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A Produção e Distribuição da Habitação no Brasil: Um Novo Enfoque Teórico, Slides de Construção

Este documento discute o papel da terra e da renda fundiária na produção e distribuição de moradias no brasil, desmistificando a ideia de que novos materiais ou métodos construtivos são a chave para solucionar problemas habitacionais. O texto aborda a estrutura de provisão de moradias, a importância da terra na determinação do atraso na construção civil e os conflitos que emergem no processo de produção de habitações.

Tipologia: Slides

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Aldair85
Aldair85 🇧🇷

4.8

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Baixe A Produção e Distribuição da Habitação no Brasil: Um Novo Enfoque Teórico e outras Slides em PDF para Construção, somente na Docsity! cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 Por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação Ermínia Maricato Resumo O texto constata que a maior parte das pesqui- sas sobre habitação se dão no contexto da esfe- ra do consumo, dimensionando-o e qualifican- do-o. O Estado e as políticas públicas ocupam um papel central no conjunto desses trabalhos. Embora eles forneçam um quadro importante sobre a carência de moradias, a segregação ter- ritorial, a exclusão social e as políticas institu- cionais ignoram, frequentemente, a centralida- de da produção na determinação do ambiente construído. Em especial, chamam a atenção a produção acadêmica sobre arquitetura e urba- nismo que ignora a construção e a produção sobre tecnologia que ignora o trabalho. Essas características estão nas raízes da formação da sociedade brasileira – desprezo pelo trabalho, distanciamento entre discurso e prática. É pre- ciso reorientar o enfoque teórico da pesquisa sobre habitação. Palavras-chave: habitação; teoria; constru- ção; trabalho. Abstract This paper shows that most studies on housing are carried out in the context of consumption, by dimensioning and qualifying it. The State and public policies play a central role in these studies. Although they provide an important picture of the lack of housing, territorial segregation, social exclusion, and institutional policies, they often ignore the central role played by production in defining the constructed environment. In particular, attention is drawn to the academic production on architecture and urbanism that ignores construction and the technology production that ignores labor. These features are at the very roots of Brazilian society – disdain for work, and a gap between discourse and practice. It is imperative to change the theoretical framework of housing research. Keywords: housing; theory; construction; work. ermínia maricato cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 34 Teoria aos pedaços: a ausência das determinações gerais1 No início deste trabalho, queremos chamar a atenção para uma questão de ordem teó- rico-metodológica: o estreitamento do cam- po das pesquisas e da produção acadêmica sobre o tema da habitação no Brasil, domi- nadas principalmente pelas abordagens do consumo – déficit, carência, má qualidade, tipologia, formas de ocupação do domicílio e do espaço – e da política habitacional prati- cada pelo Estado. Deve-se reconhecer que tal produção intelectual contribuiu para o conhecimen- to da situação de precariedade habitacional existente e dos desvios nas políticas públi- cas, que se revelaram incapazes de sanar a carência das camadas mais pobres da popu- lação. No entanto, ela não contribuiu para desvendar uma leitura mais ampla sobre a produção da habitação ou mais propriamen- te da estrutura de provisão de habitação, dos interesses e dos agentes envolvidos.2 A relação de estudos e autores utilizados para representar essas tendências dominantes na produção técnica e acadêmica não pretende ser exaustiva mas apontar alguns pioneiros nos temas abordados.3 Não se pretende ainda fazer uma crítica a essa produção in- telectual que compõe os autores citados na relação inicial (ao contrário, reconhecemos a importância desses estudos), mas sim desta- car a predominância da esfera do consumo e do Estado como temas dessa produção acadêmica e a ausência de abordagens his- tórico-estruturais que permitam reconhecer a permanência ou a inovação nas determina- ções dessa parcela do ambiente construído. De fato, o foco nas carências habita- cionais e nos déficits de moradia tem sido a forma predominante dos órgãos públicos tratarem a questão da habitação, por meio de consultores contratados, como um pro- blema quantitativo e mais recentemente, nos anos 90, também qualitativo.4 Os levanta- mentos promovidos pela Finep, em "Inven- tário da ação governamental no campo da habitação popular”, finalizado em 1979, e a posterior publicação de Habitação popular: inventário da ação governamental (Finep, 1985), constituem um importante cadastro de documentos e bibliografia que compro- vam o que afirmamos aqui. Carência habitacional, periferização, segregação urbana são temas recorrentes que têm sido bem desenvolvidos, tanto nas análises dos planos urbanísticos que têm iní- cio com as “reformas urbanas” implemen- tadas no começo do século XX quanto nas análises da moradia e condições de vida da classe trabalhadora no Brasil industrial, in- cluindo ainda a abordagem das dramáticas e generalizadas condições de periferização, “guetização”, ilegalidade e favelização carac- terísticos da chamada era da globalização. As reformas urbanas que pretenderam dar às cidades brasileiras, na República re- cém-proclamada, a imagem de progresso e modernidade visavam afastar o fantasma da presença da escravidão recente, deslocando populações pobres de áreas centrais, e re- cuperar espaços para o mercado imobiliário. Estudos com esse sentido foram desenvol- vidos, dentre outros autores, por Sevcenko (1984), Andrade (1992), Leme e outros (1999). Os cortiços, como forma prioritária (e privada) de moradia da massa trabalha- do ra pobre no início do século XX, foram por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 37 é invadida (embora a partir dessa primeira ação ela possa ser vendida informalmente) e no outro ela é comprada, sendo objeto de um contrato de compra e venda registrado em cartório. A condição jurídica é diferente, embora possa apresentar muitas variantes, dependendo da condição de propriedade da terra que é vendida ou invadida. As diversas formas de provisão da moradia (o que inclui a moradia de alu- guel, obviamente) constituem um conjunto contínuo e interdependente: se o mercado é muito restrito às camadas de mais altas rendas, como acontece no Brasil, e o inves- timento público é escasso, a produção in- formal fatalmente se amplia, pois, como já foi destacado, todos moram em algum lu- gar. A abordagem da promoção pública ou das políticas públicas, isoladamente, como é tradição em nosso meio acadêmico, impe- de a compreensão sobre sua inserção nessa estrutura geral de provisão das moradias, prejudicando o entendimento da realidade e a formulação de propostas. Não há como responder às demandas de moradia da po- pulação de baixa renda (ainda que hipoteti- camente exista interesse governamental) se o mercado não responde às necessidades da classe média.7 No Brasil, a classe média não tem sido atendida pelo mercado privado, especialmente a partir do recuo dos inves- timentos do Sistema Financeiro da Habita- ção, a partir de 1980. A consequência da falta de resposta à necessidade de moradia da classe média, a partir dessa data, é o acirramento da disputa com as camadas de baixa renda pelo acesso aos subsídios públi- cos. Considerando-se que esses subsídios ti- veram uma queda drástica, tornou-se lugar comum encontrar domicílios com famílias de classe média em favelas. Tecnologia que ignora o trabalho, arquitetura e urbanismo que ignoram a construção A precariedade das pesquisas na área de ha- bitação não se esgota nessa ausência de uma visão de conjunto; na medida em que igno- ram a provisão (produção e distribuição), ainda que de uma forma específica de mora- dia, incorrem também em equívocos. Vamos lembrar algumas ausências no escopo de trabalhos que terminam por comprometer sua cientificidade. O estudo da técnica e da tecnologia da construção frequentemente ignora a orga- nização e o processo de trabalho, como se estes fossem irrelevantes para o nível de produtividade. Nos estudos sobre tecnologia da construção ignora-se, frequentemente, o papel da terra e da renda fundiária na deter- minação do atraso na construção civil. Faz parte do senso comum a ideia mis- tificada, também presente em grande parte da produção acadêmica, de que materiais de construção “milagrosos” tornarão a constru- ção de casas muito mais barata e eficiente. Nilton Vargas tem desenvolvido experimen- tos paradigmáticos em canteiro de obras desde início dos anos 80, reafirmando a centralidade do processo de trabalho e da condição urbana ou mais propriamente da renda fundiária e do acesso a um pedaço de terra urbanizada, para definir os patamares da produtividade na construção.8 É de 1983 a primeira formulação dessas ideias publica- das em livro (Vargas, 1983). Porém, como se constata em grande parte dos estudos financiados pela Finep sobre tecnologia de construção, esse autor permanece bastante ermínia maricato cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 38 ignorado. As forças produtivas não incluem apenas máquinas, equipamentos, novas fon- tes de energia, novos materiais, novos pro- cessos químicos ou eletrônicos, mas também a organização do trabalho. Apenas para dar um exemplo, o taylorismo promoveu um avanço significativo na produtividade indus- trial americana a partir da reorganização do processo de trabalho baseado no estudo de “tempos e movimentos”. A especialização que permitiu avanços significativos na in- dústria manufatureira se baseou na divisão do trabalho. Lembremos que boa parte dos canteiros de obras ignoram, no Brasil e no princípio do século XXI, grande parte dessas conquistas que datam do início do século XX. A tradição marxista explica como a produção material da vida parece ser orien- tada – por meio da ideologia – pela esfera do consumo, das necessidades, das ideias. Um universo de símbolos cumpre a função de mascarar as relações sociais baseadas na exploração e apropriação do excedente de riqueza criado na produção. Mas, no Brasil, é preciso reconhecer algumas especificida- des que tornam essa constatação ainda mais radical. A tradição escravista que marca a história do país, e de profundo desrespeito com o trabalho manual, também explica por que o ensino e as pesquisas na área de en- genharia abstraem as relações de trabalho dos estudos sobre tecnologia. Há muito de ideológico e pouco de científico em boa par- te dessa produção acadêmica marcada pelo preconceito. Não raramente, o canteiro de obras, com todos os desencontros e as ten- sões decorrentes das relações de trabalho (cujo paradigma está na parceria mestre de obras e engenheiro), é pouco conhecido por pesquisadores que escrevem sobre tecnolo- gia de construção habitacional. Além disso, os estudos que têm como objeto o urbano, a habitação, o financia- mento e a terra, raramente incorporam o tema da construção em seu escopo. É muito comum, nos estudos sobre o urbano, igno- rar-se a construção, abstraindo-se assim as relações entre capital (fixo e variável) e o processo de trabalho. A desconsideração da construção como eixo da realização da arqui- tetura e da cidade foi criticada por diversos estudiosos no Projeto de Pesquisa “A crise na produção da habitação popular – tendências de rearticulação do processo produtivo”.9 Essa também foi a polêmica que alimentou a interlocução de Sérgio Ferro10 em relação ao texto de Vilanova Artigas, “O Desenho”.11 Portanto, a crítica materialista, de inspiração marxista, à abordagem da arquitetura como produto de ideias ou do desenho não é nova entre nós. Embora ambos os textos sejam bastante festejados, a centralidade da polê- mica é bastante ignorada pela produção aca- dêmica e profissional. O papel ideológico do projeto como ferramenta para a exploração e a dominação desse modo de produção, e sua capacidade de encobrir essas relações de classe são destacados por Ferro, que vai ao canteiro de obras para encontrar a lógica do processo – do produto e de sua distribuição – e também, portanto, do projeto ou desenho. Outro equívoco digno de figurar nes- sa lista, pela constância com que é repeti- do, refere-se aos estudos ou à prática do planejamento urbano que tem a pretensão de controlar as cidades pela regulação le- gal, ignorando as determinações presentes na produção social ou material do espaço e na disputa pelos lucros, juros, rendas e salários que ela engendra. A prática do ur- banismo é profundamente ideológica – e vale dizer, pouco científica e mistificadora por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 39 da realidade – e frequentemente ignora os conflitos presentes na produção da cidade, tomando-a como um palco ou arena que apenas dá suporte às relações sociais, ainda que elas possam ser tomadas como confli- tuosas (Arantes et al., 2000). A dispersão do conhecimento já produ- zido no Brasil, constantemente suplantado por supervalorizadas referências estrangei- ras, já foi constatada por conhecidos estu- diosos da sociedade brasileira, como Celso Furtado, Florestan Fernandes e Roberto Schwarz, entre outros. Somos estrangeiros em nossa própria pátria e frequentemente nos vemos diante de uma história virtual. Estamos sempre recomeçando. Para resumir, é rea lmente sur- preen den te que um setor que absorve historicamente 6% da PEA e que é respon- sável por 13,5% do PIB nacional (relativo ao setor de construbusiness, sendo 8% da construção propriamente dita) esteja au- sente da maior parte dos trabalhos sobre o urbano e a habitação. Em particular, é notável a ausência do tema do trabalho, nos estudos sobre tecnologia, como já foi mencionado.12 O lugar da construção nas pesquisas sobre moradia A ideia de que novos materiais ou novos mé- todos construtivos possam resolver ou cons- tituir a principal alavanca para a solução de problemas habitacionais é dominante há dé- cadas, tanto nas instituições promotoras de políticas públicas quanto nas pesquisas so- bre a construção civil ligada à produção de moradias. Essa ideia é dominante também na mídia, que de tempos em tempos apre- senta experiências de casas construídas com materiais reciclados, como garrafas de plástico, ou renováveis, como bambu, que prometem um barateamento definitivo e sustentabilidade. Não se pretende negar a importância das pesquisas com novos materiais ou novos usos para velhos materiais, especialmente em se tratando da reutilização de rejeitos industriais, fundamental para diminuir seu descarte e os impactos sobre o meio am- biente. A Antac – Associação Nacional de Tecnologia do Ambiente Construído – tem se detido nesse tema. O que se critica aqui, entretanto, é a ignorância dos demais fato- res que são determinantes na produção da carência habitacional. Por diversas vezes o Banco Nacional de Habitação (BNH) promoveu a construção de canteiros de obras com protótipos de edi- fícios destinados à habitação apresentando novos materiais de construção, novas tecno- logias, novos equipamentos ou novas máqui- nas. O primeiro grande seminário que apre- sentou uma extensa mostra de protótipos se deu em Salvador, em 1978, que levou o título de “Simpósio sobre o Barateamento da Construção Habitacional”. O Brasil esta- va no momento de maior investimento em habitação de toda sua história e era notável a pressão das empresas de construção pesa- da e das empresas estrangeiras, detentoras de patentes sobre novas tecnologias e pro- cessos construtivos, para entrar no setor de edificação residencial nacional de promoção pública.13 Vale lembrar que os anos 70 fica- ram conhecidos como do “milagre brasilei- ro”, em que as altas taxas de crescimento do PIB contribuíram muito com a manutenção do Regime Militar, fortemente apoiado pela ermínia maricato cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 42 e pesquisas. O Estado pode participar dire- tamente na produção, como também pode financiar e contratar a construção. Ele é ain- da, em geral, o agente regulador da terra, das relações trabalhistas, das regras do fi- nanciamento privado, além de poder promo- ver a implantação da infraestrutura e abrir novos espaços para o investimento imobiliá- rio privado em acordo com proprietários de terra. A construção de novas centralidades urbanas, como resultado de um pacto entre o capital imobiliário e a aplicação dos fundos públicos, tem também sua face simbólica, marcada pelo luxo e distinção, e ocorre em praticamente todas as grandes cidades. A atuação do Estado responde ao nível dos conflitos entre os diversos interesses em jogo na disputa pelos ganhos já citados: salários, rendas, juros e lucros. De tal dispu- ta participam inclusive os usuários de clas- se média ou até de baixa renda, enquanto proprietários privados que também se apro- priam de alguma renda com a valorização de seus imóveis. Essas lutas e conflitos de- finirão as mudanças ou não na estrutura de provisão da habitação.17 Além de Michael Ball (1978, 1981 e 1986), outro autor que adota uma visão menos determinista e economicista sobre a produção do espaço, ao enfatizar a esfera da política, é David Harvey, para quem a produção do espaço é consequência de for- tes conflitos e do confronto de tendências, resultantes de tensões e contradições ine- rentes ao sistema (Harvey, 1982). Para o autor, os principais conflitos que emergem nesse processo envolvem: [...] 1) uma facção do capital que pro- cura a apropriação da renda, quer di- retamente (como os proprietários de terra, as empresas imobiliárias, etc.) ou indiretamente (como os intermediá- rios financeiros ou outros que investem em propriedades simplesmente visando uma taxa de retorno); 2) uma facção do capital procurando juros e lucro atra- vés da construção de novos elementos no meio construído (os interesses da construção); 3) o capital "em geral" que encara o ambiente construído como um dreno para o capital excedente e como pacote de valores de uso e com vistas ao estímulo da produção e acumulação de capital; 4) a força de trabalho que se utiliza do ambiente construído co- mo um meio de consumo e como meio de sua própria reprodução. (Harvey, 1982, p. 6)18 Modernização conservadora: a informalidade como ardil No Brasil, como nos demais países perifé- ricos, os conflitos em torno da provisão da moradia foram relativamente esvaziados graças a um ardil responsável por grande impacto social e territorial: a provisão infor- mal da moradia. A maior parte da população urbana “se vira” para garantir moradia e um pedaço de cidade, combinando o loteamento irregular ou a pura e simples invasão de ter- ra, com a autoconstrução.19 Essa forma ile- gal e pré-moderna de provisão da moradia esvaziou o conflito e contribuiu para o bara- teamento da força de trabalho, especialmen- te durante o período de maior crescimento industrial. Sabemos todos as consequências predatórias dessa produção de grande parte do espaço urbano, seja para essa população, por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 43 para o meio ambiente, ou para a cidade como um todo. O exemplo mais dramático e gigantesco de ocupação pobre, ilegal e ambiental/socialmente predatória, está na ocupação das áreas de preservação dos ma- nanciais ao sul da maior metrópole paulista, onde aproximadamente 1milhão e 700 mil de pessoas vivem nas bacias dos reservató- rios de água Billings e Guarapiranga. Mas os governos, e seus diversos órgãos com poder de polícia sobre o uso e a ocupação do solo, simplesmente ignoraram esse processo du- rante muitos anos. O conflito sobre a provisão da moradia foi, portanto, deslocado: a cidade hegemô- nica continua sendo construída sob regras do urbanismo e do mercado modernos, para uma população restrita. Resta para grande parte da população o deslocamento para fo- ra da cidade (legal ou formal), a ocupação de áreas inadequadas, e, frequentemente, ambientalmente frágeis. Não são apenas as leis de uso e ocupa- ção do solo ou os planos urbanísticos que não são observados nos bairros ilegais. Ne- nhuma legislação aí é aplicada e a resolução de conflitos obedece à “lei” do mais forte. A presença do Estado pode se restringir à troca de favores pontuais com finalidade eleitoral. De um modo geral, o Estado está ausente e esse vazio é ocupado por um po- der paralelo (Maricato, 1996). Mesmo contando com um mercado pri- vado excludente, por meio do qual a mer- cadoria moradia é acessível a apenas 30% da população, é preciso reconhecer sua sig- nificativa dimensão, equivalente à população da Itália (aproximadamente 56 milhões de pessoas). O significativo crescimento econô- mico (7% ao ano entre 1940 e 1979) e a industrialização do país, sem distribuição de renda, durante décadas de intensa migração para as cidades, geraram vários paradoxos, como a imposição do consumo de bens mo- dernos antes que as necessidades básicas (alimentação, saúde, higiene, educação, ha- bitação) fossem atendidas.20 A urbanização em países periféricos como o Brasil, que acompanha o proces- so de industrialização com baixos salários, apresenta várias características que a dife- rencia da urbanização nos países capitalistas centrais. Francisco de Oliveira considera o terciário extensivo e descapitalizado, que muitos autores entenderam como “inchado” na comparação com o chamado primeiro mundo, uma parte intrínseca desse processo de acumulação que combina o arcaico com o moderno (Oliveira, 1972). A evolução da provisão da habitação popular desde o final do século XIX, com a emergência do trabalhador livre, mostra a tendência de eliminar dos salários a parcela referente ao pagamento da moradia. É evi- dente que essa condição é predatória à força de trabalho. A construção da casa nos fins de semana durante horário de descanso, o longo tempo despendido nos transportes deficientes (que está relacionado à ocupa- ção precária da periferia) e a ausência de serviços urbanos fundamentais contribuem para desgastar a força de trabalho. A queda do crescimento econômico, verificada a par- tir dos anos 80, o aumento do desemprego, o recuo das políticas públicas, foram alguns dos fatores que radicalizaram o quadro aqui descrito, como veremos adiante. A importância da propriedade fundi- ária numa sociedade patrimonialista como a nossa explica, em boa parte, essa gigan- tesca exclusão territorial ou segregação. Como é sabido, há uma estreita relação ermínia maricato cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 44 entre propriedade patrimonial e poder econômico, político e social na história do Brasil. A elite brasileira se apropriou de vastas áreas de terras devolutas por todo território nacional, recorrendo a um sem número de ardis relacionados a fraudes nos registros de terra (Costa Neto, 2006). Além disso, essa mesma elite cercou-se de uma imensa teia de organismos e buro- cracia (além da ajuda do judiciário) para impedir que a maior parte da população, especialmente os trabalhadores pobres, ti- vesse acesso à propriedade fundiária. O la- tifúndio permanece intocável durante todo o período de modernização e industrializa- ção do país, apesar das polêmicas alimen- tadas pela proposta liberal de substituição dos escravos pela colonização branca du- rante o século XIX. A privatização de ter- ras devolutas ainda é uma prática vigente em pleno início do século XXI. Como aconteceu em outros momentos da história do país, o Brasil conta, a partir da promulgação do Estatuto da Cidade, em 2001, com uma legislação bastante avança- da, que regulamenta a função social da cida- de e da propriedade. O Estatuto da Cidade restringe, objetivamente, o direito de pro- priedade. Pode-se dizer que o direito à mo- radia é absoluto, já que previsto na Consti- tuição Federal, e o direito à propriedade não o é. No entanto, a implementação da lei está enfrentando muita dificuldade, reafirmando uma característica da sociedade brasileira: de que a lei se aplica de acordo com as cir- cunstâncias (Maricato, 1996). Aqui também constatamos nossas di- ferenças em relação ao capitalismo central, em que as reformas sobre a terra urbana foram feitas no final do século XIX ou come- ço do século XX para fortalecer a atividade produtiva de construção, em detrimento dos ganhos rentistas. O impacto da globalização na provisão de moradias Com o fim do welfare state houve um recuo generalizado dos investimentos em habita- ção, revelando um colapso no volume de moradias produzidas. Nos países capitalistas centrais, o espetacular movimento de cons- trução que se seguiu à segunda guerra mun- dial minimizou fortemente a carência habita- cional. Apesar das características específicas desse processo em cada país, alguns aspec- tos podem ser generalizados:21 Período pós-guerra – produção fordista: c produção em massa, grande volume de unidades habitacionais; c investimento público garante mercado solvável, com forte subsídios; c investimento em infraestrutura, grandes projetos de renovação urbana ou construção de cidades novas; c Estado intervém no mercado de terras ou cria uma agência de terra; c promoção da habitação de aluguel social; c modernização da produção – pré-fabri- cação, investimentos em capital fixo, gran- des canteiros; c grandes sindicatos conferem poder à força de trabalho nos conflitos; c queda na especialização da força de tra- balho, imigração visando o barateamento. por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 47 Notas (1) Este trabalho foi inspirado no texto de Michael Ball, Housing analisys: time for a theoretical refocus.­Apesar­do­lapso­de­tempo­que­nos­separa­da­redação­do­artigo­citado,­que­é­de­1986,­ sua­crítica­à­produção­acadêmica­sobre­o­tema­da­habitação­ganhou­mais­importância­com­o­ passar do tempo. (2)­­"A­estrutura­de­provisão­de­habitação­descreve­um­processo­histórico­dado­destinado­a­prover­e­ reproduzir­­a­entidade­física­casa,­focalizando­os­agentes­sociais­essenciais­a­esse­processo­e­a­ relação­entre­eles"­(Ball,­1986,­p.­158). (3)­­Para­uma­bibliografia­extensiva­dos­pioneiros­no­estudo­da­habitação­no­Brasil­urbanizado,­ver­ Valladares,­1982. (4)­­Os­conceitos­de­Déficit­Habitacional­Quantitativo­e­Déficit­Habitacional­Qualitativo­envolveram­ vários­pesquisadores­durante­a­década­de­1990.­Tais­definições­estão­explicitadas­nos­estudos­ sobre o Déficit Habitacional no Brasil­elaborados­pela­Fundação­João­Pinheiro,­a­pedido­do­go- verno­Federal,­a­partir­de­1995­(Fundação­João­Pinheiro,­2004).­ (5)­­Do­Congresso­do­IAB­de­1963,­quando­a­proposta­de­Reforma­Urbana­foi­aprovada­no­documento­ final,­até­o­Estatuto­da­Cidade­em­2001­e­a­Campanha­de­Planos­Diretores­Participativos,­pro- movida­pelo­Ministério­das­Cidades­em­2006,­o­tema­da­terra­tem­sido­recorrente­e­a­bibliogra- fia­por­demais­extensa­para­ser­tratada­aqui.­Dentre­os­pioneiros­que­relacionaram­a­terra­com­ a­esfera­da­produção­e­do­mercado­ver­Brandão­(1980)­e­Lefèvre­(1979).­Uma­parte­da­produ- ção­do­Lincoln­Institute­of­Land­Policy­também­segue­essa­orientação.­ (6)­­Não­trataremos­aqui­do­tema­dos­movimentos­sociais­urbanos­e­de­sua­bibliografia,­pois­nos­inte- ressa­concentrar­a­atenção­nos­conflitos­presentes­na­esfera­da­produção­stricto sensu.­Não­se­ desconhece a relação entre a “práxis espacial”, conceito lefevriano, e a produção da cidade em seu­conjunto,­mas­entendemos­que­esses­conflitos­têm­sido­mais­constantemente­abordados­ do que aqueles que queremos destacar aqui. (7)­­Vamos­convencionar­como­classe­média­as­famílias­cujos­rendimentos­mensais­estão­situados­en- tre­5­e­12­salários­mínimos.­O­déficit­habitacional­está­concentrado­fortemente­entre­0­e­menos­ de­5­s.m.,­perfazendo­um­total­de­92%­(Fundação­João­Pinheiro,­2004). (8)­­Até­mesmo­a­endêmica­corrupção­presente­nas­obras­públicas,­fato­ligado­especialmente­ao­ financiamento­de­campanhas­eleitorais,­não­pode­ser­aspecto­desprezado­nas­pesquisas­aca- dêmicas­no­Brasil­quando­se­estudam­produtividade­e­custo­da­habitação.­Essa­observação­foi­ feita­por­Vargas­em­encontro­internacional­da­BISS­–­Barttlet­International­Summer­School­–­­na­ cidade­do­México­em­1987.­­­ (9)­­O­projeto­citado­foi­apresentado­ao­BNH­em­1986,­exatamente­no­ano­de­sua­mal­explicada­extin- ção,­que­o­inviabilizou.­Participaram­dele­os­professores­Jorge­Oseki,­Nilton­Vargas,­Paulo­César­ Xavier­Pereira,­Suzana­Pasternak,­Yvonne­Mautner­sob­a­coordenação­de­Ermínia­Maricato.­ (10)­Iniciado­entre­1968­e­1969,­“O­canteiro­e­o­desenho”­seria­concluído­em­1975­e­finalmente­pu- blicado­em­1979. (11)­O­texto­citado­(Artigas,­1975),­publicado­originalmente­pelo­GFAU,­foi­apresentado­pelo­profes- sor­em­março­de­1967­como­Aula­Inaugural­da­FAU-USP. ermínia maricato cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 48 (12)­O­processo­de­trabalho,­grande­ausente­na­produção­intelectual­brasileira­sobre­habitação,­tem­ sido considerado como elemento-chave para a compreensão da produção do ambiente cons- truído­pela­BISS­–­Barttlet­International­Summer­School­–­sediada­na­University­College­London.­ Ver a respeito seus Proceedings. (13)­Na­primeira­metade­dos­anos­70,­os­recursos­do­BNH­destinados­a­obras­de­infraestrutura­ur- bana foram ampliados, enquanto que a construção de moradias perdeu espaço no orçamento. Esse­movimento­deveu-se,­provavelmente,­ao­poder­de­influência­das­empresas­de­construção­ pesada.­A­partir­de­1976,­o­movimento­se­inverte.­Ver­a­respeito­Maricato­(1987).­­ (14)­Palestra­proferida­na­FAU-USP,­dia­29/3/2007. (15)­Os­autores­consultados­para­a­construção­desse­quadro,­além­de­Nilton­Vargas,­foram­Lojkine­ (1977),­Topalov­(1974),­Lipietz­(1988),­Harvey­(1982),­Ball­(1986),­Ball­e­outros­(1988).­Dentre­os­ autores nacionais que abordaram a produção e ou a provisão da moradia levando em conside- ração­a­construção,­além­de­Vargas,­estão:­Ferro­(1972),­Oseki­(1982),­Maricato­(1984),­Pereira­ (1984),­Tavares­(1989),­Mautner­(1991),­Ribeiro­(1996)­e­Castro­(1999).­O­professor­Celso­M.­ Lamparelli­introduziu­essa­abordagem­teórica­no­Curso­de­Pós-Graduação­da­Escola­de­Enge- nharia­de­São­Carlos­ainda­na­década­de­70.­ (16)­Não­podemos­esquecer­que­mesmo­atuando­como­freio­ao­aumento­da­produção­devido­à­dis- puta­por­rendas­imobiliárias­a­propriedade­da­terra­não­constitui­uma­irracionalidade­ao­modo­ de­produção­capitalista­como­argumentaram­alguns­autores.­É­ela­que­permite­a­apropriação­ dos lucros na produção da moradia assim como a propriedade dos meios de produção permitem a­apropriação­dos­lucros­industriais­(Martins,­1983). (17)­Segundo­Ball,­a­predominância­de­um­agente­sobre­os­outros­no­processo­de­produção­somente­ será­identificada­a­partir­de­análises­específicas­sobre­realidades­concretas.­Nesse­sentido,­Ball­ discorda­das­teses­defendidas­por­intelectuais­franceses,­como­Topalov­(1974)­e­Lojkine­(1977),­ sobre­a­supremacia­determinante­do­promotor­imobiliário­ou­do­capital­financeiro­sobre­a­pro- visão­das­edificações­(moradias,­comércios,­serviços).­No­Brasil,­o­papel­dos­ganhos­rentistas­ fundiários­e­imobiliários­(proprietários­de­terra­e­incorporadores)­têm­uma­predominância­sig- nificativa,­como­veremos­adiante. (18)­No­mesmo­texto­Harvey­lembra­que­a­propriedade­da­moradia­pode­dividir­e­opor­trabalhado- res, pois aqueles que a possuem interessam-se pela valorização do seu imóvel e os que não a possuem interessam-se pelo seu barateamento. (19)­Não­temos­os­dados­rigorosos­sobre­a­produção­informal­da­moradia­(favelas,­loteamentos­ile- gais­e­cortiços)­nas­cidades­brasileiras­e­sabemos­que­o­IBGE­subdimensiona­a­medição­da­mo- radia­“subnormal”.­Alguns­estudos,­entretanto,­permitem­afirmar­que­estamos­diante­da­maio- ria­ou­de­aproximadamente­metade­dos­domicílios­nas­grandes­cidades:­Andrade­(1998);­Castro­ e­Silva­(1997),­Souza­(1999).­­­ (20)­Maricato­e­Pamplona,­1977 (21)­Ver­a­respeito­Ball­et­al.­(1988). por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 49 Referências ANDRADE,­C.­F.­de­S.­L.­(1998).­Parâmetros urbanísticos de loteamentos irregulares e clandestinos na Zona Oeste do Rio de Janeiro.­Rio­de­Janeiro,­FAUUFRJ. ANDRADE,­C.­R.­M.­de­(1992).­Peste e plano: o urbanismo sanitarista do engenheiro Saturnino de Brito. São­Paulo,­FAUUSP. ARANTES,­O.­B.­F.­e­outros­(2000).­A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petró- polis,­RJ,­Vozes. 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