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Guias e Dicas
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Escravos em Marambaia e Bracuí, Teses (TCC) de História do Brasil

Dissertação de Mestrado defendida no PPGH-UniRio

Tipologia: Teses (TCC)

2020

Compartilhado em 24/01/2020

Alix-Gabriel
Alix-Gabriel 🇧🇷

4.8

(5)

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DANIELA PAIVA YABETA DE MORAES
A CAPITAL DO COMENDADOR
A Auditoria Geral da Marinha no julgamento sobre a liberdade dos africanos
apreendidos na Ilha da Marambaia (1851)
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro sob orientação da Professora Dra. Keila
Grinberg
Nov/2009
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Baixe Escravos em Marambaia e Bracuí e outras Teses (TCC) em PDF para História do Brasil, somente na Docsity!

DANIELA PAIVA YABETA DE MORAES

A CAPITAL DO COMENDADOR

A Auditoria Geral da Marinha no julgamento sobre a liberdade dos africanos

apreendidos na Ilha da Marambaia (1851)

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro sob orientação da Professora Dra. Keila Grinberg

Nov/

RESUMO

A lei 581 de 04 de setembro de 1850 alterou a tramitação dos processos judiciais referente ao tráfico de africanos para o Brasil. As novas atribuições previam que o apresamento das embarcações suspeitas e a liberdade dos escravos apreendidos, seriam julgados em primeira instância por um tribunal especial – a Auditoria Geral de Marinha – e em segunda instância pelo Conselho de Estado. Através desta determinação, o tráfico de escravos foi juridicamente equiparado à pirataria e os traficantes ficaram sujeitos à prisão e pagamento das despesas de reexportação dos africanos apreendidos que fossem eventualmente embarcados de volta à África. Neste trabalho analiso dois processos julgados pela Auditoria Geral da Marinha (1851), referente à denúncia de desembarque clandestino e conseqüente apreensão de africanos na Ilha da Marambaia, de propriedade do comendador Joaquim José de Souza Breves, poderoso cafeicultor do sul fluminense do Rio de Janeiro.

ABSTRACT

The law 581 of September 4th 1850 changed the course of legal proceedings relating to the Africans' traffic for Brazil. The new attributions were predicting that the apprehension of vessels and the freedom of slaves seized, would be tried at first instance by a special court - the General Auditing of Navy - and in the second urges renewed by the Council of State. With this determination, the slave trade was legally equated piracy and the traffickers were subject to the prison and payment of the expenses of re-exportation of the apprehended Africans who were eventually boarding of turn to Africa. In this work I analyse three processes set up in the Auditing of Navy (1850/1851) referent to the denunciation of clandestine landing and consequent apprehension of approximately 947 Africans in Marambaia's Island, owned by Commander Joaquim José de Souza Breves, powerful coffee-growner in the south of Rio de Janeiro.

Parga acabou embarcando comigo rumo a Marambaia do comendador Breves. Como é muito difícil deixar o IFCS, Marcos Bretas foi mais uma vez meu professor. Preciso agradecer a galera da Sexta Rock de Vista Alegre por ter suportado minha ausência nos últimos tempos. Acabou! Quero correr pro meu porto seguro, me esconder do mundo e matar a saudade que eu sinto de vocês. Quero cantar bem alto, andar descalça e amanhecer descabelada. Diogo, pega o som com o Darlon e avisa ao Pedro pra chegar cedo. Quero ver meu tio Antorildo de óculos escuro, o Gabriel dançando, meu tio Armando cantando, Nelsinho chorando e os vizinhos reclamando. Quero rock n´roll all night long! Não tenho palavras suficientes para agradecer aos meus amigos e amigas. Carlos Alexandre “Fernandinho”, meu parceiro desde a graduação, cuidou para que eu não saísse mais dos trilhos como de costume. Minha irmã Nádia Bomfim me disse que “oju obá ia lá e via” e verá muito mais! Rosália, “que nunca deixa a gente no sereno”, se encarregou das inúmeras cópias e encadernações. Com Débora Monteiro, Janaína Wu, Amanda Teles e Aline Soares eu divido diariamente minhas conquistas e inquietações. Sem a presença delas me incentivando, nada disso teria a menor graça. Muito obrigada pela paciência, respeito e compreensão. Nesse período, muita coisa mudou na vida de cada uma de nós, mas garanto que a melhor surpresa foi Amanda ter voltado de Campinas com o Vicente no ventre. Assim que o pequeno nasceu se deparou com textos, livros e fontes de pesquisa das “tias” e da própria mãe, esse eu duvido que seja historiador! Michelli chegou no meio dessas mudanças, passado o susto, hoje senta nas almofadas da sala e conta suas próprias histórias. Lúcia e Meri me inspiram com tanta força e coragem. Joana, Luciana, Fernandinha, Flávia Regina e Luiz Felipe mesmo de longe, estiveram presentes me cobrindo com todo o amor desse mundo. Minha família participou da seguinte forma: meu tio Alvinho financiou parte desse trabalho, comprou o laptop, aguentou minhas crises e sempre disse que eu precisava ficar calma. Minhas tias Amínia e Angélica, me deram vários puxões de orelha para não relaxar com o visual mesmo escrevendo uma dissertação e passando dias longe do espelho e comendo bobagens. Meu tio Ailton foi o único que leu parte de um texto meu. Meu pai diz que eu estudo o caso brasileiro do “Amistad”, como o filme do Spilberg, ao lado da minha mãe (minha Vilminha), torce para que dê tudo certo nesse caminho estranho que eu escolhi pra minha vida. Muitas vezes, sentia dentro do meu coração o de minha mãe apertado de

tanta preocupação comigo e corria pro telefone só pra dizer: Está tudo bem Vilminha, cuide das meninas pra mim, vai dá tudo certo. Já as minhas avós Joana (meu brilhante) e Olga ( abuelita ), são as grandes responsáveis por encherem a minha vida de histórias; por isso, esse trabalho é dedicado a elas, meus maiores tesouros. Na reta final, o Álvaro trouxe samba pro meu rock n´roll. Nessa mistura de ritmos, seguimos inventando a nossa trilha sonora. Por esse, e por tantos outros motivos, pertencem a ele os meus melhores e maiores sorrisos. Agora é hora de tocar outra música, essa já acabou.

INTRODUÇÃO

No dia 25 de fevereiro de 2005, o ex-prefeito da cidade do Rio de Janeiro César Maia, publicou no jornal O Globo o artigo intitulado “Crime ambiental e erro histórico”^1 , no qual questionava o reconhecimento dos ilhéus da Marambaia como remanescentes de quilombo^2. O artigo causou estranheza e preocupação aos moradores da ilha e todos aqueles que acompanham o drama da comunidade em busca da titulação de seu território. A Associação dos Remanescentes de Quilombo da Marambaia (Arquimar), respondeu ao ex- prefeito em uma carta publicada no informativo Territórios Negros^3 na qual um trecho em especial merece destaque:

Senhor prefeito, este momento da sua visita à Ilha nos fez lembrar mais uma vez quem somos e de onde viemos: somos descendentes diretos dos escravos que vieram nos porões dos barcos do grande traficante e fazendeiro Breves aqui para a Ilha da Marambaia. Somos quilombolas, porque resistimos àquelas violências e continuaremos resistindo às atuais.

Nesse mesmo ano de 2005 eu iniciei o estágio no Programa Egbé^4 , da entidade ecumênica de serviço sem fins lucrativos KOINONIA. O coordenador do Programa na época era o antropólogo José Maurício Arruti, editor do informativo Territórios Negros e responsável pela elaboração do laudo antropológico da comunidade da Ilha da Marambaia, entregue a Fundação Cultural Palmares em dezembro de 2003. Era meu primeiro contato com o processo de reconhecimento e titulação de uma comunidade remanescente de quilombo e o que mais me chamou atenção, no caso da Marambaia, foi a relação histórica

(^1) O artigo pode ser acessado no Dossiê Marambaia, localizado no portal Observatório Quilombola (www.koinonia.org.br/oq). Consultado em 20/04/2009. 2 Sobre os aspectos jurídicos, sociológicos e antropológicos envolvidos na definição constitucional de “remanescente de quilombo”, ver: ARRUTI, J. M. P. A. Quilombos. In: Osmundo Pinho; Lívio Sansone. (Org.). Raça Novas Perspectivas Antropológicas. 1 ed. Salvador: EDUFBA, 2008. 3 A carta foi publicada no informativo Territórios Negros número 17/18 - (jan/abr) de 2005. Pode ser acessada na seção de periódicos do site de KOINONIA (http://www.koinonia.org.br/comunicacao-periodicos_TN.asp). Consultado em 20/04/2009. 4 Para saber mais sobre o Programa consultar site de KOINONIA: www.koinonia.org.br.

da ilha com as últimas décadas do tráfico atlântico de africanos (1831-1850) e como essa memória^5 se mantinha forte na construção da identidade^6 quilombola, conforme mostrado na carta resposta ao ex-prefeito. A Ilha da Marambaia fica no litoral sul fluminense do Rio de Janeiro. O que convencionamos chamar de “ilha” é na verdade a ponta de uma restinga e encontra-se próxima à região da Ilha Grande e à baía de Mangaratiba. A outra extremidade localiza-se próxima a Guaratiba, sendo a parte voltada para o continente, banhada pela baía de Sepetiba. Em 1847 a Marambaia foi comprada de José Guedes Pinto pelo comendador Joaquim José de Souza Breves, este último, citado por José Murilo de Carvalho como poderoso cafeicultor e renitente contrabandista de escravos do sul fluminense do Rio de Janeiro^7. Com a morte de Breves em 1889, sua viúva tentou incentivar a meação das terras aos libertos que viviam na ilha^8 , mas em 1891, acabou vendendo a Marambaia à Companhia Promotora de Indústria e Melhoramentos. Em liquidação forçada, a Companhia transferiu suas terras em 1896 ao Banco da República do Brasil. Mais tarde, ao passar por uma grave crise econômica, o Banco fez um acordo com a União sobre o repasse de seus bens e propriedades no sentido de diminuir seus débitos, e, em 1905, esta adquiriu definitivamente os direitos sobre a ilha. Três anos mais tarde, em 1908, a Marinha do Brasil instalou na Marambaia a Escola de Aprendiz de Marinheiro do Estado do Rio de Janeiro, que só funcionou até 1910, sendo depois transferida para a cidade de Campos. Em 1939, (^5) De acordo com Patrick Hutton (1993), o interesse dos historiadores pela memória foi em grande medida inspirado pela historiografia francesa, sobretudo a história das mentalidades coletivas que emergiu na década de 1960. Ver: FERREIRA, M. M. História, tempo presente e história oral. Topoi (Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, 2002, v. 1, n. 5, p. 320. 6 A organização da memória em função das preocupações pessoais e políticas do momento mostram que a memória é um fenômeno construído social e individualmente. Quando se trata da memória herdada, podemos também dizer que há uma ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de identidade. Aqui o sentimento de identidade está sendo visto como a imagem que uma pessoa adquire ao longo de sua vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida da maneira como quer se percebida pelos outros. Entretanto, ninguém pode construir uma auto-imagem isenta de mudança, de negociação, de transformação em função dos “outros”. A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade e admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros. Vale dizer também que memória e identidade podem perfeitamente serem negociadas. Ver: POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. IN: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol.5, n. 10: 1992, p.200-212. 7 CARVALHO, José Murilo. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro das sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p.254. 8 FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em nome do rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Garamond, 1999. p. 180.

construção de banheiros ou quatros, e principalmente construção de casas novas, em geral anexadas às existentes. Esses processos foram distribuídos por sete Varas Federais diferentes e cinco deles com os réus sem advogados. Uma estratégia que, de acordo com Arruti, visava evitar os custos judiciais e políticos de ter que expulsar toda a comunidade de uma só vez:

A leitura dos processos, porém, não deixa dúvidas sobre tratar-se de uma “ação que incide sobre uma coletividade”: o mesmo autor, o mesmo objeto e as mesmas argumentações, tendo por réus pessoas que vivem sob as mesmas condições, fazendo parte de um grupo social estreitamente tecido por relações de parentesco e de memória. A natureza coletiva desse conflito chegou a ser admitida explicitamente quando, em função das pressões iniciadas pela Pastoral Rural da Diocese de Itaguaí, encabeçadas pelo Padre Galdino, que elaborou o primeiro dossiê sobre o caso, entregue à imprensa e às autoridades, o Comando Militar da Marinha propôs uma negociação coletiva. A sua proposta era que os moradores aceitassem, ou serem todos transferidos para um condomínio em Itacuruçá, que ganharia o mesmo nome da Ilha, ou serem transferidos para um lado só da Ilha. Como os moradores não aceitaram os termos do acordo, as ações individuais tiveram continuidade e, sem apoio jurídico adequado, aqueles que iam perdendo as ações, eram progressivamente expulsos.^12

Sem apoio jurídico e na sua maior parte não alfabetizados, os citados nesses processos foram progressivamente expulsos da ilha. Apesar desse quadro arbitrário, depois do ano de 2001, a comunidade descobriu ter a seu favor o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988, que garante aos remanescentes das comunidades quilombolas que estejam ocupando suas terras, sua propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. Além da Constituição, temos também a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que vale como lei no Brasil. Aprovada pela OIT em 1989 e ratificada no Brasil pelo decreto 5.051 de 19 de abril de 2004.^13. A Convenção 169 reconhece aos povos indígenas e tribais – entendido como grupos cujas condições sociais, culturais e econômicas distinguem-nos de outros segmentos da população

(^12) O dossiê organizado pela Diocese de Itaguaí foi elaborado em 1998. Ver: ARRUTI, José Maurício. Percurso histórico dos Ilhéus da Marambaia (1856-2003). In: Relatório técnico-científico sobre a comunidade remanescente de quilombos da Ilha da Marambaia, município de Mangaratiba (RJ)/ Coordenação José Maurício Arruti – Rio de Janeiro: KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço. Fundação Cultural Palmares, 2003. p.150. 13 Até 2007 a Convenção 169 havia sido ratificada por 18 países. Ao ratificarem, comprometem-se a adequar a sua legislação e práticas nacionais aos termos e disposições da Convenção, além de desenvolver ações com vista à sua aplicação integral. No Brasil, o decreto 5.051 de 19 de abril de 2004 ratifica a Convenção Internacional 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT – reconhecendo o direito ao auto-reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos.

tradicional -, o direito a posse e a propriedade de suas terras. Utilizando desses recursos legais, foi movida uma Ação Civil Pública pelo Ministério Público Federal do Rio de Janeiro que conseguiu interromper judicialmente tais expulsões e obrigar ao governo federal produzir o laudo antropológico de reconhecimento da comunidade como remanescente de quilombos. Apesar da realização do laudo e do Relatório Técnico do Incra, com base neste laudo, este relatório nunca pode ser publicado no Diário Oficial da União e a titulação do território ainda está ameaçada por articulações políticas da Marinha e por uma forte campanha anti-quilombola na imprensa^14. Soma-se a isto a pressão da bancada ruralista do Congresso Nacional em favor da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra o decreto 4887 de 21 de novembro de 200315 , que está para ser votada no Supremo Tribunal Federal. Mas voltando aos processos de reintegração de posse, um em especial merece nossa atenção. Trata-se do caso de Dona Zenilda^16 , narrado por Arruti no laudo antropológico da seguinte forma 17 :

Finalmente, chegamos ao caso de Dona Zenilda. Ele merece atenção primeiro porque, sendo mais uma ação movida contra um réu sem advogado instituído, nesse caso, porém, dona Zenilda apresentou-se pessoalmente diante da justiça para defender seu direito à casa de sua família na Ilha, tendo conseguido, em uma primeira instância, convencer de suas razões a mesma juíza que, tendo atuado no caso de dona Sebastiana (mesmo sendo esta assistida por uma advogada), lhe negou o mesmo direito. Diante da juíza, dona Zenilda argumentou ter adquirido sua casa “por herança de seus antepassados escravos”. O advogado nomeado em audiência pela Juíza para dona Zenilda havia pautado sua defesa na declaração da União, que argumentava ter retomado, em 1971, o (^14) Ver dossiê Anti-Quilombola no site do Observatório Quilombola: www.koinonia.org.br/oq - acessado em 20/04/2009. 15 Decreto de autoria do presidente Lula que revogou o anterior (decreto 3.912 de 10 de setembro de 2001) e extinguiu a exigência de comprovação de ocupação no período de 1888 a 1988, transferindo a competência para a realização dos procedimentos administrativos de regularização fundiária para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA e incluindo o critério de autodenominação para reconhecimento como remanescente de quilombo. 16 Dona Zenilda é bisneta do “velho Gustavo”, lembrado como “jongueiro forte” da Marambaia. Ele tinha um enorme tambor feito diretamente de um tronco de árvore que carregava para todo lado da ilha, sempre que era convidado para realizar ou participar de uma roda. O jongo na Marambaia chegou a ser apresentado a Levy Miranda em 1942, mas depois disso foi enfraquecendo e ninguém substituiu o “velho Gustavo”. Ver: ARRUTI, José Maurício. Percurso histórico dos Ilhéus da Marambaia (1856-2003). In: Relatório técnico- científico sobre a comunidade remanescente de quilombos da Ilha da Marambaia, município de Mangaratiba (RJ)/ Coordenação José Maurício Arruti – Rio de Janeiro: KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço. Fundação Cultural Palmares, 2003. p. 187. 17 Todas as citações referentes ao caso de Dona Zenilda foram retiradas do laudo antropológico da comunidade, ver: ARRUTI, José Maurício. Percurso histórico dos Ilhéus da Marambaia (1856-2003). In: Relatório técnico-científico sobre a comunidade remanescente de quilombos da Ilha da Marambaia, município de Mangaratiba (RJ)/ Coordenação José Maurício Arruti – Rio de Janeiro: KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço. Fundação Cultural Palmares, 2003. p. 149-154.

considera que se houvesse uma comunidade quilombola estabelecida no local, “certamente teria sido encontrada por ocasião destas batidas” 18. O argumento utilizado pelo pesquisador vai por água a baixo quando recorremos ao livro História de Quilombolas^19 , de Flávio dos Santos Gomes, sobre a possibilidade de quilombos na ilha. Nele, encontramos a informação de que em 1870, no interior da Marambaia, havia se aquilombado um grupo de aproximadamente dez escravos. O delegado João Dias Cardoso, “cumprido a rotina policial, realizou expedições punitivas ao local, sem, contudo conseguir a captura dos envolvidos”. Esses escravos aquilombaram-se no interior da propriedade de seu próprio senhor, o comendador Breves, porque não queriam ser transferidos para outras fazendas. Segundo informações do delegado, os aquilombados encontravam solidariedade e “auxílio nos parceiros da fazenda e seus parentes consentindo que eles pernoitem nas mesmas senzalas, embrenhando-se durante o dia pelas matas”. Todas as tentativas de captura, inclusive as promovidas pelo próprio Breves, foram frustradas. O delegado foi atrás dos aquilombados e não os encontrou quem dirá o chefe de polícia, que nem atrás de aquilombados estava e sim de desembarcados recentemente. Através deste relatório verificamos que o episódio da apreensão dos 199 africanos pelo chefe de polícia não havia sido devidamente analisado no laudo antropológico da comunidade feito em 2003. O coordenador do Programa Egbé solicitou, então, que eu fizesse um novo levantamento de fontes relacionadas à ilha e ao seu proprietário, o comendador Breves. A pesquisa gerou um novo relatório com documentos encontrados no Arquivo Nacional, no Arquivo do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria de Patrimônio da União, Arquivo Histórico do Museu Nacional e Arquivo do Itamaraty. Entre todas novas fontes pesquisadas, me interessei especialmente por esse processo da Auditoria Geral da Marinha por um motivo bem simples: eu estava acostumada com o embate atual entre a comunidade remanescente de quilombo da Marambaia versus Marinha ocupando as páginas dos jornais de grande circulação, como o artigo do ex-prefeito já citado. Na Auditoria percebi novamente o embate Marambaia/Marinha, ocupando os

(^18) Relatório de Pesquisa do Iphan sobre a possível existência de quilombo na praia da Armação, Ilha da Marambaia. Elaborado por Joaquim Alcides Ribeiro em 09 de julho de 1997. 19 GOMES, F.S. Histórias de Quilombolas. Mocambos e Comunidades de Senzalas no Rio de Janeiro – séc XIX – Edição Revista e Ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.286-287.

jornais da época anexados ao processo, só que nesse período, a grande preocupação era os desembarques clandestinos de africanos nas terras do comendador Breves. No Arquivo Nacional encontrei toda a relação dos processos referente à atuação da Auditoria Geral da Marinha. Entre eles, dois referem-se à apreensão de africanos na Ilha da Marambaia. Isso significa que além dos 199 aprendidos pelo chefe de polícia, que não se chamava Hermenegildo José Gonçalves e sim Bernardo Augusto Nascente de Azambuja, apresentados no relatório do Iphan, encontrei um segundo processo que tratava da apreensão de um patacho encalhado na ilha com mais de 450 africanos. Mas o que motivava essas apreensões? Pressionado pelo Inglaterra, que desde 1807 havia abolido o comércio de escravos em suas colônias, o Brasil proibiu pela primeira vez o tráfico de africanos através da lei de 07 de novembro de 1831. Entretanto, a determinação não foi cumprida com eficiência e o volume dos desembarcados chegou a aumentar de intensidade nas décadas seguintes^20. Nas palavras de Martha Abreu, “na verdade, os esforços foram poucos e insuficientes para conter o contrabando, que tinha apoio nas populações locais e encontrava fácil mercado, já que a economia cafeeira se expandia e demandava braços para o trabalho” 21. Em setembro de 1850, o governo imperial, chefiado pelo Gabinete Conservador, aprovou na Câmara e no Senado uma nova lei antitráfico. Através desta determinação, a tramitação dos processos judiciais referente ao comércio de africanos para o Brasil foi coloca à jurisdição da Auditoria Geral da Marinha em primeira instância e em segunda instancia ao Conselho de Estado. As apreensões feitas na Marambaia e encaminhadas a Auditoria não foram as primeiras muito menos as últimas envolvendo “crime de contrabando de africanos livres”. Em dezembro de 1850, o iate Jovem Maria havia sido apresado na altura da Ilha Grande pelo vapor de guerra Urânia com 291 africanos suspeitos de serem recém importados. Anos depois, em 1852, o caso do desembarque no Bracuí, na freguesia da Ribeira, próximo a cidade de Angra dos Reis, também levou as autoridades em busca dos cerca de 500 africanos originários de Quelimane e Moçambique. Estes casos nos ajudam a ter uma idéia

(^20) RODRIGUES, Jaime. O infame comércio – Propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Editora da UNICAMP/ CECULT, 2000. p.108. 21 ABREU, Martha. O caso Bracuhy. In: Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro. Toopbooks,

  1. p.168.

e da legislação que levou à extinção do comércio negreiro: a pertinência das análises que afirmam a pressão britânica como fator determinante para o fim do comércio; a gradualidade da abolição do trabalho escravo por meio das etapas definidas como leis de emancipação, e a participação de escravos, autoridades governamentais e homens livres e pobres no período final do tráfico para o Brasil, particularmente no contrabando – para combatê-lo ou para auxiliá-lo^24. E mais tarde (2002), analisou as complexas redes de relações que concretizaram as atividades negreiras por meio de acompanhamento de figuras sociais nelas envolvidas: capitães dos navios e suas equipagens, sertanejos, colonos, pombeiros autoridades metropolitanas, sobas, africanos, entre outras^25. Quanto ao tráfico ilegal na Marambaia, apesar de diversos autores se referirem a ilha como o porto clandestino do comendador Joaquim Breves para o tráfico de escravos, não encontramos nenhum estudo que tratasse do assunto com especificidade. Sobre desembarques de africanos no sul fluminense da província do Rio de Janeiro, o caso que mais se destaca sem dúvida é o de Bracuí, tão bem analisado por Martha Abreu^26. Tudo começou com uma denúncia feita pelo delegado de polícia de Angra dos Reis em dezembro de 1852, ao então Ministro dos Negócios da Justiça, Ildefonso de Sousa Ramos, de que no dia 11 do mesmo mês o barco americano Camargo havia desembarcado em terras da Fazenda de Santa Rita, propriedade do comendador José Joaquim de Souza Breves, irmão mais velho do Breves da Marambaia, cerca de 500 africanos para serem distribuídos serra acima pelos ricos vales do café. Manoel de Aguiar Vallim, dono da Fazenda Resgate e Joaquim José de Souza Breves, dono da Marambaia, foram um dos indiciados pelo crime de importação de africanos livres, de acordo com o parágrafo 3º do artigo 3º da lei de 1831, que considerava como importadores “todos interessados na negociação, e todos que cientemente forneceram fundos, ou por qualquer motivo deram ajuda, a favor, auxiliando o desembarque, ou consentindo-o nas suas terras”. Apesar da presença de praças do corpo de polícia da Corte comandada pelo Juiz de Direito Substituto da Comarca de Guaratinguetá, Antonio Barbosa Gomes Nogueira, percorrendo o município

(^24) RODRIGUES, Jaime. O infame comércio – Propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Editora da UNICAMP/ CECULT, 2000. 25 RODRIGUES, Jaime. De Costa a Costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860).São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 26 ABREU, Martha. O caso Bracuhy. In: Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro. Toopbooks,

de Bananal para realizar busca de “africanos livres”, o que evidencia para Martha Abreu que o governo não estava muito disposto a deixa a execução da lei com as autoridades locais, esses autos não foram encaminhados ao tribunal da Auditoria Geral da Marinha, conforme determinava a legislação de 1850. Breves (da Marambaia) foi levado a júri em Angra dos Reis e absolvido, Vallim foi julgado pelo Presidente de Província de São Paulo, Fernandes Fonseca, e também absolvido, enquanto os 68 africanos resgatados em Bananal

  • um número infinitamente menor se compararmos com os 756 resgatados na Marambaia - aguardavam na Casa de Correção da Corte suas cartas de liberdade que foram autorizadas pelo Ministro da Justiça.e tornaram-se “africanos livres”. Mas até que ponto eles puderam usufruir dessa liberdade? De acordo com estudos realizados por Beatriz Mammigonian, a categoria legal de “africanos livres” tem origem nos tratados bilaterais assinados por Portugal com a Grã- Bretanha para a abolição do tráfico de escravos no início do século XIX. No Brasil os “africanos livres” possuíam status jurídico semelhante ao de pessoas livres sob tutela e submetidas a trabalho compulsório e partilhavam essa condição com os grupos emancipados nos domínios coloniais britânicos, espanhóis e holandeses. Com base nos acordos bilatérias de 1817 e 1826, na lei de 1831 e na lei de 1850, foram emancipados aproximadamente 11 mil africanos no Brasil, incluindo os julgados pelo tribunal da Auditoria Geral da Marinha. Mas, ao contrário do que determinava a lei de 1831, eles nunca foram enviados de volta à África. Esses homens, mulheres e crianças foram distribuídos entre concessionários particulares e instituições públicas para servir por um período de quatorze anos como “criados” ou “trabalhadores livres” e tratados pelo governo imperial como compondo uma categoria especial, distinta dos escravos e libertos^27. Neste rápido apanhado historiográfico percebemos que a história social cada vez mais oferece contribuições importantes e inovadoras no que se refere ao tráfico de africanos para Brasil, a análise dos escravos como sujeitos de sua própria história e sobre o destino daqueles que, utilizando-se de diferentes estratégias ou da própria legislação, acabaram conquistaram a tão sonhada liberdade. Apesar de toda essa variedade, poucos abordam o tema do tráfico de escravos sobre o prisma da história das instituições. Por isso, nesse trabalho me interesso em como a Auditoria Geral da Marinha vai atuar como instituição (^27) MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. To be a Liberated African in Brazil: Labour and Citizenship in the nineteenth century. University of Waterloo, Ontario, Canada, 2002.

especulação imobiliária, se organizaram como remanescentes de quilombo e lutam, assim como os ilhéus da Marambaia, pela titulação de seu território de acordo com o artigo 68 da Constituição Federal. Quanto ao caso da Marambaia, o que procuramos mostrar é o movimento circular da pesquisa. Tudo começou com um trabalho engajado, transformou-se numa produção acadêmica gerando conhecimento, para mais uma vez, ser incorporado na reflexão política engajada. Sobre o ponto de vista factual, a Marinha argumentava que após 1850, com o fim do tráfico, teriam cessado os desembarques de africanos na Marambaia, ignorando inclusive a atuação de seu próprio tribunal. Sob o ponto de vista político metodológico, o trabalho prioriza a atuação dos sujeitos históricos, movimento análogo ao que o laudo antropológico realiza ao ouvir os quilombolas da ilha, que não foram levados em consideração no relatório do Iphan nem no dossiê organizado pela Diocese de Itaguaí em 1998, ainda que este último tivesse a intenção de defendê-los do autoritarismo exercido pelos militares. Nesses dois casos, há a evidência de uma comunidade historicamente silenciada.

CAPITULO I - OS PROCESSOS

O caminho quilombola em busca da titulação de seu território na Ilha da Marambaia, sustentado pelo artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988, acabou nos remetendo, para uma questão além do debate político e antropológico sobre o tema.

Nosso interesse passou a ser o julgamento em primeira instância, pela Auditoria Geral da Marinha, sobre a liberdade dos africanos apreendidos na ilha pelo chefe de polícia^29 interino da Corte, Bernardo Augusto Nascente de Azambuja, e pelo juiz municipal e delegado^30 de Mangaratiba, João José de Andrade Pinto, em fevereiro de 1851. Para isso é necessário entender qual a legislação que determinava que esses dois processos fossem encaminhados para julgamento nesse tribunal. Porém, para chegar até o momento em que a Auditoria da Marinha recebe mais essa atribuição, precisamos voltar ainda mais no tempo e relembrar os tratados internacionais firmado entre Inglaterra e Portugal, e posteriormente, Inglaterra e Brasil, assim como as leis de proibição ao tráfico de africanos promulgadas no Brasil em 1831 e 1850, por tantas vezes já analisadas por diversos historiadores^31.

(^29) Chefe de polícia (1850): autoridade encarregada do gerenciamento e execução do policiamento. Deveria haver no município da Corte e nas províncias – um em cada uma das áreas-, escolhidos entre os desembargadores e os juízes de direito e nomeados pelo Imperador. Os chefes de polícia das províncias poderiam ter um delegado, em cada termo, e tantos subdelegados quanto julgassem necessários nos distritos em que achassem conveniente criar subdelegacias, desde que o presidente da província acatasse a sua decisão. Ver: FARIA, Regina Helena Martins. Em nome da ordem: a constituição de aparatos policiais no universo luso-brasileiro (séculos XVIII e XIX). Tese UFPE: Recife, 2007. p.87. 30 A legislação (Regulamento número 120 de 22 de janeiro de 1842) estabelecia que a escolha dos delegados fosse feita entre os juízes municipais e a dos subdelegados, entre os juízes de paz. Em ambos os casos, também entre os bacharéis formados, não havia impedimento para que fossem, ao mesmo tempo, juízes municipais e delegados ou juízes de paz e subdelegados. Mas caso não houvesse pessoas com essas qualificações, podiam ser indicados quaisquer cidadão que fossem eleitores “homens de reconhecida probidade e inteligência” e que residissem no termo ou no distrito onde iam servir. Ver: FARIA, Regina Helena Martins. Em nome da ordem: a constituição de aparatos policiais no universo luso-brasileiro (séculos XVIII e XIX). Tese UFPE: Recife, 2007. p.87-88. 31 BETHELL, Leslie. A abolição do comércio brasileiro de escravos. Tradução de Luiz A.P. Souto Maior. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. RODRIGUES, Jaime. O infame comércio – Propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Editora da UNICAMP/ CECULT, 2000. CARVALHO, José Murilo. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro das