgotável «tradição icono gráfica» em memória de Dibutade, a jovem coríntia que usava o nom e do pai e que, «tendo de se separar do seu amado por alguns dias, sublinhou num a muralha a sombra deste jovem desenhada pela luz de um candeeiro. O am or inspirou-lhe a ideia de se dotar desta imagem querida, traçando na som bra um a linha que lhe seguiu e m arcou exactam ente o contorno. Esta amante tinha por pai um Oleiro de Sycione, chamado D ibutade...» (Antoine d ’Origny, citado por Rosenblum, op. cit., n. 21). Notem os que na topografia assim retraçada, o dis positivo da origem do desenho lem bra m uito precisam ente o da espelcologia platônica. Nas suas «Addenda» ao estudo de Rosenblum (in The A rt Bulletin , XL, 1958), G. Levitine reconduz-nos a «origens do desenho» anteriores, mais originárias em suma. A primeira seria uma gravura a partir de um desenho de Charles Le Brun (anterior a 1676), e a outra a partir de um desenho de Charles-Nicolas Cochin filho (1769). Em ambos os casos, vê-se a jovem coríntia, o seu am ante e Cupido. Este últim o guia a mão de Dibutade na versão de Le Brun. Sobre o rema do amor cego (Caecus amor, caeca libido, caeca Cupido, caecus amor sui), sobre a história tão paradoxal dos «olhos» de C upido que nem sempre estiveram «vendados», não posso senão reenviar aqui ao rico artigo que Panofsky lhe consagra nos seus Essais d'iconologie (op. cit., pp. 151 ss). 55 Jacques Derrida de seguida porque mergulham o mais das vezes numa narrativa exemplar (a de Dibutade, a jovem amante coríntia que usava o nome do pai, um oleiro de Sycione), e finalmente porque esta narrativa reporta a origem da representação gráfica à ausência ou à invisibilidade do modelo. Dibutade não vê o amante, quer porque, mais constante do que um Orfeu, lhe vira as costas, quer porque ele lhe vira as costas a ela ou, em todo o caso, porque os seus olhares não podem cruzar-se (é o exemplo de Dibutade ou a Origem do Desenho, de J. B. 19 Suvée): como se ver fosse interdito para desenhar, como se não se desenhasse senão na condição de não se ver, como se o desenho fosse uma declaração de amor destinada ou ordenada à invisibilidade do outro - a menos que ela não nasça por ver o outro subtraído ao ver. Que Dibutade, com a mão por vezes guiada por Cupido (um Amor que vê e que aqui não tem os olhos vendados), siga então os traços de uma sombra ou de uma silhueta, que ela desenha na superfície de um muro ou num véu51, em qualquer dos casos uma skiagraphia, esta escrita da sombra, inaugura uma arte da cegueira. A percepção pertence desde a origem à recordação. Ela escreve, logo ela ama já na nostalgia. Desligada do presente da percepção, caída da própria coisa que assim se partilha, uma sombra é uma memória simultânea, e a varinha de Dibutade é um bordão de cego. Siga-se-lhe o trajecto no quadro de Regnault (Dibutade Traçando o Retrato do Seu Pastor ou A Origem da Pintura), como nós fizemos com todos os desenhos de cegos: ele vai e vem do amor ao desenho. Rousseau queria restituir-lhe a palavra. Ensaio sobre a Origem das Línguas'. «O amor, diz-se, foi o inventor do desenho; ele pôde também inventar a palavra, mas com menos felicidade. Pouco satisfeito com ela, desdenha-a: tem maneiras mais vivas para se exprimir. Quanta coisa diria ao seu amado aquela que, com tanto prazer, lhe traçava a sombra! Que sons teria ela empregue para traduzir este movimento de varinha?»52 Por outro lado, e na própria anamnésia, há a amnésia: o órfão de memória, porque o invisível pode também perder a memória, como se perdem os pais. Numa pista diferente, que vem talvez a dar na mesma, o desenhador estaria 51 Nougaret nota, com efeito, nas suas Anecdotes des Beaux-Arts (1776) que, sc por vezes os papeis estão invertidos (é o am ado quem desenha), a am ante «aproveitou o feliz estrata gema do seu amante» e desenhou, por sua vez, a silhueta, não num muro, mas num véu «que ela soube guardar com o maior dos cuidados» (citado por G. Levitine, loc. c i t p. 330. Eu sublinho, J. D.). 52 Permito-me reenviar a um capítulo de De la Gmmmatologie (Minuit, Paris, 1967) organi zado cm torno deste texto: «Ce mouvement de baguette...», (cap. III, «Larticulation», pp. 327 ss). 56 20. Jc-in-BjptUie Rcgruult, Dibuuuie ou a Origem tio Daenho, Castelo <ic Vcruillcs. Jacques Derrida a si mesma sem imediatamente se dividir, interrompendo aqui a divisibilidade do traço \trait] qualquer identificação pura, e formando, ter-se-á sem dúvida agora compreendido, a nossa hipoteca geral para com todo o pensa mento do desenho, no limite de jure inacessível. Nunca este limite é presen temente alcançado, mas sempre o desenho acena para esta inacessibilidade, para o limiar onde não aparece senão o redor do traço, o que ele espaça, delimitando-o, e que portanto não lhe pertence. Nada pertence ao traço, e portanto ao desenho e ao pensamento do desenho, nem mesmo o seu próprio «rastro» [«trace»]. Nem mesmo nada nele participa. Ele não toca nem junta senão separando. Será fortuito que, para falar dele, encontremos a linguagem da teologia negativa ou dos discursos ocupados a nomear o retraimento [retrait] do deus invisível ou do deus oculto? Daquele que não se deve nem ver de face nem representar nem adorar, quer dizer, idolatrar sob os traços do ícone? Aquele que é mesmo perigoso nomear com este ou aquele dos seus nomes próprios? Fim da iconografia. A memória dos desenhos-de-cegos, é por demais evidente desde há muito tempo, abre-se como uma memória-Deus [mémoire-Dieu]. É teológica de parte a parte, até ao ponto em que, ora incluído, ora excluído, o traço [trait] que se eclipsa nem pode sequer dizer-se no presente, porque não se reúne em nenhum presente, «Eu sou aquele que sou» * (fórmula de que se sabe que a gramática original implica o futuro). O traçado separa e separa-se ele mesmo, não retraça senão fronteiras, intervalos, uma grelha de espaçamento sem apropriação possível. A experiência do desenho (e a expe riência, como o seu nome o indica, consiste sempre em viajar para além dos limites) atravessa e institui ao mesmo tempo estas fronteiras, inventa o Shibboleth destas passagens (o coro de Samson Agonistes lembra aquilo que liga o Shibboleth, esta circuncisão da língua, à sentença de morte: «... when so many died / Without reprieve adjudged to deathy / For want o f wellpronoun- cing Shibboleth»58. N. T.: De norar que, no idioma de Derrida, «mémoire-Dieu» («memória-Deus»), que evoca um «orar ou um dar-graças-a-Deus», se escuta também como «memoire dyeux» («memória-d’olhos»). N.T.: Também escutável, em francês, por «Eu sou aquele que sigo», cf. J. Derrida, L anim al que donc je suis, Galiléc, Paris, 2006. T ítulo inicialmente incluído em U atiim al autobiographique. Autour de Jacques Derrida, s/d Marie-Louise Mallet, Galilée, Paris, 1999, actas da terceira década de Cérisv em torno do pensamento de J. Derrida. ^ «[...] quando tantos m orreram / à m orte condenados sem mercê / Por nunca terem sabido bem pronunciar Shibboleth». 60 M em órias de Cego Um limite linear, este de que falo, nada tem no entanto de id ea l ou de inteligível. Dividindo-se ele mesmo na sua elipse, a p a r tir de si mesmo de si mesmo ele se desvia, não assenta em nenhuma identidade ideal. Nesta pisca dela de olho, a elipse não é um objecto mas um batimento da diferença que a engendra, ou, se preferirdes, um ciúme (b lin d ) de traços cinzelando o horizonte e através dos quais, en tre os quais observeis sem serdes vistos, entreveis o que quero dizer: lei da entrevista. Pela mesma razão, o traço [traii\ não é sensível como o seria o pleno de uma cor. Nem inteligível nem sensível. Falamos aqui de cegueira \cécité[ gráfica e não cromática, de desenho e não de pintura, mesmo se por vezes uma certa pintura pode esgotar-se a pintar o desenho, ou mesmo a representar, para a pôr em quadro, a alegoria de uma «origem do desenho». Se saím os desde há bocado da caverna platônica, não foi para ver finalmente o eidos da própria coisa, depois de conversão, anabase ou anamnésia. Abandonámos a caverna porque, incapaz de dar conta dele, senão mesmo de o ver, esta espeleologia de Platão não logra a inaparência de um traço que não é nem sensível nem inteligível. E não o logra precisamente porque crê vê-lo ou dá-lo a ver. A lucidez da dita espeleologia porta nela um outro cego, não o cavernoso, mas aquele que fecha os olhos a esta cegueira - aqui. (Deixemos para uma outra ocasião o tratamento reservado por Platão a estes grandes cegos que foram Homero e Edipo.) «Antes» de todas as «manchas cegas» que, literal ou figurativamente, organizam o campo escópico e a cena do desenho, «antes» de tudo quanto pode acontecer à vista, «antes» de todas as interpretações, as oftalmologias, as teo-psicanálises do sacrifício ou da castração, haveria então o ritmo eclíptico do traço \tra it\, o ciúme, a contracção abocular que dá a ver «a partir» do invisto \in vu ]. «Antes» e «depois» desenham no tempo ou no espaço uma ordem que não lhes pertence - não é isto demasiado evidente? - Se essa foi de facto a primeira ideia desta exposição, poder-se-á sempre dizer, sem correr o risco de nos enganarmos, que procura assim transcen- dentalizar, quer dizer, enobrecer uma enfermidade ou uma impotência: não responde a sua cegueira ao desenho a uma necessidade universal? E p o r excelência a uma essência do traço [trait\^ a uma invisibilidade inscrita no próprio traço? Na sua paixão ciumenta, invejosa mesmo, na sua impotência ferida, não pretendería ser mais fiel ao traço [ta*/V], no seu mais fino fim? Quanto ao «grande desenhador», e seguindo a sua sugestão, não procura ele também em vão, até ao esgotamento de um ductus ou de um estilo, capturar este retraimento do traço [retrait d u trait], remarcá-lo, assiná-lo finalmente - numa escarificação sem fim? 61 Jacques Dcrrida - Mas se o confessasse, bastaria isso para desqualificar a minha hipótese? Esta retórica da confissão, onde quereis confinar-me, conduz-nos ao terceiro aspecto: a retórica do traço. Acaso não é o retraimento [retrait] da linha, aquilo que a retira no momento em que o traço [trait] se traça, o que deixa a palavra? E o que, no mesmo lance, interdita que se separe o desenho do murmúrio discursivo, cujo frêmito o estremece? Esta questão não visa restaurar uma autoridade do dizer sobre o ver, da palavra sobre o desenho ou da legenda sobre a inscrição. Trata-se antes de compreender como é que esta hegemonia pôde impor-se. Por todo o lado em que o desenho está em consonância e se articula com uma onda sonora e temporal, o seu ritmo compõe com o invisível: antes 44 mesmo de retinir a máscara de uma Górgona (porque um grito horrível podia acompanhar-lhe o olhar), antes que ele não faça de vós um cego de pedra. E é ainda por figura que falamos de retórica, para designar com um tropo suplementar este domínio imenso: o desenho dos homens. Porque reservamos aqui a questão daquilo a que obscuramente se chama o animal, e que não é incapaz de rastro [trace]. O limite que aqui deixamos na sombra parece tanto mais movente quanto nele cruzamos necessariamente as «monstruosidades» do olho, figuras zoo-téo-antropomórficas, enxertias instáveis ou proliferantes, híbridos inclassificáveis de que as górgonas e os ciclopes são apenas os exemplos mais conhecidos. Diz-se a vista de certos animais mais potente, mais aguda, mais cruel também do que a do homem, e portanto privada do olhar. Em todo o caso, nunca o desenho dos homens vai sem se articular com a articulação, sem a ordem dada com palavras (lembrai-vos do anjo Rafael), a ordem «tout court», a ordem da narrativa, logo da memória, a ordem de sepultar, a ordem da prece, a ordem dos nomes a dar ou a bendizer. O desenho vem no lugar do nome que vem no lugar do desenho: para, como Dibutade, se ouvir chamar o outro ou pelo outro. Assim que um nome vem assombrar o desenho, e mesmo o sem-nome de Deus, dado que ele abre o espaço da nomeação, um cego está de mãos dadas com o vidente. Enceta-se um duelo interno no próprio coração do desenho. O re tra im en to -re tra ça m en to tra n sc e n d e n ta l do traço apela e interdita ao mesmo tempo o auto-retrato. Não o do autor e presumível signatário, mas o do «ponto-fonte» [«poin t-source» ] do desenho, o olho e o dedo, se se quiser. Este ponto representa-se e eclipsa-se ao mesmo tempo. Confia-se ao autógrafo * * N. T.: De notar que «point-source», no idioma de Dcrrida, se escuta tam bém como «não-fonte» ou como «nenhum a fonte»: indecidibilidade com que o filósofo joga para referir o aparecer desaparecente da origem ou da fonte do desenho: a «origem arruinada» ou «em abismo» que está justamente na origem da retirada ou do re-traiinento/re-traçamento do traço. 62 25. Henri Faniin-laiour, Auto-Retrato. Museu do Louvrc. fundos do Museu d 'Or»y. (N.° 13 da’Exposição) Henri Fantin-Luour. Auto-Retrato. Museu do Louvrc. fundos do Museu d ‘Orsay. <N.° 14 da Exposição) 27. Henri Fantin-Ijtour. Auto-Retrato, Museu do I-ouvrc. fundos do Museu d'Orsay. (N.° 15 da Exposição) Jacques Derrida conjectura e percepção. Opõe-se mesmo a hipótese à intuição, quer dizer, à imediatidade do «eu vejo» (vídeo , intueor), «eu olho» (aspicio), eu «miro», espanto-me de ver, admiro (m iror; adm iror). Mesmo aqui, e é um paradigma, não podemos senão supor a intuição. De facto, nestes dois últimos casos (auto-retrato do desenhador em vias de desenhar e visto de face), é apenas p o r hipótese que o imaginamos em vias de se desenhar a si mesmo diante de um espelho, e portanto em vias de fazer o auto-retrato do desenhador em vias de fazer o auto-retrato do desenhador. Mas isto não é senão uma conjectura, Fantin-Latour pode também mostrar-se em vias de desenhar ou tra coisa (.A u to -R e tra to D esenhando). Ele pode desenhar-se de face, diante de outra coisa ou diante de nós, mas não necessariamente face a ele mesmo, como outros se desenham também de perfil; como é o caso de O P in to r D esenhando (à maneira 29 de Bruegel, o Velho) ou o desenhador sentado de Van Rysselberghe que se pode 2 8 identificar com o pintor, pelo menos por metonímia, mas de que se pode também saber, por indícios necessariamente exteriores, que se trata de um outro artista (Charpentier neste caso). O que põe esta conjectura em evidência? Para formar a hipótese do auto-retrato do desenhador em auto-retratista, e visto de face, o espectador ou o intérprete que somos deve imaginar que o desenhador não fixa senão um ponto, um único, o núcleo de um espelho d ian te dele, quer dizer, a partir do lugar que nós ocupamos, em face-a-face com ele: o que não pode ser o auto-retrato de um auto-retrato senão para o outro, para um espectador que ocupa o lugar de um único núcleo, mas no centro do que deveria ser um espelho. O espectador substitui e obscurece então o espelho, enceguece [rendaveug le] para o espelho produzindo, p o n d o em obra a especularidade procurada. A perform ance do espectador, tal como é essencialmente prescrita pela obra, consiste em atingir o signatário de cegueira, e portanto em vazar com o m esm o golpe os olhos do modelo ou a obrigá-lo, a ele, o sujeito (ao mesmo tempo modelo, signatário e objecto da obra), a vazar os olhos para se ver tanto quanto para se representar a operar. Se existisse, o auto-retrato consistiria em primeiro lugar em intimar, logo em descrever o seu lugar ao espectador, ao visitante, ao vidente cegante [aveug lan t], a partir do olhar de um desenhador que, p o r u m lado, não se vê mais, sendo o espelho necessariamente substituído pelo destinatário que lhe faz face, por nós mesmos, mas por nós que, p o r outro lado, no preciso momento em que somos instituídos como espectadores nas vezes do espelho, não vemos mais o a u to r enquanto tal, não podemos mais, em todo o caso, identificar o objecto, o sujeito e o signatário do auto-retrato do artista em auto-retratista. Neste auto-retrato de auto-retrato, a figura de Fantin-Latour deveria olhar-nos a olhá-lo segundo a lei de uma impossível e cegante reflexividade. Para se ver 66 M em órias de Cego ou para sc mostrar, ele não deveria ver senão os seus dois olhos, os seus, mas dois olhos dos quais deve imediatamente fazer o luto, justamente para se ver, olhos que ele deve imediatamente substituir, para este fim, com vista a esta representação, nas vezes do espelho, por outros, e que o vêem, pelos nossos. Nós somos a condição da sua visão, é certo, e da sua própria imagem, mas é também, como em O Homem de Areia, de Hoffmann59, porque nós fazemos saltar os seus olhos para imediatamente os substituirmos: nós somos os seus 59 Der Sandm ann, o conto de Hoffmann, é uma pavorosa história de olhos arrancados e de próteses ópticas. A ama descreve aquele homem mau que atira punhados de areia aos olhos das crianças quando eles não querem dormir, o que faz saltar fora os olhos ensanguentados. N'o decurso de uma doença e de um delírio, o estudante Nathanael associa a figura terrível do advogado Coppélius (que ele teria ouvido gritar «Olhos, aqui, olhos!») à do óptico ambulante Coppola que, aos berros na rua, «Eu também tenho belos olhos, belos olhos», vende de facto inofensivos óculos. Nathanael com pra uns binóculos com a ajuda dos quais espreita a bela Olímpia, a filha do professor Spalanzani que se revela ser um autômato. A seguir é a cena no decurso da qual Coppola e Spalanzani disputam entre si a boneca sem olhos. Spalanzani atira à cara do estudante os olhos ensanguentados de Olímpia gritando que Coppola os roubou, etc. O fim da doença e do delírio não é o fim de um a narrativa que a literatura freudiana, talvez infelizmente, saturou de interpretações automáticas. E na «Inquietante estranheza» (Das Unheimliche, 1919) que, em todo o caso, Freud ilustra com esta referência ao Homem de Areia a sua formulação mais vidente da equivalência entre o temor dos olhos c a angústia da castração, o seu discurso sobre a gênese dos duplos, os efeitos do narcisismo primário, etc. Crime, castigo, cegueira. No centro, a figura de Édipo: «O castigo que a si mesmo Édipo inflige, o criminoso mítico, quando se cega a si mesmo não é senão uma atenuação da castração a qual, segundo a lei do Talião, seria a única à medida do seu crime [ ...] . Não aconselharia por isso nenhum adversário do método psicanalítico a apoiar-se justamente no conto de Hoffmann, O Homem de Areia, para afirmar que o temor pelos olhos é independente do complexo de castração. Porque, por que razão é o temor pelos olhos aqui posto em íntima relação com a morte do pai? Porque é que o homem de areia aparece sempre como o desmancha-prazeres do amor?» [N.T.: Dcrrida cita da trad. fr. M. Bonaparte e E. Marty, in Essais depsycbanalyse appliquée, Idees, Paris, p. 182.] Noutros textos é também possível reportar-se a belos exemplos mitológicos de repressão da scoptofilia sexual em La destruetion psychogène de la vue d ’un p o in t de vue psychanalytique íD ie psychogene Sehnstôrung in psycboanalytiscber Ausfassung, 1910). Sobre a lógica da leitura freudiana neste ponto e sobre algumas das questões para que ela apela, permito-m e reenviar a La D issém ination (Seuil, Paris, 1972, nom eadam ente p. 300, n. 56). Cf. sobretudo a análise de Sarah Kofman, «Le double e(s)t le diable», in Quatre Romains Analytiques, Paris, 1973. Para além dos «impasses de uma leitura temática» (pp. 145 ss), a questão do «voyeurismo» é, entre outras coisas, aí elaborada com base no exemplo do Homem de Areia. «O tem or de perder os olhos evoca pois o tem or da castração, mas obedece mais directamente à lei de Talião: está ligado a uma falta de que o olho é o princípio: “Se pecaste pelo olho, pelo olho serás punido» (pp. 170 ss). 67 Jacques Dorida Trate-se ele da identidade do objecto desenhado pelo desenhador ou do próprio desenhador desenhado, seja ele ou não o autor do desenho, a iden tificação permanece p ro v á ve l quer dizer, incerta, subtraída a qualquer leitura interna, objecto de inferência e não de percepção. De cultura e não de intuição imediata ou natural (aqui se situaria com todo o rigor a condição de uma sociologia da arte gráfica e de uma pedagogia do olhar). Por isso o estatuto do auto-retrato do auto-retratista manterá sempre um carácter de hipótese. Depende sempre do efeito jurídico do título, este evento verbal que não pertence ao interior da obra, mas somente à sua borda parergonal. O efeito jurídico apela ao testemunho do terceiro, à sua palavra dada, à sua memória mais do que à sua percepção. Como as Memórias, o Auto-Retrato aparece sempre na reverberação de várias vozes. E a voz do outro comanda, faz retinir o retrato, apela-o sem simetria nem consonância. Se aquilo a que se chama auto-retrato depende do facto de se lhe chamar «auto-retrato», um acto de nomeação deveria, a ju s to títu lo , permitir-me chamar auto-retrato nao importa o quê, não somente não importa que desenho («retrato» ou não), mas tudo quanto me chega e de que eu posso afectar-me ou deixar-me afectar. Como Ninguém , dirá Ulisses no momento de cegar Polifemo. Antes mesmo de se tentar uma história pensada do retrato, antes mesmo de se diagnosticar o seu declínio ou a sua ruína («o retrato periclita» dizia Valéry* 60), dever-se-á sempre dizer do auto-retrato: «se acaso o houver...» [ « s tly en a v a it . . .» ] y «se acaso restar» [«5/7 en restait»]. É como uma ruína que não vem a seguir à obra mas que queda produzida, desde a origem , pela adveniência [avènem ent] e pela estrutura da obra. Na origem foi a ruína. Na origem acontece a ruína, ela é o que primeiramente lhe acontece, à origem. Sem promessa de restauração. Esta dimensão de simulacro ruinoso nunca ameaçou, antes pelo contrário, o surgimento de uma obra. Simplesmente é preciso saber [«/7f a u t savoir»], e portanto há que ver bem isso [ « il fa u t bien voir ç a » \ que a ficção performativa, que empenha o espectador na assinatura da N . T.: «Comme Personne» - na edição francesa da Odisséia, a que Derrida se refere, Odusseus é designado “Personne”. 60 C itado no estudo de Michel Servière, «Eimaginaire signé» in Portrait, autoportrait (E. Van de Casteele, J. L. Déotte, M. Servière, Paris, 1987, cf. pp. 100 e ss). Reenvio também, neste ponto, à análise de Louis M arin, «Variations sur un portrait absent: les autoportraits de Poussin (1649-1650)» in Corps écrit, n.° 5. N.T.: «Voir ça» (ver isso) é em francês, notem o-lo no prosseguimento do que Derrida diz em «Um bicho da seda de si» (in Véus... à Vela, trad. Fernanda Bernardo, Quarteto, Coimbra, 2001) a respeito do cruzamento do ver, do saber e da cegueira, a homônima invertida de «sa-voir» (saber). 70 M em órias de Cego obra, não dá a ver senão através do enceguecimento que ela produz como sua verdade. Como entrevisão de um ciúme. Mesmo que tivéssemos a certeza de que Fantin-Latour se desenha a si mesmo em vias de desenhar, jamais se saberá, ao observar u n ica m e n te a obra , se ele se mostra em vias de se desenhar ou de desenhar ou tra coisa - ou ainda a si mesmo com o outro. E, ainda por cima, ele pode sempre desenhar esta situação, o ocultamento daquilo que vos olha, e vos observa fixamente não ver do que e de quem se trata. Acaso o próprio signatário vê aquilo que vos faz observar? Tê-lo-á visto em algum presente? Fantin ousou dizer de si mesmo: «É um modelo que está sempre pronto e que oferece todas as vantagens: é exacto, submisso e conhecemo-lo antes de o pintar»61. Tranquilidade estupefaciente ou estupefacta? Ironia soberba do retratista como modelo? Um, o outro sabe pelo menos uma coisa: que nunca conseguirá ser acessível como tal, e sobretudo não ao conhecimento, nem antes nem depois. Toda e qualquer simetria está rompida, entre ele e ele, entre ele, o espectáculo, e o espectador que ele é também. Não há mais do que espectros. Para sair daqui, é pelo menos preciso partilhar os papéis no hetero-retrato, ou mesmo na diferença sexual. Assim Picasso a Gertrude Stein: «Quando vos vejo, não vos vejo.» Ela: «Vejo-me eu então, finalmente, a mim.» A partir do momento em que se considera, fascinado, preso à imagem, mas desaparecendo aos seus próprios olhos no abismo, o movimento pelo qual um desenhador tenta desesperadamente recuperar-se é já, mesmo no seu presente, um acto de memória. Baudelaire sugeria-o em L a r t m n ém o n iq u e: o operar [m ise en oeuvre] da memória não está ao serviço do desenho; tão-pouco também o conduz, como o seu dono ou a sua morte - é a própria operação do desenho, e justamente a sua m ise en oeuvre. O fracasso em recapturar a presença do olhar fora do abismo, onde ele mergulha, não é um acidente ou uma fraqueza, antes figura a própria chance da obra, o espectro do invisível que ela dá a ver sem jamais o apresentar. Do mesmo modo que a memória não restaura aqui um presente passado, também a ruína do rosto - e do rosto fitado ou desfigurado [dévisagé\ no desenho - não significa o envelhecimento, a usura, a decomposição antecipada ou esta mordedura do tempo de que frequentemente um retrato trai a apreensão. A ruína não sobrevêm como um acidente a um monumento ontem intacto. No começo há a ruína. Ruína é o que acontece aqui à imagem desde o primeiro olhar. Ruína é o auto-retrato, este rosto fitado ou desfigurado como memória de si, o que resta ou retorna como um espectro desde que, ao primeiro olhar sobre si lançado, uma figuração se eclipsa. 61 Cirado por L. Bénédite, Prefácio à Exposição de 1906. 71 30. Fnirçois Srella. Ruínas do Coliseu de Roma, Museu do Louvre. (N.° 2 1 (L> Exposição) 32. Ggoli. Estudo de Narciso (verto do n.® 31). Museu do Louvre. 33. Gavarni. Dois Piorou a Olharem para Um Camarim, Museu do Louvre. (N.° 23 da ExposiçJo) Jacques Derrida transcendental, ele também se contempla cegamente, ataca a sua vista até ao esgotamento de narcisismo. A verdade dos seus próprios olhos de vidente, no duplo sentido deste termo, é a última coisa que se pode surpreender, e nua, sem atributos, sem óculos, sem chapéu, sem turbante na cabeça, num espelho. O rosto nu não pode olhar-se de frente, não pode olhar-se num espelho. Esta última locução diz qualquer coisa da vergonha ou do pudor que faz parte do quadro. Compromete-o no irreprimível movimento de uma confis são. Mesmo se não há ainda crime (realidade ou fantasma), mesmo se não há Górgona, espelho-escudo, gesto agressivo ou apotropaico. Vergonha ou pudor, sem dúvida, apenas ultrapassados para serem observados, guardados e olhados, respeitados e mantidos em respeito, na condição de uma parte de sombra. Mas também o medo dado em espectáculo, o ver-se-visto-sem-ser-visto, histrio- nismo e curiosidade, exibicionismo e voyeurismo: o sujeito do auto-retrato torna-se o medo, mete medo a si próprio. Mas como o outro, lá além, permanece irredutível, como resiste a toda a interiorização, subjectivação, idealização num trabalho do luto, a manha do narcisismo não acaba mais. O que não pode ver-se, pode-se ainda tentar reapropriá-lo, calcular-lhe o interesse, o benefício, a usura". Pode-se descrevê-lo, escrevê-lo, pô-lo em cena. Desenhar-se-á por um lado o artefacto: objectos técnicos destinados, como próteses, a suplementar a vista, e em primeiro lugar a paliar esta ruína transcendental do olho que, desde a origem, o ameaça e o seduz, por exemplo, 37,38 o espelho, os telescópios, os óculos, os binóculos, o monóculo. Mas como a perda da intuição directa é, como vimos, a condição ou a própria hipótese do olhar, a prótese técnica tem lugar, o seu lugar, antes de qualquer instru mentalização, o mais próximo do olho, como uma lente de substância animal. Ela desprende-se imediatamente do corpo próprio. O olho solta-se64, pode-se desejá-lo, desejar arrancá-lo, arrancá-lo mesmo. Desde sempre: a história moderna da óptica não faz senão representar ou sublinhar, segundo novos modos, um enfraquecimento da vista dita natural, a começar pelos spectacles em inglês, como observávamos há instantes, os óculos do desenhador. Donde 34 os auto-retratos com óculos. O auto-retrato dito com abajur de De Chardin N.T.: Para Derrida a palavra «usure» {usura) capitaliza em si como que um duplo sentido: o de usado, gasto ou deteriorado e o de capitalizado, cf. J. Derrida, «A mitologia branca», in Margens - da Filosofia, trad. port. A ntônio Magalhães e Joaquim Costa, Rés Ed., Lisboa. 64 Para o motivo do «desprendimento», em particular para o que o liga ao suplemento, à prótese e ao «parcrgon», permito-m e ainda reenviar a Glas (Galilée, Paris, 1974) e a La vérité enpeinture (Flammarion, Paris, 1979). 76 M em órias de Cego diz bem o abajur, uma vez que mergulha ou protege os olhos do pintor na sombra (como este outro fetiche destacável, o chapéu cujas abas quase ocultam os olhos de Fantin-Latour num auto-retrato). Mas para além disso, com igual ciúme, ele resguarda e mostra ao mesmo tempo os mesmos olhos por detrás de óculos cujas hastes são visíveis. O pintor parece posar de frente, enfrenta-vos, inactivo e imóvel. No Auto-retrato com lunetas (óculos sem hastes, talvez lunetas de trabalho), Chardin deixa-se ver ou faz-se observar de perfil, parece mais activo, talvez interrompido por um instante, e desviando os olhos do quadro. Mas é em vias de pintar ou de desenhar, a mão e o instrumento visíveis à beira da tela, que ele se repre senta num outro auto-retrato. Sob este aspecto, pode sempre considerar-se este auto-retrato como um exemplo entre outros na série dos Desenhadores de Chardin65. Estará ele em vias de se ocupar com o auto-retrato ou com outra coisa, com um outro modelo? Não conseguiremos decidi-lo. Nos três casos, óculos nos olhos, turbante na cabeça - não os olhos vendados \bandés], desta vez, mas a cabeça tapada [bandée], palavra que, entre outras coisas*, pode sempre fazer pensar numa ferida: no rosto, a que não pertencem, des tacáveis do corpo próprio como fetiches, o turbante e as lunetas permane cem os suplementos ilustres e melhor exibidos destes auto-retratos. Distraem tanto quanto concentram. Neles, o rosto não se mostra nu, sobretudo não se mostra nu, o que desmascara, é claro, a própria nudez. E aquilo a que se chama mostrar-se nu, mostrar a nudez, o nu que nada é sem o pudor, a arte do véu, da vitrina ou do vestuário. Pode-se também, por outro lado, surpreender o que não se deixa surpreen der, podem-se desenhar os olhos fechados: visão extática, prece ou sono66, máscara do morto ou do homem ferido (veja-se os olhos do Auto-Retrato Dito o Homem Ferido de Courbet (1854)67. 65 Um Desenhador Segundo o M ercúrio de M . Pigalle, Salão de 1753, gravado por Le Bas. O Desenhador segundo Chardin, Salão de 1759, gravado por Flipart, cf. a este respeito Michael Fried, op. cit., p. 13-15. N . T.: Em francês a palavra «bandé» significa, para além de tapado, vendado, enfaixado, tam bém erecto, sexualmente erecto - sentido a reter a fim de atentar na relação, sugerida por Derrida, entre cegueira (como punição) e castração. 66 Por exemplo, O Eremita Adormecido, de Joseph-M arie Vien, Salão de 1753, cf. também M. Fried, o.c. p. 28. 67 Cf. a análise de Michael Fried («The Early Self-Portraits», in Courbeds Realism , Chicago e Londres, 1990, pp. 53 ss. 23 35 36 39, 42 40, 41, 43 77 . Félicien Rope, Mulher emb Museu
* Estudo de Trés (abevas, Muscu do Louvre.
. Odile Redon, Or Olhes Fechados. Muscu do Louvre, fundos do Muscu e'Orsay. doação Arr e Suzanne Redon.
(N.º 28 da Exposição)
n r i . urfr-t. Auto-Retrato Dito o Homem í-erielo, M u j c u d'Orsay. 20 da Exposição) Jacques Derrida - Diria enrão que o autógrafo do desenho mostra sempre uma máscara? 33 - Sim, na condição de lembrar todos os valores da máscara. Em primeiro lugar, a dissimulação: a máscara dissimula tudo excepto (daí a fascinação ciumenta que exerce) os olhos nus, única parte do rosto ao mesmo tempo visível, portanto, e vidente, o único signo de nudez viva que se crê subtrair à velhice e à ruína. De seguida, a morte: toda a máscara anuncia a máscara mortuária, participa sempre da escultura e do desenho. Finalmente {por consequência, e esta dedução quase transcendental não tem qualquer necessidade de mito, de evento ou de nome próprio) o efeito «siderante»: a máscara mostra olhos num rosto amputado que não se consegue olhar de frente sem se ver significar a objectividade petrificada, a morte ou a cegueira. De cada vez que se usa uma máscara, de cada vez que se a mostra ou a desenha, repete-se a proeza de Perseu. Com os seus riscos e perigos. Perseu poderia tornar-se o patrono de todos os retratistas. Ele assina todas as máscaras. «De cada vez», dizíamos, de cada vez que uma máscara é usada, usada em si ou segurada na mão, mostrada, exibida, objectivada, designada, é de cada vez Perseu à prova do desenho. Desde então a história deste filho heróico não dá apenas lugar à narrativa de um evento. O mito figura também um índex, o dedo de um desenhador ou o traço de uma estrutura. Sem enfrentar o olhar 44 fatal de Medusa68, mas apenas o seu reflexo no escudo de bronze polido como 4 7 um espelho, Perseu vê sem ser visto, quando olha de lado para decapitar o monstro ou quando exibe a sua cabeça para afugentar os seus inimigos 46,45 ameaçados de serem petrificados. Ainda aqui, nenhuma intuição directa, apenas ângulos e a obliquidade do olhar. Não esqueçamos que todas estas cenas são ainda cenas de vidência, de predição e de filiação. O oráculo havia anunciado a Danae que, se ela tivesse um filho, ele mataria o seu avô. Este, Acrísio, rei de Argos, manda prender a filha, mas Zeus transforma-se em chuva de ouro para a visitar. O nascimento que se seguiu é portanto heróico, meio-divino e meio-humano, como o de Dionísio que Perseu detesta e cujo pai, o seu pai comum, se tinha mostrado com tal, uma única vez, no momento da cópula. 68 «“Decapitar”: castrar. O terror diante da Medusa é então o terror da castração enquanto associada à vista [ ...] A visão da cabeça de Medusa retesada no terror transforma em pedra o espectador. Mesma origem no complexo de castração e mesma transformação de afecto! Porque o entesar (das Suurwerderí) significa a erecção e portanto a consolação do espectador na situação original. Ele possui ainda um pênis, assegura-se disso no seu devir-teso», Freud, DasMedusenhaupt, 1922. (Traduzi uma parte deste texto de que propus uma leitura em La Dissémination, p. 47). Sobre a Górgona e o mito de Perseu, reenvio a Jean-Pierre Vernant, nomeadamente ao capítulo La mort dans lesyeux, no livro que porta este título (Paris, 1985.) 86 44. Ciacinto Calandrucci. Cabeça de Medusa. Museu do Louvre. (N.° 32 da Exposição) Jacqucs Derrida Para cortar a cabeça da Medusa depois do desafio de Polidectes, o herói tinha tido de multiplicar as etapas - e é de cada vez uma história do olho. Ele tem de receber das ninfas o capacete de Hades, a Kune que torna invisível. Mas na procura das Ninfas, dirige-se em primeiro lugar a casa das avós, as Graias, irmãs das Górgonas; todas três não têm senão um olho e um único dente. Uma de entre elas vela, mantém o olho sempre aberto, e o dente pronto a devorar. Perseu rouba-as no momento em que, ao renderem a guarda, se assim se pode dizer, o olho e o dente passam de mão em mão e não pertencem portanto a ninguém. Ele rouba uma espécie de vigilância sem sujeito. (E o olho único solta-se ainda, circula entre os sujeitos como um órgão instrumental, uma prótese fetichizada, um objecto de delegação ou de representação. Aliás, ao fazerem dele um objecto parcial, todas as representações do olho dissociado ou trabalhado por um transplante se inscrevem nesta cena. O que tanto vale para as representações anatômicas e «objectivas» do olho quanto, por exemplo, para o Olho com Papoila de Odilon Redon). Depois de ter cortado a cabeça de Medusa, depois de ter escondido na manga esta potência de morte que fascina, reduplica e perde o olhar do outro, Perseu escapa às outras Górgonas graças ao capacete de invisibilidade. É de cada vez a manha de um olhar oblíquo ou indirecto. Que consiste mais em esquivar do que em enfrentar a morte que vem pelos olhos. A morte tanto ameaça pelo cruzamento especular dos olhares (Perseu lança então espelho contra espelho, olha Medusa num espelho para não cruzar o seu olhar), como pela unicidade do olhar fixo, pela vigilância sem sono, mas também pelo olho a menos ou a mais, o olho expropriável que se pode roubar, emprestar com usura, o olho que há que não ver ou o olho aberto como uma ferida, ou até aberto como uma boca aberta, cujos lábios e pálpebras poderíam igualmente abrir-se, para o expor, num sexo de mulher. Difícil não associar as Graias aos Ciclopes. A história de Polifemo é ao mesmo tempo a de um 49 Ciclope, logo de um monstro, meio-animal, meio-deus, filho de Poseidon, apaixonado por Galateia, e de um gigante embriagado e de seguida adorme cido pela manha de Ulisses que lhe enterra então uma estaca ao rubro no olho: olho único, olho fechado, olho vazado. Pela manha mais do que pela força (dolô oude bièphin), e por alguém que se chama “ninguém”69. Métis d’ Outis, o engano que cega é manha de ninguém (outis, me tis, metis), Homero joga mais 69 Hom ero, Odisséia, IX, 406-414. N. T.: Em grego a palavra «ninguém», tanto pode dizer-se «outis», como «me tis». Esta última, «me tis», se usada num a só palavra, «metis», significa manha. Ulisses designa-sc a si mesmo O utis nesta cena do Ciclope (in Odisséia, canto IX) e, depois de ter cego este, é chamado «Me tis»: a homofonia entre «metis» e «me tis» assinala ao mesmo tempo, tanto o nom e próprio, quanto a manha produzida por esta indecidibilidade. 90 4S. Odilon Ralou. Olho com Papoila. Museu tio Louvre, fundos do Museu cTOrsay. dov»0«i Ctaudc Rogci-Marx. i Sr.° 34 da Exposição) Jacques Derrida de uma vez com estas palavras quando Polifemo faz eco à pergunta do coro: (e me tis. . . e m e tis.. .): «A manha, meus amigos! A manha! E não a força!... E quem me mata? Ninguém!» E por sua vez, Ulisses faz ressoar as mesmas palavras assinando a manha com o seu nome de ninguém e a sua «metis». Ao apresentar-se como Ninguém, ele nomeia-se e apaga-se ao mesmo tempo: como ninguém, lógica do auto-retrato. A manha cruel de Ninguém não dá menos o seu triunfo em espectáculo. É, na nossa memória poética, uma das mais terrificantes descrições de olho vazado. Alguma vez ela foi desenhada? Alguma vez se representou este movimento de alavanca do mochlos, desta estaca com a ponta em brasa que desenha um trajecto em espiral no olho ensanguentado de Polifemo? «Falou e logo de seguida caiu para trás [...] Então fui eu quem enfiou o tronco debaixo das brasas, para que ficasse quente; [...] Quando o tronco de oliveira estava prestes a pegar fogo (apesar de verde), começou a refulgir de modo terrível. Então fui eu que o tirou do fogo; estavam os companheiros à minha volta e um deus insuflou-nos uma grande coragem. Tomaram o tronco de oliveira, aguçado na ponta, e enterraram-no no olho do Ciclope, enquanto eu apoiava contra o tronco o meu peso e fazia com que girasse, como o homem que fura com o trado a viga da nau, enquanto os que estão em baixo o fazem dar voltas sem cessar com uma correia que giram de ambos os lados: assim nós tomámos o tronco em brasa e o girámos no seu olho e o sangue correu quente em toda a volta. A pálpebra por cima e as sobrancelhas estavam queimadas pela pupila em chamas, cujas raízes crepitavam enquanto ardiam. Tal como quando o ferreiro mergulha um grande machado ou picareta em água fria para beneficiar o ferro de ambos os lados - era assim que fervilhava o olho com o tronco de oliveira70. O Ciclope dava gritos lancinantes, e toda a rocha da caverna ressoou. Recuámos, aterrorizados, enquanto ele arrancava o tronco Do olho, imundo e coberto de abundante sangue. Depois lançou o tronco para longe e, perdido de fúria, Chamou alto pelos Ciclopes que viviam ali ao pé [_]»71 0 Trata-se de um a interpolação. Observar-se-á que ela pertence à linguagem da vítim a sacrificada, ao código da metalurgia que seria sobretudo o dos Ciclopes. C om o mostram certos desenhos, o seu lugar próprio é frequentem ente a forja. 71 H om ero, Odisséia, IX, 370-399, trad. port. de Frederico Lourenço, Livros Cotovia, Lisboa, 2003, p. 156. Esta cena é evocada no centro do formidável Rapport sur les aveugles de 92 52. L ouii dc Boullogne, o jovem, Ciclope. M useu do Louvre. (N .° 29 da Exposição) Jacques Derrida 50 51 49, 52 Ciclopia, perro de Nápoles, é o nome de um país cujos primeiros habitantes foram denominados Opikoi (nação dos olhos) pelos primeiros colonos gregos e cujo outro nome foi oinotria, o que os Gregos interpretavam como «país do vinho» {oinos - vinum). Famoso e tagarela, como o seu nome poderia indicá-lo, Polifemo parece cuspir lavas e rochedos. O seu clamor embriagado incarna a potência vulcânica (para além de os ciclopes, gigantes errantes mas familiares das oficinas de ferradores, pertencerem frequen temente, como aqui se vê, a corporações de vulcanicianos, de metalúrgicos mágicos72), quer dizer, deste país esburacado por crateras, como outros tantos olhos em erupção. A Ciclopia, «país dos olhos», cospe sem parar lágrimas de cólera. O olho dos Ciclopes dá lugar a representações heterogêneas. Raramente a descrição é fria ou neutra. Um olho, o olho-único, o monóculo, não é nunca um objecto. Por vezes parece aberto como uma chaga cujos lábios carnudos sangram ainda: obscenidade de uma cicatriz, sutura impossível da fenda, genitalidade frontal. A anomalia parece por vezes invisível ou banalizada: representação interdita, como foi por vezes o caso, ou espectáculo a evitar, exibição de uma enfermidade, exposição de um estrabismo vesgo ou sinistro. Ernesto Sabato (in Alejandra., trad. fr. J.-J. Villard, Paris, 1967, pp. 296-297). Agradeço a Cristina de Peretti por mo ter dado a ler e cito uma única e longa passagem, em razão da sua conclusão, aquela para a qual nos orientamos aqui, a conclusão dos olhos fechados: uma certa passagem entre a crença, o «eu creio», «crede», «crieis», e aquilo a que chamámos a hipótese da vista: «E assim, enquanto outros garotos, aborrecidos, forçados pelos professores não se demoravam nas páginas de Hom ero, eu, que tinha vazado olhos de pássaros, senti um primeiro frêmito quando o poeta descrevia com uma força e uma precisão espantosas, quase mecânicas, com uma perversidade de conhecedor, um sadismo vingativo, o m om ento em que Ulisses e os seus companheiros atingem e fazem crepitar o olho do Ciclope com uma estaca em brasa. Não era Hom ero cego?» E, depois de ter evocado Tirésias, Atena, Edipo: «[...] Não pude afastar a convicção sempre mais forte e melhor fundada de que os cegos regem o m undo através de pesadelos e de alucinações, epidemias e feiticeiras, adivinhos e pássaros, serpentes, e de todos os monstros das trevas e das cavernas em geral. Foi assim que eu detectava sob falsas aparências um m undo abominável. E foi assim que eu treinava os meus sentidos, exacerbando-os pela paixão e pela inquietude, pela esperança e pelo medo, com o único objectivo de lograr ver finalmente as grandes potências das trevas, tal como os místicos chegam a ver os deuses da luz e da bondade. Sim, eu, místico da Im undícia e do Inferno, posso e devo dizer: Crede em mim\» 2 Cf. Jean-Pierre Vernant, M ythe et Pensée chez les Grecs, Paris, 1965, p. 207. Para este episódio, cf. também J. P. Vernant e M. Détienne, Les ruses de Plntelligence, La M êtis des Grecs, Paris, 1974, nomeadamente, p. 62. Se o Ulisses deste século não foi obra de um cego, como se o diz da Odisséia, mas de um escritor prometido à cegueira, ameaçado por este destino privilegiado, havería que estudar de muito perto o episódio dito dos Ciclopes (A taverna, ao fim da tarde, o tremor de terra, as «ondas sísmicas» que não deixam senão uma «massa de ruínas» e de «restos humanos», a alusão à «calçada gigante» e aos «testemunhos visuais» (eyewitnesses)), etc.). Técnica do capítulo, o «gigantismo», diz-nos Stuart Gilbert insistindo no «motivo de “Elias”» no fim do capítulo {James Joyce s Ulysses, New York, 1930, cap. XII, pp. 258 ss.). 96 - Jon-Marie Favrrjon, Auro-Retrati cm 1 rompe 1'CEã. Museu d Orsay. ÍN.® da F.xpíxição) 54. jean-Bapmte íireu/c . O Cego Enganado, Mokovo. Museu lWchlcine. 55. Jean-Flonoré Fragonard. O Jogo da Cabnt-Cega, Washington, National C.allcry o f Art. (Samuel H. Krcss Collcction) 56. Jcan-Honorc Fragonard, O Jogo <íi Cabra-Cega. (Detalhe do precedente) 57. I^onard Bramcr, O Jogo (Lt Ciibra-Cego. Museu do Louvrv. Jacques Derrida - Não juraria por isso, mas pouco importa: acaso o paradigma da bênção de Jacob por Isaac não construía também secretamente o cenário do seu sonho de luto, de velhos e de olhos (os velhos cegos, a ameaça sobre os filhos ou os irmãos) ou o duelo com o seu irmão em torno da potência do desenho, a manha do mais novo convertendo a sua enfermidade em signo de secreta eleição? Acaso ou arbitrário dos significantes, Fortuna com os olhos vendados que consigna os nomes próprios: o seu sonho partilha entre duas gerações - é mais novo do que os velhos cegos mas é também o pai de filhos ameaçados - aquele cujo nome mais visível, como frequentemente lhe lembram, tanto se acorda com o de Jacob como com o de Isaac, começa por um, acaba no outro. — É bem conhecida esta bênção de cego, mas mutila-se-lhe muitas vezes a narrativa. Duas reviravoltas, que são também repetições, convertem nela o enceguecimento em clarividência providencial. Em primeiro lugar, não é uma manha pérfida, como frequentemente se crê, que leva Rebeca a enganar o velho Isaac cego substituindo Jacob por Esaú. A sua manha antecipa, responde antecipadamente ao desígnio de Iavé que lho tinha anunciado: «Duas nações estão no teu seio: dois povos sairão das tuas entranhas. Um prevalecerá sobre o outro, e o mais velho servirá o mais novo»74. Rebeca vê antecipadamente muito longe, com os olhos de Deus, no destino de Israel. No momento em que o velhote cego abençoa Jacob, cujas mãos estão cobertas de pêlos de cabra para simular o corpo peludo de Esaú, questionamo-nos mesmo se Isaac não pressente obscuramente, para já a consentir, a decisão insondável de um Deus invisível, deste Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob que nunca se mostra de face, e cujas vias são secretas. Tudo se passa então entre a palavra e as mãos. Ora, porque consente Isaac abençoar um filho de quem crê reconhecer ao toque a pele peluda, mas de quem declara não reconhecer a voz («Jacob aproximou-se de Isaac, seu pai, que o tocou e disse. “A voz é a voz de Jacob, mas as mãos são as de Esaú.”»75)? E uma vez o engano descoberto, porque confirma Isaac sem reserva a bênção dada? Porque dá ele a Esaú a ordem de servir o irmão? Em segundo lugar, a seguir ao sonho da escada, e à visão de Deus que lhe diz em sonhos: «Eu sou o Senhor, o Deus de Abraão, teu pai, e o Deus de Isaac. Esta terra, na qual te deitaste, dar-ta-ei, assim como à tua posteridade. A tua posteridade será tão numerosa como o pó da terra; estender-te-ás para o Ocidente, para o Oriente, para o Norte e para o Sul, e todas as famílias da Terra serão abençoadas em ti e na tua descendência. Estou 74 Gênesis, 25: 23. 5 Gênesis, 27: 22. 102