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Guias e Dicas
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Leituras da obra de Al Berto, Esquemas de Poesia

Nada disto teria sido possível sem o apoio incondicional da irmã do poeta Al. Berto, Cristina Pidwell Tavares. Nada disto teria tido a mesma luz sem o olhar ...

Tipologia: Esquemas

2023

Compartilhado em 17/01/2023

Leila_89
Leila_89 🇵🇹

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Baixe Leituras da obra de Al Berto e outras Esquemas em PDF para Poesia, somente na Docsity! UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE LITERATURAS ROMÂNICAS A Metafísica do Medo: Leituras da obra de Al Berto Golgona Luminita Anghel 2008 2 5 Para aquele que não me acompanha 6 7 Às vezes... quando acordava era porque tínhamos chegado Al Berto 10 11 Siglário Obras de Gilles Deleuze PS – Marcel Proust et les Signes, Paris : Minuit, 1964 (édition augmentée, 1970 et 1973). N – Nietzsche, Paris : P.U.F., 1965. B – Le Bergsonisme, Paris : P.U.F., 1966. PSM – Présentation de Sacher-Masoch, Paris : Minuit, 1967. DR – Différence et Répétition, Paris : P.U.F., 1968. LS – Logique du Sens, Paris : Minuit, 1969. FB – Francis Bacon - Logique de la Sensation, Paris : La Différence, 1981, 2 volumes. IM – Cinéma 1. L’Image – Mouvement, Paris : Minuit, 1983. IT – Cinéma 2. L’Image – Temps, Paris : Minuit, 1985. F – Foucault, Paris : Minuit, 1986. PP – Pourparlers, Paris : Minuit, 1990. CC – Critique et Clinique, Paris : Minuit, 1993. DRF – Deux Régimes de Fous. Textes et Entretiens 1975-1995 (édition de David Lapoujade), Paris : Minuit, 2003. Em colaboração com Félix Guattari AE – L’Anti-Oedipe, Paris : Minuit, 1972. K – Kafka. Pour une Littérature Mineure, Paris : Minuit, 1975. MP – Mille Plateaux, Paris : Minuit, 1980. QPh – Qu’est-ce que la Philosophie ?, Paris : Minuit, 1991. Em colaboração com Claire Parnet D – Dialogues, Paris: Flammarion, 1977. 12 Conceitos – chave: Metafísica, Medo, Plano de Imanência, Corpo-sem-órgaõs, Aion, Cronos, Fantasma, Devir, Fora, Personagem Conceptual, Subjectividade larvar, Biografia, Estilo Des concepts-clé : Métaphysique, Peur, Plan d’immanence, Corps-sans-organes, Aion, Cronos, Phantasme, Devenir, Dehors, Personnage Conceptuel, Subjectivité larvaire, Biographie, Style 15 Résumé Les grands thèmes reçus des grecs sont convoqués par Al Berto sur l’horizon de la perception de l’immanence, la perception des choses comme inscrites dans une matière unique. La méditation sur l’espace, le mouvement des corps ou la méditation sur les temps, les devenirs indéterminés des choses dans le crépuscule, ou, en plus, les expériences en négatif de l’être, les abîmes d’un corps en disparition à partir de son propre intérieur – tout est enregistré sur le plan de l’univocité de l’être. Cette perception de l’immanence, dans sa poésie, la forme de l’expérience d’un devenir-texte du corps, d’un devenir-ange que convoque avec son silence le devenir- imperceptible. C’est à travers de l’espace et du temps que l’ouvre d’Al Berto se laisse penser. Mais il y en a beaucoup d’autres résonances de cette métaphysique de l’immanence qui puissent être découvertes dans O Medo et O Anjo Mudo. La structure des affects y est pensée dès l’origine dans le registre de l’immanence. À la différence de Heidegger et de sa distinction entre l’angoisse et la peur – distinction qui renvoie à une différence entre l’être affecté par le néant, par quelque chose qui n’existe pas, par quelque chose qui n’appartient à la sphère de la perception, et l’être victime de la représentation terrifiante de quelque chose qui nous apparaît comme hostile et menaçant – Al Berto, tout comme Deleuze, rends matériel, immanent au monde des corps et des choses, la passion, la structure de la passivité, le pouvoir d’être affecté. Le mode essentiel d’être dans le monde n’est pas l’angoisse, mais la peur, cette promiscuité permanente entre notre vie et le monde qui nous touche, nous envahit, ou, simplement, nous abandonne. Devant le néant on ne sent pas de l’angoisse mais de la peur, parce que le néant désigne, pour Al Berto, la condition, non de quelque chose qui se donne dans son non apparence, mais celle-là de l’absence, de la disparition. 16 17 Índice Começar ao meio 21 Primeira Metamorfose: O grau zero da crítica 35 Segunda Metamorfose: Uma mutação etopoética 99 Al Berto Oral – 101, Da figura à Boca – 125, Entre a literatura e a vida – 145. Terceira Metamorfose: Eis-me acordado muito tempo depois de mim 155 Instruções de Uso – 163, Biografia à maneira de Diógenes – 165, “o dragão em celulóide da infância” – 169, Pintor do Não – 179, História de um desencontro intermitente – 197, SEJA BREVE STOP LEIA-NOS STOP – 201, As obsessões são eternas – 215, “Os dias sem ninguém” – 219, Voto Sampaio – 231, Top 3 – 233, “o que vejo já não se pode cantar” – 235, Lusa, 14 de Junho – 243, A vida depois da vida – 245. Quarta Metamorfose: A Metafísica do Medo 253 De incipit – 255, Um conglomerado de tempo – 259, O tempo como espera – 281, Um tempo a traços de batom – 293, Um tempo flutuante que não nos pertence – 303, O tempo é uma criança que brinca – 323, O tempo da ce(n)sura – 335, O tempo do “entre” – 354, Cronos decide morrer – 363. 20 21 Começar no meio Les choses ne commencent à vivre qu’au milieu. Gilles Deleuze “Depois de uma noite agitada, um escaravelho terrível acorda metamorfoseado no autor destas linhas”. Começaríamos assim, invertendo a frase inicial da Metamorfose de Kafka para dar a sensação de originalidade ou, simplesmente, para incendiar um ponto de exclamação à luz do qual se torne possível fazer viver a poesia de Al Berto, sem ter que justificar a escolha da porta de entrada no seu medo lunário, nem nomear o caminho que nos levou até lá. Porque talvez o segredo resida aí, em “faire exister et ne pas juger”1. Fazer existir sem indicar as coordenadas do princípio, do desenvolvimento e do fim, uma vez que “les choses ne commencent à vivre qu’au milieu.”2 E o melhor nestas condições é ir avançando pela paisagem adentro e construir o porquê de uma leitura da poesia de Al Berto, uma leitura que se quer diferente das poucas e tímidas leituras que se têm feito da poesia “de la violence du monde et de l’insuportable réalité”3. Pintor, livreiro, tradutor, “un des grandes poètes portugais du XXe siècle, un des plus populaires aussi” – tal como o caracteriza Michel Chandeigne, o tradutor e editor de quatro dos cinco volumes publicados em francês (Trois nouvelles de la m’emoire des Indes, L’Escampette, 2001; Jardim d’incendie, L’Escampette, 2000; Lumineux noyé, L’Escampette, 1998; La secrète Vie des images, L’Escampette, 1996; La peur et les signes, 1 cf. Deleuze, Gilles, Critique et clinique, Minuit, 1993, p. 169. 2 cf. Deleuze, Gilles et Parnet, Claire, Dialogues, Flammarion, 1977, p. 69. 3 cf. António Ramos Rosa no prefácio de La peur et les signes (L’Escampette, 1993). 22 L’Escampette, 1993) - Alberto Pidwell Tavares continua a passar quase despercebido. Alguns artigos avulsos saídos em jornais – na autoria de Eduardo Prado Coelho4 e de António Guerreiro5 – e cinco ensaios críticos6 escritos, é certo, com talento e rigor científico não chegam para reafirmar as potencialidades da criação poética do artista “voyant” que parece condenado a afundar-se nos escombros do esquecimento. Mas o carnavalesco dos seus mundos ilusórios, paralelos, nos quais a história se torna mole, contorsionável, alterável, corrigível, não pode perder a alegria de actuar porque ninguém se atreve a oferecer-lhe um palco. A polifonia estilística e narrativa dos seus textos que se deixam (de)formar nas ondas labirínticas das alegorias complicadas, apocalípticas, não se conforma com o silêncio quando ainda há acordos e sinfonias por descobrir. A sua arte que vive da oscilação, da instabilidade, do shock, da experiência, não pode e não deve ser abandonada em circuitos internos que fecham em si os processos confusos, incontroláveis, de busca gerados na “carne” ainda quente dos seus versos, das suas palavras pulsantes, dos seus gritos gravados na sépia húmida dos filmes mudos e na urgência de um “revival”. A sua obra não só goza do interesse quase de culto manifestado pelas minorias homossexuais como também da atenção de uma editora de prestígio, Assírio & Alvim que, poucos meses depois da morte do poeta, publica num grosso volume que perfaz mais de seiscentas páginas uma impecável edição de O Medo. Em 1999 e 2000 saem novas edições de Lunário e de O Anjo Mudo – que reúne quase todos os textos do autor publicados em revistas, catálogos de exposições de pintura e fotografia e ainda alguns inéditos assim como boa parte dos textos que só tinham sido lidos em público. 4 v. “Sentado na Parte Mais Triste do Meu Corpo”, Público, 19-4-1997. 5 v. “Sob o signo de Saturno”, Expresso, 17-10-1987; “Palavras que Embriagam”, Expresso, 7-2-1998. 6 v. ▪ Amaral, Fernando Pinto do, “Al Berto: Um Lirismo do Excesso e da Melancolia” in O Mosaico Fluido – Modernidade ePós-modernidade na Poesia Portuguesa Mais Recente, Lisboa, 1981; ▪ Guimarães, Fernando, “Uma Outra Poesia: De Joaquim Manuel Magalhães a Al Berto” in A Poesia Contemporânea Portuguesa e o Fim da Modernidade, Lisboa, Caminho, 1989; ▪ Magalhães, Joaquim Manuel, “Uma Experiência Editorial: Alberto Pidwell Tavares” in Os Dois Crepúsculos – Sobre a Poesia Actual e Outras Crónicas, Lisboa, A regra do Jogo, 1981 “Al Berto” in Um Pouco da Morte, Lisboa, Presença, 1989; ▪Martins, Manuel Frias, 10 Anos de Poesia em Portugal, 1974-1984 – Leituras de uma Década, Lisboa, Caminho, 1986; ▪ Rosa, António Ramos, “Al Berto ou a Violência do Desamparo” in A Parede Azul – Estudos sobre Poesia e Artes Plásticas, Lisboa, Caminho, 1991. 25 análise, passa-se à rede de metáforas e sistemas mais complexos de figuras dramáticas que compõem o mito pessoal do autor. E este mito poderá ser interpretado como sendo a expressão imaginária da personalidade inconsciente. * Mas todas estas interpretações psicanalíticas tentam sobretudo relacionar o fantasma organizador da obra com aquilo que na vida do autor deixa suspeitar a existência de fantasmas pessoais inconscientes. Esquecem que, talvez, não se trate dos mesmos fantasmas, ou que, se calhar, a obra é construída a partir de uma região da sua vida psíquica que se encontra numa relação marginal com as outras actividades – trabalho, vida social. Seja como for, a interpretação psicanalítica tem a tendência de fazer da literatura quer um problema individual – reduzindo a obra a um “caso”- quer um problema universal postulando a sua aplicabilidade sem margens. Mas “a literatura é uma saúde”15 e raras vezes a psicanálise conseguiu soluções interessantes sem trair a materialidade do texto. Perante esta perspectiva geral psicanalítica, Gilles Deleuze propõe uma solução alternativa: la schizo-analyse. Porque nunca a crítica é apenas uma aplicação de conceitos já fornecidos por uma dada teoria, porque temos sempre de voltar a produzir conceitos; e o que interessa no caso de Al Berto não é armarmo-nos com uma teoria prévia mas ajudar a formular novos problemas, a sugerir novos conceitos. Como nos aproximarmos da poesia de Al Berto sem cair no pecado da projecção de Édipos ou de fantasmas familiares? Talvez celebrando alianças com alguns conceitos deleuzianos - como o de literatura menor desenvolvido com sucesso acerca da obra de Kafka e de Carmelo Bene. Não seria possível seguir a linha de um devir-minoritário para descobrir as potencialidades da obra al bertiana? Como sabemos, o devir-minoritário é um processo de transformação do trabalho literário numa experiência de dar voz a um povo que não existe, de falar uma língua 15 Idem1, p 10. 26 estrangeira na sua própria língua e de escapar ao sistema de poder que toda a língua, nos seus usos canônicos, impõe16. E Al Berto parece não se sentir alheio a esta experiência: “eu escrevia numa outra língua: fruonticólili acádémémiliutre viertrasena pror cravilhofro pinovertsiloqúulito inhôkerterm, qualquer coisa que cortasse de vez com o cordão umbilical.”17 Pensamos que Al Berto é um “autor menor” – no sentido de que “minorité désigne [...] la puissance d’un devenir, tandis que majorité désigne le pouvoir ou l’impuissance d’un état, d’une situation”18. Minoritário por se saber habitar uma língua marcada pela sombra de uma glória perdida, minoritário pela forma do seu desejo homossexual, minoritário por se querer a voz de revolta dos estudantes portugueses exilados em Bruxelas. Poderíamos prolongar o laboratório deleuziano experimentado com a poesia de Fernando Pessoa por José Gil. De facto, há uma imensa aliança que se vai fazendo entre Al Berto e Deleuze; há uma fantástica afinidade entre os dois pensamentos que têm a ver, por exemplo, com o desejo de Al Berto de se tornar imperceptível19, o que reenvia para o “devir-imperceptível” de Mille Plateaux. A declarada paixão de Al Berto pela fotografia e pelo cinema é partilhada abertamente por Deleuze. E basta lembrar os títulos de alguns dos seus poemas – “push here com uma polaroid” (de À procura do Vento num Jardim d’Agosto), “Filmagens” (de Trabalhos do Olhar), “cinco fotografias para alexandre da macedónia” (de Salsugem) – para deixar deslizar o nosso pensamento na direcção dos conceitos deleuzianos de “imagem-movimento”e “imagem-tempo”. Para além destes pontos de contacto, o conceito de diferença deleuziano encontra também ressonâncias na obra al bertiana. Assim, a não-relação com as coisas implica situar-se num ponto de 16 cf. “devenir-minoritaire, c’est un but, et un but qui concerne tout le monde, puisque tout le monde entre dans ce but et dans ce devenir, pour autant que chacun construit sa variation autour de l’unité de mesure despotique, et échappe, d’un côté ou de l’autre, au système de pouvoir qui en faisait une partie de majorité.”( Bene, Carmelo e Deleuze, Gilles, Superpositions, Minuit, 1979, p.129). 17 cf. Al Berto, O Medo, Assírio & Alvim, 2005, p.27. 18 Idem16. 19 v. “Tudo abandono a pouco e pouco. O deserto é cada vez mais deserto. Já não vislumbro sequer a minha sombra, nem ouço ruído algum. Nem rastos de outros homens ou animais. Apenas branco, e um zumbido de estrelas repercutindo-se no interior da solidão.” (cf. O Anjo Mudo, Contexo, 1992, pp. 134) ou “E da sua passagem nada reste, absolutamente nada. Nem mesmo a impressão digital sobre o rosto que o acaso da paixão fez tocar.” (cf. O Anjo Mudo, Assírio & Alvim, 2001, p. 58). 27 silêncio, nos “dias sem ninguém”20, de onde surja um olhar ou o nada: “Uma só coisa é necessária: a solidão, a grande solidão interior. Caminhar em si próprio e durante horas, não encontrar ninguém – é a isto que é preciso chegar./ não consigo ler mais...fecho os olhos/ a paisagem desaparece num rápido e desfocado adeus”21; “aceito a inutilidade de viver, de morrer, de estar aqui, [...] aceito não possuir nada, não querer nada, aceito nunca mais voltar aqui, nunca mais”22. Sem esquecer que a “máquina-desejante” não poderia encontrar melhor eco do que: “o único consolo para a dor é saber que o desejo pode ser inesgotável.”23 Tanto a filosofia como a arte são modalidades do pensamento, e não o são menos pelo facto de o elemento próprio do pensamento filosófico ser o conceito e os do pensamento artístico o afecto e o percepto. A filosofia, enquanto criação de conceitos, só vive da sua confrontação com a arte, a literatura e a ciência, com o não- filosófico. Deleuze reclama as origens das ideias filosóficas não só destas disciplinas como também da história interna da filosofia1. Porque é a partir da literatura e não do interior da história da filosofia que se inaugura um novo pensamento. A filosofia e a literatura são inseparáveis: “são necessárias as duas (...) como se fossem duas asas ou duas barbatanas”2. Toda a obra de Deleuze é, de facto, atravessada pela literatura: os livros sobre Proust, Beckett, Carmelo Bene, vários ensaios dedicados à literatura anglo-americana reunidos na sua última publicação, Critique et Clinique, falam desta presença. Por que esta aproximação? Porque, diz ele, tanto a literatura como a filosofia se alimentam da mesma fonte, o pensamento, e as duas tendem para a 20 v. O Medo, p. 137, p. 351, p. 505. 21 v. O Medo, p. 261. 22 v. O Medo, p. 367. 23 v. O Medo, p. 233. 1 Deleuze-Parnet, Dialogues, Paris, Flammarion, 1977 (D), p. 89 : “La philosophie naît ou est produite du dehors par le peintre, le musicien, l’écrivain (...). Sortir de la philosophie, faire n’importe quoi, pour pouvoir la produire du dehors. Les philosophes ont toujours été autre chose, ils sont nés d’autre chose”. 2 QPh, p. 43. 30 pour une littérature mineure (1975) – e todos eles tiveram um impacto imenso e quase imediato na vida cultural da Europa. Alguns temas de Al Berto só se deixam compreender sobre esse fundo da recepção da obra de Deleuze. Por exemplo, a ideia de uma dissolução do corpo interior como costuramento entre si dos órgãos para estancar os fluxos da dor pertence ao modo como Deleuze retoma o conceito de “corpo-sem-órgãos” de Artaud, enquanto dispositivo ao mesmo tempo literário e metafísico. “No meu susto de estar vivo, uma agulha costura os órgãos para que a dor não se espalhe pelo corpo. A dor, este feixe de nomes vibrando junto ao coração. Um dia estarei longe, muito longe de mim e de ti. Terei perdido o corpo que te sente, irremediavelmente.” (O Medo, p. 25). O mesmo pode ser descoberto na compreensão do tempo como incarnação de acontecimentos intemporais em cada dobra do corpo. Se Deleuze retoma a metafísica do presente – que Heidegger tinha denunciado como o traço fundamental do esquecimento do Ser desde a Física de Aristóteles – não é para reabilitar o primado da efectividade contra a possibilidade, mas para pensar a relação entre a intemporalidade do acontecimento e a sua incorporação no presente dos corpos. O tempo, para Deleuze, é essa irrupção do sangue na paisagem interior de um corpo que apenas existe como atravessamento dessa inscrição do intemporal no presente. Em Al Berto retoma-se essa experiência da incorporação do tempo no avesso da pele na pergunta “Que horas serão dentro do meu corpo?” (O Medo, p. 615). Ou, pelo contrário, na experiência da intemporalidade, ou melhor da incorporeidade do tempo, no plano do Aiôn, no plano da idealidade do acontecimento incorporal, onde é possível então dizer “descobri o lugar onde o corpo e a mente pernoitam fora do tempo” (O Medo, p. 451). E nesse plano do acontecimento ideal, onde se retêm as marcas do que por um momento existiu, “agarramo-nos à memória um do outro/O tempo é coisa que não existe mais.” (O Medo, p. 457). Daí a pregnância absoluta do “agora” na poesia de Al Berto. É o “agora” que faz a ligação entre o intemporal dos acontecimentos ideais e o tempo do presente onde os corpos existem como 31 imanência unívoca. “aceito como único corpo aquele que não cresceu dos relógios do mundo” (O Medo, p. 367). Nas páginas de Al Berto ele tem a forma de uma questão permanente: a questão do “agora” – quando estamos agora? Qual é a forma temporal da impossibilidade de saber quando estamos neste momento, neste agora? Sublinhe- se a obsessão de Al Berto pela pergunta “que horas são?”. Não é apenas a indeterminação do tempo do presente que se inscreve na poesia; é o desejo de cravar a poesia na carne do tempo – e isso só pode ser quando se dá a convergência instantânea da palavra com a hora do “na hora”, do “agora”. É o que descobrimos em passagens como “que horas serão para lá desta precária sílaba” (O Medo, p. 308). “Que horas serão para lá deste século?” (O Medo, p. 450). Mas essa experiência euforizante de um tempo Aiôn que irrompe no interior do corpo e como seta do agora enquanto pregnância da idealidade do intemporal de cada acontecimento, tem como fundo, à semelhança de Deleuze, o tempo do Cronos, o tempo devorador, o tempo ruína. “O tempo foi sempre a minha ruína” (O Medo, p. 230), “passo os dias a observar os objectos/ sinto o tempo a devorá-los impiedosamente” (O Medo, p. 330). Como para Deleuze, essa contaminação permanente das duas formas do tempo no interior dos corpos, cava em cada agora a dimensão do espaço. O espaço, no plano de imanência, não tem a condição de um continente abstracto, de um receptáculo dos corpos e dos seus movimentos. Em Deleuze, o espaço é pensado como efeito do tempo, como consequência de ritmos que talham por dentro dos devires lugares de habitabilidade dos acontecimentos. O espaço é o rasto interno de um ritornelo, de um fluxo cadenciado de dobras que fazem a dimensão interior dos corpos, que os abrem aos acontecimentos. O espaço existe a partir do interior dos corpos no tempo. É essa intuição deleuziana que encontramos na metafísica do espaço interior de Al Berto. “Eu sei, cada homem possui um deserto dentro de si. Nele caminha deixando minúsculos sinais da sua breve passagem. Mas o sangue é facilmente bebido pelas areias e nenhum oásis de felicidade irrompe.” (O Anjo Mudo, p. 133). É nesse espaço interno que a própria visão de si do corpo tem origem. “Vivo 32 na ilusão de conseguir enganar, alguma vez, o medo dos dias sem ninguém. Por isso construí jardins de areia e cinza, jardins de água e fogo, jardins de répteis e de ervas aromáticas, jardins de minerais e de pedras – mas todo abandonei à invasão da selva e das alucinações.” (O Anjo Mudo, 2001, p. 131). “caminho como sempre caminhei, dentro de mim – rasgando paisagens, sulcando mares, devorando imagens.” (O Medo, p. 609) Pelo tempo e pelo espaço segundo Deleuze a poesia de Al Berto se deixa pensar. Mas há muito mais ressonâncias dessa metafísica da imanência que podem ser descobertas em O Medo ou em O Anjo Mudo. A estrutura dos afectos é desde a raiz pensada no registo da imanência. Ao contrário de Heidegger e da sua distinção entre a angústia e o medo – distinção que remete para uma diferença entre o ser afectado pelo nada, por algo que não pertence à esfera da percepção, e o ser vítima da representação aterradora de algo que nos aparece como hostil ou ameaçador – Al Berto, como Deleuze, faz sempre da paixão, da estrutura da passividade, do poder de ser afectado, algo de material, de imanente ao mundo dos corpos e da coisas. O modo essencial de estar no mundo não é a angústia, não é a abertura face ao que não há, ao que ainda não se revelou porque apenas no ser para a morte ele se deixa antever, mas o medo, essa promiscuidade permanente entre a nossa vida e o mundo que nos toca, invade, ou que simplesmente nos abandona. Do nada não há angústia mas medo, porque o nada tem, para Al Berto, a condição, não de algo que se dá na sua não aparência, como na tradição da analítica da finitude heideggeriana, mas a da ausência, do desaparecimento. O medo é a Stimmung essencial da condição humana. Ele antecede cada encontro com o outro, com o corpo do outro. É sobre o medo que o outro se torna possível para mim, vem quebrar a minha inocência e inflamar as minhas paisagens interiores. É sobre o mesmo fundo, e para lá do ter sobrevivido à perda da inocência, que o estar-no-mundo se inventa. “- O medo, o grande medo que se confunde com a serenidade, devora-te. E se nos tocarmos perderemos a inocência; ou, talvez tu 35 Primeira Metamorfose: O grau zero da crítica 36 37 “ […] há literatura e jornalismo porque existem géneros, diferenças, formas em processo de canonização ou num limbo ameaçador. Perdição não existe; o escancarado templo da Cultura vela, afinal, infiéis defuntos.”11 Ernesto Rodrigues Em 1989, diz George Steiner que “O génio da época é o jornalismo. O jornalismo invade todos os cantos e recantos da nossa consciência. Invade-os porque a imprensa e os meios de comunicação são muito mais do que um instrumento técnico e do que uma empresa comercial. A fenomenologia radical do jornalístico é em certo sentido, metafísica. Conjuga uma epistemologia e uma ética de uma temporalidade duvidosa. A apresentação jornalística gera uma temporalidade do instantâneo niveladora. Todas as coisas têm mais ou menos a mesma importância; todas são apenas dia a dia. Da mesma maneira, o conteúdo, a possível significação da matéria comunicada pelo jornalismo, é ‘saldado’ no dia seguinte. A visão jornalística confere a cada acontecimento, a cada situação individual ou social, um máximo de impacte; mas o processo de intensificação é uniforme.”12 A recepção no tempo da obra de Al Berto revela múltiplas modulações que prefiguram o presente imediato da publicação, confessa desvios e molda expectativas quanto à importância da imprensa e do compromisso literário para a sobrevivência da poética al bertiana. Para uma apresentação exaustiva, foram revistos, digitalizados e sistematizados todos os artigos e ensaios sobre Al Berto disponíveis divulgados entre 11 Ernesto Rodrigues, Mágico Folhetim, Literatura e Jornalismo em Portugal, Lisboa, Editorial Notícias, 1998, p. 73. 12 George Steiner, Presenças Reais. As Artes do Sentido, trad. e posfácio de Miguel Serras Pereira, Lisboa, Presença, 1993, p. 34-5. (Antecipado por Ernesto Rodrigues, Mágico Folhetim, Literatura e Jornalismo em Portugal, Lisboa, Editorial Notícias, 1998, p. 399) 40 1) Esboços da Morte (Cartas de amor) e Cartas de Longe de António Madeira15 2) À procura do vento num jardim d’Agosto de fAlberto, primeiro livro do autor publicado em português e segundo da colecção Subúrbios (com capa do autor), 1977. 3) Demasiadamente belos para quem só não queria estar só 16 de Sérgio M.N. da Costa e Silva17 Um mês depois, no dia 2 de Maio, o Jornal Novo (p. 11) saúda a publicação do livro de Sérgio M.N. da Costa Silva: « […] Trata-se de um punhado de textos que demonstram uma atitude de coragem, pouco vulgar entre nós pela denúncia que o autor faz de certos tabus sociais.» Ainda no inverno, no número 7/8 de Raiz e Utopia, João Miguel Fernandes Jorge publica uma «nota de leitura» relativa ao projecto editorial Pidwell Tavares ressaltando a originalidade do livro de Sérgio: “prefiro dizer serem passos para a civilização da imagem, porque o seu ideal não é descrever ou classificar formas do vivo.” Dá também a notícia da publicação de Tony Duvert, Retrato de homem faca, tr. Luiza Neto Jorge, colecção Nas margens do corpo, nº1, fAlberto R. Pidwell Tavares editor, 1977. * Em Fevereiro de 1980, O Jornal anuncia «a descoberta de uma voz (Cabrita) assumindo a sua retórica pessoal com desenvoltura: aqui é de lei o desdobramento metafórico, no pólo oposto das poéticas do rigor e da contenção. Vida e literatura não são para se confundirem diz o autor. Em vão, pois estamos perante uma 15 Também autor de Hotel dos acácias e No mosto das palavras, primeiro livro da colecção Subúrbios (com capa de Al Berto), 1977. 16 O livro abre com duas dedicatórias, uma para Albino com a mensagem “Por isso e por muito mais” outra para Alberto (editor) que reza assim: Obrigado por me teres ido buscar à rua, entre copos, entre putos marginalizados, fruto duma sociedade onde este povo anda embuchado, de grandes homens de letras. Teu, por esta amizade que há anos nos une por esta europa, onde falamos a mesma língua. 17 Com fotografias de Sérgio e arranjo gráfico de Al Berto, primeiro livro da colecção “Os olhos da cidade” (texto em preparação do mesmo autor, Málaga (cidade maldita)), 1977. 41 encantada/desencantada meditação possível sobre o amor possível, mais vigiado quando mais arrebatado.» Poucos meses mais tarde (11 de Abril), a mesma publicação, in Bookcionário reforça “O regresso de Pidwell Tavares”: «Um editor com a existência comercial metido dentro de malas: era como subsistia Alberto R. Pidwell Tavares, ‘doublé’ de poeta (Al Berto). Ele garantiu entretanto ao ‘Bookcionário’ que a ‘casa’, Deus ajudando, dia a dia melhora. E eis dois lançamentos a prová-los: ‘Oblíqua visão de um cristal num gomo de laranja ou perene o sangue que arrebata os anjos vingadores, de António Cabrita (col, Sentir Isto, 80$00), e ‘Meu fruto de morder todas as horas’, do próprio Al Berto (extra-colecção, 100$00). Para ambos fez João Morbey um desenho de contracapa. A ‘Oblíqua visão’ tem capa de A. Pidwell, a de “Meu fruto de morder» é de Dodo, conhecido por duas exposições na Galeria Opinião, de Lisboa. Leitores do ‘New Thing’ andarão avisados se descobrirem estes títulos, sobretudo o de Al Berto, outro belga de ‘torna-viagem’ como Fernando António Almeida. No seu caso a revelação, em 1977, chamou-se ‘À procura do vento num jardim d’Agosto’.». Em Junho, a Gazeta do Mês, Nº 2, Junho in Livros de Al Berto, João Carlos Rezendes Costa ao falar de Meu Fruto de Morder Todas as Horas, proclama em subtítulo: «São distintos os processos de cada escrita, de cada indivíduo que escreve versos. Para contentamento ou descontentamento de alguns, chamemos-lhe poeta.» Da influência do seu processo de escrita João Carlos Rezendes Costa evoca o Ginsberg, a ‘Beat Generation’ e o ‘rock’. Al Berto leva ao extremo a temática de sedução, de violência e de loucura, o que demonstra um desprendimento de excessos. Cita: ‘...cada um morre como pode. e de pólo a pólo estende-se um tubo central. onde nós somos os dejectos a delinquência o veneno o lixo os gases as substâncias evacuadas. os poros vulcânicos o roubo o crime as vítimas a escrita os meteoros os pimentos o peido. de qualquer os únicos orifícios vivos em permanente metamorfose.’ (pág. 27) 42 É a «recusa de integração no jogo editorial que quase sempre se resume a uma procura imediata do lucro ou de prestígio para quem edita livros de poesia.» Esta «espécie de marginalidade» que Al Berto encontrou como solução do seu projecto editorial o faz também correr o risco de «ser lido apenas por quem traga no bolso alguma curiosidade e alguns dinheiros.» «Agrada-me, por certo, esta íntima ferocidade da escrita, esta movimentação por planos sucessivos da cidade e dos corpos que constantemente vagueiam por ruas e por quartos cheirando a sexo, por bares e por outros corpos que o sangue vai deixando esquecer, já rápido noutro domínios.» Os espaços e a movimentação dos corpos ganham em intensidade quando «o amor e o desejo intervêm como impulso de radicalização desses excessos que a memória vai deixando ficar por estes poemas marcados por um rigor interno na marcação de lugares, de cenários onde as imagens e os gestos se vão intensificando conforme se vão aproximando ou afastando os sexos e a escrita, talvez um pouco distante do que é habitual formalização do discurso poético em Portugal. Mas não será esta distanciação uma intenção também expressa neste recurso editorial que é a edição de editor, neste caso de Alberto R. Pidwell Tavares (editor)?» A Capital (26 de Agosto) dá também conta desta influência Beat na obra de Al Berto, com a sua fauna de «viagens», «travestis», «putos» e «bichas», com as exaltações inerentes ao amor e ao desejo que desembocam, ao fim e ao cabo, num gesto político de enfrentamento do cânone social e cultural, dos rituais instiuídos como maioritários. Em “Os Dois Anos 70”, Algumas Palavras, Joaquim Manuel Magalhães assevera: «Al Berto leva ao ponto mais alto quanto a mim, toda a tradição, (que começa a tornar-se portuguesa, Maria Lisboa e Cesariny como avatares, os Rock e os Beat como impulso) da poesia como ataque por todas as vias – drogo, sexo, loucura, jogo, magia – à uma instituição de uma poesia literária, atenta aos códigos verbais, temerosa do lirismo confessional. O fluxo de revelação de Al Berto, pela porta entreposta das 45 desencadeia tem a força de rastilhos atirados a várias pólvoras, entre as quais a da própria linguagem, e isso não pode deixar de nos lembrar que não é só uma concepção estreita de estilo que pode residir o valor duma obra: estilo é também comportamento e a capacidade de assumir o vulcão pode ser um alto motivo de fulgor literário.» Agora é óbvio que «não basta assumir as práticas que, num determinado tempo, lutaram contra os convencionalismos. Um escritor sabe sempre que assumir as anticonvenções de outro é a forma de se tornar um autor convencional. Que assumir as estratégias do que foi mudança num certo momento é a forma de se transformar num mero repoditório de invenções tornadas folclore. Que não basta assumir a pose de “estar contra” para se estar efectivamente a produzir algo de novo. Que não é artilheiro aquele que diz que sabe disparar, mas só aquele que efectivamente dispara e acerta. Há poucos senhores do fogo. Eu suponho que Al Berto pode vir a ser um deles. Não pelas técnicas que põe em execução, não pela pose denunciadora: imensos outros o vêm fazendo na última década entre nós. Mas por um vigor que se adivinha para lá dos mecanismos às vezes gastos, pela tenacidade com que golpeia mesmo com ferramentas de alguma ferrugem, por uma arte que se pressente ir abolir algumas técnicas menos capazes.» * Em 1981, O Jornal de 30 de Janeiro lembra que de Al Berto, revelado em 1977 com À procura do vento num jardim d’Agosto, acabam de sair outros textos em edição de autor. Trata-se de Mar-de-leva («7 textos dedicados à vila de Sines», 50$00). Se Al Berto ainda dispõe de exemplares (e a tiragem foi reduzida) pode pedir-se Mar-de-leva – «acompanhado de numerário, como convém entre pessoas crescidas – para A. R. Pidwell Tavares, Quinta de Santa Catarina, 7520 Sines.» Tal como nos tem habituado, Joaquim Manuel Magalhães não deixa passar despercebida a nova publicação e a honra com uma recensão crítica na mesma coluna 46 de A Capital, 21 de Fevereiro, in “Algumas Palavras”, AL BERTO, MAR-DE- LEVA, ED AUTOR 1981. «O que destrói a terra destrói o corpo. Desta destruição simultânea nos fala o livro Mal-de-leva onde “sete textos dedicados à vila de Sines” nos coloca perante a aniquilação de um espaço geo-humano que serve de cenário anímico à separação de um corpo. Corpo e terra tornam-se lugares visitados pela mágoa memoriosa de alguns versos.[...]?» «[...] Assim nos fala sob metáfora de «ferida» (VII, v.5), “sirenes, alarmas lancinantes” (VII, v.7). E não pode deixar de integrar o desespero face a uma organização concentracionária da urbe industrial e do amor soterrado. [...] Daquilo que foi, retoricamente, “falácia patética”, ergue-se este livro para nos enfrentar num pathos que, bem longe de ser falacioso, é profundamente real.» O Jornal, 11 de Novembro 1980, publica um anúncio sob o mote “Tu não tens uma nevrose:/ É A SITUAÇÃO REAL/ QUE É NEURÓTICA!”, do livro publicado por Alberto Pidwell Tavares – Editor, A Viagem de João Paisana. O mesmo livro é depois referenciado pelas palavras de M.S. Fonseca em Raiz e Utopia, 13/14/15/16, Abril/ Maio 1981: «Uma obra desencantada» em que «o imaginário do autor viaja pelo exílio, rima com abril, penaliza-se em novembro face ao perfil dos chaimites do coronel, chateia-se com as cem mil velas de Fátima e reverência pequenamente a banda desenhada. Mas todas estas coisas são pretextos para obsessivamente, eu diria de uma forma ‘húmida’, surgir o mesmo ‘castigado’ corpo, dizendo: ‘Por favor, dos cervezas más’(pág. 71). Não se trata, pois, de um livro de viagens, antes de um livro de ‘interiores’, uma exposição (striptease, talvez?) dos dados imediatos da (in)consciência. A literatura de um tal ‘livro de interiores’ é no mínimo incomodativa: é o espelho de um ‘sensato’ cepticismo escrito de costas para a literatura.» 47 * Já na primavera de 1982, Al Berto traz um livro novo e é referenciado pelo Diário de Notícias (8 de Abril), “Al Berto: a nitidez do olhar” como um «excelente jovem poeta»: «Este nome assumidamente kitsch é o dum excelente jovem poeta estreado em 1969 na Bélgica e que entre 1977 e 1981, regressado a Portugal, publicou três recolhas muito à margem do circuito convencional. [...] Ei-lo desde há tempos instalado perto de Sines, de onde pôde fazer chegar, a um número crescente de leitores interessados, Mar-de-leva (1980, já em 2ª edição). Feliz reincidência agora, Primavera de 1982 com Trabalhos do Olhar, doze poemas, 24 páginas, composição e impressão em Beja, no Diário do Alentejo [...]» As recensões críticas não demoram a aparecer. Primeiro é Jorge Listopad a manifestar abertamente o seu agrado pelo livro, no Jornal de Letras, a 13 de Abril, “Secos e molhados”: «Hoje ainda os outros Trabalhos do Olhar, caderno de poesia da autoria de Al Berto. Gosto, pronto. Mas tenho uma curiosa percepção ao lê-lo: apresenta-se, formalmente, como underground, mas na sua origem estão sentimentos simples, uma relação sensorial com o mundo, uma saúde ingénua de energias complexas. Imagens nada desfocadas ou esbatidas, antes sobre expostas. [...]» Segue depois O Jornal, 23 de Abril – “Al Berto, Trabalhos do Olhar, Sines, 1982”, a falar do livro: «Ignoramos qual possa ser o destino de um tão frágil volume de poesia lançado para o labirinto das livrarias entregues à voracidade dos ‘best-sellers’. Justifica-se assim um ‘aviso à navegação’: leitor, se por acaso encontrar esta discretíssima edição do livro de Al Berto, detenha-se por momentos a folheá-la, experimente entrar num destes poemas – há grandes hipóteses de que descubra ‘um poeta’ (uma voz, um olhar, uma escrita). Tudo decorre de uma descrição do elementar ao nível mais rasante da simplicidade. Mas essa realidade primitiva chega ao 50 «Texto escrito na Rua do Forte em Sines e fotografia com uma vista de Santa Catarina em Sines. ‘Fomos dois amigos e um cão sem nome percorrendo a estelar noite doutros corpos’. Uma bela edição de poesia.» Quatro dias mais tarde, Gil Nozes de Carvalho repete o gesto no Expresso: « [...] A literatura não cabe em escritórios que andam de balada em memorial atrás do pior que um povo tem: a crença nas massas. É por tudo isto que um livro, muito belo, como este que Al Berto, Paulo Nozolino e Paulo da Costa Domingues [Domingos, correcto] construíram ao publicar-se, aponta para outras respiráveis direcções. Porque ele é um pequeno orifício no negro, onde, depois, é talvez possível ver com o corpo e mesmo que magoadamente o mar de que por ventura nos despedimos. ‘rasgo o melancólico lume interior dos insectos, atravesso a sabedoria das infindáveis areias do sono, sou o último habitante do lado mitológico das cidades...’». Os avisos de publicação são abundantes, o entusiasmo da crítica mostra-se crescente, mas é no ensaio de Carlo Vittorio Cattaneo que nos deparamos, depois das intervenções de Joaquim Manuel Magalhães, com uma nova perspectiva crítica sobre a obra de Al Berto. Excesso e concisão na poesia de Al Berto perfaz a coluna “Actual – livros” do jornal Expresso (15 de Outubro). 51 Tendo seguido inicialmente a via do excesso verbal e temático, evoluindo depois para um maior rigor de escrita, Al Berto atinge agora a sua maturidade de poeta com Trabalhos do Olhar. [em letras destacadas e sublinhado] «Al Berto não é um novo nome da da cena literária portuguesa, dado que o seu primeiro livro, Projects 69 [...] saiu em 1972. Paralelamene À actividade de editor underground, exercida com o nome de Alberto R. Pidwell Tavares, na qual demonstra muita coragem e fantasia (se não me engano foi o único que ‘ousou’ publicar um romance de Tony Duvert), foi construindo constantemente, um discurso poético que pode ser dividido em duas fases notavelmente diferenciadas. A Fase do excesso Na primeira fase (À procura do vento num jardim d’Agosto, Lisboa, 1977, e Meu fruto de morder todas as horas, Lisboa, 1980), tenta a via da violência, manifestada através de um excesso verbal e temático, que procura minar as bases daquela respeitabilidade de que a sociedade burguesa se serve como escudo para proteger – e esconder – a sua própria (i)moralidade. Os pesadelos urbanos e suburbanos são trazidos à superfície escolhendo para o papel de protagonistas a «marginalidade» e a «diferença», agitando a bandeira de uma poética do excesso que leva à acumulação selvagem de situações provocatórias e de variações estilísticas. Encontramos um pouco de tudo, da droga ao eros não convencional, da efusão do sentimento amoroso à obsessiva insistência nas particularidades «físicas» de todo o acto sexual, da crua realidade urbana às visões oníricas. E encontramos até palavras em liberdade, enumerações de objectos ou acções, recurso a técnicas cinematográficas, plurilinguísmo, expressionismo tipográfico. Os pontos de referência são múltiplos: Rimbaud e Lautréamont, o surrealismo francês e o português, certos aspectos da poesia de Herberto Helder, a beat generation americana (pelo menos Allen Ginsberg e William Burroughs). Sem subestimar a influência daquela música rock – e respectivas letras – que das experiências de um Lou Reed ou um Jim Morrison chega até aos nossos dias, oferecendo-nos poucas inovações importantes (como por exemplo a apropriação de 52 um léxico proveniente da tecnologia moderna – operação ainda muito difícil para nós europeus, salvo em alguns exemplos ingleses; e fique claro que não me estou a referir a uso do código científico do tipo de certas tentativas de António Gedeão ou Vitorino Nemésio) e muita cultura francesa mal digerida. Nesta perspectiva, torna-se importante, por exemplo, o facto de encontrar citado o ‘enraivecido’ Richard Hell em vez do ‘decadente’ Tom Verlaine. De qualquer modo, as duas obras revelam, simultaneamente, uma personalidade interessante, cheia de coisas para dizer e de força inventiva aliada a uma espécie de ingenuidade operativa que obriga o autor a somar demasiadas “dívidas” com fontes velhas e novas. A sua maior limitação, no meu entender, consiste em não ter percebido que a sociedade ocidental é um terrível avestruz pronto a engolir todo e qualquer ‘exibicionismo’ que será instrumentalizado desde que seja rendível, tal como o ‘travesti’ no mundo do espectáculo; se, pelo contrário, se mostra incapaz de dar lucro apenas servirá, antes de ser rapidamente esquecido, para provocar um arrepio ‘diferente’ em qualquer salão burguês. Hoje, em poesia, a verdadeira violência só pode exercer-se através de uma sátira corrosiva ou, melhor ainda, dissimulando-a sob discursos aparentemente inocentes que funcionem como uma bomba de explosão retardada no subconsciente do leitor. Neste sentido – no âmbito do erotismo – é exemplar o caso de Eugénio de Andrade: se o seu leitor médio se psicanalisasse assistiríamos a situações divertidíssimas (seja-me permitido um pouco de sadismo); o bom entendedor... Expressões em mudança A segunda fase da poesia de Al Berto desenvolve-se bastante linearmente desde (Mar-de-Leva Sines, 1980) até Trabalhos do Olhar (Sines, 1982); e a progressiva maturação é exemplarmente demonstrada pelos textos escritos no período do tempo entre a data de composição das duas plaquettes e reunidos com estas num único livro também intitulado Trabalhos do Olhar (Contexto, Lisboa, 1982) Em Mar-de-Leva (composto em 1976) o poeta procura encontrar uma nova “medida” de expressão, explorando o caminho de um lirismo que se pauta por ritmos mais uniformes e 55 É evidente que destes pressupostos só podia resultar uma poesia fortemente ‘visual’ que tem mérito de iluminar os objectos do olhar com luzes diferenciadas e cujos coretos fazem realçar, nos próprios objectos, as secretas relações de cada coisa ou pessoa com os acontecimentos da existência. De vez em quando o real abre-se em epifanias densas de múltiplas revelações. O fluir lento e como que oleoso do eros num apartamento burguês onde, depois do jantar, ‘as mulheres falam muito/têm o riso arguto nos lábios acesos pelos anis/ sempre que os homens as desejam / noite adiante... calados’. A turva habituação à viuvez das ‘mulheres viúvas’ que monologando sobre a morte ‘devoram bolos/ de confecção caseira pouco açucarados.’ Sempre em matéria de mulheres: a polarização juventude/ velhice entre aquelas que ‘ajoelhadas lavam roupa/reclinadas sobre as polidas pedras as mãos enrugadas/ seios soltos dentro das camisas’ e as outras ‘sentadas às portas/ envelhecidas dentro de vestidos de algodão quente/ os rostos de cera sulcada muito escondidos pelos lenços desgastados.../ absortas em pensamentos escuros no lusco- fusco’. A súbita irrupção do sentimento da paisagem: ‘as casas surgem de repente iluminadas por dentro/ a paisagem envolveu-se de solidão’. A potencialidade do real de fazer germinar o mito: ‘nas gretas das pedras descansam as salamandras fascinadas pela cintilação das estrelas aquáticas’. A facilidade com que um ‘ele’ que ‘mantém o remoto costume de se abrigar dentro dos pomares’ pode resvalar no onírico e na metamorfose: ‘um dia inesperadamente refloresceu/ as escamas húmidas do corpo tremendo/ os membros apetrechados com delicadas unhas ósseas/ o silente corpo aberto às sementes e ao arado’. Tamanha maturidade de poeta encontra confirmação na mais recente ‘plaquette’ (esplêndida a colaboração fotográfica e gráfica de Paulo Nozolino e Paulo da Costa Domingos) contendo um único texto intitulado O último habitante (Lisboa, 1983). Uma última consideração. Desenvolvi o discurso sobre a linha evolutiva da poesia de Al Berto baseando-me na data de publicação das obras. Há, porém, o problema de Meu fruto de morder, todas as horas: no livro anterior era anunciado (sob a 56 menção: ‘texto em revisão’) como tendo sido escrito em 1975-76, mas saiu depois com a data 1978-79. Se bem que esta última data não se referisse apenas à revisão, Meu fruto.... é contemporâneo de muitos dos textos reunidos em Trabalhos do Olhar (o livro, não a ‘plaquette’). Neste caso, deverá pensar-se ter o autor desenvolvido paralelamente, durante um certo período, uma poética do excesso e uma da concisão.» Isabel de Sá faz uma “Nota de Leitura sobre a poesia de Al Berto” no Jornal de Notícias (6 de Dezembro): «[...] para Al Berto escrever é uma urgência [...], uma atitude de nervosismo, um ter que acontecer senão morre-se. [...]» * Em Janeiro (dia 17) de 1984, o Jornal de Letras aponta ainda, in “O guarda- livros, Poesia”, a última publicação de Al Berto, O último habitante. Co-produção de Al Berto, Paulo Nozolino e Paulo da Costa Domingos, Lisboa, 1983 «A plaquete está datada de Abril p.p. mas na verdade só em Janeiro de 1984 chegou à estante de JL, um dos contemplados na distribuição dos 200 exemplares fora do mercado. Quer dizer que O último habitante não se destina à compra e venda como vários outros artefactos poéticos da lavra e da linha do PCD e do Frenesi. [...]» Eis que em Maio (5) temos outro livro: Salsugem, Al Berto, Contexto Editora, 96 pág., 340$00. O acontecimento é noticiado primeiro no Expresso, na secção “Novidades”. 57 Logo a seguir (dia 11) em O Jornal, António Mega Ferreira informa do mesmo em “Coisas assim”. Salsugem fará também parte da “escolha de Eduardo Prado Coelho” do Jornal de Letras (12 de Junho): «[...] parece-me inadiável a compra de um dos livros de maior qualidade publicados nas últimas semanas: refiro-me ao admirável Salsugem de Al Berto, editado pela Contexto, e indiscutível confirmação de qualidades anteriormente apontadas.» Em Junho (26), no Jornal de Letras, Miguel Serras Pereira lembra Al Berto entre os autores da Contexto. Ao referir o volume acabado de sair, Salsugem, conclui: «Talvez a poesia seja uma arte de morrer [...].»18 Um mês depois, a 24 de Julho, a mesma publicação, JL, proclama o volume Salsugem como sendo « aquele que constitui talvez o livro de versos o mais belo e profundo de sempre. [...]»19 Em Agosto (4), o Semanário publica um poema de Salsugem, “nada... incessantemente nada, nem mesmo a infelicidade...” Quatro dias mais tarde, outro poema faz a “escolha de Eduardo Prado Coelho”20: «Postscriptum ...apercebo o lume dum coração antigo e simples 18 JL, in “Guarda-livros”, De certa ‘fonte da arte’. 19 JL, in “Ficção e poesia”, Silêncios e Afirmações. 20 JL, 7 de Agosto. 60 de testamento de alguém à beira da morte: suicídio e doença somam-se para enquadrar um esvaziamento da consciência, uma ‘hibernação’ que levará ao abandono da ‘casa’ e das ‘notas rebuscadas’ no fim de uma viagem que tudo consome, corpo e escrita. Aos poucos o ‘sal’, a ‘lama’ invadem o mundo, tornam-no excessivo e em tudo contaminado, destruído [...].» * Por ocasião das comemorações do 60 aniversário da Sociedade Portuguesa de Autores, promove-se um ciclo teatral, «Teatro de Novos Autores». Entre os escolhidos figura também Al Berto. O espectáculo Apresentação da Noite, representado de 25 de Fevereiro a 1 de Março 1985, tem como base textual uma colagem de poemas de Al Berto interpretada e encenada por Rui Filipe. Tal como testemunha o Jornal de Letras, poucos dias depois (4 de Março) Al Berto rejeita a encenação e expressa a sua indignação quanto ao facto numa carta 22 aberta publicada na mesma edição do jornal. Em Maio (5), por ocasião da tradução italiana do volume Trabalhos do Olhar (com Três cartas da memória das Índias) – Lavori dello sguardo (Trad. de Carlo-Vittorio 22 «Lisboa, 4 de Março de 1985 Como é de conhecimento público o Sr. Rui Filipe encenou o meu texto Apresentação da Noite, no âmbito do sexagenário aniversário da Sociedade Portuguesa de Autores. 1. Os que puderam assistir ao espectáculo talvez se tenham apercebido das ‘falhas’, sobretudo no trabalho de vídeo que, mal ou bem, acompanhava o trabalho dos actores. Se, por um lado, o trabalho de actores sofria pelo desleixo com que foi tratado o texto, embora não o atraiçoando na totalidade, já assim não acontecia com o trabalho de vídeo. 2. Assim, fica clara a minha mais veemente rejeição por esta encenação. Nada tenho a ver com ela e nunca teve a minha aprovação prévia. 3. Sinto-me profundamente chocado com o trabalho do Sr. Rui Filipe que se afasta e atraiçoa o essencial do texto Apresentação da Noite, acabando por servir-se dele como suporte de obsessões de indescritível mau gosto e mediocridade malsã. 4. De tudo isto resulta que me é totalmente estranha esta encenação e sobretudo desprovida de qualquer contacto com o meu trabalho poético. Atenciosamente Al Berto» 61 Cattaneo, Ediziono Florida) Pedro Tamen decide tomar uma “Pausa para ler poesia” com Al Berto também em italiano, em O Jornal: « [...] Se em finais da década passada Joaquim Manuel Magalhães podia apontar à poesia de Al Berto – que aliás prezava, e cuja importância foi o primeiro a detectar – o perder-se algum tanto ‘num magma instintual inimigo do rigor’, essa fase é revoluta. Mas não a pungência com que se nos transmite. As Três Cartas... são um mapa de desolação, de solidão inapagável, quando ‘a morte calça o mesmo número de sapatos’ do poeta e talvez não haja ‘regresso nenhum’, antes a terrível sensação de naufrágio em terra, diante desse mar de Sines que ‘ladra dia e noite’ à sua janela, como Al Berto contará na ‘nota biográfica em forma de carta’ enviada a Cattaneo. Sirva-lhe saber que tem leitores atentos seguindo-o no ‘ofício (...) /de escrever e olhar o mundo a partir da treva/humildemente.’» Em Junho (8), João Miguel Barros lembra Al Berto em Al Berto, “Três cartas da memória da Índia”, Contexto/De poesia, 1985: «‘Estou definitivamente só’ [...]. Este um texto de solidão, de amargura, de fuga. [...] Três cartas da memória da Índia ou a memória de um tempo perdido: o desencanto da relação conjugal, a mágoa da incompreensão paternal, a dor pelo afastamento (necessário) do amigo e acima de tudo, a amargurada consciência de estar só, a caminho do outro lado do mundo e da vida. Antes, porém, estas três cartas como se fosse imperiosos redimir a face com três declarações testamentárias.» 62 Em Julho (6), o Expresso apresenta-nos um Al Berto entre a viagem e a poesia: « [...] Por isso, com 37 anos, ‘para sempre vagamundo’, Al Berto sonha partir de novo: não em direcção a um lugar geográfico determinado, mas a um espaço de ‘silêncio absoluto e vazio completo’. Em direcção, afinal, àquele estado de que fala Rilke num texto citado em Salsugem. ‘uma só coisa é necessária: a solidão, a grande solidão interior. Caminhar em si próprio e, durante horas, não encontrar ninguém – é a isto que é preciso chegar.’» «Um dia apeteceu-lhe reencontrar uma ‘morada de silêncio’ e vieram-lhe à memória os pinhais onde passeou em criança, o mar de onde via partirem e chagarem os barcos dos pescadores, os jardins e as ruas onde jogou o pião e o berlinde.» «É de noite que a viagem acontece e é de noite que a poesia também acontece: ‘Só escrevo de noite, e muitas vezes na cama com os lençóis puxados até ao pescoço e um xaile na cabeça. À mesa só executo o trabalho de correcção. Nada tenho a ver com a luz do dia. Apenas como nascer e o pôr do sol que são duas albas. A noite tem lá tudo.’ Ou ‘Nada fica acabado, tudo isso é mentira’.» «[A sua poesia reflecte] a atracão pelo rapaz, pela sua efémera beleza adolescente: ‘Há uma altura em que rapaz e rapariga se confundem, é de uma grande beleza. Pena que se estrague logo a seguir...’» « ‘A perfeição técnica, acabada, arrepia-me: entra-se num processo de casulo. Acho a imperfeição mais aliciante, porque deixa saídas.’» No Diário de Lisboa, a 24 de Julho de 1986, (Ler/Escrever), João Mendes recomenda leituras para férias, Na bagagem de Agosto: «O livro de Al Berto consegue ser o que melhor se tem escrito nos anos 80 em Portugal. A sua escrita vagabundeia entre resíduos, ruínas e tactos de vária ordem, travessias anónimas, que dificilmente se hão de localizar nos mapas hiper-realistas dos arquivos das cidades.» Em Dezembro (24), Hélder Moura Pereira, no Jornal de Notícias, “Cadernos de Encargo”, Pequenos suicídios afirma: 65 correctos: é um livro em que tudo se põe a morrer. O mais interessante deste texto de Al Berto é o modo como ele vai traçando o frágil rendilhado negro desta impregnação da morte. [...] Instala uma espécie de infinita lentidão: ‘laboriosa travessia da vida’, ‘lentíssima decifração do medo e dos sinais’, ‘à beira mar envelheceu vagarosamente’. [...] Emblemas dessa redução do mundo à névoa cinzenta de uma implacável distância são os óculos escuros. ‘Dizem que a paixão o conheceu/ mas hoje vive escondido nos óculos escuros.’ E resulta daqui um desses retratos calcinados daqueles seres que enigmaticamente parecem suspensos na própria morte e transportam uma espécie de fogo rasurado que se avalia sobretudo na violência silenciosa das mutilações: é uma paisagem sem sono [...], uma insónia sem luz [...], uma fala sem corpo [...], o terror silencioso da doença e do envelhecimento [...], o fim colectivo de uma idade [...].» No Diário de Lisboa (11 de Setembro), in Sobreviver na Costa Atlântica, E.M. Mello e Castro faz uma «incursão imaginativa por uma possível teoria poética da jovem poesia portuguesa». Eduardo Pitta e Al Berto são nomes de destaque desta não geração à qual se podem apontar como poetas tutelares Nuno Júdice e João Miguel Fernandes Jorge. M. Mello e Castro indica dois títulos paradigmáticos da nova poesia: um de Eduardo Pitta – Um cão de angústia progride, 1979 – e outro de Al Berto – Uma existência de papel, 1985.” * Em Abril (13) de 1987, o Jornal de Letras anuncia o próximo lançamento de O Medo, entre outras novidades da Contexto. Treze dias depois, 26 de Abril, 1987, na Revista de Livros – Destaque, Entre Babel e Sião, do Diário de Notícias, Fernando Pinto de Amaral apresenta a antologia, 66 Sião, organizada por Al Berto, Paulo da Costa Domingos, Rui Baião e publicada pela Frenesi. «[o que Sião pretende ser é] apenas um roteiro que o gosto ou os caprichos de três pessoas, num certo instante, quiseram traçar pelos últimos cem anos da nossa poesia – essa a sua força e a sua fragilidade, e a razão pela qual não poderá agradar a quem quer que seja, excepto os seus organizadores.» «Sião é quase sempre atravessada por essas ‘ondas niilistas’ (185) por essa corrente que tudo arrasta à sua passagem conferindo-lhe uma dimensão de loucura que poderíamos definir como um permanente devir-marginal.» «Seja como for, e apesar de tudo, serve esta antologia para recensear alguns dos caminhos da mais recente poesia portuguesa, especialmente nos últimos anos. Sobre essa pluralidade de itinerários e de experiências (em grande parte erguida sobre os restos da ‘Poesia 61’ e a partir das vias abertas por H. Hélder e Ruy Belo) pairam duas importantes ausências/recusas; referimo-nos a João Miguel Fernandes Jorge e a Joaquim Manuel Magalhães, sem os quais se torna mais difícil discernir os traços de uma nova linguagem poética menos preocupada com malabarismos de sintaxe ou pré-fabricadas alucinações do que com a íntima partilha de um espaço emocional ao mesmo tempo inquietante e pacificador. A par desse regresso a um lirismo discursivo e individualizante (que viria a reflectir-se em poetas como Hélder Moura Pereira, Fátima Maldonado ou o Al Berto mais recente), foram os últimos tempos férteis, quer na continuação das rotas tão pessoais como as de um Franco-Alexandre, Gastão Cruz ou Nuno Júdice, quer no esboço de outras possibilidades inovadoras (casos de José Agostinho Baptista, Gil Nozes de Carvalho, Luís Miguel Nava, Fernando Luís ou Adília Lopes).» Em Agosto (12), o Diário Popular publica a primeira grande entrevista de Al berto, A cicatriz da escrita, realizada por Rodrigues da Silva. « ‘Mantenho-me suspenso neste fim de século...’ Do seu último poema, vou escolher este verso para o definir. Suspenso, sim, como alguém que flutua, magro, um corpo pendurado, lá do alto, desses óculos escuros que de repente sinto lhe servem 67 de bóia de salvação neste mar encapelado que é o dia, a sua demasiada luz, para ele que prefere a noite […]. Uma criatura frágil. Nem sei porquê, talvez por causa desse nome que partiu em dois para adoptar o de poeta, pelo meio o silêncio que me dirá ser donde vem e para onde vais a sua poesia, essa «cicatriz azul de escrita» que evoca num dos últimos poemas. Há dez anos ninguém sabia quem ele era. Hoje à beira dos 40, é indiscutivelmente um dos maiores poetas da poesia portuguesa contemporânea. Pelo ficam sete livros publicados, os dois primeiros nascidos na Bélgica, por andou o tempo necessário e suficiente para fugir à tropa e acontecer aqui o 25 de Abril. O regresso, a 17 de Novembro de 1975, não trouxe a euforia. Lisboa não lhe interessou especialmente. Em Sines procurou a infância e a adolescência e não encontrou nada [...]. Entre Lisboa e Sines, mesmo assim, foi vivendo estes anos todos. A princípio marginalizado e hostilizado, vítima daquela bem portuguesa incapacidade de tolerar a diferença. Agora, é aceite porque em Portugal a outra face da intolerância é a assimilação. Al Berto não mudou, foram os outros que mudaram, talvez porque ele, poeta, é conhecido.[...]» É nesta entrevista que Al Berto antecipa a publicação de O Medo e lança os primeiros indícios relativos ao volume: «O Medo é o título do volume que vai sair na Contexto, em Setembro ou Outubro, uma edição de dois mil exemplares, que reunirá toda a minha poesia desde 1974. Aos primeiros livros dei-lhes outra respiração, nos últimos não mexi, porque ainda não tenho distanciação para isso. O título tem a ver com a palavra medo, que aparece com certa insistência no que escrevo. Acho que tenho imenso medo quando escrevo. É a placenta. Quando se nasce tem-se medo, a escrita tem uma relação com o medo, e medo é uma coisa que toda a gente sentiu pelo menos uma vez na vida.» 70 Arzila: Estação de espuma, ilustrado por Luís Manuel Gaspar (Lisboa, Hiena Editora, 1987) Al Berto, os néons e a noite do mundo é o título publicado por Tereza Coelho, no Expresso, 17 de Outubro: « O sonho de uma gemelidade absoluta, andrógina e quase mística, encontra nesta relação com o espelho e com as fotografias da infância e da adolescência a sua verdade mais flagrante. A objectalidade é apenas uma ilusão que soçobra perante um narcisismo exacerbado: o outro, tal como a imagem especular, é apenas um instrumento de aquisição de corpo próprio, de um real. [...]». Em Outubro (19), o Jornal de Letras divulga uma entrevista realizada por Isabel Fragoso, Cinco minutos com... Al Berto: ‘Sou um Homem insone’ « [...] A escrita é o resultado de um lento e doloroso trabalho: esse de viver. É uma espécie de fera que subitamente se ergue em nós e se põe a devorar os vestígios da memória... Uma vez todo esse ritual metamorfoseado pacientemente em livro, para mim, é como se um qualquer órgão do meu corpo se desprendesse e adquirisse uma vida autónoma. Deixa de me pertencer. E não me parece que um livro exista se não houver alguém que o abra e o leia. Se é muito ou pouco lido, isso é uma outra questão.» 71 Eduardo Guerra Carneiro apresenta um Al Berto radical, no Diário Popular, 5 de Novembro, A Coragem do medo: «Al Berto: uma voz incómoda, pela marginalidade assumida. Não é marginalidade folclórica, alfacinha, das capelas e santuários da moda que nos pretendem impor, mas sim o radical posicionamento face à vida com a escrita.» * Em Fevereiro (28) de 1988, Cecília Barreira mostra-nos um Al Berto: três dimensões, in “Um livro por semana”, Diário de Notícias: «Depois existem rumores imperceptíveis de desejos que se recordam e se confundem no esquecimento de uma carta, de uma haste quebrada, de um hábito antigo num prolongar excessivo da invenção das palavras.» Dois meses depois, Al Berto está outra vez nas páginas dos jornais quando sai a notícia dos prémios Pen Clube e o nosso poeta é um dos premiados pelo livro O Medo (v. 22 de Abril, in O Dia, Correio da manhã, O Século, Diário Popular, Diário de Notícias, Jornal de Letras (26 de Abril), Diário do Alentejo (29 de Abril)). A propósito do prémio António Cabrita aponta algumas informações de camarim no Jornal de Letras de 10 de Maio, in Al Berto, a secreta cartola do poeta: «a Gulbenkian tem-lhe recusado, havia 2 anos, uma bolsa para preparar a edição de O Medo, ‘porque teriam que fazer uma regulamentação, abririam um precedente’ e obviamente tiveram medo de que no mês seguinte aparecessem cem gajos a pedir subsídios... mas não sei se se justifica não abrirem a porta a escritores e terem lá pintores a pedirem dinheiro para vidros e molduras... Portanto a Gulbenkian em relação à escrita é o espelho da revista: um cepo morto...» 72 «Os prémios não trazem nada na manga, são o que são e acabou. O do Pen é um pouco mais simpático do que os outros porque não há aquela macacada do concurso e das editoras a empurrar o retrato do seu favorito...» No Outono, o Diário Popular (26 de Novembro) revela a publicação do novo livro de Al Berto: «‘Este livro é uma narrativa mas não um romance. É a minha primeira incursão nos domínios da prosa. Lunário conta, através das relações e de um grupo de amigos como eles viveram a paixão, a vida em geral. [...] É um livro sobre a dor. Só temos consciência da vida quando começamos a perder as coisas de que gostamos. É a dor da perda. É doloroso mas tudo acaba por guardar os restos de uma vivência. [...] A personagem principal de Lunário, é um senhor que viajou muito e hoje está a olhar através de uma janela fechada, a recordar tudo o que acontece no livro.’» A Capital, 30 de Novembro, faz o ritual da crítica com Al Berto lança prosa rara, «Lunário segue poesia da dor”. Retemos algumas das palavras de Fernando Pinto do Amaral relativas ao livro: «As personagens de Al Berto em O Lunário são nómadas pois não se agarram a nada nem a ninguém, vivem de encontros que não mais se vão repetir. Tudo isto está presente na sua poesia também. [...] A prosa e a poesia de Al Berto estão inundadas por uma grande carga emocional o que demonstra que ele é em ambos os casos um poeta muito saturniano e melancólico.» Em Dezembro (3), o Expresso volta a publicar uma crítica, desta vez saída das mãos de Paulo da Costa Domingos: 75 O Lunário é apresentado no Porto, a 27 de Janeiro e no mesmo dia o Diário de Lisboa publica uma larguíssima entrevista de Al Berto com Maria José Belo Marques. A escrita, o projecto editorial Pidwell Tavares, a realidade da relação entre a literatura e a vida, bem como o poeta Al Berto enquanto ser marginal são alguns dos tópicos debatidos. «MJBM: Não tens medo de te transformares no marginalzinho da corte? AB: ‘Com não sei quantos livros publicados não se pode fugir mais a determinadas coisas. Senão passa-se a ser um coitadinho. Tenho consciência que posso se utilizado, mas quando me apercebo que há coisas que me podem ferir, aí, eu recuso-as terminantemente. Recuso-me, por exemplo, definitivamente, a pertencer a júris, sejam de que espécie forem. Prefiro não ter esses cem contos e estar numa posição de juízo em relação a pessoas mais novas do que eu. Quando um escritor vive de júris e de concursos de televisão, meu filho, o melhor é fazer as malas e ciao. Aí é, se calhar, preferível ser actor.’» Ainda sob a influência do Lunário, Maria Lúcia Lepecki escreve um ensaio um tanto místico com o título O Pecado dos Deuses numa narrativa inicial, publicado no Diário de Notícias, a 19 de Fevereiro. Quanto à vida da poesia O Independente (31 de Março) dá a conhecer um artigo marcado pela pergunta Desculpe, é poeta?, “A vida dos poetas”, feita por Teresa Adegas a vários poetas. «Al Berto diz que ia achar lindo que os seus poemas desaparecessem quando ele morresse: as páginas a ficarem cada vez mais brancas e depois o silêncio. Tem um sonho um bocado impossível de ser lembrado só através da tradição oral.» O mês de Abril (4) traz uma outra crítica literária, uma Missa in albis de Manuel Gusmão, in Jornal de Letras. No seu pensar sobre o Lunário, Manuel Gusmão testemunha: “Neste último caso não se alteram profundamente algumas das principais estruturas da ficção narrativa: os jogos sequenciais e as personagens. A poesia surge sobretudo como 76 pulsão, matéria e linguagem da própria ficção; como parte da superfície do texto e como motor da figuração do desejo amoroso e do grupo electivo.” No número de Outono de 1989, da Revista Ler, p. 78, Inês Pedrosa fala-nos de Regressos, com a sensibilidade de quem o conheceu de perto: “Nos romances, ainda se pode mentir e sair ileso. Faz-se de conta. Mas a poesia contém a essência do soro da verdade. Não é preciso sequer saber ler para a saber ouvir. [...] Os verdadeiros poetas (e não há outros) escrevem só para que as lágrimas não se gastem. Para que o amor, a solidão e a saudade nunca se resolvam. O que os aflige não é a dor da vida. É a dor de não poder reter essa dor senão em palavras. Nada os assusta mais do que a humana faculdade do esquecimento que tanto consola o comum dos mortais. Têm medo de repetir, fartar, comparar, desdramatizar, morrer. Al Berto é assim. É por isso que todos os seus poemas são um só e nenhum deles é igual ao outro. Porque ele escreve na margem onde mora, a fugir do deserto atravandado de quinquilharias a que os outros se agarram para não cair. Ele entrega- se ao medo que não nos deixa mentir. Escrevo sobre o seu mais recente Livro dos Regressos. Sei que isto não parece uma recensão – faltam-lhe as citações, as explicações, as aproximações. Mas foi contra estes espartilhos que nasceu a poesia, terrorismo supremo e subtil. É contra a corrente que a poesia busca o coração do corpo. Queriam meia dúzia de versos, um cheirinho para provar? A poesia não se deixa provar. É beber tudo ou largar. [...] Os poemas de Al Berto não servem estudiosos. Não vieram da província com referências de parentes. Não se dizem com a boca cheia. Não se sabem conter. Desequilibrados, dilacerados, ele tapam os ouvidos ao barulho e arredam os tropeços das artes, resistindo à limpeza das consolações.» O Liberal, 30 de Setembro, dá conta do novo livro in Regresso do lirismo, «Al Berto retoma a poesia com Livro dos Regressos, que não se deve perder sob nenhum pretexto», com as palavras de António Sérgio Silva: 77 « [...] Este novo passo produz medo e faz reviver todos os medos, desde a origem: os da infância. [...] Com a criança, Al Berto faz surgir uma terceira existência. Ela vem para salvar o corpo de uma ‘existência de papel’, vem com o seu silêncio e com o seu sorriso alimentar a casa onde vive o poeta. Mas o que resulta deste parto é a mesma grande insatisfação. O poeta sabe que o seu coração é ‘uma jaula de luz fechada ao mundo’. E é esse o preço de ‘uma gota de eternidade’.» O Jornal de Letras, 21 de Novembro, não pode deixar o novo livro passar em silêncio antes de o dar a conhecer pelas palavras de Eduardo Pitta: «Criança (‘a criança que em ti morreu crescendo’) e infância (‘um silvo de navalha/ à saída da desmoronada infância’), duas obsessões de A., que não se coíbe de as enfatizar: treze vezes nos fala da ‘criança assustada’, da ‘louca criança’, do ‘rosto de criança’ (sempre, ou quase, no contexto do ‘antigo medo da infância’) Até ‘onde o rapaz cresce deixa o cortante dia/ entorna-se luminoso como um punhal’.” * Em Maio (18) de 1990, Francisco José Viegas menciona Al Berto entre os nomes da «boa literatura recente», em A Resistência no papel, in O Jornal. Maria Lúcia Lepecki relembra Al Berto num ensaio Nas fronteiras do infinito o leito da poesia, publicado no Diário de Notícias a 20 de Julho. Em Dezembro (21), o Público lembra uma 80 No Público, 9 de Março, a notícia sai sob o título, Al Berto: O retrato rotativo das palavras, «Um livro de poemas e uma exposição de arte», com João Pinharanda: «Al Berto estabelece entre os poemas agora editados e as obras de 26 artistas (de Giotto a Rui Chaves) uma rede de cumplicidade que uma exposição de artes plásticas pretende amplificar. A escrita é um êxito, a exposição não – talvez porque as palavras vejam coisas que o olhar não alcança.» Fernando Pinto do Amaral presencia o novo lançamento com um ensaio crítico divulgado no Público de 22 de Março, com o título Al Berto: as visões mais ocultas. É um testemunho lúcido do caminhar do visível e do enunciável em direcção do grande silêncio. « […] A partir da desolação crescem os fogos onde vai ardendo um coração sonâmbulo, e consumido por uma desfocada nostalgia, por uma turva paisagem de insónias, que desgastam o espírito de quem escreve ‘enquanto procura algures esquecer algures/ o flutuante corpo no lodoso fantasma das cidades (p. 47).’ Quanto à poesia, essa há-de continuar a surpreender-se com o modo como a cinza pode cobrir um sorriso (cf. p. 67), mas também se deixará impregnar por outra essa força que nos faz entrever o início ‘secreto da eterna luz e da treva’ (p. 35) e descobrir, talvez, ‘um outro tempo (...)/ para lá do precário repouso do coração’ (p. 63). No caso do Al Berto e deste seu último livro, propõe-se-nos o roteiro dessa descoberta, um exercício que nos ensina a fazer como Zurbarán, iluminando os olhos com um sonho, mas oferecer ao verbo ‘sentir’ uma forma de transitividade mais atópica, (quer dizer, rejeitando cristalizar num objecto especial e disseminando-se por toda a parte). 81 Só então nos aproximaremos dessa realidade perceptiva que, longe de permanecer visual ou verbal, talvez se situe irremediavelmente para além de quaisquer imagens ou palavras. Para essa zona de silêncio, aliás, tende uma grande parte da melhor pintura, assim como dos textos sobre ela. No fim de contas, é o único modo de lhe serem fiéis.» Um dia depois, o Expresso retoma o tópico al bertiano com A pintura, o poema e o resto, nas palavras de António Guerreiro. Desde a “má qualidade das reproduções”, considerando a artificialiadade da linguagem, a “sua incapacidade para se resgatar do lugar-comum”, até as rimas com “tom excessivamente didáctico”, tudo testemunha uma “poesia que começou por vir de um espaço de ‘marginalidade’, e se tornou ‘completamente auto-complacente’, ‘satisfeita consigo própria’. * Para além dos devidos artigos de crítica literária, o jornalismo não poupa momentos de tensão, mesmo se se trata de um incidente que devia ter passado despercebido por resultar de um equívoco da organização. Estamos a falar dum acontecimento em Coimbra que a imprensa não soube calar. Porque ser poeta é assumir a vida inteira com os seus tiques e os seus eventos inesperados. Porque o anedótico pode às vezes revelar uma variação do uno. José Fonseca esteve lá e contou os factos no Público, de 19 de Janeiro de 1992, in Poetas vaiados em Coimbra, “Al Berto e estudantes insultam-se”: «Mais recentemente, um homem mordeu num cão que ficou sem um pedaço de orelha. Anteontem os poetas vaiaram poetas. Eram 23h00, pouco passava. O recinto estava cheio, algumas 300 pessoas na sala e o PÚBLICO teve acesso à gravação. O poeta começou por rogar silêncio e logo aí começou o desacato. ‘É uma questão de respeito pelos outros e pelo que 82 fazem’, insistiu. ‘Vai dormir!’, foi a resposta dos clientes do bar: queriam música. Diz a gerência que estava anunciado um espectáculo de jazz. ‘Pagaram-me para estar aqui’, explicou Al Berto, ‘e não escrevo livros para idiotas’. Depois, pediu gelo, despreocupado com os mais próximos: ‘Estou bem, só preciso é de um reforço aí no copo.” Cerca de setenta pessoas estavam em frente ao poeta. Descendentes da tribo de Antero. Os restantes multiplicavam-se em burburinho pela imensa sala. Alguns minutos depois, o recital começava. [...] ‘Habito neste país de água por engano’, quando alguns estudantes começaram a cantar um fado tipo ‘Coimbra tem mais encanto’. ‘Vocês são mesmo cretinos, foda-se’, voltou a reagir Al Berto. Acho que não leio mais nada. Mas não me vou embora sem vos dizer duas coisas: desde 1985 que leio poemas em público e é a primeira vez que não consigo ler, ou que o faço com tanto sacrifício. (...) Era a mesma coisa se eu entrasse quando vocês estão a fazer exames e dissesse: então e se fossem apanhar no cu? Só que não faço exames há vinte anos, sou profissional [apupos]... sou escritor há vinte anos, há vinte que escrevo e há dez que escrevo neste país. Não estou sozinho, felizmente não estou sozinho.” E rematou: Vocês precisam é de muitos Saramagos (...) porque ele até nem escreve muito mal (...)» Na despedida, agradeceu as vaias: ‘Fazem parte do meu muito, muito obrigado. Sobretudo na cidade onde nasci, é porreiro, porque eu nunca fui vaiado. Obrigado, adorei o whisky que vim tomar a Coimbra. Não voltarei tão cedo.’ O espectáculo prosseguiu com Hélder Moura Pereira, Paulo da Costa Domingos e Manuel Fernando Gonçalves. * Em Fevereiro/ Março de 1993, o jornal Litoral Alentejano lembra os anos no exílio belga numa entrevista com Raul Oliveira: 85 «E a que sítio nunca se cansa de regressar? - Nunca me canso de regressar a Lisboa. Sinto-me um animal profundamente urbano e nocturno. Gosto da noite, gosto da cidade e os sítios pequenos incomodam- me. Tenho uma má relação com Sines, por exemplo. Gosto muito, mas é uma relação de força que tenho com aquela terra. Só lá estou quando tenho que estar mesmo, senão sinto-me enjaulado. Só lá vou por mero romantismo, não encontro lá nada daquilo que procuro. Mas há pessoas simpáticas, tem mar e tem um lado que me agrada quando abro a janela e fico com a ideia de estou a assistir ao fim do mundo. É que tenho mesmo em frente o portão com a descarga do carvão. Gosto daqueles monstros que se mexem e que não se sabe o que fazem. E à noite, quando está iluminado e a funcionar, tem um lado de ficção científica, como se repentinamente estivesse noutro planeta qualquer. Mais do que a vila preservada, que acho bem que seja e é bonita, agrada-me o mastodonte industrial que hoje é um museu a funcionar. Mais ninguém vai construir portos assim, suponho. É noctívago. Para que é que se fez a noite? - Para já, quem é que terá feito a noite, para além da rotação do planeta? Talvez se tenha feito para deambular. Não gosto nada do dia. Gosto do sol mas com algum recato. A noite é onde me sinto bem. Passeio, bebo copos, vejo pessoas e sinto-me como um peixe na água. Durante o dia há qualquer coisa que me aflige. Aflige-me ver as pessoas a mexerem-se de um lado para o outro e a correrem. A noite é um deserto habitado, é um sítio para vaguear. Estou sozinho se me apetecer mas a 86 cada canto há um olhar de sedução, não necessariamente um engate. Não estou a falar de febres de sábado à noite, refiro-me a quem sai com regularidade. Há uma espécie de estar completamente diferente, muito mais livre, muito menos condicionada por preconceitos, por organização de uma sociedade. Como é que se cura uma insónia? - Dantes, curava-me com pílulas até cair para o lado. Agora já não faço isso porque me faz mal ao estômago. Passo noites inteiras a escrever, o que acontece regularmente, ou a ler porque continuo a ter um prazer em ler imenso. Mas quando estou muito nervoso e não há leitura que me valha, saio pelo meio da rua e deixo-me ir. Conhece algum tipo de amor que seja uma aberração da natureza? - Não há amor nenhum que seja aberração da natureza. Aliás, o que é que é a natureza? Eu próprio não sei bem. Há é amores que a mim me entusiasmam mais que outros. […] Portugal é o tal país de poetas? - Portugal não é um país de poetas mais do que outro qualquer. O que me parece é que há uma apetência pela poesia, neste país que é maior do que noutros sítios. Não sei explicar as razões, mas provavelmente tem a ver com uma tradição muito forte na poesia portuguesa que é menos visível na prosa, por exemplo. E os poetas portugueses, nos últimos 15 anos, aproximaram-se muito mais das pessoas do que os prosadores. Nas minhas leituras, por exemplo, a prosa portuguesa ocupa um lugar cada vez menor. Não quer dizer que não se façam bons livros de prosa e bons romances, mas sinto pouco entusiasmo, com duas ou três excepções: tudo o que vier do Vergílio Ferreira leio, tudo o vier da Agustina vou ler e ainda alguém que é muito esquecido mas que eu acho excelente, o Rui Nunes. E gosto muito dos livros de José Amaro Dionísio, embora esse senhor seja um preguiçoso de primeira e escreva pouco. Depois, há esses prosadores e romancistas que são mais conhecidos mas que já não 87 leio porque não me interessa para nada o que eles escrevem. Dos poetas, todos os anos têm havido bons livros, e aí não digo nomes. De manhã, quando acorda e olha para o espelho o que é que vê? - Vejo alguém que está a precisar de um litro de café e de um bom duche para acordar, e que tem uma dificuldade imensa em se conciliar com o dia. Isto é muito difícil, todas as manhãs. À noite sempre é mais fácil, pelo menos reconheço-me nessa imagem. De manhã, tenho alguma dificuldade.» Entre o excesso e a melancolia é o lugar que Fernando Pinto do Amaral encontra para a poesia de Al Berto, no Público, de 23 de Abril. «Para lá da qualidade literária dos textos (variável num volume tão extenso), O Medo de Al Berto pode funcionar como obra emblemática de uma atitude em que a poesia e a vida se interligam. A colectânea da O.C. de Al Berto esgotou e foi recentemente reeditada. Reflectindo na primeira fase o percurso de uma juventude errante ou mesmo ‘underground’, o livro assume depois um lirismo que oscila entre o excesso e a melancolia, ou seja, entre uma forte carga afectiva, sensorial, erótica, por um lado, e, por outro lado, uma tristeza desolada e nómada que vagueia por lugares cujo ‘último habitante’ é apenas a memória.» O Independente, Suplemento – Vida, a 14 de Outubro, dá conta da breve entrevista “É a primeira vez que vais brincar”, com Manuela Carona: «Três perguntas: Qual foi o seu primeiro brinquedo? Com qual brincava mais? Houve algum que gostaria de ter tido e nunca lhe deram? Sem brincadeiras, eis as respostas. - Um Pinóquio insuflável. 90 outros tempos deixa-se filtrar em versos de rara economia: «a linha do horizonte é uma lâmina/ corta os cabelos dos meteoros [...] no fundo do muito longe ouve-se / um lamento escuro / quando a alba se levanta de novo no horto / dos incêndios.» (pp. 15-16). Inflectir não significa negar. Substituir À procura do Vento num Jardim d’Agosto por Horto de Incêndio, não é mais do que estabelecer uma linha de continuidade entre o conotativo e o denotativo. [...] Ao contrário do que acontecia em Luminoso Afogado (1995), um texto circular, devedor ainda do imaginário torrencial dos livros anteriores, Horto de Incêndio afirma-se pela contenção. Mas não se trata apenas de contenção. Todo o indizível é aqui deliberadamente contido: «a luminosidade é uma placa de zinco/ do céu do deserto.’(p. 28). [...] Lugar mítico entre todos, Sines não desaparece da geografia afectiva. Lisboa foi um intervalo: ‘enrolas-te agora no pano ardido do tempo/ de lisboa [...] mas lisboa é feita de fios de sangue/ de províncias/ de esperas diante dos cafés, de vazio sob um céu plúmbeo que ensombra/ os jardins de estátuas partidas’ (pp. 46-47). Regressará em Janeiro de 1988, para integrar a direcção do Centro Cultural Emmerico Nunes: organiza exposições de pintura e fotografia, uma exposição de carácter bibliográfico, Alguma Poesia dos Anos 80, leituras de poesia. Em Junho de 1989 vem a Lisboa participar num recital com Cesariny e João Peste. Nos últimos dez anos, com a publicação de duas narrativas – Lunário, 1988 e O Anjo Mudo, 1993 –, traduções de livros em França e na Espanha, uma nova edição, aumentada, de O Medo (1991), e a participação em vários encontros internacionais de escritores, a sua figura tem sido tem sido objecto de um interesse crescente por parte dos média e dos agentes culturais. Na noite de 20 de Novembro de 1996 dirá, em voz alta, no Coliseu de Lisboa: ‘A vida afinal é como as orquídeas – reproduz-se com dificuldade.’ [...]» Sentado na parte mais triste do meu corpo (in Público, 19 de Abril), é talvez um dos ensaios mais atentos de Eduardo Prado Coelho sobre Al Berto. 91 «1.Talvez se possa começar por aquilo que fica à volta do texto, e que o protege, envolve e ampara (tecnicamente, poder-se-á falar de paratexto). Em primeiro lugar, a fotografia da capa (assinada, como a de O Medo, por Paulo Nozolino). As capas dos livros de Al Berto (e é do seu livro mais recente, Horto de Incêndio, publicado na Assírio & Alvim, que hoje falo) fazem parte, numa colaboração indirecta mas decisiva, do próprio texto. Elas servem para encenar, num narcisismo que se defende através de diversas camadas ou véus de ironia, o lugar da subjectividade em que o livro se desenrola, o seu coração arfante, opaco e exposto: ‘vês no espelho/ o homem cuja solidão atravessou quase cinco décadas e/ está agora ali a olhar-te.’ E, por último, a imagem coloca a pergunta que o texto vai repetir: ‘que horas serão dentro do meu corpo?’ No caso deste livro, Horto de Incêndio, a fotografia de Paulo Nozolino, dá-nos um rosto semioculto pela obscuridade (‘um chacal ronda os limites das imagens’), e que se refugia entre duas mãos: os dedos calcinados de sobra, as unhas reflectindo o rosto das chamas. Uma das mãos tapa por inteiro o olho direito. A outra, com os olhos abertos num agudíssimo ângulo, deixa que o olho esquerdo cintile, e produza o mais radical dos efeitos: não somos nós que vemos esta capa, é ela que nos olha, e procura, e solicita: ‘homens cegos procuram a visão do amor’. 2. Segundo ponto: uma curta nota de entrada diz-nos que este livro – que suponho ser um dos melhores do autor – ‘foi realizado no âmbito de uma bolsa de criação literária/poesia do Ministério da Cultura 1997’. Esta iniciativa, que vem de Teresa Gouveia, e foi agora amplificada por Manuel Maria Carrilho, tem suscitados reacções totalmente mentecaptas e imbecis, como talvez estejam lembrados (desde a barbárie dos economistas, estilo Arroja ou César das Neves, até aos mexilhoeiros do 92 jornalismo). Como o poema final de Al Berto aparece na íntegra no mais recente número da revista Ler (onde encontramos, aliás, uma selecção de poesias inéditas de extrema qualidade), talvez tenha algum sentido ler o que nele escreve Francisco José Viegas a este propósito: «Para os que apreciam números, cito o caso americano, onde são atribuídas anualmente cerca de cento e vinte bolsas no domínio da ficção, poesia e edição ‘alternativa’ ou ‘independente’ (o que correspondia, em 1992, a 4.606.766 dólares, número que, em 1996, atinge os 6 milhões). [...] Temos aqui alguns elementos importantes que podem constituir matéria de reflexão para o nosso analfabetismo liberal. Quanto ao receio de que escritores subsidiados produzam ‘uma cultura de Estado’ podemos estar tranquilos lendo o livro de Al Berto. Esta poesia não se inscreve em nenhuma cultura oficial. São textos escritos, como todos aqueles que valem alguma coisa, ‘para te manteres vivo’ – ‘quando cresce o lobo que me ronda o sono’. 3. Alguém imagina o regresso de um Rimbaud que sabe que todo o regresso é impossível. O poeta senta-se – fica ‘sentado na parte mais triste do meu corpo’. Ou então: ‘deixo o corpo escorregar na poeira luminosa./ acendo um cigarro, ponho-me a fala com o meu fantasma’. Imóvel, manietado, preso na cegueira de um tempo em branco: ‘ruas/ onde o tempo passa lento e branco em direcção/ a outro tempo igual’. E tem agora lugar o interminável chamamento de imagens. A poesia de Al Berto sempre foi uma explosão de imagens que se prolongam e multiplicam noutras imagens – algumas no limite da queda, outras no limiar do voo. Daí que se possa dizer que, numa literatura sem viagens como é quase toda a literatura portuguesa dos nossos dias, Al Berto trouxe-nos de um modo explícito, tácito, histórico ou intemporalmente nómada, o gosto dos mares sem fim, dos desertos em fogo, das cidades nocturnas – os mapas de Europa e de abissínia que tatuam os corpos anónimos. A sua poesia toca-nos precisamente por esse capricho extremo em empolgar as imagens até a sua própria destruição. O que encontramos neste livro começa a ser diferente, é uma outra forma de olhar: tentativa de recolher o que a destruição poupou ou transfigurou. Por isso ‘tudo vem ao chamamento – os 95 situação. Os seus autores não correm riscos e a poesia que não corre riscos é uma chatice. JL – Não lhe parece que essa poesia sem riscos corresponde a um modo de estar na vida também sem eles? AB – Não tenho a certeza. Mas quando não se arrisca na vida, não se arrisca em nada. [...] Pessoalmente, não consigo separar a vida da literatura e vice-versa. Está tudo profundamente ligado. Para mim, é assim: tem de haver uma grande coerência na maneira como se escreve, como se vive, como se está no mundo, senão nem a vida nem a poesia fazem qualquer sentido. [...] JL – No Horto de Incêndio, há um verso lindíssimo, que se refere a «dias que sejam limpos». Corresponde a um ideal seu? O que seriam os seus dias limpos? AB – Esse verso tem a ver com o lado místico da minha poesia. Ela ajuda-me a limpar o lixo que me rodeia. Repare que vivemos num planeta completamente lixado. Não partilho de uma perspectiva ecológica de combate [...], mas tenho a noção de que se perdeu uma espécie de harmonia que eventualmente houve. Já estamos em plena desumanização, mas eu recuso-me a participar nessa merda. Tenho afectos, amor quando isso acontece, paixão, mas, como não vivo sozinho, apercebo- me de que estou cada vez mais um homem das cavernas. JL – Vivemos numa época sem memória... AB – Ao contrário do que acontece em outras civilizações, como os aborígenes da Austrália, onde ela é muitíssimo preservada. Hoje, qualquer miúdo de vinte anos acha o techno um milagre da música moderna, mas o curioso é que não estabelece qualquer ligação com o que vem de trás. As coisas nascem porque houve antecedentes para elas. As ligações às vezes são estranhíssimas, mas existem... JL – Apesar de tudo, acredito que esta situação já foi pior, nomeadamente ao longo dos anos 80... 96 AB – Nos anos 80 houve um culto do corpo e da pose que tem muito a ver com estados do espírito e do físico herdados dos anos 60, embora isso geralmente não seja dito. Os anos 70, em contrapartida, não foram tão cinzentos como se diz. Talvez não tenham sido muito alegres, mas tiveram coisas fantásticas. Porque é que continuamos a ouvir os Doors, Bob Dylan, David Bowie e Velvet Underground?[…]» No Diário de Notícias, de 26 de Abril, Al Berto fala com Ana Marques Gastão sobre a Dor e silêncio das ruas vazias, sobre a febre, o inferno, a separação e a morte que trespassam o Horto de Incêndio. AL BERTO – A UM DEUS DESCONHECIDO é outra entrevista com Clara Ferreira Alves, foto de Luiz Carvalho (Expresso, 31 de Maio) que nos assegura que «[...] Algures, numa mesa pequena, está pousado ‘um albatroz empalhado para te vigiar a alma’.» No mesmo número, in A Pluma Caprichosa: ‘O Poeta em aberto’, Clara Ferreira Alves, p. 112, conta a sua versão da história: «São seis anos da manhã, e eu estou a olhara as palavras de Al Berto no computador. As palavras estão em silêncio, um silêncio de metamorfose, um silêncio dos pesadelos quando na fuga as pernas se enroscam na terra. No gravador, quando desgravo a entrevista, ouço a voz dele, a cortar o silêncio, e o riso, e a história que dele conta. Desfiamos na fita gravada o rosário de poemas de Horto de Incêndio, o livro que publicou, e falamos dos segredos, das coisas que viu e guardou na cabeça. Dos 97 escritores. Ele está doente, mas a cabeça não está, a cabeça tem lá dentro, diz-me ele, todos os livros que leu e amou, todas as lágrimas que chorou, todas as violências que herdou, todas as paixões que desatou, todas as pessoas que cativou, todos os países que visitou. [...] É tudo verdade. Até os inspirados vates deste mundo entendem que não vale a pena escrever sobre coisas que não são verdadeiras. Há uns anos atrás, numa madrugada de ano novo, manchada de néons e devoções, o al berto esvoaçou à beira do tejo, parecia um pássaro a falar de Pessoa e de regressos impossíveis. Depois fomos comer bolos na leitaria ao Camões e ele perturbou os pombos e a missa na igreja do Chiado, caminhando em direcção ao altar, no meio do incenso e das velhas. As velhas não perdoam aos ímpios, mas deus se estivesse por perto, tê-lo-ia aconchegado nos braços. Deus tem uma certa reputação, é certo, mas os poetas também. [...] Depois da entrevista que escrevo passaram semanas. Um dia tive de ir ao hospital ver o al berto. As coisas tinham-se precipitado e a cabeça preparava-se para o atraiçoar, tendo os médicos impedido que ela se fosse embora. É preciso desconfiar de palavras do género feminino, como cabeça, pensei. Nunca se sabe quando se querem ir embora, como mulheres amuadas. O al berto estava deitado, e percebi que ele já percebeu que se pode viver sem nada mas precisa-se da cabeça, que é o lugar onde se tem tudo. Mesmo a cabeça rapada. O al berto não gosta de hospitais. São lugares onde a vida se reproduz com dificuldade e as orquídeas se suicidam nas jarras. [...] Agora o al berto está arrasado de mágoa, arredado do princípio da alegria. Não pode viajar dentro da cabeça, mesmo rapada, e caminha devagar. Os olhos apartam-se de nós, e depois ele regresse a atira uma palavra, a sorrir. «AMOR SEMPRE!» Não é lirismo do hospital, não pensem. O al berto nunca foi dado a delíquios. E, de repente, ouvindo aquele «amor sempre», o hospital encheu-se de vergonha. Nem fruta nas mesas-de-cabeceira, nem batas brancas, nem caras inchadas, nem soros a escorrer, nem murmúrios a romper, nem batas verdes, nem piedades, nem regras, nem cortinas de plástico, nem orações do dia, nem, nem gritos na noite, nem tubos de plástico, nem vizinhos de cabeças rapadas com cantinhos na mesa-de-

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