Baixe Simbolos e Mitos no filme O Silencio dos Inocentes - Olavo de Carvalho e outras Notas de estudo em PDF para Artes Cênicas, somente na Docsity! SÍMBOLOS E MITOS NO FILME “O SILÊNCIOS DOS INOCENTES” [Retirado do antigo fórum “Sapientia”, que fazia parte da HP do Olavo de Carvalho – www.olavodecarvalho.org] Este livro (Dialética Simbólca) transcreve - sem alterações a não ser em detalhes de estilo - a apostila distribuída aos ouvintes das três palestras que, sob o título “Interpretação Simbólica do Filme O Silêncio dos Inocentes”, pronunciei na Escola Astroscientia, do Rio de Janeiro, em julho de 1991, quando o filme ainda estava em cartaz. Algumas cópias foram também distribuídas a gente de cinema e da imprensa; mas circunstâncias fortuitas, adversas, impediram que se fizesse então uma edição regular, a qual agora se empreende graças à generosa colaboração de Stella Caymmi e Ana Maria Santos Peixoto. A premiação do filme com cinco Oscars, agora em abril de 1992, é uma boa ocasião para recolocá-lo em debate, procurando, pela segunda vez, ir um pouco além dos comentários rotineiros e banais (quando não francamente errôneos) que foram a única reação da crítica nacional quando da sua exibição por aqui. Este livro pertence a um gênero anacrônico, e certamente suscitará alguma estranheza da parte de um público acostumado a receber, sob o rótulo de “crítica de cinema”, coisa inteiramente diversa. É que, quando eu tinha dezoito anos - há duas décadas e meia, e em outro Brasil -, não era pecado escrever ensaios longos a respeito de um filme; não era pecado pensar, investigar, tentar aprofundar o sentido de um filme. Ensaios como este eram a toda a hora publicados na imprensa, e nós, jovens aficionados, tão logo terminava a sessão corríamos em busca das palavras sábias de Luís Francisco de Almeida Salles, de Paulo Emílio, de Guido Logger, deAlex Vianny; de todos quantos se dedicavam ao ofício de ajudar-nos a compreender a arte do cinema; ofício que hoje sofre o estigma da reprovação, a não ser quando exercido discretamente e dentro do gueto universitário. As páginas de crítica nos jornais são para outra coisa, e pensar em público tornou-se indecente. Lamento ferir o decoro: é que, decididamente, pertenço a outra época. Olavo de Carvalho ****** I. Terror e piedade O Silêncio dos Inocentes (“The Silence of the Lambs”) é bem mais do que o thriller habilmente realizado ou do que o drama passional que a crítica brasileira viu nele. Se toca tão intensamente o coração da platéia, é menos pelo fascínio macabro do tema, pela destreza quase alucinante da direção ou pelas interpretações memoráveis de Anthony Hopkins e de Jodie Foster do que pelo simbolismo profundo da sua fábula. Mesmo quando passe despercebido pela consciência do espectador, esse simbolismo não pode deixar de atingi-lo no âmago da sua condição humana, pela força de uma linguagem universal. Seu alcance simbólico eleva o filme de Jonathan Demme à categoria de grande obra de arte. Como toda grande arte, este filme desencadeia conseqüências que se prolongam para muito além do gozo estético imediato, e reverberam em benefícios psicológicos de longa duração. Nunca, desde M, o Vampiro de Düsseldorf, de Fritz Lang, ou Vergonha, de Ingmar Bergman, esteve o cinema tão perto de realizar um intuito equiparável ao da tragédia grega, que, nas palavras de Aristóteles, era o de inspirar “terror e piedade”, ou, mais precisamente, a piedade por meio do terror: purificar a alma do homem e incliná-lo ao bem pela visão do absurdo e do mal inerentes à ordem cósmica. Mas, para desfrutar plenamente dos ganhos que esta obra nos traz, é necessário ultrapassar o puro impacto estético da primeira hora e aprofundar uma consciência intelectual do seu significado. O educador que mostra e adverte, dirigindo a atenção do espectador para os pontos significativos e as estruturas profundas, prolongaassim e potencializa o trabalho do artis , abrindo os canais para o seu encontro com a alma do públic . Essa seria, a rigor, a tarefa da crítica. Não consigo conceber o crítico militante senão como uma espécie de educador, na linha proposta por Mathew Arnold. Não é de espantar, portanto, que com tanta freqüência me decepcione com a crítica nacional, seja de filmes, de livros ou de peças teatrais: ela tem-se reduzido ao mero noticiário, à apreciação segundo padrões técnico-industriais ou à expressão de sentimentos pessoais do crítico. Essas três modalidades de antieducação foram exaustivamente praticadas a propósito de O Silêncio dos Inocentes. Perdeu-se assim uma grande oportunidade pedagógica. Nas páginas seguintes, faço o que posso para remediar a perda. II. Uma pista falsa Começo com um exemplo. Márcia Cezimbra, em seu artigo no caderno Idéias do Jornal do Brasil,[1] coloca os leitores numa pista falsa, pela qual jamais chegarão a compreender o filme. Mas o erro deve ter passado despercebido, já que muitos espectadores, a quem consultei, revelaram ter entendido a história exatamente como ela: uma fábula do desejo, o drama da paixão entre um psicopata antropófago e uma bela agente do FBI. Esta interpretação foi também endossada por quase todos os críticos. Eu não teria a cara de me opor a toda essa respeitável unanimidade se ela não fosse contraditada, também, pelas declarações dos dois atores principais do filme, feitas em entrevistas que ou não foram lidas, ou não foram levadas a sério no Brasil. Hopkins diz que o Dr. Lecter - o suposto objeto dos desejos da heroína Clarice Starling - é realmente o Demônio. Não um demônio, mas o Demônio, nome próprio. E Jodie Foster afirma que Clarice é uma heroína verdadeira, como nunca houve na história do cinema, porque, no quadro de um drama mitológico, ela tem de “lutar contra os demônios e conhecer-se a si mesma”. Foi exatamente assimque entendi o filme: a luta de uma heroína socrática para desenterrar a verdade do fundo das trevas, da mentira e da loucura. Jodie tem razão ao dizer que uma heroína desse porte nunca houve na história do cinema (com a possível exceção, observo eu, da Joanna d’Arc de Robert Bresson). Mas garotinhas fascinadas por monstros sexy são uma banalidade que podemos ver toda semana em enlatados de TV, moldados em King Kong ou A Bela e a Fera. Se Jodie e Hopkins têm razão, então os críticos brasileiros se equivocaram profundamente. O motivo de terem errado o alvo está em certos cacoetes mentais, que se disseminaram como epidemia entre os intelectuais brasileiros e os fazem ver tudo por um viés pré-fabricado. No Brasil as palavras “desejo” e “paixão” se tornaram, nos últimos anos, chaves universais, aplicáveis a torto e a direito para a explicação de tudo. É também um fenômeno local a onda de nietzscheanismo militante, que só consegue ver algo de bom quando sob a forma de um mal ao menos aparente, e que procura em toda afirmação explícita de valores positivos um sintoma de hipocrisia ou de falsa consciência. Para essa mentalidade tudo no mundo é disfarce e auto-engano: retirados os véus do fingimento, vem à tona a única realidade verdadeira, que, em todos os casos e circunstâncias, consiste sempre e somente em paixão e desejo, com uns toques de maquiavelismo endossado como natural e são a título de “sinceridade” - como se toda manifestação direta de sentimentos generosos fosse uma grossa perfídia inconsciente, e não pudesse haver sinceridade senão no fingimento assumido ou na maldade explícita. A hermenêutica daí resultante - e que seus cultores aplicam indistintamente à interpretação de sintomas psicopatológicos, de obras de arte, de sistemas filosóficos, de tudo, enfim, menos de suas próprias idéias - é rígida, mecânica e repetitiva até à demência. Não é preciso dizer que a inclinação para ver as coisas por essa óptica maliciosa é um fenômeno sociológico brasileiro, facilmente explicável pela desilusão dos nossos intelectuais com a democracia tão duramente conquistada e tão rapidamente estragada. Visto por essa hermenêutica, o Sol é movido pelas sombras, e, evidentemente, o pólo ativo da trama de O Silêncio dos Inocentes só pode ser o Dr. Lecter. Lógico: ele é o pior, logo deve ser o melhor. O demônio inteligente exerce fascínio sobre a intelectualidade derrotada, a qual, vendo a vitória dos maus no mundo, sonha em tornar-se igual a eles; mas, impotente para concorrer com os safados no campo da maldade prática, satisfaz-se em corromper as idéias e os signos; e, hipnotizada pelo sorriso maligno do Dr. Lecter, atribui seu próprio estado de alma a Clarice Starling, sem reparar que, com isto, não está fazendo uma interpretação, e sim uma projeção. Histórias de desmascaramento de valores, onde o bem só pode aparecer sob a forma invertida de umsince ismo do mal explícito, continuam em moda no Brasil, por exemplo nas n vel s de TV. São típicas de situações de desencanto social, onde uma intelectualidade marginalizada se rói de ressentimentos: com que alívio o jovem gênio complexado não recebe a notícia de que Nietzsche valorizava o ressentimento como Clarice, por seu lado, não se ilude quanto a Lecter. Quando um ascensorista lhe pergunta se ele é um vampiro, ela responde que “não há um nome para o que ele é”. O que não tem nome não tem essência, o que é um modo de dizer que não é nada. Não é coincidência que esta fala anteceda imediatamente a cena em que Lecter recomenda a Clarice “ater-se ao essencial, desprezando o acidental”. Segundo uma antiqüíssima teodicéia, o mal não é propriamente um ser, mas algo como o efeito acidental da confluência inoportuna de bens de diferente espécie (por exemplo, é bom amar uma mulher e é bom ter um amigo; mas pode acontecer de amarmos a mulher do amigo). O mal é uma “relação”, não uma “substância”; uma “sombra”, não um “corpo”. Estudando uma seita satanista contemporânea, um autor informado compara o mal a uma somatória de ausências, a qual dá srcem a uma força de sucção que, não podendo subsistir em si e por si, se gruda e se apóia ao lado obscuro ou mal conhecido das coisas.[3] Sócrates e o vedantismo iam mais longe, decretando que o único mal é a ignorância. O fascínio, a subserviência ante o mal brota justamente daquelas zonas da alma que nos são mais desconhecidas - do “inconsciente”, se quiserem, depósito, segundo o Dr. Freud, dos desejos e imagens rejeitados pelo consciente. Procurando esquivar-se do olhar malicioso que perfura as defesas conscientes, a vítima amedrontada se prosterna ante o adversário, na esperança de obter sua clemência. É precisamente este o flanco que Clarice não oferece a Lecter: quando ele tenta desmascará-la psicologicamente, ela não foge, não se resguarda atrás de defesas vãs, nem procura enternecer o adversário para aplacar a dureza do seu olhar penetrante; com singela franqueza, ela reconhece a veracidade dos sentimentos infantis que Lecter discerne em seu íntimo; a transparência de seus motivos e a firme aceitação da verdade acabam por transmutar o olhar suspicaz de Lecter, subjugando e pondo a seu serviço toda a malícia do pérfido doutor. Pretendendo desarmá-la, Lecter encontra no fundo dela a fortaleza invencível da intenção reta. E o diabo, que despreza quem o cultua, rende-se com admiração ante a heroína que ama a verdade. Em sua lição de Lógica sobre a essência e o acidente, Lecter cita Marco Aurélio. O imperador romano foi um dos grandes filósofos do estoicismo, escola que pregava o abstine et sustine: desapego e firmeza. Não é esta a única referência estóica, no filme. Logo no começo, Clarice aparece treinando num bosque aos fundos da sede do FBI em Quantico. Na entrada do bosque, três cartazes de madeira cravados nas árvores exortam o aprendiz de polícia a suportar a dor, a agonia e o sofrimento. Um quarto cartaz acrescenta à mensagem estóica o mandamento cristão: Ame. Duas gotas de estoicismo num só filme são o bastante para despertar curiosidade. Caso o Dr. Hannibal Lecter não seja um intelectual brasileiro, que cita sem ler, valerá a pena darmos uma espiada nesse Marco Aurélio. VII. Estoicismo e cristianismo A mistura de mandamentos estóicos e cristãos não é estranha. Desde cedo os filósofos cristãos perceberam o valor da ética estóica e trataram de absorvê-la no Cristianismo. Marco Aurélio dizia, por exemplo, que o aspirante a sábio não deve fugir do mal, mas habituar-se a olhá-lo de frente para neutralizá-lo, tornando-se imune ao seu fascínio. Do alto de sua apatheia (“ausência de emoções”), o sábio realizado poderá então extinguir o mal pela força do seu olhar objetivo e sereno, que chama as coisas pelos seus verdadeiros nomes, sem nada acrescentar nem tirar (é a “simplicidade” intelectual, mencionada por Lecter). Mas, no fundo da apatheia, o sábio deve sempre conservar uma atitude de “clemência compreensiva”. É uma espécie de bondade ou compaixão intelectual, não emotiva. Consiste em estar aberto à compreensão de tudo, até mesmo do que é vil e repugnante, mas sem deixar-se influenciar emocionalmente. Apatheia e “clemência compreensiva” são justamente os termos mais adequados para descrever a atitude de Clarice ante Hannibal Lecter; ela não o odeia, não o teme, não o ama, não o despreza; ela o observa e ouve, sem se fechar a nada nem se deixar subjugar por nada do que ele diz ou faz. Ela sustenta firmemente (sustine et abstine) sua posição diante de Lecter, sem se afastar um só milímetro da clemência compreensiva, por um lado, e, por outro, da fidelidade ao dever. O que equilibra os dois pratos da balança estóica, no fundo, é a compaixão pelas vítimas de Buffalo Bill: os cordeiros que ela deseja salvar. Clarice personifica a síntese de estoicismo e cristianismo, anunciada pelos cartazes do bosque. VIII. Masculino e feminino Alguns pensadores cristãos reprovaram ao estoicismo o caráter meramente passivo e reativo de sua ética: ele enfatizaria de mais a paciência, a resistência, a abstinência, e de menos o sacrifício ativo e a luta pelo bem. As virtudes estóicas seriam, em suma, “femininas” exclusivamente, sem a marca viril do Cristo-Rei. Um verdadeiro estoicismo cristão, para existir, teria de injetar alguma histamina no velho e cansado Marco Aurélio. Mas o cristianismo não despreza, enquanto tais, as virtudes “femininas”. Sua epítome, na visão cristã, é justamente a Santa Virgem. Ela nada “faz”, propriamente, em toda a narrativa evangélica. Só obedece, padece, espera, e chora diante do inevitável. Clarice também sofre passivamente diante da impossibilidade de salvar os cordeirinhos - de salvar ainda que seja um só. Sofre também, atônita como os cordeiros, diante da morte do pai. É dessa dor inerme, porém, que nasce a vocação da Clarice combatente, que enfrenta Lecter num duelo psicológico e abate a tiros Buffalo Bill; tal como da Virgem “passiva” nasce o Cristo, protótipo do sacrifício ativo; e tal como do pranto “inútil” da mãe aos pés da cruz nasce a multidão inumerável dos fiéis. A antiqüíssima liturgia repete o ciclo, onde da Igreja que padece nasce a Igreja que combate, e desta a Igreja que triunfa. IX. Mestres e discípulos A mesma dialética do passivo e do ativo repete-se na personagem complementar de Clarice, Jack Crawford. Intelectualmente, é ele o mais ativo, na verdade o único ativo, pois é quem planeja e dirige tudo, a tal ponto que se poderia dizer que a trama inteira dos eventos não é senão uma projeção externa de algo que se passouna mente de Jack Crawford. Mas, na prática, ele não participa diretamente da ação. Sua única tentativa de intervenção pessoal (quando invade a casa de Buffalo Bill, em Calumet City) é um erro de que se arrepende: ele deveria ter deixado tudo nas mãos de Clarice, como parecia ser seu intuito inicial. Mas os gurus também falham, ao menos na narrativa iniciática, pois aí eles apenas representam o Espírito e não o são verdadeiramente, o que aliás dá a medida das diferenças entre esse gênero narrativo e as epopéias sacras e mitológicas, que constituem seu modelo. *** Aqui devo explicar-me com mais cuidado. Epopéias sacras e mitológicas são aqueles poemas narrativos que, para toda uma civilização, têm o prestígio de verdades reveladas; no início dos tempos, eles fixam a cosmovisão, os valores, as leis e os princípios educacionais que vão orientar os homens e moldar os costumes enquanto durar essa civilização. Narrativas iniciáticas são histórias inventadas em época mais tardia, e que, sem terem a autoridade de revelações primordiais, são admitidas, por certos grupos ou indivíduos, como uma espécie de ensinamento espiritual ou religioso. As narrativas iniciáticas versam geralmente sobre aspectos ou partes das epopéias sacras, que elas prolongam, ilustram, comentam e especificam, adaptando o fundo da mensagem espiritual à mentalidade e linguagem de uma nova época. Elas revigoram e atualizam certas potencialidades espirituais contidas na revelação, que arriscariam enfraquecer-se à medida que a passagem dos tempos e as mudanças da linguagem vão dificultando às novas gerações a compreensão direta da epopéia sacra. São narrativas iniciáticas a Divina Comédia, de Dante, A Flauta Mágica, de Mozart, o Fausto, de Goethe, a tragédia grega em sua totalidade, Os Lusíadas, de Camões, A Rainha das Fadas, de Spenser; e, em nosso tempo, José e seus Irmãos, de Thomas Mann. São epopéias sacras os poemas de Homero, o Baghavad- Gita, o Corão, o Antigo Testamento, os Evangelhos etc. A diferença entre epopéia sacra e narrativa iniciática consiste fundamentalmente em que os heróis da primeira são deuses, semideuses ou, num quadro monoteísta estrito, aspectos de Deus ou forças de srcem divina. Os heróis da narrativa iniciática, sem terem poderes divinos nem falarem diretamente em nome de Deus, são seres humanos de excepcional envergadura, protegidos ou guiados de perto por forças divinas, cuja presença e atuação no mundo eles representam de maneira mais ou menos sutil e indireta. Tanto na epopéia sacra quanto na narrativa iniciática as personagens de mestres ou gurus representam sempreo Espírito divino, que conhece tudo de antemão e dirige do alto a caminhada de um discípulo, o qu l personifica a Alma humana em vias de se espiritualizar ou divinizar. Uma diferença marcante entre os dois gêneros é que, na epopéia sacra, o mestre é o Espírito divino, de modo literal e integral (na Odisséia, Mentes é Minerva, deusa da sabedoria; no Baghavad Gita, Krishna é um aspecto de Brahma etc.); ao passo que, na narrativa iniciática, a personagem do mestre é apenas um ser humano ligado mais ou menos de perto a um saber divino; é um sacerdote, um mago, um sábio, e não um ser divino; por isso, guiando “divinamente” o discípulo, não está isento de falhas humanas. Por exemplo, Merlin, no Santo Graal, perde temporariamente a parada para Morgana Le Fay; Sarastro é temporariamente derrotado pela Rainha da Noite etc. A narrativa iniciática, embora possuindo leis estruturais que a definem, pode ser enxertada numa infinidade de gêneros narrativos: na literatura novelística, no teatro, na poesia épica ou no cinema. Sua estrutura profunda é compatível com os revestimentos mais diversos, do fantástico ao “realista”. Os únicos elementos indispensáveis são o mestre, o discípulo, o adversário, e as peripécias que purificam a alma do discípulo ou lhe revelam um conhecimento. O adversário pode ser uma pessoa (como na Flauta Mágica a Rainha da Noite) ou uma situação adversa e diabólica que desafia a inteligência do herói ou tenta sua alma, como no Processo Maurizius, de Jakob Wasserman. O mestre também pode ser uma personagem de carne e osso (como Sarastro), uma alusão mitológica (Vênus em Os Lusíadas) ou um simples aspecto superior da alma do próprio discípulo (o mágico pressentimento que guia Etzel Andergast no romance de Wasserman). O ponto que interessa, o critério diferencial que nos certifica de estarmos em presença de uma narrativa desse gênero, não é o conteúdo material dos eventos, mas a relação entre as forças, em suma: a estrutura da trama. Muitas obras de literatura, do cinema e do teatro apelam para o uso de símbolos e mitos “esotéricos”, sem que isso faça delas narrativas iniciáticas. Ao contrário, os símbolos particulares contidos numa narrativa só adquirem perfeita funcionalidade estética quando a estrutura profunda da obra é a de uma narrativa iniciática; fora disso, símbolos e mitos se tornam meros adornos pedantes. A estrutura total e os simbolismos particulares têm de estar coeridos e a arrados um aos outros num arranjo orgânico, refletindo uma das principais leis da linguagem simbólica, que é a correspondência entre a parte e o todo, o pequeno e o grande, o micro e o macrocosmo. Só artistas muito hábeis logram obter esse encaixe, motivo pelo qual boa parte da arte “esotérica” em circulação é puro lixo. Tanto pela estrutura como pelos símbolos a que alude ou pela obediência estrita ao princípio de correspondência, O Silêncio dos Inocentes se revela uma narrativa iniciática, e das mais perfeitas que o cinema já nos deu. Nele não existe uma única referência simbólica ou mitológica que não se encaixe com extrema adequação e felicidade na estrutura total da obra, refletindo esse todo na escala do detalhe; e a estrutura global, por sua vez, tem todos os elementos requeridos: o mestre, o discípulo, o adversário diabólico, as peripécias reveladoras e purificadoras. Desse modo, é bastante natural que encontremos entre Clarice e Crawford a relação Alma-Espírito, que Crawford seja inativo na aparência e ativo no fundo, que Clarice seja fiel ao intuito de Crawford ainda quando lho desobedece aparentemente, e que Crawford, enfim, cometa um engano, na hora em que este engano já está, miraculosamente, corrigido pela Providência. A Alma, na narrativa iniciática, é passiva diante do Espírito, mas ativa diante do mundo; ela luta, mas sua luta é para permanecer fiel ao Espírito num mundo onde as adversidades, tentações e enganos ameaçam arrastá-la para longe da sua vocação. Que Jack Crawford, no filme, é o mestre ou guru de Clarice não há dúvida. Um dos colegas dela o menciona literalmente assim (“Seu guru, no telefone”). Será Lecter, complementarmente, o guru de Buffalo Bill, o arremedo diabólico do Espírito, que com tanta freqüência também surge nas narrativas iniciáticas? Veremos adiante. Por enquanto, o que interessa é notar que Crawford, nas funções de guru, mantém uma atuação discreta, de segundo plano, longe do centro da ação física (a não ser por um lapso), e no fim se retira modestamente, deixando para a discípula as honras da festa. Tal como o Sarastro de Mozart, que, no fim da Flauta Mágica, após haver articulado e dirigido de longe a luta de Tamino para libertar Pamina, desaparece num halo de luz, deixando para os discípulos o gozo da vitória. É também um topos, um esquema repetível. Mas como funciona! X. Um par de pares Caronte é servidor e discípulo de Plutão, que, por outro lado, foi depois obviamente identificado com o demônio bíblico. O paralelismo Plutão-Lecter/Caronte-Gumb se torna inevitável quando reparamos que Gumb, após enfiar na garganta de suas vítimas o casulo de uma mariposa com os nomes dos rios do inferno, as leva de barco para atirá-las ao fundo de um rio. Da outra margem, do fundo do seu subterrâneo, o senhor das trevas observa com evidente satisfação os progressos do “jovem assassino em transformação”. Gumb não é um assassino qualquer. Ele trabalha com a coerência estética de quem tem algo mais em vista: ele arremata os crimes com um halo de símbolos que lhes dá a regularidade e a perfeição de um rito mágico. Se ele quisesse a pele das vítimas apenas como matéria-prima, por que haveria de inserir em suas gargantas um símbolo? E por que esse símbolo representava para ele, em suas próprias palavras, algo de “belo e poderoso”? Ao aspecto meramente físico e utilitário da operação criminosa, ele acrescentava um suporte simbólico, destinado, evidentemente, a convocar o auxílio das potências tenebrosas para o sucesso da mutação desejada. Quem lhe ensinara estas coisas? Quem fizera do “jovem assassino em mutação” um misto de feiticeiro e carrasco? Quem o iniciara na arte tenebrosa? E por que há em sua casa uma bandeira nazista, que evoca, sob a figura do costureiro de peles humanas, a dos carrascos que, também movidos por sinistros motivos “esotéricos”, tiravam a pele dos prisioneiros judeus e com elas mandavam costurar artísticas cúpulas de abajur? Os crimes de Gumb afastam-se, assim, da motivação psicológica mais óbvia e utilitária, para adquirir uma reverberação simbólica tenebrosa, que, nas palavras de advertência do próprio Dr. Lecter, ocultam algo de “muito mais inquietante”. XII. Anjos e demônios A esta altura já não há escapatória: este mero “thriller bem construído” que a crítica viu nele, esta vulgar “fábula do desejo”, oculta nada menos que um combate dos devas e dos asuras, a guerra cósmica entre as potências luminosas e as tenebrosas que disputam a alma humana e decidem o seu destino. A esta altura, o leitor já deve ter advertido que não se trata de um simples drama policial e psicológico, que se pode ver a distância na tranqüilidade de simples espectador. A esta altura, o “espectador”, preso à poltrona por um misto de dor e pânico, já sabe que foi mexido até a medula: de te fabula narratur - “a história é a respeito de ti”. ****** Até mesmo os nomes das personagens parecem significativos. Clarice Starling, obviamente, evoca a claridade estelar. No mito grego, as almas dos heróis se transformam em estrelas. Lecter é uma variante de lector: ele lê nos livros e nas almas. Gumb é uma corruptela de gumbe, um tipo de tambor sudanês feito... de pele. Finalmente, Crawford, um nome banal que poderia não significar nada, compõe-se de craw, “garganta”, e de to ford, “atravessar”. Forma claramente a idéia de “engolir’. Por que “engolir”? Pode ter sido escolhido a esmo, mas não é uma coincidência sugestiva que a pista mais importante para a solução do mistério seja encontrada precisamente na garganta das vítimas? Ademais, pode parecer maluquice, mas não me sai da cabeça que Crawford domina Clarice, que domina Lecter, que domina Gumb: um peixe engole outro peixe, que engole outro peixe, que engole outro peixe. No fim o peixe maior se retira, solitário. Também é significativo que haja um gatinho na casa da primeira vítima de Gumb, e outro no da última. Um gatinho mia da janela de Catherine enquanto Gumb a seqüestra; um gatinho mia no quarto de Frederika Bimmel enquanto Clarice o vasculha em busca de pistas. Um gato no começo e outro no fim da carreira do esfolador de moças. Como as duas pontas de uma serpente. O gato era de fato assimilado à serpente, no mito egípcio; e, no Japão, o shintô vê nele um ser maléfico, uma criatura das trevas, capaz de matar uma mulher e revestir-se da sua forma. Como Gumb. E este não deixava de ser ligado a coisas japonesas, como o mobile com borboleta que gira no seu quarto. O que foi dito dos nomes e dos gatos são apenas indícios secundários a confirmar uma hipótese que no mais, e por si mesma, se conserva perfeitamente sólida sem isso. Acontece também às vezes que, quando a estruturada narrativa iniciática é firm , como neste caso, até mesmo detalh s si bólicos encontrados cidentalmente pelo artista adquirem uma reverberação mais profunda: quando se acerta no essencial, o acidental colabora, ou: ajuda-te, que o céu te ajudará. Quando, ao contrário, a estrutura profunda é frouxa ou defeituosa, nem todos os símbolos esotéricos do mundo salvarão uma obra de perder-se na banalidade. Está aí o Paulo Coelho que não me deixa mentir. XIII. Carneiros e bodes O que não é acidental de maneira alguma é o paralelismo entre as vítimas de Lecter e as de Gumb. As de Lecter são todas gente da polícia ou outros servidores do aparato repressivo. Sua morte “faz sentido”, sendo, dessa forma, um aspecto da “justiça”, ainda que monstruoso e torcido. As de Gumb são moças inocentes: sua única culpa é serem gordas, terem muita pele. Sua morte é “absurda”, “injusta”, e por isso elas são comparadas declaradamente aos cordeiros, símbolos tradicionais da vítima sacrificial inocente. Não é então significativo que na noite de sua fuga Lecter peça para jantar costeletas de carneiro mal passadas, e que, em vez de comê-las, coma os guardas, isto é: que em vez do símbolo das vítimas inocentes coma as vítimas culpadas? Nessa imagem apocalíptica, separam-se, como no Juízo Final, os inocentes e os culpados: os carneiros e os bodes. Quem mata carneiros é Gumb - o irracional, o absurdo. Lecter sabe o que faz: prefere os bodes. Gumb tornou-se assassino por obra do sofrimento. Mata os cordeiros numa tentativa desesperada de salvar-se de uma identidade odiosa que o oprime. O paralelismo mais interessante do filme talvez seja o que se forma, nesse sentido, entre ele e Catherine. É elemento estrutural, não acidental. Catherine, no fundo do desespero e do terror, apossa-se da cadelinha poodle de Gumb e ameaça matá-la. A cadelinha, branca e cacheada, é um perfeito carneirinho. O esquema maior da trama, reproduzido em escala pequena nesse detalhe, dá a ele aforça e o alcance de um símbolo universal unindo o micro e o macrocosmo: perseguido e maltratado pelos demônios, o homem persegue e maltrata um animal inocente. Mas Catherine é salva, e salva junto consigo a cadelinha: o gesto “inútil” da menina Clarice, ao tentar resgatar o cordeirinho, encontra finalmente resposta satisfatória. Nada foi em vão. XIV. Até o fimo do mundo A vitória de Clarice, que é também a de Crawford, só não é completa, ao que parece, porque Lecter escapa. Mas não há em nenhuma tradição literária do mundo narrativa iniciática que termine com a extinção final de todos os demônios. A narrativa iniciática pode “anunciar” o apocalipse, mas não “realizá-lo”: há sempre uma abertura para a continuação da história (no gênero épico, esta é aliás uma lei constitutiva). Lecter, simplesmente, não podia morrer. Mas sua fuga, se é uma vitória perante o mundo, é uma confissão de derrota perante Clarice. Após tê-la idealizado e servido, Lecter agora confessa que a teme: pelo telefone, pede que ela não o procure. Ela responde: “O senhor sabe que isso eu não posso prometer.” Claro: seria contra todas as regras. A luta da mulher com a serpente, iniciada na criação do mundo, tem de prosseguir até o fim dos tempos. Do Gênese ao Apocalipse. Iniciada com vantagem para a serpente, no Jardim do Éden, só poderá terminar, com a vitória final da mulher, quando da consumação dos séculos. XV. Apocalipse e paródia Há quem diga, no entanto, que quem venceu foi Lecter: que ele, além de conseguir fugir, ainda dominou psicologicamente Clarice e, para cúmulo, chegou a despertar nela, com um simples toque de dedo, algo que não seria demasiado chamar, literalmente, um tesão dos diabos. É um exagero dos diabos, isto sim. O próprio Lecter já respondeu a essa gente, ao comentar: “Dirão que estamos apaixonados.” Dirão, sim, porque não há limites para a burrice humana. A única tentativa de erotizar as relações entre Lecter e Clarice parte dele, e é irônica, para quem percebe. Toque de mão por toque de mão, há um muito mais prolongado entre Clarice e Crawford, no fim, e aliás acompanhado de um olhar de contida emoção. E, projeção edípica por projeção edípica, seria muito mais lógico que Clarice tivesse atração por Crawford, policial como o pai e, no fim, representante dele. Em nenhuma das recordações que Clarice tem do pai, ele mostra n da que possa lembrar Lecter nem de longe. Essa gente está vendo coisa . De outro lado, quem interpretou em sentido erótico a relação de Lecter com Clarice não enxerga o que haveria de absurdo, de ridículo e de esteticamente ineficaz na hipótese de uma mocinha doidivanas, ardente de desejos inconfessados, conseguir subjugar o diabo e pô-lo a seu serviço pela mera força de um tesão humano, demasiado humano. Isso só seria possível com Grande Otelo no papel de Clarice e Oscarito no de Lecter. Por mais desmoralizado que esteja, o diabo não é nenhum velho babão para estar-se derretendo por uma sirigaita. Não combina com Lecter. Se ele cede perante Clarice, não é por desejo erótico, mas por ter encontrado dentro dela uma força superior, que ela mesma não sabe que tem. A Santa Virgem é, afinal, representada tradicionalmente com um dos pés prendendo ao solo a cabeça da serpente. Note-se: ela não mata o demônio, apenas o subjuga. Por que deveríamos esperar mais de Clarice Starling? Ademais, sexualizar as relações de Lecter e Clarice só pode parecer reconfortante a certas mentalidades, que se pretendem esprits forts mas, no fundo, são tímidas. Não conseguem admitir a existência do mal em toda a plenitude da sua absurda presença, e preferem reduzir tudo a uma escala mais manobrável de paixões infantis quase inofensivas. Seria bom se o Dr. Freud explicasse tudo; mas Freud não explicava o demônio e aliás se borrava de medo dessas “coisas sombrias”, como confessou a Jung. Lecter, na verdade, despreza a sexualidade física, tem nojo dela, como se vê pelo fato de matar o psicopata Miggs só para puni-lo da brincadeira obscena que fez com Clarice (o que é bem característico do tipo de “justiça diabólica”, desproporcional e absurda, que alguns tomam como a justiça propriamente dita). Não, o que há entre Lecter e Clarice não é tesão. Ao contrário dos índios da famosa tirada de Noel Nutels, o diabo não come ninguém a não ser por via oral. Mas não é de espantar que uma parte, ao menos, da platéia, temendo enxergar as terríveis verdades que estefilme nos transmite, prefira amortecer a consciência, caindo de joelhos ante a atração hipnótica do mal: “entronizarão a Besta”, diz o Apocalipse. Esta tentação, que se agita no fundo da alma do aterrorizado homem contemporâneo, vem à tona diante de uma provocação tão inquietante como a que nos é colocada pelo filme de Jonathan Demme. Certas interpretações dadas a esta história provêm de um trágico engano interior: o espectador, incapaz de admitir com serenidade uma quota de mal superior ao que imagina possível, acaba por buscar alívio numa reação invertida, trocando em fascínio a repugnância. Cai vítima de Lecter, e em seguida busca justificar-se atribuindo a mesma reação a Clarice. O filme não fecha totalmente essa porta a quem deseja entrar por ela. Certa publicidade, letal para as mentes fracas, faz parte da regra constitutiva das narrativas iniciáticas: não há uma só delas que não possua, em seu fundo, um potencial de interpretação invertida, falsa e obscurecedora, à disposição de quem deseje enganar- se. O crítico canadense Northrop Frye, que é no mundo quem estudou mais profundamente esse gênero narrativo, afirma categoricamente:[4] “Toda imagem apocalíptica tem uma paródia ou contrário demoníaco, e vice-versa.” A crítica nacional, em peso, decidiu compreender desta obra tão-somente a sua paródia. Certamente não devo ser acusado de inimizade quando advirto a esses críticos que há, no fundo de sua opção - além de desconhecimento das leis da narrativa, coisa imperdoável num crítico -, também uma decisão moral e psicológica das mais graves, e tanto mais grave quanto tomada com plena inconsciência de suas implicações profundas: de te fabula narratur. XVI. Uma dica de Aristóteles Ainda uma palavra, sobre o gênero. O gênero é definido pela estrutura. Neste sentido, O Silêncio dos Inocentes não tem em comum com os outros filmes e romances policiais senão o assunto. A estrutura é diversa. Também não têm cabimento as comparações com o thriller hitchcockiano, que afluíram à boca dos críticos ao primeiro exame. As histórias de Hitchcock obedecem sempre ao mesmo esquema: um herói banal que se vê, por acaso, envolvido em circunstâncias complexas e adversas. A guerra de Clarice e Crawford contra Lecter e Gumb é, pelo menos, um enfrentamento entre exércitos de igual potência, com pequena mas significativa vantagem para o lado bom. Aristóteles talvez nos ajude neste ponto. Ele concebeu uma classificação das narrativas, que nunca foiaproveitada té Northrop Fry d cidir aplicá-la ao conj nto da literatura ocidental, com resultados impressionantes. Ele as dividia em cinco modalidades, conforme o grau de poderio dos personagens: As diferenças mais fundas estão mostradas no Quadro que vem como Apêndice III deste trabalho, de modo que não é preciso expô-las aqui. Apenas, o leitor, examinando o Quadro, verificará se não tenho razão ao tirar delas a conclusão acima. Posso acrescentar somente umas palavras de explicação. Significativamente, o roteirista amputou da história todas as referências a motivações íntimas e a circunstâncias pessoais imediatas, que pudessem tornar mais facilmente explicáveis, em termos de psicologia (ou de psicopatologia), os atos das personagens centrais, Clarice, Crawford, Lecter e Gumb. Apagou, portanto, da narrativa seu elemento de realismo psicológico, que é uma das marcas registradas do imitativo baixo. Amputadas de motivações psicológicas doentes ou sãs, as ações perdem talvez em verossimilhança (segundo os cânones de probabilidade média que balizam a estética do imitativo baixo), mas ganham em alcance simbólico. As personagens, por não agir segundo causas psicológicas redutíveis à escala da humanidade média - do homem médio são ou do psicopata médio -, tornam-se, literalmente, seres fora do comum: gigantes em luta. Do médio ou do típico passamos ao arquétipo. A diferença da modalidade impõe ao crítico uma diferença de enfoque. O imitativo baixo lida, essencialmente, com aquilo que no ser humano pode ser reduzido a causas gerais, estatísticas ou típicas (por exemplo, à hereditariedade nos Rougon-Maquart, de Zola; à luta de classes n’A Mãe, de Gorki; à decadência da propriedade familiar nos Buddenbrook, de Thomas Mann; à vulgaridade do sentimentalismo pequeno- burguês em Madame Bovary etc.). Com o imitativo elevado (e dele para cima, na escala de Aristóteles-Frye), escapamos dessa faixa: defrontamo-nos com aquilo que é ideal, incomum, excepcional; com aquilo que nos impressiona pela grandeza e não pela verossimilhança; com aquilo, em suma, que não pode ser reduzido a uma regra geral, a uma média ou a uma tipicidade. Pode-se, por exemplo, explicar, psicológica ousociologicamente, o co portamento de Madame Bovary, sem nenhum prejuízo para a apreensão estética da obra; devemos aliás fazê-lo, porque essa apreensão estética só se torna completa, justamente, após a compreensão psicológica e sociológica das causas em jogo, que o comportamento da personagem ilustra como exemplo de uma regra geral. Mas o mesmo procedimento interpretativo falha quando aplicado a Hamlet, a Fausto ou ao Príncipe Michkin; em face destes, quanto mais procuramos reduzi-los a expressões de leis gerais, mais nos escapa o que há neles de essencial e de significativo. Esta é a razão pela qual a abordagem psicológica é irrelevante ou falha no caso de O Silêncio dos Inocentes: perde-se em especulações marginais, deixa escapar o essencial. Madame Bovary é um tipo; e um tipo explica-se pela regra geral que ele tipifica. Hamlet, Michkin (ou Lecter) são símbolos; e símbolos, como bem resumiu Susanne K. Langer,[8] são matrizes de intelecções: destinam-se a abrir à inteligência novas possibilidades de compreensão e explicação, e não a ser por seu lado capturados na grade de alguma explicação preexistente. Explicar Lecter pela patologia ou Clarice pelo tesão escondido é reduzir o símbolo a tipo, é aplicar artificialmente à narrativa imitativa elevada um padrão de verossimilhança explicativa que cabe apenas no caso do imitativo baixo. No Quadro, o leitor encontrará muitos outros indícios no mesmo sentido do que expus (por exemplo, do livro para o filme o centro de interesse passou da investigação do esconderijo de Gumb para a decifração do seu intuito secreto, isto é, da ação física para a tensão intelectual, etc.). Não vejo necessidade de levar adiante, por mim mesmo, esta comparação, que ele poderá realizar sozinho e com grande proveito. XIX. Imago mundi Em suma: O Silêncio dos Inocentes é uma narrativa da modalidade imitativa elevada, estruturada segundo um modelo que sugere o dos Autos medievais (Cristo, Diabo e Alma), e que aqui se apresenta potencializado pelo recurso dialético do desdobramento das personagens, formando uma estrutura setenária similar à das direções do espaço; é uma narrativa iniciática, realizada com plenitude de meios e extrema felicidade no emprego de símbolos tradicionais da religião e das mitologias. É uma autêntica imago hominis, ou imago mundi. É grande arte. Sua visão nos inspira o terror e a piedade, nos predispõe a uma consciência aprofundada das forças que presidem ao destino, e, neste sentido, nos torna mais humanos. Sua hermenêutica, aqui apenas esboçada a título provisório, é um exercício de autoconsciência que exige de nós (além dos conhecimentos científicos necessários) firmeza de propósitos e disposição de encontrar a verdade, ou seja, uma atitude interior cujosímbolo a obra sma nos fornece, na pes oa de Clarice Starling. Est exercício é t mbém a ocasião de recordar uma coisa que anda fora de moda: o sentido moral e pedagógico de toda grande arte. Que esse sentido possa ser perdido na banalização e no pedantismo que hoje são a tônica da vida intelectual no Brasil é um dano lamentável, que aqui procurei compensar com os recursos de que dispunha. ****** Apêndices 1. A apologia do Estado em “O Silêncio dos Inocentes” Uma tradição venerável da crítica brasileira ordena olhar todas as coisas por seu lado político e ideológico. Não pretendo esquivar-me a esse mandamento (cuja obediência, aliás, me foi cobrada por mais de um ouvinte das palestras), embora, com toda a evidência, a abordagem ideológica não seja a mais frutífera para a compreensão deste filme (se o fosse, eu teria feito uma análise ideológica e não simbólica, pois, segundo o velho adágio escolástico, é a natureza do objeto que deve determinar o método de estudá-lo). Sociologicamente, a coisa mais óbvia na história é que nela só existem dois grupos sociais: criminosos de um lado, funcionários públicos de outro. Não há operários, patrões ou classe média. A luta de classes está ausente, seja da trama, seja da estrutura da consciência (ou do inconsciente) das personagens. A história poderia passar-se indiferentemente num país capitalista ou socialista, pois uma só condição é requerida e ela se cumpre em ambos os casos: a existência de uma ordem estatal e de um banditismo capaz de ameaçá-la. O conflito resume-se na guerra entre o Estado e os bandidos, apresentada, mais genericamente, como confrontoda razão com a violência, do humano com o anti-humano, da ordem com o caos: é a polis lutando contra a invasão das forças tenebrosas. O Estado é aqui apresentado como símbolo e epítome da razão, a ordem estatal como protótipo de um mundo humanizado: o abrigo do homem. O banditismo, por seu lado, tem dupla raiz: sobrenatural (ou, mais precisamente, preternatural, para usar o termo técnico com que os teólogos distinguem o diabólico) e histórica. O preternatural surge nas alusões à magia; o histórico, na menção - fugaz mas significativa - ao nazismo. O filme é teologicamente exato ao apresentar o Demônio como inimigo não propriamente de Deus, mas do homem (e, por extensão, da polis, se considerarmos, com Hegel, que o Estado é a mais característica criação da mais caracteristicamente humana faculdade). E que nazismo e diabolismo sejam no fundo uma só coisa é algo que se pode suspeitar seriamente, sobretudo depois da leitura de dois clássicos na matéria: The Revolution of Nihilism: Warning to the West, de Hermann Rauschning (Nova York, Alliance Book, 1939),[9] e The Last Days of Hitler, de Hugh R. Trevor-Roper (Londres, Macmillan, 1947). Quanto à identificação do Estado com a ordem humana (e, por extensão, com o Bem), já estão longe os tempos em que o mal-entendido ideológico levava a rotular Hegel como apologista do totalitarismo: Hegel é antes o inventor da moderna noção do Estado de Direito. Leiam Éric Weil, Hegel et l’État (Paris, Vrin, 1985). O Silêncio dos Inocentes é, ideologicamente, uma apologia do Estado de Direito hegeliano contra o “super- homem” do subsolo, que se levanta, sedento de sangue, para implantar o reinado do terror atávico e fundar uma religião de ritos mágicos, onde o sacrifício humano tenta aplacar em vão a fome de insaciáveis divindades tenebrosas. É, de certo modo, Hegel contra Nietzsche. Se querem saber minha posição, estou com o primeiro e não abro. 2. Resumo do enredo 1 - Clarice Starling, policial estagiária, exercita-se num bosque atrás da sede de FBI, em Quantico. Chamada para uma entrevista com o chefe do Departamento de Ciências do Comportamento, ela cruza a entrada do bosque, onde três cartazes de madeira cravados nas árvores exortam o aspirante a suportar a dor, a agonia e o sofrimento. Um quarto cartaz ordena: Ame. 2 - Vestida com uma blusa azul-celeste, ela sobe pelo elevador, rodeada de sete aspirantes homens, todos de blusa vermelha. No escritório do chefe, ela vê pelas paredes os recortes de jornal em que o assassino conhecido como “Buffalo Bill” é apontado como autor de crimes hediondos: pela quinta vez, ele acaba de matar uma jovem e esfolar o cadáver, abandonando-o num rio. O chefe, Jack Crawford, que fora professor de Clarice na universidade, propõe a ela um serviço que pode ajudá-la a obter uma promoção para agente especial: fazer um perfil psicológico de outro assassino, Hannibal Lecter, que está preso no manicômio judiciário. Lecter, famoso psiquiatra, se tornara ainda mais célebre pelo caráter monstruoso de seus crimes: ele matava as pessoas a dentadas e comia partes do corpo das vítimas, sendo por isso apelidado “Hannibal, o Canibal” (Hannibal the Cannibal, o que em inglês rima). Por seus conhecimentos e sua astúcia, Lecter era um tipo difícil para os psicólogos do manicômio e não colaborava com as tentativas de sondar sua mente. Clarice aceita a oferta, e Crawford lhe adverte que tome muito cuidado com Lecter, evitando especialmente contar a ele qualquer coisa de sua vida pessoal. 3 - Acompanhada pelo Dr. Frederick Chilton, diretor do manicômio, um fanfarrão metido a conquistador, Clarice desce ao porão do manicômio para entrevistar-se com Lecter. Como Chilton diz que Lecter o odeia e o considera sua Nêmesis, Clarice prefere fazer a entrevista sozinha. Ela atravessa o “corredor da morte”, onde loucos assassinos a espreitam de dentro das grades. Um deles, Miggs, apelidado “Miggs Múltiplas” (subentendendo-se: “Múltiplas Ereções”), lhe grita obscenidades. No fim do corredor, ela avista o Dr. Hannibal, numa cela que, em vez de por grades (por onde ele poderia enfiar as mãos), está separada do corredor por um grosso vidro blindado, com buraquinhos para a respiração. Muito polido, mas com um sorriso maligno, Lecter procura sondar a mente de Clarice em vez de se deixar sondar por ela. Por um breve exame de suas roupas e pelo cheiro do perfume ele traça seu perfil socioeconômico e daí conclui traços de sua personalidade: por trás de seu “bom gosto adquirido” e de sua aparência de profissionalismo e maturidade, ele revela em Clarice a mocinha interiorana tímida e ambiciosa. Clarice aceita sem objeções o perfil traçado e, reconhecendo o saber psicológico de Lecter, diz que deseja aprender com ele. Lecter diz então que Crawford, no fundo, não a enviara ali senão para obter informações psicológicas sobre Buffalo Bill. Apesar das amabilidades, Lecter recusa responder aos testes que Clarice lhe entrega, reage com impaciência quando ela o desafia a conhecer-se a si mesmo tão bem quanto conhecia a ela, e se despede dela em tom de arrogância desdenhosa. Quando Clarice vai saindo pelo corredor, Miggs Múltiplas procura chamar sua atenção, dizendo que acabava de morder o próprio pulso para se suicidar. Ela chega perto para olhar e, mal acaba de reparar que Miggs está se masturbando, recebe em cheio um jato de esperma no rosto. Lecter, do fundo do corredor, percebe o que se passa, chama Clarice de volta, pede-lhe desculpas pela grosseria de Miggs e oferece-lhe algo como um prêmio de consolação pela tentativa fracassada de sondá-lo: enfatizando a frase “Olhe dentro de si mesma”, ele lhe fornece o nome de uma de suas ex-pacientes, Miss Mofet (dando a entender que era uma pista para pegar Buffalo Bill). 4 - Ela sai da entrevista perturbada, e passam por sua mente recordações de seu pai, um policial morto por bandidos quando ela tinha dez anos. No dia seguinte, ela fica sabendo por Crawford que Miggs se suicidara durante a noite, induzido por Lecter. Clarice investiga o caso Hannibal, mas, como o psiquiatra destruíra seu arquivo, ela nada descobre sobre a tal Miss Mofet. Lembrando-se, entretanto, da expressão “olhe dentro de si mesma”, ela tem a idéia de ir investigar um conjunto de depósitos chamado Yourself (“você mesma”), e aí descobre um armazém alugadoa os antes por uma Miss Hester Mofet, o qual permanecera fechado desd então. Lecter pedira um segundo jantar, e os guardas vêm trazê-lo: costeletas de carneiro mal passadas. O que eles ignoram é que Lecter, sabe-se lá como, roubara uma caneta do Dr. Chilton e com a presilha fizera uma chave. Quando eles o algemam num canto da jaula para colocar a bandeja sobre a mesa, ele facilmente se liberta, algema um dos guardas nas grades da jaula e avança sobre o outro, matando-o a mordidas, sacudindo sua cabeça entre os dentes como um cão que devora um rato. Em seguida volta-se contra o outro e o mata a pauladas. Ouvem-se tiros, soa o alarme. Um valente sargento avança pelos corredores, armado, e ao chegar à jaula vê, horrorizado, um dos guardas crucificado nas grades, com o rosto dilacerado e as tripas à mostra, enquanto o outro agoniza no chão. Uma equipe da SWAT vasculha o prédio em busca de Lecter. Encontram no teto do elevador um corpo que julgam ser de Lecter, mas, enquanto isso, Lecter, na ambulância, tira o escalpo de um dos guardas, com que cobrira o próprio rosto, e devora os paramédicos, fugindo. Fora ele quem disparara os tiros, para pôr a polícia na pista falsa, vestindo-se de guarda em seguida. 16 - Clarice conversa com a amiga Ardelia Mapp, e assegura que Lecter não virá procurá-la, pois seria “demasiado vulgar para ele”. Ardelia encontra no dossiê uma anotação de Lecter, sobre o mapa que mostrava os lugares onde se tinham encontrado os cadáveres das vítimas de Bill. O computador não encontra nenhum padrão de regularidade na distribuição desses locais, e Lecter escrevera: “Não parece haver uma desordem proposital na escolha dos locais?” Isso era tudo. Trocando idéias com Ardelia, Clarice lembra-se da frase de Lecter: “Só cobiçamos o que vemos com freqüência.” Ela puxa do dossiê a fotografia da primeira vítima de Bill, Frederika Bimmel. “Então ele a conhecia!”, exclama Ardelia. 17 - Clarice dá uma busca na casa de Frederika. Um gatinho mia procurando a dona. No quarto, Clarice vê um vestido formado, nas costas, de um padrão de losangos, iguais ao formato dos cortes feitos na pele de uma das vítimas. Frederika era costureira. De súbito, tudo se esclarece: Bill era costureiro também, conhecia Frederika de algum lugar. Ele estava fazendo “vestido de mulher” com a pele das vítimas. Rejeitado nos centros de cirurgia para mudança de sexo por não apresentar os traços de personalidade do autêntico transexual, ele estava procurando fazer com seus próprios meios a “transformação” a que aspirava. 18 - Clarice comunica o resultado das investigações a Crawford, mas este, a bordo de um avião, já está indo para a cidade de Calumet City, Ohio, onde acredita localizar Buffalo Bill. Já tem a identidade dele: chama-se Jame Gumb, é de fato costureiro, e é criador de mariposas. Crawford localizara na alfândega um carregamento de ovos de mariposa Acherontia styx, remetido a Jame Gumb, Calumet City. Buffalo Bill só pode estar lá. Crawford agradece a Clarice a ajuda, e o avião começa a aterrissar. Em Calumet City, monta-se um vasto esquema para a invasão da casa de Gumb e o regaste de Catherine. Enquanto isso, nos arredores da casa de Frederika, Clarice continua a investigar. Descobre que Frederika trabalhava para uma Mrs. Lippman, e vai procurar sua casa. Em Calumet City, a SWAT arromba a casa de Gumb, e encontra tudo vazio. Na casa da Sra. Lippman, soam os gritos de Catherine, no porão. Ela acaba de agarrar a cadelinha de estimação de Gumb, e ameaça matá-la se Gumb não a libertar ou não lhe entregar um telefone para ela chamar a polícia. Gumb, num acesso de fúria, vai buscar seu revólver para dar cabo de Catherine. De sob uma bandeira nazista jogada entre os manequins e vestidos, ele retira um enorme Colt niquelado, e está voltando ao poço quando soa a campainha. É Clarice. Gumb atende-a com tranqüilidade, diz que comprara essa casa da Sra. Lippman dois anos antes, e, quando a pedido de Clarice ele vai vasculhar uns cartões de visita para achar o endereço do filho da Sra. Lippman, Clarice vê uns carretéis de linha sobre a mesa e, esvoaçando em torno deles, uma mariposa Acherontia styx. Ela saca o revólver e dá voz de prisão a Gumb, mas este foge pela cozinha, apanha o Colt e desaparece pelo porão. Clarice, de arma em punho, vasculha o porão sombrio, encontra numa banheira uma espécie de múmia (a Sra. Lippman), e enfim encontra Catherine, que grita por socorro enquanto a cadelinha não pára de latir. Clarice continua procurando Gumb, e as luzes se apagam. Ela tateia no escuro enquanto Gumb a espreita por trás de binóculos militares infravermelhos. Ela treme e se encosta à parede. Gumb, na escuridão, quase lhe toca os cabelos. De repente ela ouve o clique do Colt que Gumb engatilha, e, sem ver nada, dispara nessa direção toda a carga de sua Magnum. Um dos tiros atinge a janela, e, pela luz que entra, ela vê Gumb, que agoniza no chão. A polícia chega, e Catherine é libertada, saindo amparada pelos guardas, enrolada num cobertor, e com a cadelinha branca de Gumb no colo. Clarice vem logo atrás. 19 - No Ministério da Justiça, os novos agentes especiais do FBI, entre eles Clarice e Ardelia, recebem seus diplomas. Crawford, modesto, assiste do fundo do corredor. Depois os colegas oferecem uma festa em homenagem a Clarice. Crawford, discreto, diz a ela que não é de festas e que tem de ir embora. Ele a cumprimenta, dizendo com emoção contida que o pai dela se orgulharia do que ela fez. Em seguida eles se despedem. Vemos-lhes as mãos, que se tocam. Clarice é chamada ao telefone. É o Dr. Lecter. Diz que não vai procurá-la, porque “com ela o mundo é mais interessante”, e pede que ela também tenha a fineza de não o procurar. Ela responde: “O senhor sabe que isso eu não posso prometer.” Lecter se despede, dizendo que está esperando um amigo “para o jantar”, e desliga. Clarice chama-o, mas o telefone está mudo. O Dr. Lecter, disfarçado de turista, aparece em algum lugar da África ou do Haiti. De um avião desembarca, todo preocupado com a segurança, o “amigo” que ele espera “para o jantar”: é o Dr. Chilton. Lecter segue-o de longe. 3. O toque de mão Muitos interpretaram o toque de mão entre Lecter e Clarice como sinal de erotismo. Já demonstrei que isto não poderia ser; mas que é, então? Sugiro ao leitor que reveja o filme e repare bem na forma dos gestos. Lecter estende o dedo indicador e toca de leve a mão de Clarice. A tela parece brilhar, o breve instante reverbera para fora do tempo. Procure agora uma cópia da Criação do Mundo de Michelangelo (teto da Capela Sistina) e observe o detalhe em que a mão de Deus toca a de Adão, insuflando no homem recém-criado a vida do Espírito. Não é parecido? O dedo índice corresponde, na quirologia simbólica, a Júpiter, o astro da autoridade sacerdotal. Seu toque assinala a bênção, a marca de uma eleição, a descida de uma influência espiritual iluminante. Tem o mesmo sentido do raio de Zeus, a revelação que fulmina quem foge da verdade e ilumina quem a busca. O toque de mão por entre as grades da cela, no condado de Shelby, precede, justamente, a explosão intuitiva com que Clarice, até então perdida na trama obscura dos indícios falsos, percebe o primeiro clarão da verdade, que a põe na pista certa do criminoso (refiro-me ao momento em que ela examina o mapa, com o auxílio - vejam só! - da Srta. Mapp). Deus cria o homem das trevas do nada e insufla-lhe em seguida, com um toque do dedo índice, a luz da inteligência. Isto o Demônio não pode fazer. Mas pode criar um simulacro, uma cópia em miniatura, montando artificialmente uma trama de obscuridades enigmáticas e deixando o homem debater-se nela, paraem seguida etirá-lo daí co um toque de mão que de repente esclarece tudo. A intuição ordenadora é, mutatis mutandis, uma recriação do mundo. Lecter brinca de Deus, fazendo brotar das trevas a luz na mente de Clarice. O toque do dedo índice é a bênção ritual que coroa o processo iniciático. A heroína não se dá conta do que acaba de acontecer; retirada pelos guardas, ela protesta, diz que Lecter lhe ficou devendo algo. Mas ele sorri, porque sabe que já lhe deu o toque final: logo mais as brumas começarão a se dissipar. Ele macaqueia, é claro. Mas com que classe! 4. A mulher como símbolo da inteligência Caged Heat, um filme anterior de Jonathan Demme que eu desconhecia na época em que redigi a primeira edição deste livro, dá plena confirmação às interpretações que nele ofereci. É um filme francamente ruim, com alguns momentos notáveis. Mas o que interessa, no caso, não é a realização, e sim a proposta temática. No todo e nos detalhes ela é a mesma da história de Clarice Starling: a luta da inteligência humana contra um princípio hostil, diabolicamente racional na consecução de fins irracionais. Aqui também a inteligência é simbolizada por uma mulher, ou melhor, por um grupo de mulheres, as detentas que procuram escapar do tratamento de reprogramação cerebral praticado na prisão por um psiquiatra maldoso - uma antecipação tímida e canhestra, mas significativa, do Dr. Lecter. Mas, se a classe dos psiquiatras parece encarnar para Jonathan Demme a figura mesma da astúcia mal-intencionada, os diretores de prisões personificam a estupidez vaidosa que a devoção a uma moralidade de aparências põe, de maneira mais ou menos involuntária, a serviço do mal: a diretora do presídio de mulheres é o Dr. Chilton avant la lettre. Nela como nele, a fraqueza básica que abre o flanco à ação do demônio é a devassidão oculta sob um véu de honorabilidade. Apenas, as proporções são invertidas: em Chilton o véu é tão transparente que torna cômicos os esforços da personagem para fazer-se de respeitável; ao passo que na diretora a autocensura repressiva éum muro de chumbo, cujo peso chega a torná-la paralítica fisicamente, e por trás do qual os desejos não podem expressar-se senão na linguagem velada dos sonhos. Acrescido ao fato de que a personagem é uma mulher bela e frágil, aquilo termina por fazer dela menos uma caricatura como Chilton do que a ampliação expressionista de uma trágica impotência de humanizar-se. Ela nos inspira raiva e pena - não desprezo. Uma significativa analogia inversa é que, aparecendo aqui como forças em luta exatamente as mesmas classes sociais de O Silêncio dos Inocentes - delinqüentes versus funcionários públicos -, as funções morais estão invertidas, cabendo aos marginais a personificação da normalidade humana e aos servidores da burocracia estatal a encarnação da frieza diabólica. Isso mostra claramente que o fundo ideológico discernido em O Silêncio dos Inocentes não é um elemento essencial, e sim acidental, confirmando o que foi dito no Apêndice I, isto é, que na análise deste filme o ponto de vista ideológico não é o mais frutífero e deve estar subordinado à abordagem simbólica e moral. Comparando os dois filmes, vemos que, se para Jonathan Demme o Estado pode representar, por um lado, a ordem e a segurança que protegem o ser humano dos assaltos da violência demoníaca, por outro lado o cineasta está consciente de que essa ordem e segurança podem incorporar também a frieza maquinal de um engenho demoníaco votado à destruição do humano no homem. Meno male: quem sente a ambigüidade da noção hegeliana do Estado - matriz da liberal-democracia tanto quanto do comunismo e do fascismo - só pode respirar aliviado ao ver como a intuição certeira do artista bem- intencionado é uma espécie de proteção instintiva contra a tentação de enganosos simplismos ideológicos. O que é rigorosamente igual nos dois filmes é a apologia da inteligência humana normal e sã, que, aliada às qualidades morais básicas - lealdade, coragem, ausência de pretensões -, pode vencer tanto a escorregadia dialética do Dr. Lecter quanto a parafernália policial-psiquiátrica do presídio de mulheres. Essa síntese de qualidades cognitivas e ativas recebe o nome tradicional de frónesis, que se traduz por “prudência” ou sabedoria prática. Em ambos os filmes ela é representada por uma mulher (ou um grupo de mulheres) que combate e vence forças diabólicas de ordem tanto “masculina” quanto “feminina”: a astúcia penetrante de Lecter está para o passionalismo macabro de Gumb exatissimamente como a frieza sádica do médico do presídio está para a inveja rancorosa da diretora. A mulher simbolizando a sabedoria: por quê? Porque, ora bolas, ninguém precisa de uma razão especial para repetir um simbolismo universal: a frónesis é a “grandeza da Terra” do I Ching, é Atena, é a “mulher forte” da Bíblia, é Beatriz e Laura, é tudo aquilo, enfim, que as intelectuaizinhas enragées de hoje só conseguirão ser nodia em que a d retor do presí io p der libertar-se da cad ira de rodas da pseudo-raci nalidade arrogante, aceitar o caminho da modéstia leal e tornar-se uma Clarice Starling.