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Problemas de métodos nas ciências humanas - Olavo de Carvalho, Trabalhos de Epistemologia

Problemas de métodos nas ciências humanas - Olavo de Carvalho

Tipologia: Trabalhos

2020
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Baixe Problemas de métodos nas ciências humanas - Olavo de Carvalho e outras Trabalhos em PDF para Epistemologia, somente na Docsity! Sapientiam Autem Non Vincit Malitia www.seminariodefilosofia.org Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio, sem a permissão expressa do autor. 1 Problemas de método nas ciências humanas OLAVO DE CARVALHO Leituras: Bernard Lonergan, “The analogy of meaning”, em Philosophical and Theological Papers 1958-1964. Collected Works, vol.6, Toronto, University of Toronto Press, 1996, pp. 183-213; Eugen Rosenstock-Huessy, The Origin of Speech, Norwich, Vermont, Argo Books, 1981 [trad, brasileira sob a supervisão de Olavo de Carvalho, A Origem da Linguagem, Rio, Record, 2000]; Karl Bühler, Teoria del Lenguaje, trad. Julián Marias, Madrid, Revista de Occidente, 1950; Olavo de Carvalho, Aristóteles em Nova Perspectiva. Introdução à Teoria dos Quatro Discursos, Rio, Topbooks, 1998; Edward Allen Beach, The Potencies of God (s). Schelling’s Philosophy of Mythology, State University of New York Press, 1994; Kenneth W. Thompson, “Voegelin and Politics”, em Ellis Sandoz (ed.), Eric Voegelin’s Significance for the Modern Mind, Baton Rouge, Lousiana State University Press, 1991; Jocelyn Bonoist, Entre Acte et Sens. La Théorie Phénoménologique de la Signification, Paris, Vrin, 2002; Max Weber, Essais sur la Théorie de la Science, ed. JulienFreund, Paris, Plon, 1965; Max Scheler, Esencia y Formas de la Simpatia, trad. José Gaos, Buenos Aires, Losada, 3ª Ed., 1957; Eric Voegelin, “Interaction and Spiritual Community: A Methodological Investigation”, em The Theory of Governance and Other Miscellaneous Papers 1921-1938, Collected Works, vol. XXXII, ed. William Petropulos and Gilbert Weiss, Columbia, University of Missouri Press, 2003; Gottlob Frege, Lógica e Filosofia da Linguagem, ed. Paulo Alcoforado, São Paulo, Cultrix, 1978; Aristóteles, Tópicos, Política e Retórica. § 1. Necessidade do método dialético § 2. Observação e testemunho – O princípio do testemunho qualificado § 3. Agente, testemunha e observador § 4. A apreensão inicial § 5. O significado do significado § 6. As tarefas básicas da ciência social e o autoconhecimento § 7. Categorias da significação § 8. O sujeito emissor § 1. Necessidade do método dialético. Há muitos métodos em uso nas ciências humanas, mas todos eles dependem de um único e giram em torno dele. É o método dialético de Aristóteles. Aristóteles não foi o primeiro nem o último a empregá-lo. O essencial da prática dialética já estava em Sócrates e Platão, os escolásticos aumentaram formidavelmente sua precisão técnica e, em tempos mais recentes, o método recebeu importantes desenvolvimentos de Friedrich W. von Schelling1 e de Eric Voegelin2. Digo que é de Aristóteles por dois motivos: ele foi o primeiro que escreveu um tratado teórico a respeito, os Tópicos, e o primeiro que o reconheceu como instrumento específico para o estudo da sociedade humana. 1 V. Edward Allen Beach, The Potencies of God (s). Schelling’s Philosophy of Mythology, State University of New York Press, 1994, Introd. 2 V. Kenneth W. Thompson, “Voegelin and Politics”, em Ellis Sandoz (ed.), Eric Voegelin’s Significance for the Modern Mind, Baton Rouge, Louisiana State University Press, 1991. Sapientiam Autem Non Vincit Malitia www.seminariodefilosofia.org Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio, sem a permissão expressa do autor. 2 Como Aristóteles admite no entanto uma distinção bem clara entre discurso dialético e discurso científico (ou lógico-analítico), a impressão que fica no ar é que desde essa sua remota fundação as ciências humanas já teriam desistido da ambição de tornar-se ciências no sentido exigente do termo. Mas não é bem assim. Uma coisa é o método científico, outra é a estrutura do discurso científico. Uma ciência só se torna ciência em sentido pleno quando consegue organizar um campo de conhecimentos sob a forma de um discurso lógico-formal, com as conseqüências seguindo-se inapelavelmente das premissas, em linha reta como na aritmética elementar, na álgebra ou na geometria. Mas isto só é possível quando já se possuem as premissas. Estas premissas são de duas ordens. De um lado, os princípios gerais da lógica, que são válidos para todas as ciências. De outro, princípios específicos do domínio material considerado, por exemplo, na física, as definições de força, matéria, movimento, etc. Dados os princípios gerais e específicos, o discurso científico segue-se como uma fileira de conclusões obtidas por pura dedução. O problema é: de onde se obtêm os princípios específicos? Dos dados da experiência, arrumados e catalogados segundo suas propriedades mais aparentes. Quando o esforço da catalogação é bem feito, logo essas propriedades começam a mostrar uma hierarquia entre si, as mais gerais e constantes subordinando as mais particulares e variáveis. No topo dessa hierarquia aparecem então os princípios que o cientista procurava, isto é, as generalizações hipoteticamente válidas para todos os objetos da espécie considerada (e a delimitação mesma da espécie é a primeira dessas generalizações). Mas as generalizações terão de ser em seguida confrontadas com outros dados da realidade e com os conhecimentos anteriormente adquiridos sobre o mesmo assunto. Durante toda essa seqüência de operações, que constitui o arroz-com-feijão da investigação científica, qual o método utilizado? A dialética, isto é, a confrontação catalogação e hierarquização dos dados e das hipóteses. Só quando esse trabalho está terminado é que o resultado obtido assume, ao menos idealmente, a forma de um discurso lógico-dedutivo: o “conteúdo” noemático da ciência em questão, pronto para ser transmitido socialmente3. Mas é claro que antes mesmo de chegar a esse ponto de atividade cognitiva em questão já era científica e não outra coisa. Uma ciência que ainda não houvesse obtido resultados significativos capazes de organizar-se em discurso lógico-formal não deixaria, por isso, de ser ciência, porque já se dirigia à obtenção desses resultados pela aplicação sistemática de métodos racionalmente apropriados a tal fim. Nesse sentido – e até este ponto da explicação – não há nenhuma diferença entre as ciências naturais e as ciências humanas. O procedimento é o mesmo em ambos os casos. Nesse nível não faz ainda nenhum sentido a ênfase de Aristóteles no caráter dialético das ciências humanas. Todas as ciências, consideradas enquanto atividades investigativas e não enquanto sistemas prontos de conteúdos científicos hierarquizados, são dialéticas, e a dialética é o único método das ciências. É a partir desse ponto que uma diferenciação começa a ser relevante. A necessidade dessa diferenciação é imposta por quatro fatores: (a) a fonte dos dados; (b) o modo de apreensão desses dados; (c) a posição do observador científico ante a realidade estudada; (d) a relação entre os dados e a linguagem em que se expressam. 3 Esse discurso deve estar estruturado de tal modo que, para qualquer objeto considerado, pertencente ao campo da ciência respectiva, a simples dedução desde os princípios gerais do campo coincida com as propriedades observadas no objeto ou generalizadas por indução a partir da observação dele. Quando essa coincidência não acontece, sem que tenha havido erro nem na dedução nem na indução, então estamos diante de um problema científico a ser resolvido por investigações posteriores. O conteúdo de toda ciência, nesse sentido, constitui-se de um conjunto de teses aceitas pelo consenso científico e de um conjunto de problemas a resolver. Esses dois conteúdos expressam-se respectivamente no discurso tético (de θεσις, thesis, “ação de por em ordem”, “estabelecimento”, “colocação”) e no discurso problemático (προβλεµα , problema, “saliência” ou “obstáculo”). Aprender uma ciência é portanto dominar o seu método (de µεθοδος “caminho”), absorver as suas teses e adquirir a habilidade de lidar com os seus problemas: é conhecer o caminho pelo qual se pode caminhar pelo terreno plano e transpor os obstáculos. Sapientiam Autem Non Vincit Malitia www.seminariodefilosofia.org Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio, sem a permissão expressa do autor. 5 construtor. O estrategista militar deve estar consciente da disposição das forças no campo de batalha, mas o historiador deve conhecer a relação entre essa situação e o quadro político, econômico e psico-social da guerra, além de poder compará-la com outras guerras e situações. O único meio de garantir a objetividade e o rigor do conhecimento é, portanto, a ampliação do horizonte de consciência do observador7. A possibilidade de fiscalização por outros observadores é, no caso, bastante reduzida, porque só observadores com horizonte de consciência igual ou mais amplo podem aí ser de ajuda efetiva, exceto se tivermos em vista a mera correção de detalhes fáticos. Como os dados e a interpretação que lhes dá o observador pertencem a uma mesma esfera de realidades, porém, a mera ampliação não basta. O observador deve introduzir entre os dados e a interpretação uma diferença qualitativa, no sentido de que esta última dê o “fundamento” ou “explicação” daqueles, e que essa explicação, por sua vez, possa ser articulada num discurso que se aproxime, estruturalmente, do mesmo tipo de discurso lógico-formal ambicionado pelas ciências naturais. Em ambos os casos o “discurso científico”, no sentido de Aristóteles, raramente chega a se constituir como realidade definitivamente adquirida. A ciência em ação permanece sempre amplamente dialética e problemática, tendo-o porém como ideal teleológico orientador e aproximando-se dele como numa assíntota. Essa diferença qualitativa, conforme bem viu Aristóteles, é obtida mediante a distinção sistemática entre dois tipos de discursos: o discurso dos agentes e o discurso teorético do observador. No primeiro caso, o termo “discurso” é usado de maneira elástica para abranger todas as formas expressivas usadas pelos seres humanos para agir sobre seus semelhantes, bem como para explicar a si próprios o que estão fazendo. Pouco importando se o dado em questão é uma obra-de-arte, uma decisão política ou um texto, ele sempre “diz” alguma coisa, tanto para seus destinatários como para o próprio agente e para o observador. Esse conteúdo significativo é que é a matéria-prima sobre a qual vai trabalhar o observador científico. O discurso científico e o discurso dos agentes difere por seu propósito. Este último visa a produzir efeitos da ação considerada; aquele, a tornar essa ação inteligível no horizonte maior de referência usado pelo observador. Por isso Aristóteles insistia que, no estudo dos problemas da polis – no que hoje chamaríamos ciências humanas – é preciso partir sempre das “opiniões correntemente admitidas”. Estas são a documentação do que a sociedade, num determinado instante, sabe sobre si mesma. Esse saber não é coerente nem sistemático porque foi construído ao sabor das intenções e ações dos vários agentes. Comparando e articulando essas opiniões, o observador científico obtém um quadro objetivo do que estava efetivamente em jogo para o conjunto dos agentes, e pode cotejar os resultados assim obtidos com diagnósticos similares que fez para outros tantos agentes e situações em outros lugares e tempos. A amplitude do quadro comparativo é essencial, porque toda ação só adquire seu pleno significado quando inserida não só no cenário integral da situação que a gerou, mas no quadro total das possibilidades humanas. Este quadro constitui, a rigor, uma antropologia filosófica. O estudo comparativo das várias situações ajuda a formá-la, e ela retroage sobre as comparações, iluminando-as. É só no quadro da antropologia filosófica que homens de culturas e épocas diversas podem efetivamente se compreender uns aos outros. A transição entre as situações particulares e a estrutura geral inteligível é feita pelo observador científico8. É claro que os discursos dos agentes podem conter, como um de seus elementos, algo da ciência humana disponível na situação. Do mesmo modo, o discurso teorético do cientista pode ser secundariamente, ou até eminentemente, uma função de discurso de agente na sua própria 7 V., adiante, § 2, “Observação e testemunho”. 8 Não é preciso explicar que essa transição consiste exatamente na passagem dos discursos poético e retórico para o discurso lógico-analítico, por intermédio do discurso dialético. Também não deveria ser preciso esclarecer que o discurso do agente, qualquer que seja sua constituição interna, é sempre enfocado pelo observador na clave poético-retórica. Sapientiam Autem Non Vincit Malitia www.seminariodefilosofia.org Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio, sem a permissão expressa do autor. 6 situação. Também pode acontecer que aquilo que num determinado momento é puro discurso teorético seja incorporado em seguida num discurso de agente, seja como auto-explicação, seja como autolegitimação. Mas nada disso deve encobrir ou atenuar a distinção de planos no ato da investigação científica, e essa distinção é bem fácil de fazer: os discursos dos agentes têm cada qual sua finalidade concreta na situação considerada, ao passo que os discursos científicos têm sempre como finalidade única a de aumentar a inteligibilidade do conjunto. É inútil tentar esfumar essa distinção alegando que os homens agem sempre movidos por paixões e interesses e não pelo desejo da verdade. É um simples dado de realidade o fato de que, para alguns homens, a paixão da inteligibilidade e o desejo de conhecimento são os interesses predominantes. Isto pode ser incompreensível para homens que são dominados por outros interesses, mas o cientista não tem por que levar as opiniões deles em conta, exceto como discursos de agentes. § 2. Observação e testemunho. – O princípio do testemunho qualificado. Não a simples posse física dos dados, como nas ciências da natureza, e sim a apreensão intuitiva do seu significado imediato: eis a matéria-prima do investigador em ciências humanas. Ora, essa apreensão não é uniforme nos seres humanos, como é uniforme, dentro de certos limites, a apreensão meramente sensível dos dados corporais. Ele depende do horizonte de consciência do observador. Duas pessoas vendo um pato, mesmo supondo-se que nada soubessem a respeito antes, veriam aproximadamente o mesmo animal, com as mesmas cores, proporções e movimentos. Pequenas diferenças de proporção ou forma poderiam ser facilmente acertadas pela comparação. Do mesmo modo, duas pessoas efetuando medições num território, ou observando sinais elétricos na tela de um osciloscópio, veriam mais ou menos as mesmas coisas e, em caso de divergência, poderiam repetir as operações comparativamente. As habilidades requeridas para isso são bastante simples e podem ser aprimoradas pelo treinamento. Daí o valor que as ciências da natureza dão à possibilidade de reduzir todas as suas complexas construções teoréticas a uma base empírica constituída dessas observações simples. Estas constituem o teste da veracidade do conjunto, e esse teste será tanto mais válido quanto mais possa ser repetido em condições acessíveis aos sentidos e, portanto, a “todo mundo”. Mas duas pessoas ouvindo uma mesma frase podem diferir enormemente na apreensão do seu significado concreto na situação dada. Uma pode apreender somente os sons articulados, outra o significado convencional das palavras e a estrutura gramatical da frase, e outra, ainda – para saltarmos o grande número de gradações intermediárias –, toda uma constelação enormemente rica e complexa de intenções subentendidas, implicações morais, conseqüências vislumbradas ou insinuadas, etc. A diferença pode ser tão grande que o conteúdo apreendido por esta última pessoa seja praticamente impossível de transmitir às duas outras. Essa diferença torna-se ainda mais gritante na contemplação de obras de arte. Por exemplo, a música: onde um mal discerne uma pasta de sonoridades confusas, outro apreende melodia, harmonia, estrutura, ordem e toda uma rede de conexões sutis que despertam no seu interior uma complexidade igualmente rica de emoções e evocações. A possibilidade de atenuar essa diferença pelo treinamento é bem limitada: pode-se ensinar a um aluno a ouvir com mais atenção, a distinguir os sons dos vários instrumentos, a apreender a unidade de longos desenvolvimentos temáticos que antes lhe escapavam, mas não se pode dar a ele a riqueza de emoções e evocações. Esta depende da vivência pessoal que ele traz consigo. Muitas vezes um curso de “apreciação musical” consegue apenas ensinar o aluno psicologicamente medíocre a imitar os sinais convencionais de experiências exteriores que ele não terá nunca. Sapientiam Autem Non Vincit Malitia www.seminariodefilosofia.org Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio, sem a permissão expressa do autor. 7 Na percepção das situações reais da vida, então, a diferença é tão grande que se torna intransponível. Há indivíduos que não chegarão a apreender no curso de toda uma vida os significados e intenções que um outro apreendeu num relance, por exemplo num olhar, num gesto, numa palavra, numa entonação. Ora, se os dados nas ciências humanas consistem justamente desses significados e intenções se estes são a matéria-prima para toda elaboração crítica e a fixação dos conceitos elementares, então a diferença do nível qualitativo e quantitativo da sua apreensão por indivíduos diversos e aí um componente irredutível do próprio método científico. Duas exigências usuais do método científico das ciências naturais são aí flagrantemente contrariadas: a repetibilidade da experiência e, sobretudo, a acessibilidade pública dos dados. Desde o primeiro passo, a apreensão dos dados, a ciência do homem parece reduzir-se a um conhecimento “subjetivo” ou “esotérico”. Mas não nos deixemos impressionar pelas conotações pejorativas. Acima daquelas duas exigências está a análise crítica das condições do conhecimento. E, como não há conhecimento científico que em última instância não dependa de testemunhos, o problema inicial do método em ciências humanas é portanto o do valor dos testemunhos raros ou únicos. Quando se trata de conjuntos complexos de dados, esse valor é inquestionável. Para explicar esse ponto, podemos usar da representação gráfica elementar da teoria dos conjuntos. Como não pode haver superposição perfeita entre as percepções de dois indivíduos, o valor do testemunho múltiplo ou repetido depende da intersecção de dois ou mais conjuntos de dados acessíveis às testemunhas. Se tivermos duas testemunhas A e B, detentoras dos respectivos conjuntos de informações A e B, seus testemunhos só se confirmarão um ao outro nos pontos onde haja perfeita intersecção: Se acrescentarmos uma testemunha C, o número de pontos perfeitamente convergentes nos testemunhos será menor, correspondendo, na figura, à área de intersecção mais escura: Um quarto testemunho reduziria ainda mais a intersecção (zona escura): Sapientiam Autem Non Vincit Malitia www.seminariodefilosofia.org Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio, sem a permissão expressa do autor. 10 mesmo de qualquer trabalho sistemático de interpretação, análise, verificação, construção de hipóteses, etc. –, ele deve ser bom nas seguintes atividades: ver, ouvir, ler, sentir, perceber, reter, organizar e unificar os dados. Esse conjunto forma a apreensão inicial dos dados disponíveis. Todo o trabalho subseqüente, inclusive o imediatamente subseqüente que consiste em novas coletas de dados, depende de uma boa apreensão inicial. Infelizmente, esse passo é em geral negligenciado nos tratados de metodologia prática, deixado de lado como se fosse um momento pré-científico, subjetivo e puramente irracional da atividade científica. Isso acontece graças à tendência geral e renitente – ainda não curada, depois de um século e meio de controvérsias – de macaquear os critérios da ciência natural. Nesta o ideal metodológico é o protocolo fixo, o algoritmo-padrão destinado a facilitar a convergência das observações, a formalização lógico-matemática dos dados e a repetição das experiências validantes. Para isso é preciso eliminar ou reduzir ao mínimo a parte consagrada aos atos cognitivos concretos, ao desempenho cognitivo do investigador, desempenho que, idealmente, deve ser idêntico em todos os profissionais envolvidos e que, por isso, se torna um infinitesimal desprezível ou é remetido a uma esfera separada, a psicologia do conhecimento científico. Nas ciências humanas, porém, vimos que o investigador tem necessariamente um papel de testemunha privilegiada, o que significa que, no seu trabalho, a cientificidade dos resultados depende, em grande parte, justamente do controle crítico dos atos cognitivos concretos na apreensão inicial dos dados. Por esse motivo, o estudo da apreensão inicial não pode ser afastado como um tema meramente psicológico alheio ao campo da metodologia. A apreensão inicial está ligada bem de perto à escolha do tema. Max Weber fez muito mal em exilar essa escolha nos domínios do irracional, como decisão baseada em “valores” não justificáveis cientificamente. A seleção de um tema, quando não imposta por circunstâncias burocrático-acadêmicas estranhas à substância do conhecimento científico, reflete não apenas uma atribuição subjetiva de importância a um grupo qualquer de fenômenos, porém uma percepção de significado. É um ato cognitivo de pleno direito, e não uma pura opção valorativa pessoal. Essa percepção é o ato inaugural da apreensão inicial e tem para esta uma importância decisiva, como a apreensão inicial tem para o curso restante da investigação. O controle crítico mais atento deve ser exercido, portanto, desde esse momento, e não deixado apenas para as fases seguintes do trabalho. E esse controle crítico incide justamente sobre os atos cognitivos concretos por meio dos quais o investigador percebeu o grupo de fenômenos e o delimitou como tema de sua investigação. Uma pequena desatenção nessa etapa fará com que esquadrões inteiros de significados não conscientizados se introduzam na formulação da questão científica, viciando desde a base os possíveis resultados. Por isso aquilo que na metodologia das ciências naturais podia ser ignorado como mera psicologia se torna, nas ciências humanas, o fundamento mesmo da metodologia. No que direi a seguir, portanto, o leitor deve permanecer consciente de que meu ponto de vista ao tratar dos atos cognitivos inerentes à apreensão inicial e à escolha e formulação de um tema de investigação não é de maneira alguma psicológico, e sim metodológico. § 5. O significado do significado Todo dado em ciências humanas é, imediatamente e essencialmente, um signo, um portador de significações. Um esclarecimento do conceito de “significado” é portanto indispensável à delimitação do terreno e dos métodos nessa área do conhecimento. Ainda é muito disseminada – e subjacente a muito do que se diz a respeito – a teoria de John Locke segundo a qual o significado de uma palavra é o que o emissor “tem em mente” ao pronunciá-la. Uma variante, estabelecida por Wittgenstein, diz que o significado é o “uso” que se faz da palavra. Em ambos os casos, o termo “palavra” pode ser substituído por “signo” em geral, dado que não somente as palavras têm significados, mas também, por exemplo, os sinais gráficos. Sapientiam Autem Non Vincit Malitia www.seminariodefilosofia.org Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio, sem a permissão expressa do autor. 11 Quer aplicada às palavras, quer aos signos em geral, essa teoria é uma meia verdade. Embora de fato sempre o sujeito humano “tenha algo em mente” no ato de usar um signo, e embora esse ter mente constitua obviamente um “uso” determinado que ele faz desse signo, o fato mesmo de podermos perguntar “qual” o significado com que ele o empregou já mostra que (1) o mesmo signo pode ter outros significados, ausentes no ato; (2) o significado que o sujeito “teve em mente” pode ser repetido ou revivenciado, tal e qual, por outros sujeitos em outras circunstâncias; (3) portanto o significado vai além de um mero “usar” ou “ter em mente”; se não fosse, isto é, se estivesse intrinsecamente vinculado a um determinado ato de emissão por um sujeito concreto, não poderia ser concebido fora desse ato. O traço mais característico do significado é, bem ao contrário, a sua independência de qualquer “ato” ou “uso”, a sua capacidade de ser transportado para outros atos e usos, de ser repetido por outros emissores – ou pelo mesmo em outras circunstâncias – sem nada perder de sua identidade. Se não fosse assim, todos os significados seriam eternamente incertos e a práxis da comunicação humana seria impossível. Longe, portanto, de depender dessa práxis, o significado é a condição que a possibilita9. Esse ponto foi abundantemente esclarecido primeiro por Bernhard Bolzano e depois por Gottlob Frege e Edmund Husserl10. Se tivesse sido compreendido pela generalidade do universo acadêmico, há muito tempo ninguém mais tentaria dar conta do problema do significado por meio do “triângulo de Peirce” e artifícios similares, que não permitem sequer uma distinção entre o significado e o mero índice11. Por “índice” entendo aqui, por exemplo, o desenho num cartaz que assinala a presença de um cão no jardim da casa, ou o latido com que o próprio cão anuncia essa presença. Nesses casos, um elemento material, o signo, remete apenas a outro elemento material presente. Não existe aí nenhum significado transportável para fora da situação concreta. Assim é toda comunicação animal e aquela faixa da comunicação humana que lhe corresponde funcionalmente. Mas é óbvio que essa faixa não ocupa senão uma fração ínfima do imenso território da comunicação humana. O mundo do significado começa onde o signo já não remete a um estado de fato, mas a uma essência, a uma entidade ideal, a um eidos. Como há significados que não têm correspondente efetivo no mundo real, porque expressam essências de entidades inexistentes ou impossíveis, segue-se que o eidos é independente não apenas do ato emissor e do sujeito emitente, mas também do objeto que, no mundo real, corresponde à efetivação do seu conteúdo. Esse é o núcleo da intuição platônica quanto ao “mundo das idéias” (ou, como prefere Victor Goldschmidt, “mundo das formas”). Se distinguirmos essa intuição dos símbolos míticos com que Platão a expressa, já não haverá nem mesmo diferença substantiva, no caso, entre a perspectiva platônica e a aristotélica do problema do significado. Não se trata de cavar um abismo ontológico entre o mundo sensível e o inteligível, mas de compreender que o primeiro só se torna inteligível quando visto através do segundo em vez de diretamente em si mesmo. Na linguagem mítica, não de Platão, mas da tradição homérica, o mundo das essências inteligíveis corresponde funcionalmente ao espelho da sabedoria, presente de Zeus, através do qual Teseu pode olhar o rosto da Medusa sem ser fascinado pelos mil olhos do monstro. Entregue diretamente ao caos das estimulações sensíveis, a inteligência humana seria impotente para elevar- se acima de uma mera linguagem de índices. O ponto de vista platônico enfatiza a independência do mundo das idéias em relação aos objetos sensíveis, o aristotélico a necessidade que a inteligência humana tem de subir destes para 9 Espero que não ter de perder muito tempo, em aula ou fora dela, com a objeção pueril de que, criado pela práxis, o significado é em seguida “fixado” pelo uso e pela convenção. A possibilidade do uso repetido e da convenção pressupõe o reconhecimento do “mesmo” significado quando repetido e não pode ela mesma ter nascido dessa repetição, muito menos de uma hipotética “convenção” subseqüente. 10 V. Jocelyn Benoist, Entre Acte et Sens. 11 O “triângulo de Peirce” (signo-referente-referência) deve ser substituído então por um quadrilátero: signo-essência-referente- referência, onde a referência designa a relação entre o objeto (referente) e significado (essência). Sapientiam Autem Non Vincit Malitia www.seminariodefilosofia.org Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio, sem a permissão expressa do autor. 12 aquela através da depuração abstrativa, mas é claro que essas duas perspectivas se completam em vez de contradizer-se. Sobretudo porque, numa certa etapa da escalada abstrativa, tem de haver um salto intuitivo que assinala a heterogeneidade dos dois níveis de conhecimento: ninguém poderia operar a separação aristotélica entre o esquema fático e o esquema eidético se já não conhecesse de algum modo este último, e decerto não poderia conhecê-lo pelos mesmos meios que lhe dão acesso àquele. A independência do significado é uma condição sine qua non do conhecimento intelectual dos objetos sensíveis. Sem isso, teríamos apenas o conhecimento sensível do sensível, e uma linguagem de índices para exprimi-lo. Para alguns autores, a diferença crucial entre linguagem animal e linguagem humana reside na passagem dos signos naturais para os signos arbitrários ou convencionais12. Mas é fácil perceber que a possibilidade de usar signos arbitrários não é causa sui: se os significados enquanto tais não fossem transportáveis e repetíveis, não seria possível manejá-los por meio de signos convencionais, pois estariam vinculados ao ato concreto de emissão, como acontece na comunicação animal, e só poderiam ser repetidos por meio da cópia fiel do mesmo ato, com seus concomitantes fisiológicos inclusivamente. Por outro lado, nada impede que alguns significados repetíveis sejam designados por signos naturais, como acontece em termos onomatopaicos e em outros casos especiais que estudarei mais adiante13. A arbitrariedade do signo, um fetiche da lingüística saussuriana, é apenas o aspecto mais superficial e visível de um processo mais decisivo e mais profundo, que é o acesso da inteligência humana aos significados ou essências. O “triângulo de Peirce” (signo-referente-referência) deve ser substituído então por um quadrilátero: signo-essência-referente-referência, onde a “referência” designa a relação entre o objeto (referente) e o significado (essência). Essa relação define-se pelo grau de manifestação do significado num objeto do mundo real. As essências “casa” e “o autor deste estudo”, por exemplo, ambas têm manifestações reais concretas, a primeira numa vasta quantidade de produtos da técnica de construções e mesmo em algumas formações naturais que sirvam de moradia, a segunda apenas num indivíduo humano determinado. Já a essência “tartaruga alada” só se manifesta numa criação da fantasia humana, e a essência “círculo quadrado” não se realiza de maneira alguma. A essência “infinito” realiza-se necessariamente, mas não em alguma condição determinável. E assim por diante. A referência, enfim, é o quadro completo das condições ontológicas correspondentes às essências – o que significa que nenhuma essência de nenhum objeto poderia ser jamais apreendida se o sujeito cognoscente não tivesse antes algum vislumbre da estrutura geral do ser. Eis por que não se pode admitir que a linguagem humana, materialmente considerada, seja o fundamento da possibilidade do conhecimento que a nossa espécie animal tem da realidade: sem uma prévia “transparência” da estrutura do real, oferecida de algum modo ao ser humano, ainda que parcial e deficientemente, a linguagem humana não seria possível. § 6. As tarefas básicas da ciência social e o autoconhecimento Tudo o que o cientista social14 apreende nos dados é, pois, uma constelação de essências aparentemente manifestadas num conjunto de fenômenos sensíveis, articulados, também aparentemente, por um conjunto de nexos fáticos correspondentes às articulações lógicas que ele percebe entre aquelas essências. O primeiro desses aspectos corresponde à apreensão inicial, o segundo à organização dos dados, à formulação das hipóteses, etc. O núcleo vivo do trabalho residirá em dar consistência científico-racional (a) à realidade das manifestações; (b) à realidade da 12 V. André Marc; s.j., Psicologia Reflexiva, trad. Antonio Puigcerver, Madrid, Gredos, 1965, t.I, pp. 24 ss. 13 V. minha apostila “Da tripla intuição”. 14 Uso aqui a expressão “cientista social” no sentido mais elástico, designando tanto o sociólogo ou o economista quanto o historiador e o jurista. Sapientiam Autem Non Vincit Malitia www.seminariodefilosofia.org Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio, sem a permissão expressa do autor. 15 Tal como no Organon as quatro ciências do discurso são precedidos dos livros Da Interpretação e Das categorias, a articulação dialética dos sentidos pressupõe o correto entendimento dos signos e a hierarquização dos níveis de significado que se pode esperar do conjunto do material. O quadro seguinte mostra as várias categorias, isto é, modalidades e planos em que um significado pode ser apreendido. As modalidades correspondem às colunas, os planos às linhas. Entre as várias modalidades não há, decerto, equivalência material, mas apenas analogias. Destas analogias, no entanto, transparecem estruturas profundas do fenômeno da significação, estruturas que estão presentes em todo e qualquer emissão de significado e cuja apreensão intuitiva, nebulosa e automatizada, faz parte do processo mesmo da comunicação imediata, mas que o investigador deve se esforçar para trazer à luz da maneira mais clara possível, perante cada conjunto de sentidos que se ofereça como tema de investigação: FUNÇÕES DA LINGUAGEM MODO VERBAL TEMPO VERBAL ESTILO PESSOA VERBAL DISCURSO Expressiva Subjuntivo Passado Cotidiano Primeira Poético Apelativa Imperativo Futuro Literário Segunda Retórico Denominativa Indicativo Presente Técnico Terceira Dialético- analítico Embora esse quadro possa e deva ser usado como ferramenta analítica, a apreensão dos planos e linhas é em geral intuitiva, e o conteúdo dessa intuição (isto é, os significados captados na apreensão inicial, e não os signos considerados materialmente, é claro) é que deve ser tomado como objeto de análise. A análise considerará então o significado, principalmente, sob o ângulo das três funções da linguagem descritas por Karl Bühler. Isto resulta não em perguntar apenas se o significado expressa conteúdos subjetivos (individuais ou grupais), exerce uma ação sobre o destinatário ou nomeia realidades, mas sim em considerar em suas inter-relações os aspectos cognitivo, expressivo e ativo que estão presentes em toda emissão de significado. Uma influência exercida sobre o destinatário (função apelativa), por exemplo, pressupõe um certo conhecimento que se tenha deste último (função denominativa), e o conteúdo desse conhecimento, bem como a intenção subentendida na ação, envolvem uma atitude interior do sujeito (função expressiva). É evidente que apreender um significado qualquer é captar instantaneamente o conteúdo que ele manifesta nessas três claves, mas, para transformar-se em instrumento do conhecimento científico, esse conteúdo deve ser explicado de maneira crítica e analítica. A identificação da função lingüística envolvida é, evidentemente, o objetivo principal da análise. O exame sob as demais modalidades serve sobretudo para desentranhar essa função desde dentro dos vários envoltórios lingüísticos que podem complicá-la ou mesmo camuflá-la. O modo indicativo, por exemplo, embora corresponda estruturalmente à função denominativa, pode ser usado para encobrir uma ação exercida sobre o destinatário ou para dar ares de referência objetiva a uma pura auto-expressão. Similarmente, os quatro discursos nem sempre são usados na clave que lhes corresponde objetivamente. É preciso distingui-los, pois, tanto na forma quanto no conteúdo, sabendo que nem sempre há correspondência exata entre esses dois níveis. Sapientiam Autem Non Vincit Malitia www.seminariodefilosofia.org Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio, sem a permissão expressa do autor. 16 § 8. O sujeito emissor O agente ou sujeito emissor do significado, por sua vez, pode ser considerado, em primeiro lugar, segundo a estrutura do seu horizonte de consciência tomado positivamente, isto é, como portador de conhecimentos organizados. Nesse sentido, é preciso considerá-lo (a) como sujeito individual autoconsciente dotado de um “mundo” interior próprio, isto é, de um “diálogo interior” cujas estruturas devem transparecer de algum modo nos seus atos e discursos15; (b) como representante consciente de um grupo ou classe, cuja natureza, valores e objetivos ele interpreta a seu modo; (c) como descendente e continuador autoconsciente de tradições ou correntes históricas identificáveis. Em segundo lugar, deve-se considerar o horizonte de consciência negativamente, isto é, segundo os fatores que ele exclui dentre aqueles que podem ser, no entanto, importantes para a compreensão do personagem e da situação. Nesse sentido devem ser examinados (a) os possíveis conteúdos “inconscientes” da sua psique que transpareçam nas suas palavras e ações; (b) os valores, preconceitos e hábitos grupais impregnados tão profundamente na sua psique que se tornam forças independentes, atuando através dele sem a sua anuência consciente; (c) a força das correntes temporais suprapessoais, das quais ele se torna um elo sem perceber16. [Continua] 15 Esse diálogo, por sua vez, pode ser considerado sincronicamente ou diacronicamente, isto é, como conjunto estruturado ou como etapa de uma biografia interior. 16 Não deixa de ser curioso observar que a menor interpretação que se faça de um ato ou discurso humano já contém, de maneira compactada e implícita, todo esse complexo sistema de perspectivas. Mas toda essa parte importantíssima da apreensão de significados é deixada por conta das meras habilidades instintivas do observador, sem incorporar-se ao método científico, que então, por mais rigoroso que se pretenda, não passará de um conjunto de precauções formais, se não convencionais, tomadas em cima de um material mal conscientizado criticamente.