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Guias e Dicas
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PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito, Notas de estudo de Direito

Ética e Direito

Tipologia: Notas de estudo

2011

Compartilhado em 01/02/2011

eloiso-pimentel-10
eloiso-pimentel-10 🇧🇷

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Baixe PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito e outras Notas de estudo em PDF para Direito, somente na Docsity! ÉTICA E DIREITO Chaim Perelman Tradução MARIA ERMANTINA GALVÃO G. PEREIRA Martins Fontes São Paulo 1996 Esta obra foi publicada originalmente em francês com o título ÉTHIQUE ET DROIT por Éditions de ! Université de Bruxelles, em 1990 Copyright O 1990 by Éditions de P Université de Bruxelles Copyright O Livraria Martins Fontes Editora Lida, São Paulo, 1996, para a presente edição 1º edição julho de 1996 Tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira Revisão da tradução Eduardo Brandão Preparação do original Luzia Aparecida dos Santos Revisão gráfica Andréa Stahel M. da Silva Maria Cecilia de Moura Madarás Maria de Fátima Cavaliaro Ana Maria de Oliveira Mendes Barbosa Produção gráfica Geraldo Alves Paginação Studio 3 Desenvolvimento Editorial Capa Katia H. Terasaka Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasilei Perelman, Chaim. Ética e direito / Chaim Perelman ; tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira, - São Paulo : Martins Fontes, 1996. ISBN 85-3360521-8 1. Direito e ética 2. Direito - Filosofia 3. Direito — Metodologia 4. Justiça 1 Título, 96-2538 CDD-340.1 Índices para catálogo sistemático: 1. Direito : Filosofia 340.1 2. Ética e direito 340.1 Todos os direitos para o Brasil reservados à Livraria Martins Pontes Editora Ltda. Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325-000 São Pato SP Brasil Telefone 239-3677 Índice Quadro de correspondência. Apresentação, de Alain Lempereur... Capítulo 1 — A justiça .. si con com vom wo 85. - Os três aspectos da justiça... . À regra de justiça . O ideal de racionalidade e a regra de justiça (se- PRIMEIRA PARTE A ÉTICA Da justiça. 1. Colocação do problema.. 2. A justiça formal. As antinomias da justiça e a equidade 4. Igualdade e regularidade 5. Da arbitrariedade na justiça. 6. Conclusão. guido de uma discussão com Koyré, Guérouit, Ri- coeur, Lacan, ...) Cinco aulas sobre a justiça . 1, A justiça e seus problemas 2. A regra de justiça e a egiiidade 3. Da justiça das regras. 93 145 146 156 168 x ÉTICA E DIREITO (1960), JR, 224-233 (1960), CA, 287-336 (1966), DMP, 15-66 (1970), CA, 162-168 (1977), RD, 170-175 (1977), RD, 176-182 (1982), RD, 183-191 (1981), RD, 192-202 (1984), RD, 164-169 com cos cam com ca cor con eo em em ENCARNA Ata CarítuLO II Considerações morais 512: (1958), JR, 175-183 513: (1968), CA, 193-206 514: (1968), CA, 183-192 515: (1964), DMP 87-91 $16: (1962), DMP, 83-86 817: (1968), DMP, 185-190 818: (1963), DMP, 179-183 819: (1984), RD, 44-48 820: (1984), DMP, 169-177 821: (1969), CA, 207-216 822: (1970), CA, 171-182 823: (1966), DMP, 161-167 Parte ll. O DIREITO CarítuLoI A racionalidade jurídica 824: (1962), JR, 244-255 $25: (1976), DMP, 191-202 $26: (1976), RD, 20-25 $27: (1966), DMP, 67-74 $28: (1982), RD, 49-55 829: (1970),CA, 150-161 QUADRO DE CORRESPONDÊNCIA 530: (1984), RD, 68-74 831: (1978) RD, 11-19 532: (1982), RD, 34-43 833: (1982), RD, 26-33 $34: (1975), RD, 75-84 CaríruLO II O raciocínio jurídico 835: (1961), JR, 218-223 836: (1964), DMP, 155-160 837: (1965), DMP, 93-100 $38: (1966), CA, 123-130 839: (1968), CA, 131-138 540: (1968), CA, 139-149 841: (1973), RD, 56-67 542: (1976), RD, 91-100 843: (1983), RD, 143-15] 544: (1984), RD, 85-90 CAPÍTULO II Os lugares da argumentação jurídica 845: (1978), RD, 112-123 846: (1961), DMP, 101-108 847: (1959), JR, 206-217 848: (1981), RD, 124-131 849: (1974), DMP, 145-154 850: (1971), DMP, 135-144 851: (1972), RD, 101-H1 852: (1965), DMP, 109-119 553: (1968), DMP, 121-133 354: (1984), RD, 132-142 855: (1978), RD, 152-163 Apresentação Chaim Perelman é considerado um dos maiores filósofos do direito deste século. Sua originalidade se deve, em grande parte, à vontade incessante de reabilitar a vida do direito e de torná-lo o fundamento de sua atividade. Aprazia-se ele em dizer que o direito deveria ser, para a nova filosofia, o que ha- viam sido as matemáticas para a antiga, para a metafísica clás- siça. O direito, tal como é praticado, é o que nasce da contro- vérsia, no processo, e se cristaliza nas decisões do juiz. Ao in- tegrar esse empreendimento pragmático no campo ampliado de seu estudo sobre a argumentação”, Perelman restabelece os vínculos com o gênero judiciário, que a antiga retórica valori- zava; além disso, enriquece-o com experiências tiradas da evo- lução do direito. Começada em 1945, sua obra de filosofia jurídica prosse- gue durante quarenta anos. Elabora-se em numerosas contri- buições e artigos, que o próprio Perelman reedita em Justice et Raison (1963), Le Champ de L' Argumentation (1970), Droit, Morale et Philosophie (1976) e Le Raisonnable et le Dérai- sonnable en Droit (1984). As obras que nos servem de base para este volume são marcadas pelos mesmos temas: para reforçar e aprimorar o edifício, Perelman retorna incessante- mente às questões da justiça, dos valores, do razoável e à importância dos procedimentos argumentativos no raciocínio dos juízes. A meio caminho entre a obra de síntese, que apenas Perelman poderia ter escrito”, e a antologia, que não evita cer- XIV ÉTICA E DIREITO tos textos análogos”, pareceu-nos importante adotar essas gran- des categorias que Perelman havia traçado em seus diferentes livros e preservar tanto quanto o possível a ordem cronológica. O título “Ética e direito” faz referência à dupla preocupação perelmaniana de apoiar a filosofia moral com uma reflexão sobre o direito e de mostrar como o direito se ajusta à realidade a partir dos valores morais. Essa complementaridade, esse movimento de vaivém ditou-nos as duas partes da obra. Na “Ética”, o primeiro capítulo é consagrado à Justiça. Como abordar essa noção confusa e prestigiosa? Que papel atribuir à igualdade? Tais perguntas, entre outras, constituem a interrogação inicial de Perelman depois da última guerra. Seus estudos mais recentes integram as respostas sugeridas à pers- pectiva global da “Nova Retórica”, salientando a importância de uma concepção não absolutista da justiça, que se desenvolve a partir de uma argumentação racional, prudente, fundamenta- da no senso comum e no consenso. As considerações morais se abrem para uma crítica da razão clássica exclusivamente preocupada com verdades imu- táveis. O discurso da ação e o raciocínio prático se afastam dos procedimentos dedutivos e indutivos para privilegiar a justifi- cação. Isso enseja a Perelman a ocasião de discutir as teses de Lévy-Bruhi, de distanciar-se do cepticismo moral e, ao mesmo tempo, de aconselhar abordar a moral pelo direito. O direito não é, evidentemente, a moral; mas, na prática, como não se reduz a um formalismo puro, ele pode ser de grande interesse para a razão prática, até para a filosofia inteira. Nessa concep- ção da moral, não há regras irrefragáveis, mandamentos divi- nos; os princípios morais são lugares-comuns, em concorrên- cia uns com os outros. Em suma, Perelman põe em relevo o exame que se deve renovar para cada situação particular: sem- pre que é esperada uma escolha moral, cumpre apresentar razões com autoridade suficientemente persuasiva”para serem admitidas pelo auditório universal. Na segunda parte, relativa ao “Direito”, somos confronta- dos a todo instante com o combate travado por Perelman contra as visões tradicionais da razão jurídica. Essas visões contesta- APRESENTAÇÃO Xv das que crêem, todas elas, na existência de um ideo-direito — transcendente ou positivo -, projetam uma metafísica monísti- ca, que Perelman igualmente tem em linha de mira. Ele luta a um só tempo contra os partidários do direito natural e contra os do juspositivismo. * A nova racionalidade jurídica almeja romper com as ilu- sões de uns e de outros. A rejeição do direito natural pode pare- cer menos nítida na aparência, na medida em que Perelman, desejando um direito construído sobre os: valores, adota os princípios gerais do direito, assim como os direitos do homem. Mas Perelman os concebe no interior do sistema positivo; pro- cede a uma secularização, a uma integração imanente do que dependia antes de uma fonte transcendente. Fundamentar os direitos do homem no absoluto não tem sentido para ele, por- que existe realmente um acordo dos homens na sociedade sobre a necessidade deles. Se há dificuldade quanto à sua hie- rarquia e à sua respectiva definição, compete a cada homem, individualmente, resolvê-la desenvolvendo a argumentação apro- priada. No lado oposto, na vertente positivista, Perelman cons- tata a impossibilidade, para a ciência, de explicar o direito e suas decisões. As sentenças € os arestos não redundam em pro- posições verdadeiras tiradas de um silogismo, mas em respos- tas mais aceitáveis e adaptadas, integradas numa argumenta- ção. Se há sistema e ciência do direito, eles não podem esbo- çar-se fora da controvérsia permanente. Portanto, o direito não é o lugar do irracional nem o do racionalismo tal como é conhecido em ciência, O meio-termo proposto pela “Nova Retórica” é o razoável e seu contraste, mais bem identificável por seus efeitos sociais, o dezarrazoa- do. O filósofo de Bruxelas pleiteia, assim, que se leve em conta a atividade do direito, feita de debates, de trocas de argumentos e de questionamentos das ontologias assentes no real. O realis- mo radical de Perelman tem condições de explicar a evolução no direito: é suscitada por uma dialética equilibrada entre for- malismo e pragmatismo, entre legislador e juiz. Para encontrar a solução mais adequada, o estatismo do prescrito legal é adap- tado pelo dinamismo da decisão judiciária. 4 ÉTICA E DIREITO Belo, do Dever, etc., é mister ficar alerta. Com demasiada fre- qiência, nosso interlocutor, conhecendo o apreço que temos pelos valores que essas palavras designam, procurará fazer-nos admitir a definição que ele nos apresenta como a única verda- deira, a única adequada, a única admissível, da noção discuti- da. Às vezes, ele se empenhará em nos levar diretamente a aquiescer ao seu raciocínio, o mais das vezes usará de longos rodeios para nos conduzir ao objetivo que se propõe atingir. Na realidade, uma mente não prevenida não dá a impor- tância devida à escolha de uma definição. Crendo ter cedido acerca do sentido de uma palavra, abandona, sem se dar conta, todo o móbil do debate. E tal desventura lhe acontecerá tanto mais facilmente quanto mais espírito matemático tiver, acostu- mado às deduções sólidas a partir de definições arbitrárias. É um grave erro crer que todas as definições são comple- tamente arbitrárias. Se os lógicos admitem a natureza arbitrária das definições, é porque elas não constituem, para eles, senão uma operação que permite substituir um grupo de símbolos conhecidos por um símbolo novo, mais curto e de manejo mais fácil do que o grupo de signos que o define. O único sentido desse novo símbolo, perfeitamente arbitrário, é o conjunto de signos que lhe serve de definição. Não tem ele outro sentido, e atribuir-lhe outro é cometer o erro de lógica clássica conhecido pelo nome de definição dupla. Chega-se, de fato, aos piores sofismas ao servir-se de uma noção em dois sentidos diferen- tes, sem provar que eles coincidem. Ora, chega-se normalmen- te a um sofisma cada vez que se define uma “noção com maiús- cula”: o erro de lógica assim cometido é imperceptível para todos aqueles que se contentam em seus raciocínios com o es- pírito matemático. Com efeito, essa falta não consiste numa definição dupla explícita e facilmente detectável, mas no aco- plamento à definição que se quer fazer admitir do termo presti- gioso (Justiça, Liberdade, Bem, Virtude, Realidade) do sentido emotivo desse termo, que faz que se confira um valor ao que é definido como sendo a justiça, a liberdade, etc.” Todas as vezes que se trata de definir uma noção, que não constitui um signo novo, mas preexiste na linguagem, com A ÉTICA 5 todo o seu sentido emotivo, com todo o prestígio que a ela é vinculado, não se pratica um ato arbitrário, logicamente indife- rente. Não é, em absoluto, indiferente que se defina a justiça, o bem, a virtude, a realidade, deste ou daquele modo, pois com isso se determina o sentido conferido a valores reconhecidos, aceitos, a instrumentos muito úteis na ação, que constituem verdadeiras forças sociais”. Admitir uma definição de uma noção assim é, longe de praticar um ato indiferente, dizer o que estimamos e o que desprezamos, determinar o sentido de nossa ação, prender-se a uma escala de valores que nos permitirá guiar-nos em nossa existência. Toda definição de uma noção fortemente colorida do ponto de vista afetivo transporta essa coloração afetiva para o sentido conceitual que se decide atribuir-lhe. Ao considerar to- da definição como a afirmação de um juízo analítico, que pode ser estabelecido de forma arbitrária, despreza-se essa transfe- rência da emoção do termo que se define para o sentido concei- tual que lhe serve de definição. Todas as vezes que tal transfe- rência se opera, a definição não é analítica nem arbitrária pois, por seu intermédio, afirma-se um juízo sintético, a existência de um vínculo que une um conceito a uma emoção. Daí resulta que uma definição só é analítica, portanto arbi- trária, na medida em que nenhum sentido emotivo é vinculado ao termo definido. : As disciplinas filosóficas se distinguem das disciplinas científicas essencialmente pelo grau de emotividade vinculado às suas noções fundamentais. As ciências se separaram da filo- “Sófia na medida em que, pelo uso dos métodos precisos, expe- rimentais ou analíticos, lograram pôr o relevo e obter o acordo das mentes menos sobre o sentido emotivo das palavras do que sobre o seu sentido conceitual. Quanto mais consistência ad- quire o sentido conceitual das palavras em todas as mentes, menos se discute sobre o sentido dessas palavras, mais se esfu- ma sua coloração emotiva”, Quando há mais vantagem em che- gar a um acordo sobre o sentido conceitual de um termo do que em preconizar definições diferentes, o sentido emotivo desse termo se apaga e passa para o segundo plano. Foi isso que 6 ÉTICA E DIREITO aconteceu com as noções básicas das ciências experimentais € matemáticas. Se as ciências, chamadas sociais, o que os alemães cha- mam as “ciências do espírito”, Geisteswissenschaften, só muito dificilmente logram constituir-se, é sobretudo porque a coloração afetiva de suas noções básicas é tão forte que um acordo sobre o sentido conceitual se forma apenas numa ira- quíssima medida. Com maior razão essas mesmas considera- ções se aplicam à filosofia. Isso porque o objeto próprio da filosofia é o estudo dessas noções prestigiosas, fortemente coloridas no ponto de vista emotivo, constituídas pelos mais elevados valores, de sorte que o acordo sobre o sentido concei- tual delas é quase irrealizável, Pois essas noções, por causa de seu sentido emotivo bem caracterizado, constituem o campo de batalha de nosso mundo espiritual. Foi por elas, pelo sentido conceitual que se lhes concederá, que sempre se travaram os combates do mundo filosófico. Quando se trata de definir esses termos carregados de sen- tido emotivo é que surgem as discussões sobre o verdadeiro sentido das palavras. Ora, semelhantes discussões seriam absurdas se toda definição fosse arbitrária. Se, porém, concor- da-se em reconhecer-lhes certo significado é porque sua con- clusão determina um acordo sobre valores. É ao querer fazer que admitam sua definição pessoal dessas noções prestigiosas que a pessoa procura impor sua concepção do mundo, sua pró- pria determinação do que vale e do que não vale. Cada qual definirá, portanto, essas noções à sua maneira, o que lhes acar- retará a irremediável confusão. Pode-se tirar daí a conclusão, que poderia parecer irreve- rente, de que o objeto próprio da filosofia é o estudo sistemáti- co das noções confusas. Com efeito, quanto mais uma noção simboliza um valor, quanto mais numerosos são os sentidos conceituais que tentam defini-la, mais confusa ela parece. Atal ponto que nos perguntamos às vezes, e não sem razão, se o sen- tido emotivo não é o único que define essas noções prestigiosas e se não temos de resignar-nos, de uma vez por todas, à confu- são que se prende ao sentido conceitual delas. A ÉTICA 7 Tentando estabelecer o acordo das mentes sobre o sentido conceitual de uma noção assim, seremos inevitavelmente leva- dos a diminuir-lhe o papel afetivo: é apenas a esse preço que se conseguirá resolver o problema, se é que se conseguirá isso um dia. Ao mesmo tempo, a noção deixará de ser filosófica e admi- tirá uma análise científica, desprovida de paixão, mas dando mais satisfação ao lógico. Com isso, estender-se-á o campo da ciência, sem restringir, todavia, o da filosofia. Como se verá, pelo exemplo do presente estudo, a coloração emotiva, retirada de uma noção tomada mais científica, virá prender-se a outra noção que enriquecerá o campo das controvérsias filosóficas. Isentando uma noção de qualquer coloração emotiva, transfere- se a emotividade para outra noção, complementar da primeira, Assim é que o esforço do pensamento filosófico, que abre à ciência um novo domínio do saber, lembra o dos engenheiros | holandeses que, para proporcionar ao lavrador mais uma nesga | de terra, recuam as águas do mar, sem as fazer desaparecer. Uma análise lógica da noção de justiça parece constituir uma verdadeira aposta. Isso porque, dentre todas as noções prestigiosas, a de justiça parece uma das mais eminentes e a mais irremediavelmente confusa. À justiça é considerada por muitos a principal virtude, a fonte de todas as outras. “O pensamento e a terminologia”, diz E. Dupréel', “desde sempre incitaram a confundir com o valor da justiça o da mora- lidade inteira, A literatura moral e religiosa reconhece no justo o homem integralmente honesto e benfazejo; a justiça é o nome comum de todas as formas de mérito, e os clássicos expressa- riam sua idéia fundamental dizendo que a ciência moral não tem outro objeto senão ensinar o que é justo fazer e ao que é Justo renunciar. Ela diria também que a razão deve ensinar-nos a distinção entre o justo e o injusto, em que consiste toda a ciência do bem e do mal. Assim, a justiça que, de um lado, é uma virtude entre as outras, envolve, do outro, toda a moralida- de” É tomada neste último sentido que a justiça contrabalança todos os outros valores. Pereat mundius, fiat justitia. 8 ÉTICA E DIREITO Para Proudhon; “a justiça, sob diversos nomes, governa o mundo, natureza e humanidade, ciência e consciência, lógica e moral, economia política, política, história, literatura € arte. À justiça é o que há de mais primitivo na alma humana, de mais fundamental na sociedade, de mais sagrado entre as noções e o que as massas reclamam hoje com mais ardor. É a essência das religiões, ao mesmo tempo que a forma da razão, o objeto secre- to da fé, e o começo, o meio e o fim do saber. Que imaginar de mais universal, de mais forte, de mais perfeito do que a justiça”*? É sempre útil e importante poder qualificar de justas as concepções sociais que se preconizam. Todas as revoluções, todas as guerras, todas as revoltas sempre se fizeram em nome da Justiça. E o extraordinário é que sejam tanto os partidários de uma ordem nova como os defensores da ordem antiga que clamam com seus votos pelo reinado da Justiça. E, quando uma voz neutra proclama a necessidade de uma paz justa, todos os beligerantes ficam de acordo e afirmam que essa paz justa só será realizada quando o adversário for aniquilado. Note-se que pode não haver nenhuma má-fé nessas afir- mações contraditórias. Cada um dos antagonistas pode estar sendo sincero e acreditar que sua causa é a única justa. E nin- guém se engana, pois cada qual fala de uma justiça diferente. “Como uma noção moral”, escreve E. Dupréel”, “não cor- responde nem a uma coisa que basta observar para verificar o que dela se afirma, nem a uma demonstração à qual basta ren- der-se, mas realmente a uma convenção para defini-la de uma certa maneira, quando um adversário tomou a ofensiva pondo de seu lado as aparências da Justiça, a outra parte ficará incli- nada a dar da justiça uma definição tal que sua causa se mostre conforme a ela” Cada qual defenderá uma concepção da justiça que lhe dá razão e deixa o adversário em má posição. E se nos dissermos que faz milhares de anos que todos os antagonistas, nos conflitos públicos e privados, nas guerras, nas revoluções, nos processos, nas brigas de interesses, decla- ram sempre e se empenham em provar que a justiça está do seu lado, que se invoca a justiça todas as vezes que se recorre a um A ÉTICA 9 árbitro, perceberemos imediatamente a incrível multiplicidade dos sentidos que se atribuem a essa noção, e a confusão extra- ordinária que é provocada por seu uso. É ilusório querer enumerar todos os sentidos possíveis da noção de justiça. Vamos dar, porém, alguns exemplos deles, que constituem as concepções mais correntes da justiça, cujo caráter inconciliável veremos imediatamente: 1. A cada qual a mesma coisa. 2. A cada qual segundo seus méritos. , 3. A cada qual segundo suas obras. 4. A cada qual segundo suas necessidades. 5. A cada qual segundo sua posição. 6. A cada qual segundo o que a lei lhe atribui. Precisemos o sentido de cada uma dessas concepções. 1ºA cada qual a mesma coisa. Segundo essa concepção, todos os seres considerados de- vem ser tratados da mesma forma, sem levar em conta nenhu- ma das particularidades que os distinguem. Seja-se jovem ou velho, doente ou saudável, rico ou pobre, virtuoso ou crimino- so, nobre ou rústico, branco ou negro, culpado ou inocente, é justo que todos sejam tratados da mesma forma, sem discrimi- nação alguma, sem discernimento algum. No imaginário popu- lar, o ser perfeitamente justo é a morte que vem atingir todos os homens, sem levar em consideração nenhum de seus privilégios. 2ºA cada qual segundo seus méritos. Eis uma concepção da justiça que já não exige a igualdade de todos, mas um tratamento proporcional a uma qualidade in- trínseca, ao mérito da pessoa humana. Como definir esse méri- to? Qual medida comum encontrar entre os méritos e deméritos de diferentes seres? Haverá, em geral, semelhante medida co- mum? Quais serão os critérios que se devem levar em conta para a determinação desse mérito? Cumprirá levar em conta o resulta- do da ação, a intenção, o sacrifício realizado, e em que medida? Habitualmente, não só não respondemos a todas essas perguntas, mas nem sequer as formulamos, Se estamos embaraçados, dize- 14 ÉTICA E DIREITO que se poderiam formular; ou, pelo menos, — para não nos impormos a irrealizável condição de pesquisar o elemento comum a uma profusão infinita de concepções diferentes — buscaríamos o que há em comum entre as concepções da justi- ça mais correntes, que são as que distinguimos nas páginas pre- cedentes. 2. A justiça formal Para que uma análise lógica da noção de justiça possa constituir um progresso incontestável no esclarecimento dessa idéia confusa, é preciso que ela consiga descrever de um modo preciso o que há em comum nas diferentes fórmulas da justiça e mostrar os pontos em que diferem. Essa discriminação prévia permitirá determinar uma fórmula da justiça sobre a qual será realizável um acordo unânime, fórmula que levará em conside- ração tudo quanto há em comum entre as concepções opostas da justiça. Daí não resulta, em absoluto, que se vá acabar com o de- sacordo existente entre os defensores das diversas concepções dessa noção. O lógico não é um prestidigitador e sua função não consiste em escamotear o que é. Ao contrário, ele deve fi- xar o ponto onde o desacordo ocorre, pô-lo em plena luz, mos- trar as razões pelas quais, a partir de uma certa noção comum da justiça, chega-se, porém, a fórmulas não só diferentes, mas mesmo inconciliáveis. A noção de justiça sugere a todos, inevitavelmente, a idéia de certa igualdade. Desde Platão e Aristóteles, passando por Santo Tomás, até os juristas, moralistas e filósofos contempo- râneos, todos estão de acordo sobre este ponto. A idéia de justi- ça consiste numa ceria aplicação da idéia de igualdade. O essencial é definir essa aplicação de tal forma que, mesmo constituindo o elemento comum das diversas concepções de justiça, ela possibilite as suas divergências. Isto só é possível se a definição da noção de justiça contém um elemento indetermi- nado, uma variável, cujas diversas determinações ensejarão as. mais opostas fórmulas de justiça. AÉTICA 15 Em seu tratado sobre as Trois Justices”, de Tourtoulon procura estabelecer um nexo entre as diversas concepções da justiça valendo-se da noção de limite. Para ele, a justiça perfeita consistiria na igualdade completa de todos os homens. O ideal de justiça corresponderia à primeira de rossas seis fórmulas. Mas, essa igualdade perfeita, todo o mundo o percebe imediatamente, é irrealizável e só pode consti- tuir, portanto, um ideal para o qual se pode tender, um limite do qual se pode tentar aproximar-se na medida do possível. Todas as outras concepções da justiça não passariam de tentativas imperfeitas de realizar tal igualdade: buscar-se-ia pelo menos realizar uma igualdade parcial, que é tanto mais fácil de atingir quanto mais se afastar desse ideal de igualdade completa. “Logicamente”, diz de Tourtoulon", “ as diversas concep- ções da justiça-igualdade, muito longe de serem contraditórias, são da mesma essência. Diferem apenas por sua possibilidade de realização. Sendo a igualdade perfeita uma idéia-limite, sua possibilidade de realização é nula. As possibilidades de reali- zação aumentam à medida que as outras concepções igualitá- rias vão se afastando desse ponto situado no infinito” “Poder-se-ia”, diz ele”, “chamar justiça de caridade, igual- dade de caridade, aquela que tende a vir em auxílio dos infelizes por natureza e a proporcionar-lhes uma parte tão grande quanto o possível das satisfações que os outros podem usufruir. “A justiça distributiva tem por objeto outra igualdade, aquela que leva em conta capacidades e esforços individuais na atribuição das vantagens. Sua divisa é: a cada qual segundo seus méritos; afastando-se da igualdade-limite, ela se aproxima das possibilidades de realização. “A justiça comutativa já não se ocupa com a vida indivi- dual tomada em seu conjunto. Quer estabelecer a igualdade em cada ato jurídico, de tal modo que um contrato não arruine um para enriquecer o outro. Pode-se-lhe vincular a justiça com- pensatória pela qual se restabelece uma igualdade lesada por culpa de outrem... “Usa-se em geral como um argumento de ataque o fato de a igualdade contida na idéia de justiça aparecer sob numerosos 16 ÉTICA E DIREITO e diferentes aspectos, para rejeitar em bloco todas essas con- cepções como não tendo o menor valor lógico. É uma argu- mentação por demais superficial. Entre essas diversas noções de igualdade não existe nenhuma contradição; ao contrário, são implicadas umas pelas outras, são todas pontos tomados sobre uma abcissa cujo limite é “a igualdade perfeita” e que se aproximam cada vez mais da ordenada que é “a possibilidade de realização” ” A essa concepção, da qual não se pode negar que constitui um esforço meritório para a compreensão da noção de justiça, podemos dirigir duas objeções. A primeira é que ela escolhe arbitrariamente, entre as diferentes fórmulas da justiça, apenas uma que, merecidamen- te, parece para uma imensa quantidade das consciências, se não para a maioria delas, perfeitamente inadmissível. Cumpri- rá tratar da mesma forma todos os homens sem levar em conta seus méritos, nem seus atos, nem suas origens, nem suas neces- sidades, nem seus talentos, nem seus vícios? Um número imenso de moralistas teria o direito de insurgir-se contra essa pseudojustiça, da qual o menos que se pode dizer é que não se impõe a nenhum ponto de vista, A segunda objeção, que é decisiva do ponto de vista lógi- co, é que o nexo que de Tourtoulon deseja estabelecer entre as diferentes concepções da justiça é totalmente ilusório. Com efeito, se as diferentes fórmulas da justiça devessem preconizar igualdades parciais, ou deveriam ter decorrido umas das outras por silogismo, como uma parte que é contida no todo, ou deve- riam ter podido completar-se, como duas partes diferentes de um mesmo conjunto. Ora, com muita fregiiência, diga o que disser de Tourtoulon, as diferentes fórmulas da justiça se con- tradizem. Habitualmente, é impossível conciliar, por exemplo, as fórmulas “a cada qual segundo seus méritos” e “a cada qual segundo suas necessidades”, sem falar das outras fórmulas que deveriam, todas juntas, formar um sistema coerente. Aliás, a melhor prova de que é impossível fundir todas as fórmulas da justiça naquela que preconiza a igualdade perfeita de todos os homens é a de que os protagonistas das outras concepções da A ÉTICA 17 justiça se insurgem contra ela considerando-a não somente ar- bitrária, mas também perfeitamente oposta ao nosso senso inato de justiça. Ao invés da idéia de de Tourtoulon, que considera serem as diferentes concepções da justiça variantes que resultam de unia interpretação diferente da expressão “a mesma coisa” na fórmula “a cada qual a mesma coisa”, poder-se-ia querer redu- zir as divergências a uma interpretação diferente da noção “cada qual” nessa mesma fórmula. . Aristóteles já observara que é necessário existir certa semelhança entre os seres aos quais se se aplica a justiça. His- toricamente, aliás, é um fato plausível que se tenha começado por aplicar a justiça aos membros de uma mesma família, para estendê-la em seguida aos membros da tribo, aos habitantes da cidade, de um território, para chegar, finalmente, à idéia de uma justiça para todos os homens. “E mister”, diz Tisset num interessante artigo”, “que haja entre os indivíduos algo em comum pelo que seja estabelecida uma identidade parcial, para que se procure realizar entre eles a justiça: quando não há medida comum, e portanto não há iden- tidade, a questão da realização da justiça nem sequer tem de colocar-se. E pode-se notar que atualmente, no intelecto huma- no, esse princípio não variou: não se pode falar de justiça, por exemplo, nas relações entre homens é vegetais; e se a noção de justiça recebeu hoje maior amplitude, se se aplica a todos os homens, é porque o homem reconheceu semelhantes em todos os seus semelhantes, é porque a noção de humanidade foi ficando pouco a pouco evidente..” A priori, a área de aplicação da justiça não é determinada, sendo, pois, suscetível de variação. Todas as vezes que se fala de “cada qual” numa fórmula da justiça, pode-se pensar num grupo diferente de seres. Essa variação do campo de aplicação da noção “cada qual” a grupos variáveis fornecerá variantes não só da fórmula “a cada qual a mesma coisa” mas também de todas as outras fórmulas. Não é dessa forma porém que será possível resolver o problema que nos colocamos. Com efeito, em vez de mostrar a existência de um elemento comum às diversas fórmu- 18 ÉTICA E DIREITO las da justiça, as reflexões precedentes provam, ao contrário, que cada uma delas pode ser de novo interpretada de diferentes for- mas e dar azo a um número imenso de variantes. Retomemos, portanto, depois dessas tentativas infrutuo- sas, nosso problema inicial, Trata-se de encontrar uma fórmula da justiça que seja comum às diversas concepções que analisa- mos. Essa fórmula deve conter um elemento indeterminado, o que se chama em matemática de uma variável, cuja determina- ção fornecerá ora uma, ora outra concepção da justiça. A noção comum constituirá uma definição da justiça formal ou abstra- ta; cada fórmula particular ou concreta da justiça constituirá um dos inumeráveis valores da justiça formal. - Será possível definir a justiça formal? Haverá um element conceitual comum a todas as fórmulas da justiça? Parece que sim. Com efeito, todos estão de acordo sobre o fato de que ser justo é tratar de forma igual. Só que surgem as dificuldades e as controvérsias tão logo se trata de precisar. Cumprirá tratar todos da mesma forma, ou cumprirá estabelecer distinções? E se for preciso estabelecer distinções, quais serão as que será necessá- rio levar em conta para a administração da justiça? Cada qual fornece uma resposta diferente a essas perguntas, cada qual pre- coniza um sistema diferente, para o qual ninguém é capaz de angariar a adesão de todos. Uns dizem que é preciso levar em conta os méritos do indivíduo, outros que é preciso levar em con- sideração suas necessidades, outros ainda dizem que não se pode fazer abstração das suas origens, da sua posição, etc. Mas, apesar das divergências, todos eles têm algo em comum na sua atitude. Com efeito, aquele que reclama que se leve em conta o mérito, quererá que se trate da mesma forma as pessoas de mérito igual; o segundo quererá que se reserve um tratamento igual às pessoas com as mesmas necessidades; o terceiro reclamará um tratamento justo, ou seja, igual, para as pessoas de mesma posição social, etc. Seja qual for o desacor- do deles sobre outros pontos, todos estão, pois, de acordo sobre o fato de que ser justo é tratar da mesma forma os seres que são iguais em certo ponto de vista, que possuem uma mesma carac- terística, a única que se deva levar em conta na administração A ÉTICA 19 da justiça. Quálifiquemos essa característica de essencial. Se a posse de uma característica qualquer sempre permite agrupar Os seres numa classe ou numa categoria, definida pelo fato de seus membros possuírem a característica em questão, os seres que têm em comum uma característica essencial farão parte de unta mesma categoria, a mesma categoria essencial. Portanto, pode-se definir a justiça formal ou abstrata como um princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma. Observe-se imediatamente que acabamos de definir uma . noção puramente formal que deixa intocadas todas as diver- gências a propósito da justiça concreta. Essa definição não diz mem quando dois seres fazem parte de uma categoria essencial nem como é preciso tratá-los. Sabemos que cumpre tratar esses seres não desta ou daquela forma, mas de forma igual, de sorte que não se possa dizer que se desfavoreceu um deles em rela- ção ao outro. Sabemos também que um tratamento igual só deve ser reservado aos seres que fazem parte de uma mesma categoria essencial. As seis fórmulas de justiça concreta, entre as quais procu- ramos uma espécie de denominador comum, diferem pelo fato de que cada uma delas considera uma característica diferente como a única que se deva levar em conta na aplicação da justi- ça, de que elas determinam diferentemente a pertinência à mesma categoria essencial. Fomecem igualmente indicações, . de maior ou menor precisão, sobre a maneira pela qual devem ser tratados os membros da mesma categoria essencial. Nossa definição da justiça é formal porque não determina as categorias que são essenciais para a aplicação da justiça. Ela permite que surjam as divergências no momento de passar de uma fórmula comum da justiça formal para fórmulas diferen- tes de justiça concreta. O desacordo nasce no momento em que se trata de determinar as características essenciais para a apli- cação da justiça. Vamos retomar uma a uma as nossas diversas fórmulas de justiça concreta e mostrar como são, todas elas, determinações diferentes da mesma concepção de justiça formal: 24 , ÉTICA E DIREITO uma obra, falta a medida comum. É por isso que, nesse caso, prefere-se normalmente julgar a obra em si mesma, por meio de suas qualidades intrínsecas, apreciar o resultado do traba- lho, em vez de basear-se no tempo necessário para realizar a obra em questão. Dá-se o mesmo em todos os exames e con- cursos em que, em vez de procurarem determinar o esforço for- necido pelo candidato, os examinadores contentam-se em ava- liar seus conhecimentos de acordo com as respostas ou as obras por ele apresentadas. Em todos esses casos renuncia-se a estabelecer uma medi- da comum entre todas as obras e se se contenta em comparar aquelas para as quais se admite um mesmo critério, as obras da mesma espécie. Não se procurará comparar quadros com obras literárias, sinfonias com obras de arquitetura, Se é verdade que o preço dessas obras pode, à primeira vista, parecer apresentar tal medida comum, isso só pode acontecer quando se tem a cer- teza de que esse preço é justo, ou seja, que corresponde ao valor real delas. Ora, se.o preço constitui o único elemento de comparação entre as obras, não se vê como determinar seu valor, para ter condições de saber se O preço é justo ou não. Por outro lado, quando se trata de comparar não obras e sim conhecimentos, como por ocasião de um exame, o Tecurso ao dinheiro enquanto padrão de medida é não só insuficiente mas totalmente impossível. O examinador não pode então jul- gar os candidatos senão com relação a um critério puramente interno, as exigências que ele formula na matéria. O exame permitirá estabelecer uma relação entre tais exigências e desempenho do candidato. O exame supõe uma espécie de convenção entre as partes. Para poder submeter-se a ele, o candidato deve ter condições de conhecer as exigências do juiz. É por isso que este é acusado de injustiça todas as vezes que não observa as regras da con- venção e formula uma pergunta “que não está no programa”. Para poder comparar candidatos, julgados por examinado- res diferentes a partir de programas diferentes, cumpre poder estabelecer uma relação entre esses programas e supor que os juízes avaliam da mesma forma as insuficiências dos aspiran- A ÉTICA 25 tes. Como tais comparações só se fazem normalmente por razões práticas e puramente formais (equivalência de diplo- mas, por exemplo), os programas comparados são comumente relativos a conhecimentos da mesma espécie, ao passo que, salvo em caso especial, faz-se abstração das diferenças entre os examinadores. Enquanto a fórmula “a cada qual segundo seus méritos” tem pretensões à universalidade, declara poder constituir uma medida comum aplicável a todos os homens, a aplicação da fórmula “a cada qual segundo suas obras” tem habitualmente pretensões mais modestas e mais imediatamente úteis. Compa- rem-se obras ou conhecimentos, esta última fórmula da justiça, uma das mais correntes na vida social, se limita, à míngua de um critério universal e por razões puramente práticas, à com- paração de obras e de conhecimentos da mesma espécie. 4º A cada qual segundo suas necessidades. A aplicação desta fórmula exige que sejam tratados da mesma forma aqueles que fazem parte da mesma categoria essencial do ponto de vista de suas necessidades. Na vida social, é apenas deveras excepcionalmente que se fará a aplicação dessa fórmula ser precedida de um estudo psi- cológico sobre as necessidades dos homens considerados. Com efeito, não se deseja levar em conta todas as fantasias do indivíduo, e sim suas necessidades mais essenciais, as únicas que serão levadas em consideração na execução da fórmula. Esta deveria, antes, ser enunciada: “a cada qual segundo suas necessidades essenciais”. Essa restrição provocará imediata- mente discussões sobre o que se deve entender por “necessida- des essenciais”, pois as diferentes concepções ensejam varian- tes dessa fórmula de justiça. Com muita fregiiência mesmo, para permitir uma aplica- ção fácil dessa fórmula, seremos levados a não levar em conta necessidades consideradas importantes, mas cuja existência é difícil de detectar ou de controlar. Procurar-se-á, habitualmen- te, determinar essas necessidades por intermédio de critérios puramente formais, baseando-se nas exigências do organismo 26 ÉTICA E DIREITO humano em geral. Apenas limitando a aplicação dessa fórmula a um número restrito de pessoas é que se pode fazer as necessi- dades particulares de cada qual entrarem progressivamente em linha de conta. Um dos problemas mais delicados da estatística em questão social é determinar os detalhes aos quais cumpre se interessar, dado o número de pessoas às quais se estende a pes- quisa. Aplicada aos grandes números, uma pesquisa assim 'pre- ferirá só levar em conta elementos numericamente determiná- veis, tais como, por exemplo, o número e a idade de pessoas de uma família, as somas de dinheiro de que dispõe, a quantidade de calorias de sua alimentação, a cubagem de ar de sua habita- ção*, o número de horas dedicado ao trabalho, ao descanso e ao lazer, etc. É raro que se procure aplicar a fórmula “a cada qual segundo suas necessidades” a necessidades mais refinadas, mais individuais. Isso porque, e essa é a diferença essencial en- tre a caridade e essa fórmula da justiça que dela mais se aproxi- ma, à justiça só se aplica a seres considerados como elementos de um conjunto, da categoria essencial, ao passo que a caridade considera os seres como indivíduos e leva em conta suas carac- terísticas próprias. A justiça, pelo contrário, tem tendência a abstrair os elementos que não são comuns a vários seres, os seus traços particulares. Quem procura, por caridade, satisfazer os desejos de seu próximo, se empenhará mais em levar em conta o elemento psicológico, individual, do que quem é leva- do a isso por sua concepção da justiça. Quem deseja aplicar a fórmula “a cada qual segundo suas necessidades” deverá não só estabelecer uma distinção en- tre as necessidades essenciais e as outras, mas também hierar- quizar as necessidades essenciais, de modo que se conheçam aquelas que se há de satisfazer em primeiro lugar e determinar o preço que custará a sua satisfação: essa operação conduzirá à definição da noção de mínimo vital. Todos sabem que ásperas controvérsias foram provocadas por esta última noção e por todas as que lhê são vinculadas. * Que determina os gastos com o aquecimento da habitação. (N. do T.) A ÉTICA 27 Quase todas as divergências nascidas a esse respeito resultam de outra concepção das necessidades essenciais do homem, ou seja, das necessidades que devem ser levadas em conta por uma justiça social baseada no princípio “a cada qual segundo suas necessidades” e que tende a determinar as obrigações da sociedade para com cada um de seus membros. 5º A cada qual segundo sua posição. A aplicação dessa fórmula supõe que os seres, com os quais se desejaria ser justo, estão repartidos habitualmente, mas não necessariamente, ém classes hierarquizadas. Essa fór- mula considera que é justo que se tenha uma atitude diferente para com membros das diversas classes, contanto que se trate da mesma forma os que fazem parte da mesma classe, ou seja, da mesma categoria essencial. Essa divisão em classes, no sentido amplo, pode fazer-se de diversas formas. Pode basear-se na cor da pele, na língua, na religião, no fato de pertencer a uma classe social, a uma casta, a um grupo étnico. A subdivisão dos homens também pode fazer- se de acordo com suas funções ou suas responsabilidades, étc. É possível que as classes distinguidas não sejam hierarqui- zadas: o tratamento dos membros de uma classe, diferente daquele de uma outra, não favoreceria uma determinada catego- ria de todos os pontos de vista. O mais das vezes, porém, as diversas classes são hierarquizadas. As classes superiores, as classes privilegiadas, gozam de mais direitos do que as outras. Mas as sociedades hierarquizadas, conforme se achem em pleno desenvolvimento ou em decadência, imporão mais deveres a suas elites ou não estabelecerão nenhuma relação entre os direi- tos concedidos e os deveres ou as responsabilidades. O ditado noblesse oblige é a expressão de uma aristocracia consciente de seus deveres particulares e que compreende que somente a esse preço é que logrará justificar sua posição privilegiada. Em geral, um regime só é viável se cada membro de sua classe superior é defrontado com suas responsabilidades e se os direitos que se lhe concedem resultam dos encargos que se lhe impõem. Quando direitos particulares não coincidem com 28 ÉTICA E DIREITO tesponsabilidades especiais, o regime não tardará, graças à arbitrariedade generalizada, a degenerar num favoritismo siste- matizado, numa “república de amigos”. Tais reflexões não se aplicam somente a regimes em que a superioridade vem com o nascimento, mas também a regimes diferentes, tal como o regime democrático. Com efeito, em cada regime existe uma classe superior, a que dispõe da força e do poder no Estado, Um regime só será viável, com o correr do tempo, se as exigências impostas a essa classe forem inteira- mente particulares e se a severidade com que se exigirá contas da gestão de cada qual for proporcional às responsabilidades assumidas. 6º A cada qual segundo o que a lei lhe atribui. Essa fórmula da justiça de distingue de todas as outras pelo fato de o juiz, a pessoa encarregada de aplicá-la, já não ser livre para escolher a concepção da justiça que prefere: ele deve observar a regra estabelecida. A classificação, a distribuição em categorias essenciais, é-lhe imposta e ele deve obrigatoria- mente levá-la em conta. É essa a distinção fundamental entre a concepção moral € a concepção jurídica da justiça. Em moral, a pessoa é livre para escolher a fórmula da jus- tiça que pretende aplicar € a interpretação que deseja dar-lhe; em direito, a fórmula da justiça é imposta e sua interpretação sujeita ao controle da Corte Suprema do Estado. Em moral, a regra adotada resulta da livre adesão da consciência; em direi- to, cumpre levar em conta a ordem estabelecida. Aquele que julga, em moral, deve primeiro determinar as categorias segun- do as quais julgará, depois ver quais são as categorias aplicá- veis aos fatos; em direito, o único problema que se deve exami- nar é o de saber como os fatos considerados se integram no sis- tema jurídico determinado, como os qualificar. Em direito mo- derno, as duas instâncias, a que determina as categorias e a que as aplica, são rigorosamente separadas; em moral, estão unidas na mesma consciência. ' Em que medida o juiz, em direito, terá meios de fazer intervir, no exercício de suas funções, sua concepção particular AÉTICA 29 da justiça? Em que medida as concepções morais influenciam o direito? À resposta à primeira pergunta será diferente conforme se entender por juiz um funcionário específico, encarregado de aplicar a justiça, ou a jurisprudência em seu todo. Mesmo quando se trata de um juiz que se contenta em seguir as trilhas batidas da jurisprudência e que não deseja ino- var na matéria, seu papel não é puramente passivo. De fato, como toda visão da realidade é em certa medida subjetiva, e isto ainda mais quando se trata antes de uma reconstituição do que de uma visão direta, o juiz íntegro será, mesmo involunta- riamente, levado a fazer coincidir, em sua apreciação dos fatos, O direito e seu sentimento íntimo da justiça. Baseando-se em certos indícios ou negando-lhes a importância, levando em conta certos fatos ou interpretando-os de modo que se esva- ziem de qualquer significado, o juiz pode fornecer uma ima- gem diferente da realidade e dela deduzir uma aplicação dife- rente das regras de justiça. Quanto à jurisprudência, na medida em que interpreta as leis, pode até ir mais além. É dela que depende a definição de todas as noções confusas, de todas as expressões equívocas do direito: para ela, será um jogo definir essas noções e interpretar essas expressões de forma que o sentimento da justiça do juiz não seja contrariado com demasiada violência pelas exigências da lei. Em certos casos, quando se tratou de leis cujo sentido dificilmente se poderia deformar, a jurisprudência se contentou mesmo, pura e simplesmente, em esquecer-lhes a existência e, de tanto não as aplicar, as fez cair em desuso. No direito roma- no, o pretor podia permitir-se usar de ficções para modificar a aplicação das categorias estabelecidas pela lei, mas, atualmen- te, a determinação dessas categorias compete ao legislador. Este se encarregará de dar força de lei à concepção da justiça dos que detêm o poder no Estado. A priori, não se pode dizer nada do caráter moral da lei, do modo como as categorias estabelecidas pelo legistador coinci- dem com as da massa da população: tudo depende da relação que há entre esta e os detentores do poder. Conforme estes 34 ÉTICA E DIREITO mos condições de não só dividir o universo do discurso em classes, mas até de ordenar essas classes conforme o grau de intensidade em que seus membros possuem a característica es- sencial. Tomemos um exemplo para esclarecer nosso pensamento. Suponhamos que o universo do discurso — todos aqueles aos quais se desejaria aplicar a justiça — seja formado por todos os chefes de família de uma cidade. Querendo tratar diferente- mente os que têm uma profissão e os que não exercem nenhu- ma, obtêm-se duas categorias essenciais. Se se quer tratar de modo diferente os chefes de família conforme a natureza de sua profissão principal, obtêm-se várias categorias essenciais. Pedindo a cada chefe de família que indique sua renda anual, obtêm-se categorias facilmente ordenáveis segundo a grandeza do montante indicado. Toda aplicação da justiça exige, previamente, uma divisão assim do universo do discurso. Mas, sejam quais forem as difi- culdades técnicas de tal tarefa, aplicar a justiça seria algo rela- tivamente simples se devêssemos contentar-nos com uma úni- ca categoria essencial, por mais complexa que fosse. A aplica- ção da justiça formal seria algo possível. Infelizmente, a realidade é muito mais complicada. O que acontece, na verdade, é que nosso sentimento de justiça leva em conta, simultaneamente, várias categorias essenciais inde- pendentes, que ocasionam categorias essenciais nem sempre concordantes. Tomemos o caso de um patrão humanitário que desejaria retribuir seus operários levando em conta, a um só tempo, O tra- balho e as necessidades deles. Suceder-lhe-á, com muita fre- giiência ficar em apuro: isso se dará todas as vezes que dois operários fizerem parte da mesma categoria essencial do ponto de vista do trabalho, e de categorias diferentes do ponto de vista das necessidades, ou vice-versa. Que tratamento cumpri- rá aplicar-lhes? Todas as vezes se agirá de modo formalmente injusto. Suponhamos que, de dois operários cujo trabalho é igual, um seja solteiro, o outro pai de uma família numerosa. Tratando-os da mesma forma, é-se injusto porque o princípio A ÉTICA 35 “a cada qual segundo suas necessidades” exige que se dê mais àquele que tem encargos familiares do que àquele que deve suprir apenas à própria subsistência. Tratando-os de forma desigual é-se injusto, porque não se trata da mesma forma dois seres que fazem parte da mesma categoria essencial, do ponto de vista da fórmula “a cada qual segundo suas obras”. Estamos diante de uma das inumeráveis antinomias da justiça. Tais antinomias são tão fregiientes que as poderíamos considerar mesmo um caso normal, Elas nos ihcitam, de modo por assim dizer irresistível, a afirmar que a justiça perfeita não é deste mundo. Com efeito, nunca podemos afirmar que fomos perfeitamente justos, que levamos em conta todas as concep- sães da justiça que se amalgamam em nós para formar a confu- sa mescla a que chamamos sentimento de justiça, que tratamos da mesma forma seres que fazem parte de uma mesma catego- ria por nós considerada essencial. Pelo contrário, sempre se pode afirmar que se foi perfeitamente injusto se não se levou em conta uma classificação considerada essencial pela própria pessoa que omitiu levá-la em consideração. Aliás, a experiên- cia social está aí para provar que normalmente só se fala de jus- tiça de uma maneira geral, enquanto, todas as vezes que se trata de casos particulares de aplicação, ouve-se quase sempre falar de injustiça. Um modo de sair do mal-estar criado pelas antinomias da justiça consiste em dar deliberadamente preferência a uma característica essencial em detrimento de todas as outras, em determinar a característica que se vai levar em conta em pri- meiro lugar, podendo todas as outras exercerem sua influência apenas na medida em que não atrapalhem a primeira. O modo mais eficaz de consegui-lo consiste em pôr em evidência essa característica essencial por meio de sinais exter- nos, naturais ou artificiais. A distinção dos homens em categorias essenciais basea- das na cor da pele foi por muito tempo o argumento peremptó- rio que era oposto aos que exigiam a abolição da escravidão. Achava-se normal que não se tratasse como escravos homens de raça branca, mas por que conceder esse tratamento a seres 36 , ÉTICA E DIREITO de uma categoria tão diferente como os negros? Os negros não são homens, dizia-se, o que quer dizer que não fazem parte da mesma categoria essencial que os homens brancos, e portanto podia-se tratá-los de um modo desumano. Assim também, a concepção que queria considerar os judeus como seres de uma raça diferente, caracterizada por sinais externos manifestos, se empenhava em justificar com isso o tratamento todo especial que se lhes queria aplicar. Mas, com muito mais fregiiência do que de sinais natu- rais, as pessoas se servem de sinais artificiais para mostrar qual é a distinção, a característica, a que atribuem mais importância e que consideram essencial. O mais habitual desses sinais é o uniforme. O uniforme atesta que a pessoa se considera partici- “pante, em primeiríssimo lugar, de um determinado grupo. Êo fato de pertencer ao grupo, ou a uma de suas subdivisões, que será tomado em consideração para a aplicação da justiça. Todos que fazem parte do mesmo grupo, ou da mesma subdi- visão, são iguais e devem ser tratados da mesma forma, sem que se deva levar em conta nenhuma outra característica que poderia contrariar a primeira. Como as antinomias jurídicas tornam mais difícil e mais vaga a aplicação da justiça, elas embotam, por isso mesmo, o sentimento de justiça. Em contra- partida, o uso do uniforme no exército desenvolve particular- mente nele o sentimento de justiça, porque impõe, por assim dizer, uma única categoria essencial, a patente. É preciso tratar da mesma forma os que estão vestidos igual e tratar de modo diferente militares vestidos diversamente. É porque, no exérci- to, a hierarquia estabelecida pela patente, manifestando-se por sinais extemos, domina todas as outras — sendo por isso mesmo, mais raras aí as antinomias jurídicas — que o sentimen- to de justiça é mais vivo e se manifesta de modo mais vigoroso. Quando aparecem as antinomias da justiça e quando a aplicação da justiça nos força a transgredir a justiça formal, recorremos à egilidade. Esta, que poderíamos considerar a mu- leta da justiçã, € 6 complemento indispensável da justiça for- mal, todas as vezes que a aplicação desta se mostra impossível. Consiste ela numa tendência a não tratar de forma por demais AÉTICA 37 desigual os seres que fazem parte de uma mesma categoria essencial, A egiidade tende a diminuir a desigualdade quando 9 estabelecimento de uma igualdade perfeita, de uma justiça formal, é tomado impossível pelo fato de se levar em conta, simultaneamente, duas ou várias características essenciais que vêm Entrar em choque em certos casos de aplicação. Contrariamente à justiça formal, cujas exigências são bem precisas, a equidade consiste apenas numa tendência oposta à . todo formalismo, do qual ela deve ser complementar. Ela inter- vém quando dois formalismos entram em choque: para desem- - penhar seu papel de egiiidade, ela própria só pode ser, pois, não-formal. Se desejarmos levar em conta, na aplicação da justiça, duas características essenciais, se, ao tratarmos de modo idên- tico dois seres que fazem parte da mesma categoria essencial, formos levados a tratar de modo demasiado diferente dois seres que fazem parte de uma mesma categoria essencial, determina- da pela segunda característica, a egiiidade nos incitará a não levar em conta unicamente a primeira característica na realiza- ção da justiça. Assim é que, tendo de contratar dois operários que fazem o mesmo trabalho, dos quais um seria solteiro e o outro pai de família numerosa, tratando-os da mesma forma, segundo a fór- mula “a cada qual segundo suas obras”, nós os trataremos de forma demasiado diferente se desejarmos levar em conta a fór- mula “a cada qual segundo suas necessidades”. A egiiidade nos incitará a diminuir essa diferença. Mas, se quisermos aumentar o salário do pai de família numerosa, deixaremos de tratar da mesma forma dois operários que fazem parte da mesma cate- goria essencial do ponto de vista de seu trabalho. Seja qual for a atitude adotada, seja qual for a medida em que se levará em conta uma ou outra fórmula de justiça, seremos levados a trans- gredir a justiça formal. Mas em que medida será preciso levar em conta uma ou outra característica essencial? A priori, não existe regra nenhu- ma para dizê-lo: encontramo-nos em pleno compromisso quan- do recorremos à egiiidade. Esta só pode ser realizada pelo aban- dono do formalismo jurídico, quando este acarreta antinomias. 38 ÉTICA E DIREITO Embora o recurso à eqjiidade seja indispensável quando as antinomias que ocorrem são imprevistas, há um meio de fazer estas desaparecerem, de forma menos arbitrária, cada vez que, prevendo tais dificuldades, decidimos previamente o grau de importância que queríamos conferir a cada uma das caracte- rísticas cuja aplicação ocasionava o conflito. Essa decisão substitui, desde então, as características essenciais opostas por uma característica mais complexa, com algumas variáveis, que leva em conta cada uma das características anteriores. O racionamento, aplicado em todos os países em tempo de guerra, fornece um excelente exemplo da maneira pela qual, procurando realizar a justiça, levando em conta suas diferentes concepções, complicou-se progressivamente a fórmula de jus- tiça concreta que se devia aplicar, Sendo a preocupação do Estado repartir do modo mais justo o pequeno número de bens postos à disposição da população a fórmula que se impôs em primeiro lugar era “a cada qual a mesma coisa”. Mas imediata- mente percebeu-se que havia categorias de pessoas cujas necessidades eram maiores e que, por diversos motivos, não se podiam desprezar se se queria levar em conta a fórmula “a cada qual segundo suas necessidades”. Foi preciso criar distribui- ções especiais para as crianças, para os velhos e para as dife- rentes categorias de enfermos. Depois decidiu-se conceder cupons suplementares a várias categorias de trabalhadores, não só porque suas necessidades eram maiores, mas também por- que seu trabalho era útil à coletividade e queriam recompensar aqueles que a ele se dedicavam; portanto, essa atitude fez entrar em linha de conta a fórmula “a cada qual segundo suas obras”. Por fim, levou-se em conta até a fórmula “a cada qual segundo sua posição”, concedendo privilégios especiais não só aos fazendeiros, que ocupavam posição elevada numa comuni- dade que dependia de seus esforços, mas também aos membros de sua família. É óbvio que essa mesma fórmula permitiu à raça dos senhores outorgar-se ração dupla em todos os países ocupados. Assim é que, no exemplo do racionamento, apreen- de-se ao vivo o caso particularmente notável da aplicação da justiça pelo Estado e da complexidade a que pode chegar uma fórmula de justiça assim. A ÉTICA 39 Quando se trata de dois operários que fazem o mesmo tra- balho, dos quais um é solteiro e o outro tem encargos familia- res, há um meio de solucionar a antinomia resultante da aplica- ção de duas concepções diferentes da justiça concreta, trocan- do-as por uma fórmula de justiça mais complexa, que levaria em conta tanto o trabalho dos operários como as suas necessi- dades. O estabelecimento da nova característica essencial será, em grande medida, arbitrária. Com efeito, até que ponto se deve levar em conta uma ou outra fórmula da justiça concreta? Tudo depende da importância que se lhes confere. Uma con- cepção puramente capitalista, que considera o trabalho uma mercadoria, não pode conferir às necessidades do operário, e sobretudo às de sua família, senão uma importância deveras se- cundária; ela quererá levar em conta, essencialmente, o traba- lho por ele fornecido, Este último elemento é que será determi- nante, para ela, no estabelecimento da característica complexa. Em todo caso, o patrão capitalista procuraria arranjar-se para não arcar com a diferença entre o salário concedido ao operário sozinho e o do operário com encargos familiares; se fosse for- gado a arcar com essa diferença, procuraria contratar, de prefe- rência, operários solteiros. Em contrapartida, o Estado, na medida em que favorece as famílias numerosas, atribuirá mais importância à satisfação de suas necessidades. Manifestará essa simpatia através dos abonos familiares e, sobretudo, do modo como leva em conta encargos familiares na imposição da taxa profissional. Seja qual for a importância relativa concedida a cada uma das duas fórmulas da justiça, determinando uma fórmula mais complexa que levaria em conta, em certa medida, as duas pre- cedentes, consegue-se solucionar as antinomias que se apre- sentavam anteriormente. A nova fórmula da justiça cuja aplica- ção já não acarreta antinomias permite, assim, evitar o recurso à equidade. Cumpre observar, para concluir estas considerações, que a passagem das fórmulas anteriores para uma fórmula mais complexa da justiça não é determinada unicamente por elas: de fato, é preciso ter razões alheias a essas fórmulas para poder fixar o coeficiente de importância atribuído a cada uma delas. 44 ÉTICA E DIREITO admitir que o número de lugares no paraíso é ilimitado, a maio- ria das recompensas concedidas na terra e todas as partilhas, por só permitirem a distribuição de bens em quantidade limitada, devem levar em conta o número dos beneficiários para poder determinar o quinhão de cada um. É nesse momento que inter- vém a noção de igualdade, porque, embora a regra que indica qual fração do conjunto deverá ser atribuída a cada um não deva postular, no cálculo, a igualdade de todos, ela deve, não obstante, admitir a igualdade de todos aqueles que fazem parte da mesma categoria essencial. Suponhamos que, numa sucessão, o quinhão dos filhos deva ser o dobro daquele das filhas: se há dois filhos e duas filhas que participam da herança, é de supor que cada filho receberá a mesma coisa, e que a primeira filha receberá a mes- ma coisa que a segunda, para lograr determinar a fração que deverá ser atribuída a um ou ao outro. O uso que se faz da igualdade, no cálculo, embora não conduzindo a nenhum erro prático, porquanto a igualdade é uma consegiiência da regularidade, pode entretanto determinar erros de perspectiva em considerações sobre a natureza da jus- tiça: pode incitar a considerar essencial o que não passa da mera conseqiiência da regularidade. A justiça formal se resume, pois, simplesmente à aplica- ção correta de uma regra. Esta conclusão nos faz compreender imediatamente em que medida a justiça formal constitui o elemento comum a todas as concepções da justiça concreta: cada uma delas preco- niza uma regra diferente, mas todas afirmam que ser justo é aplicar uma regra, a delas. Por outro lado, vê-se em que a justiça formal é vinculada à lógica: de fato, a aplicação da regra tem de ser correta, logica- mente irrepreensível, o ato justo tem de ser conforme à conclu- são de um silogismo particular, ao qual chamaremos silogismo imperativo! porque sua maior e sua conclusão têm uma for- ma imperativa. Suponhamos que se trate de um tratamento justo a ser aplicado a m,. Se m, é um A, e se todos os À devem ser B, m, A ÉTICA 45 deverá ser B. Se, por nossa ação, m, tornou-se B, nossa ação foi justa. Assim também, se m,, ma, my são A, nossa ação deve, para ser justa, torná-los todos B: a igualdade de tratamento resulta da aplicação, em nossa ação, de um silogismo a mem- bros de uma mesma categoria essencial. Esse raciocínio nos permite precisar nossas considerações sobre a justiça formal. Ser justo não é aplicar corretamente uma regra qualquer. Não se é justo ao aplicar, por exemplo, a , tTegra “não se deve mentir”. Pois a regra que yai ser aplicada deve ter certa estrutura lógica: deve enunciar ou implicar a maior de um silogismo imperativo da forma Todos os M devem ser P. ou Nenhum M deve ser P. A regra a ser aplicada será universal, afirmativa ou negati- va, contendo a obrigação de tratar de certa maneira todos os seres de uma determinada categoria. A universalidade da regra é apenas uma consegiiência do fato de ela se aplicar a todos os seres de uma categoria; a regra será afirmativa ou negativa con- forme se tratar de uma obrigação de fazer ou de abster-se. Estas precisões permitem fornecer uma terceira definição da justiça formal: consiste ela em observar uma regra que enuncia a obrigação de tratar de uma certa maneira todos os seres de uma determinada categoria. Esta definição equivale às duas anteriores. Com efeito, vimos que a igualdade de tratamento é vinculada ao fato de observar uma regra; ademais, a categoria em questão na defini- ção é a categoria essencial, pois ela é que é levada em conta na aplicação da justiça. As condições de aplicação da justiça formal se resumem aos três elementos de um silogismo imperativo: a) aregraa ser aplicada que fornece a maior do silogismo; b) a qualificação de um ser, o fato de considerá-lo mem- bro de uma determinada categoria, que fornece a me- nor do silogismo; <) o ato justo que deve ser conforme à conclusão do si- logismo. 46 ÉTICA E DIREITO As poucas considerações que precedem trazem a lume a afinidade existente entre a justiça e as exigências da nossa razão. A justiça é conforme a um raciocínio. Falando a lingua- gem kantiana, poderíamos dizer que ela é uma manifestação da razão prática. É por isso, aliás, que se opõe às outras virtudes, mais espontâneas, que incidem diretamente sobre o real, en- quanto ela postula a inserção do real em categorias considera- das essenciais. ' A caridade é a virtude mais diretamente oposta à justiça. Pode exercer-se espontaneamente, sem nenhum cálculo, ne- nhuma reflexão prévia, sua meta é aliviar o sofrimento, seja ele qual for, o primeiro que se apresenta, sem levar em conta nenhuma outra circunstância. À caridade é simbolizada pela enfermeira com véu branco que passa de um doente para outro e encontra para cada um o remédio que acalma, a palavra que reconforta. Ela não se preocupa nem com os méritos de cada um, nem com a gravidade de seus ferimentos. Homens estão sofrendo, é mister ajudá-los, sem nenhuma restrição, sem se- gundas intenções. O ideal de caridade é incondicional e consti- tui um imperativo categórico. É universal e não é limitado nem por regras, nem por condições, nem por palavras, a caridade é instintiva, direta, indiscutível. Não se entra em acordo sobre fórmulas de caridade, pois ela não necessita de fórmulas para exprimir-se, é alheia não só a todo espírito sistemático, mas mesmo a todo raciocínio: ela dispensa qualquer elemento dis- cursivo. A justiça, ao contrário, não é concebida sem regras. Ela é fiel à regra, obediente ao sistema. Pode dispensar emoção, ím- peto. Imaginamo-la sob a forma de um velho severo e frio, que pesa, que calcula, que mede. Nada menos espontâneo do que a justiça. O indivíduo nada é para ela; ela não deve ver senão um elemento do conjunto. Tudo quanto é individual, espontâneo, emotivo, a aplicação da justiça deve empenhar-se para não o levar em conta. Ela não pode amar, pois é-lhe vedado favore- cer. Sua simpatia só pode resultar da estima, da consideração: deve ser estritamente calculada, medida, proporcionada. A jus- tiça não pode ser instintiva: é submetida a regras, condições, A ÉTICA 47 qualificações. A obrigação por ela imposta é condicional, hipo- tética, pois o modo como se agirá depende da categoria em que se encontra o objeto da ação. A aplicação da justiça supõe reflexão, discernimento, um juízo, um raciocínio. Nesse senti- do, a justiça é uma virtude racional, a manifestação da razão na ação: Note-se, a esse respeito, que a aplicação da justiça formal impõe, no domínio prático, trâmites racionais iguais aos reque- ridos pela aplicação de uma lei, no domínio teórico. Para que um ato seja justo, é preciso que realize a conclu- são de um silogismo cuja maior é constituída por uma fórmula da justiça concreta ou por uma de suas conseqiências, e a me- nor por uma qualificação que integra um ser numa categoria essencial. A aplicação de uma lei teórica a fatos particulares apre- senta exatamente a mesma estrutura: a maior é constituída por uma lei universal, a menor por uma qualificação e a conclusão enunciará uma afirmação concernente à realidade. Veja-se o exemplo clássico do silogismo teórico: Todos os homens são mortais, Ora, Sócrates é um homem, Logo, Sócrates é mortal. A estrutura desse silogismo difere daquela de um silogis- mo imperativo unicamente pelo fato de que sua maior e sua conclusão não enunciam o que deve ser, mas o que é. Essa dife- rença tem como consegiiência estabelecer outras relações entre o fato e a regra, no domínio teórico e no domínio prático. A Jei teórica não é passível de exceção: é universal ou necessariamente verdadeira. Um único fato contrário à lei basta para invalidá-la: nesse sentido pode-se afirmar que o fato preva- lece sobre a lei, pois ele é que a desqualifica; são os fatos que submetem as leis à prova. Na área teórica os fatos é que são nor- mativos; esta concepção é a própria condição da indução. Em contrapartida, a lei prática imperativa não pode ser nem universalmente nem necessariamente seguida. Quando há 48 ÉTICA E DIREITO necessidade, não há obrigação; ao contrário, a obrigação supõe liberdade; não se pode coagir o que é livre; não se pode regula- mentar o que não é necessário. A concepção de uma lei impe- rativa supõe, pois, fatos que não lhe são conformes. Mas um fato assim não desqualifica a lei; ao contrário, a lei é que é nor- mativa, ela é que se impõe aos fatos, que é juiz, não da realidade deles, mas do valor deles. Daí resulta que não se pode basear leis normativas na indução. É muito importante saber se um domínio da realidade é submetido a leis teóricas ou a leis normativas, sendo que umas dizem o que é, as outras determinam o que vale. Com efeito, tudo que é submetido a leis teóricas é alheio tanto à vontade dos homens quanto à sua apreciação, constituindo esta, em definiti- vo, uma das formas de ação sobre uma vontade livre. Afirmar que uma área da atividade humana é submetida a leis teóricas significa querer subtraí-la à ação da vontade humana, à ação das leis normativas. A afirmação de que a lei da oferta e da procura rege a vida econômica tem como consegiência subtrair os fenô- menos econômicos à ação das regras normativas que a preten- dessem regulamentar. Ao contrário, a regulamentação da vida econômica (salários e preços impostos, racionamento) prova que a lei da oferta e da procura não passa de uma tendência que os homens podem canalizar como o curso de um rio. Falar da injustiça da natureza ou do destino é supor que esta não é regida por leis universais, mas por leis normativas, é supor que o desenrolar dos fenômenos naturais depende de uma vontade que pode submeter-se a leis, mas que pode tam- bém isentar-se delas. Como o necessário não é suscetível de um juízo de valor, fazer tal juízo é supor que o que se avalia não é necessário, que esse fato depende de uma vontade que poderia modificá-lo. É necessário aquilo cuja negação não é possível. Admitir a possibilidade dessa negação equivale a negar a necessidade oposta, significa fazer a realização de um fenômeno depender de uma vontade, de uma arbitrariedade. A intervenção da vontade divina, ao eliminar a necessidade, sub- mete o universo a leis normativas e permite apreciações sobre o seu valor. A ÉTICA 49 Se abstrairmos a diferença que acabamos de precisar, a que separa as leis teóricas das leis normativas, notaremos a existên- cia de um mesmo esquema racional do qual nos servimos tanto para explicar um fenômeno como para justificar um ato. Explicar um fenômeno é mostrar como ele se deduz das regras aceitas. A explicação é relativa a essas regras: se ele é conforme à conclusão de um raciocínio que apela para premis- sas aceitas, O fenômeno é explicado, Dá-se o mesmo quando se trata de justificar um ato. O ato é justo se é conforme à conclusão de um raciocínio cujas pre- missas foram aceitas, constituindo uma delas um juízo impera- tivo, decorrente de uma fórmula de justiça concreta. A explicação e a justificação servem-se dos mesmos pro- cedimentos racionais; diferem apenas pela natureza de uma das premissas do raciocínio. A justiça formal consiste em observar uma regra que con- tém uma obrigação de tratar de certa maneira todos os seres de uma determinada categoria. Essa definição lembra muito a concepção que Dupréel apresenta com o nome de justiça estática. “A justiça estática”, diz Dupréel”, “consiste em observar uma regra estabelecida, seja qual for essa regra. O dever de justiça é aplicar a regra reconhecida. É justo ou íntegro quem obedece a esse dever. Tal como um juiz que aplica escrupulosa- mente a lei. O professor se mostra justo dando a cada aluno os pontos e o lugar que eles mereceram: é porque respeita a regra e as condições do concurso. “A justiça estática ou justiça no sentido estrito (integrida- " de) se nos apresenta, portanto, como uma regra que se sobre- põe às outras regras e que assegura a observação de tal regra, dela fazendo-um dever moral. Com efeito, todas as regras ou convenções que encontramos estabelecidas numa sociedade estão longe de ser, por si sós, regras morais. Não poderiam pre- tender a essa qualidade todos os artigos de regulamentos que são fundamentados em razões de oportunidade ou de conve- niência particular, por exemplo, a parte que o Estado arrecada- rá sobre as heranças ou o lado da estrada em que os veículos se 54 ÉTICA E DIREITO É impossível dizer o que é uma regra justa sem apresentar uma definição, sempre discutível, da noção de justiça. Parece- nos possível, porém, sem definir de um modo subjetivo uma noção cujo sentido emotivo é muito pronunciado, completar nossas considerações sobre a justiça formal com a análise das condições de natureza racional, impostas às regras de justiça concreta, para evitar sua arbitrariedade. As fórmulas de justiça concreta estabelecem ou implicam categorias essenciais cujos membros' devem ser tratados de uma certa forma, a mesma para todos. Considerar que uma fórmula assim é injusta significa cri- ticar ou a classificação que ela estabelece, ou o tratamento que reserva aos membros das diferentes categorias. Suponhamos que a fórmula determina a divisão de todos Os seres com que nos ocupamos em três categorias, A, Be Ce que disso resulta que “todos os A devem ser P”, “todos os B devem ser R” e “todos os € devem ser S”, Afirmando que a regra é injusta, pode-se insurgir, ou contra a divisão nessas três categorias, ou então, embora admitindo a legitimidade dessa divisão, pode-se achar injusta a diferença entre o tratamento reservado aos membros dessas três categorias. A primeira críti- ca emanará, habitualmente, dos partidários de outra fórmula de justiça concreta, ao passo que a segunda será a de um adepto de outra modalidade da mesma fórmula. Tomemos um exemplo concreto de controvérsia sobre questões práticas, apresentando-o, para a clareza da exposição, como uma simples aplicação das fórmulas de justiça concreta. Pode-se atacar o sistema dos abonos familiares, supondo- se que ele seja considerado a aplicação da fórmula “a cada qual segundo suas necessidades”, achando injusto que se leve em conta, na determinação do salário dos operários, outra coisa além do rendimento deles. É evidente que o partidário da fór- mula “a cada qual segundo suas obras” dividirá os operários em categorias diversas daquela de quem leva em conta a fórmula “a cada qual segundo suas necessidades”; ele pode, pois, acusar de injusta a classificação determinada por esta última regra de jus- tiça concreta. Mas alguém que acha perfeitamente justificado o A ÉTICA 55 sistema dos abonos familiares pode achar injusto que se conce- da para o quarto filho, por exemplo, um abono dez vezes supe- rior ao concedido para o primeiro, quando é o primeiro filho que aumenta de modo mais sensível os encargos da família. Vê-se imediatamente que esta última crítica é de uma or- dem' totalmente diferente da primeira, porque ela se coloca no mesmo terreno daquele a quem se dirige, já admite uma certa plataforma comum: a necessidade dos abonos familiares para suprir as necessidades da família. Em contrapartida, a crítica de quem acha injusto levar em contra outra fórmula que não seja a que remunera os operários proporcionalmente ao rendi- mento deles não atribui importância ao mesmo valor que a fór- mula “a cada qual segundo suas necessidades” e será infinita- mente mais difícil encontrar um terreno de entendimento entre os partidários dessas fórmulas diferentes da justiça. Perguntemo-nos, para começar, em que consiste a crítica daquele que acha injusto um tratamento muito diferente reser- vado aos membros de diversas categorias essenciais que ele considera fundamentadas, e em que se poderia dar razão à sua crítica. Criticando a lei penal francesa, a qual acha profundamen- te injusta, Proudhon escreve!*: “ Um pobre diabo, cujos filhos se queixam de fome, rouba, ànoite, num sótão, depois de arrombamento e escalada, um pão de quatro libras. O padeiro o faz condenar a oito anos de traba- lhos forçados. Eis o direito... Em compensação, o mesmo padei- ro, acusado de ter posto gesso no pão à guisa de farinha e vitrío- lo como fermento, é condenado a cinco libras de multa: é a lei. Ora, a consciência brada que esse traficante é um monstro, e a própria lei, absurda e odiosa. De onde vem essa contradição” Proudhon não vê o menor inconveniente em que se puna aquele que comete um roubo com arrombamento e aquele que adultera os gêneros alimentares, mas acha que a pena não é pro- porcional, em ambos os casos, à gravidade do delito cometido. Que deveríamos responder a Proudhon para justificar a diferença de tratamento reservado aos membros dessas duas categorias determinadas pelo direito penal, para provar que s6 ÉTICA E DIREITO não se trata de medidas arbitrariamente adotadas, mas de dis- posições justas, tomadas com conhecimento de causa? Cum- priria definir a noção “gravidade do delito” de modo que dela resulte, contrariamente à afirmação de Proudhon, a proporcio- nalidade da pena à gravidade do ato. Para mostrar que as regras, que determinam duas catego- rias diferentes assim como o tratamento reservado aos seus membros, não são arbitrárias, deve-se mostrar como essas duas regras e as diferenças por elas implicadas se deduzem de um princípio mais amplo, mais geral, do qual elas apenas consti- tuem casos particulares. Assim também, perguntam-se: “será justo que um traba- lhador braçal ganhe 5 francos por hora, enquanto tal médico ganha 50.000 francos por mês?* Poder-se-ia responder, ou que essa diferença de tratamento nada tem a ver com a justiça, sendo apenas um mero efeito da lei da oferta e da procura, ou, se se quer defender a legitimidade dessa diferença, deve-se encontrar uma categoria mais ampla, como aquela, por exem- plo, de importância do serviço prestado, da qual se teria condi- ções de deduzir a diferença de tratamento entre um trabalhador braçal e um médico famoso. Esses dois exemplos bastam para mostrar o que se deve entender por uma regra arbitrária. Uma regra é arbitrária se, mesmo não sendo uma consequência necessária de uma lei teó- rica, não for suscetível de justificação. Falar de outra injustiça que não a formal sempre significa comparar duas regras diferentes. O raciocínio que se poderia opor a isso não provaria que as regras são justas, porque não se pode impor a todos a mesma concepção da justiça — mas pelo menos que elas não são arbitrárias, porque são justificadas, se deduzem de uma regra mais geral, da qual constituem apenas casos particulares. Quando se trata de justiça formal, contentamo-nos em comparar o tratamento reservado aos membros da mesma cate- goria essencial mas não temos meio algum de comparar as categorias entre si. Em contrapartida, a crítica dirigida a uma regra de justiça concreta provoca a busca de um termo de com- AÉTICA 57 paração entre diversas categorias essenciais de modo que se justi- fique, pela relação entre cada categoria e o gênero do qual depen- de, a diferença de tratamento entre essas diferentes categorias. A resposta de quem é acusado de formular uma regra injusta, por favorecer os membros de uma categoria com rela. ção aos de uma outra, só pode ser a indicação da regra mais geral da qual se deduzem logicamente as duas regras que são comparadas. Justificar é sempre mostrar como uma determina- da categoria se integra numa categoria mais vasta, como uma regra particular se deduz de uma regra mais geral. Vimos qual analogia existe entre a explicação de um fenô- meno € a justificação de um ato, como o ato justo e o fenômeno explicado coincidem ambos com a conclusão de um silogismo. Não ficaremos nem um pouco espantados de constatar a exis- tência da mesma analogia entre o fato de explicar uma lei teóri- cae o de justificar uma regra normativa. Explicar uma lei é mostrar que ela se deduz de um sistema mais geral do qual ela constitui, em determinadas condições, um caso particular. Assim é que a lei da atração terrestre cons- tituí um caso particular do princípio de gravitação universal. A necessidade de explicar a lei da atração terrestre se fez sentir no momento em que a atenção do pensador foi atraída por uma diferença anormal de comportamento: por que a maçã cai no chão, enquanto a Lua, sofrendo a mesma atração, não vem esmagar-se na Terra que a atrai? Por que a Lua e a maçã se comportam diferentemente com relação à terra? A explicação foi fornecida pelo princípio de gravitação universal do qual se pôde deduzir tanto a lei da atração terrestre quanto a resistência da Lua relativamente à Terra. Assim também, a justificação de uma regra normativa apela a um princípio mais geral, do qual se pode deduzir o tra- tamento, diferente aplicado a seres que fazem parte de outras categorias essenciais. Essas considerações trazem a lume, uma vez mais, a relati- vidade tanto da explicação como da justificação; toda explica- ção é relativa a certas leis mais gerais, toda justificação é relati- va a princípios mais abstratos. Mas, essas leis, pode-se também 58 ÉTICA E DIREITO querer explicá-las, esses princípios, pode-se também dever jus- tificá-los, visto seu caráter arbitrário. A explicação e a justifica- ção recorrerão então a leis ainda mais gerais, a princípios ainda mais abstratos: chegar-se-á, tanto na área teórica como na área prática, à edificação de sistemas racionais. Ao sistema teórico da ciência será simétrico um sistema normativo da justiça. Entretanto, por mais longe que remontarmos na explica- ção e na justificação, chegará um momento em que pararemos. Essa parada talvez seja apenas provisória, nada terá de neces- sária, mas determinará o topo de um estado da ciência, o teto de um sistema normativo. As leis mais gerais da ciência, que possibilitam explicar todas as outras, mas ficam por sua vez inexplicadas, determi- nam os traços mais gerais da realidade; são elas que fazem que o universo não se reduza a uma tautologia, a um mero desen- volvimento do princípio de identidade. É a existência delas que permite à ciência esperar novos desenvolvimentos, novos pro- gressos em profundidade. Não diremos, com E. Meyerson, que a explicação não passa de uma redução da realidade a uma identidade, mas afirmamos que é o fato de essa redução não poder fazer-se, e jamais se fará, que nos permite compreender por que a explicação é sempre relativa e sempre inacabada, por que a ciência jamais logrará esgotar seu objeto. Essas leis que estão no topo de nosso sistema científico, embora enunciem ligações logicamente arbitrárias, porque inexplicáveis, não se pode pensar em pô-las em dúvida; de fato, as ligações que elas afirmam são universais e definem a nossa realidade: só nos resta inclinarmo-nos diante dos fatos. Mas as coisas são totalmente diferentes num sistema nor- mativo. Os princípios mais gerais de um sistema assim, em vez de afirmarem o que é, determinam o que vale: estabelecem um valor, o valor mais geral, do qual se deduzem as normas, os imperativos, as ordens. Ora, esse valor não tem fundamento nem na lógica, nem na realidade. Como a sua afirmação não resulta de uma necessidade lógica, nem de uma universalidade experimental, o valor não é universal nem necessário; é, lógica e experimentalmente, arbitrário. Aliás, é por ser arbitrário, A ÉTICA 59 logo precário, que o valor se distingue da realidade. Assim como a norma supõe uma liberdade, também o valor supõe uma arbitrariedade. Nosso empenho de justificação das regras para delas eli- minar, na medida do possível, a arbitrariedade deve deter-se num princípio injustificado, num valor arbitrário. Um sistema de justiça, por mais adiantado que seja, não pode eliminar toda arbitrariedade, senão, na verdade, já não seria um sistema nor- mativo: estabeleceria uma necessidade lógica vu uma universa- lidade experimental e seu caráter normativo desapareceria ime- diatamente. Todo sistema de justiça constitui apenas o desenvolvimen- to de um ou de vários valores, cujo caráter arbitrário é vincula- do à própria natureza deles. Isso nos permite compreender por que não existe um único sistema de justiça, por que podem exis- tir tantos quantos valores diferentes houver. Daí resulta que, se uma regra é considerada injusta por alguém que preconiza outra fórmula de justiça concreta, portanto outra distribuição em cate- gorias essenciais, basta registrar o antagonismo que opõe os partidários das diferentes fórmulas da justiça: com efeito, cada um deles põe em primeiro plano um valor diferente. Dada a plu- ralidade dos valores, sua oposição e seu caráter arbitrário, o raciocínio é incapaz de desempatar os antagonistas, por falta de um acordo sobre os princípios que poderiam servir de ponto de partida para a discussão. Para que possa ser estabelecido um acordo sobre as regras de justiça, é mister que se possam justifi- car todas aquelas que se atacam, e que não se ataquem todas aquelas que se podem justificar, a saber: as que concedem a cer- tos valores o primeiro lugar na condução de nossa ação. Se consideramos uma regra injusta, por ela conferir a preeminência a outro valor, só temos de registrar o desacordo; um raciocínio será incapaz de desaprovar qualquer um dos adversários. Note-se que, se tal estado de coisas ocorre o mais das vezes quando se trata de debater a distribuição dos seres em categorias essenciais, é possível que algumas questões de valor intervenham mesmo quando se discute sobre o tratamen- to que se deve reservar aos membros de certas categorias. s4 ÉTICA E DIREITO um fato de experiência. Ora, essa hipótese contém, em si, uma contradição interna: a noção de valor é, de fato, incompatível tanto com a necessidade formal quanto com a universalidade experimental: não há valor que não seja logicamente arbitrário. Apenas um racionalismo ingênuo julga a razão capaz de encontrar as verdades evidentes e os valores indiscutíveis. Sen- do a justiça, desde sempre, considerada a manifestação da razão na ação, o racionalismo dogmático acreditava na possibi- lidade de desenvolver tm sistema de justiça perfeito. O racionalismo crítico, em contrapartida, por reduzir o pa- pel da razão, por não lhe reconhecer nenhum poder de determi- nar o conteúdo de nossos juízos, é levado, por tabela, a limitar- lhe a importância no estabelecimento de um sistema normati- vo. A justiça, enquanto manifestação da razão na ação, deve contentar-se com um desenvolvimento formalmente correto de um ou de vários valores, que não são determinados pela razão nem por um sentimento de justiça. Assim como a discussão sobre a justiça formal não pode- ria ser proveitosa quando se desejasse reduzir, com ela, diver- gências concernentes às fórmulas de justiça concreta, assim também a discussão sobre as regras de justiça não poderá ser proveitosa se se desejar, como conclusão, aniquilar todas as divergências concernentes aos valores. Nossa exigência de justiça deve limitar-se à eliminação das regras de toda arbitra- riedade que não resulte de um juízo de valor irredutível. Assim como um ato justo é relativo à regra, a regra justa será relativa aos valores que servem de fundamento para O sistema normativo. Como todo valor é arbitrário, não existe justiça absoluta, inteiramente fundamentada na razão. Para ser mais preciso, não existe justiça absoluta, exceto a respeito de seres idênticos que, seja quai for o critério escolhido, sempre farão parte da mesma categoria essencial. Assim que dois seres deixam de ser idênticos, assim que é preciso fazer a pergunta de saber se é preciso desprezar a diferença que os separa ou se, ao contrá- tio, cumpre levá-la em conta, assim que é preciso distinguir as qualidades essenciais e secundárias para a aplicação da justi- A ÉTICA 65 ga, faz-se intervir considerações de valor, necessariamente ar- bitrárias. O caráter emotivo dos valores que estão na base de todo sistema normativo é que faz que a aplicação da justiça pareça ser uma operação da qual toda afetividade não está inteiramen- te excluída. Um sistema de justiça pode, por inteiro, ressentir- se da coloração emotiva nele propagada pelo valor fundamen- tal do qual ele constitui um desenvolvimento racional. Bascando um sistema normativo no ideal da beneficência, pode-se mesmo ser levado a fazer distorções na aplicação estri- ta da regra, se essa irregularidade tiver como consegiiência uma diminuição do sofrimento: não se ficará muito zangado com o juiz que não aplicar a lei em todo o seu rigor, se o fizer unicamente em consideração de uma situação excepcional- mente infeliz, assim também, o direito de graça, concedido aos soberanos, lhes permite amenizar as severidades da lei, levan- do em conta circunstâncias especiais que o juiz não tinha de considerar. Aliás, as desigualdades reais que se levam em conta para aplicar uma fórmula de justiça criam um novo problema para a consciência. Será justo que os seres ou seus atos sejam desi- guais naturalmente? Será justo que um tenha nascido direito e O outro perverso, um belo e o outro disforme? À essa pergunta pode-se responder de dois modos diferentes. Pode-se dizer que a desigualdade é um efeito das leis naturais, do destino, e que a justiça é alheia a tudo quanto é necessário. Em contrapartida, um crente responderá que tais desigualdades resultam da von- tade divina, cujos decretos são impenetráveis. Mas cada uma das duas respostas terá como consequência temperar, de certo modo, a aplicação da justiça. A primeira determinará a introdu- ção da noção de irresponsabilidade, de sorte que só se punirão os atos que parecerem o efeito de uma vontade livre, portanto responsável, A segunda terá como consegiiência amenizar a aplicação da justiça pela caridade, pois aqueles a quem Deus Tecusa suas benesses devem poder ao menos esperar certa com- pensação na misericórdia dos homens. 66 ÉTICA E DIREITO O caráter arbitrário dos fundamentos da justiça faz com que ela não se imponha diretamente como outras virtudes mais espontâneas, de sorte que a intransigência exacerbada em sua aplicação pode até conduzir a consegiências que uma alma bem-nascida sentirá como injustas: sumzmum jus, summa inju- ria. É por isso que um ser apaixonado por justiça não se con- tentará em aplicar estrita e cegamente as regras que decorrem de seu sistema normativo; sempre pensará no fundamento arbi- trário de seu sistema que não é, e não pode ser, um sistema per- feito. Não esquecerá que, ao lado dos valores reconhecidos por ele, existem outros valores aos quais algumas pessoas se devo- tam e pelos quais se sacrificam, e que sempre é possível uma revisão dos valores Assim é que, embora a justiça pareça ser a única virtude racional, que se opõe à irregularidade dos nossos atos, à arbi- trariedade das nossas regras, não se deve esquecer que sua ação mesma é fundamentada em valores arbitrários, irracionais, e que a estes se opõem outros valores aos quais um sentimento de justiça refinado não pode ser totalmente insensível. 6. Conclusão A justiça é uma noção prestigiosa e confusa, Uma defini- ção clara e precisa desse termo não pode analisar a fuindo o conteúdo conceitual, variável e diverso, que seu uso cotidiano poderia fazer aparecer. Definindo-a, não se pode pôr em foco senão um único aspecto da justiça ao qual se quereria reportar todo o prestígio desta, tomada no conjunto de seus usos. Esse modo de agir apresenta o inconveniente de operar, por um sub- terfúgio lógico, a transferência de uma emoção de um termo para o sentido que se quer arbitrariamente conceder-lhe. Para evitar tal inconveniente, a análise da justiça se aterá a pesquisar a parte comum a diversas concepções da justiça, parte que, evi- dentemente, não esgota todo o sentido dessa noção, mas que é possível definir de uma forma clara e precisa. . Essa parte comum, chamada justiça formal, permite-nos dizer quando um ato é considerado justo. A justiça de um ato A ÉTICA 67 consiste na igualdade de tratamento que ele reserva a todos os membros de uma mesma categoria essencial. Essa igualdade resulta, por sua vez, da regularidade do ato, do fato de que coincide com uma consegiiência de uma determinada regra de Justiça. A partir daí, pôde-se definir a noção de equidade que permite escapar às antinomias da justiça acarretadas pelo dese- jo de aplicar simultaneamente várias regras de justiça incom- patíveis. , É infinitamente mais delicado definir uma noção que pos- sibilite dizer quando uma regra é justa. A única exigência que se poderia formular acerca da regra é que não seja arbitrária, mas se justifique, decorra de um sistema normativo. Mas um sistema normativo, seja ele qual for, contém sem- pre um elemento arbitrário, o valor afirmado por seus princí- pios fundamentais que, eles, não são justificados. Esta última arbitrariedade, é logicamente impossível evitá-la. A única pre- tensão que se pode, com todo o direito, alegar consistiria na eli- minação de toda arbitrariedade que não seja a implicada pela afirmação dos valores que se encontram na base do sistema. Como, por outro lado, a arbitrariedade do sistema normativo vem sancionar desigualdades naturais, que tampouco são sus- cetíveis de justificação, daí resulta que, por essa dupla razão, não há justiça perfeita e necessária. Essa imperfeição de todo sistema de justiça, a parte inevi- tável de arbitrariedade que contém, deve sempre estar presente na mente de quem quiser aplicar suas mais extremas conse- giências. É somente em nome de uma justiça perfeita que seria moral afirmar perear mundus, fiat justitia. Mas todo sistema normativo imperfeito, para ser moralmente irrepreensível, de- veria aquecer-se no contacto de valores mais imediatos e mais espontâneos. Todo sistema de justiça deveria não perder de vista sua própria imperfeição e disso concluir que uma Justiça imperfeita, sem caridade, não é justiça. e8 ÉTICA E DIREITO $2. Os três aspectos da justiça! 1. Em todas as disciplinas normativas que regem, de um modo direto ou indireto, a ação com respeito a outrem, seja O direito ou a filosofia política, a moral ou a religião, a justiça constitui um valor central, o mais prestigioso que se possa invocar quando se trata de qualificar um ato (tal como uma decisão judiciária), uma regra ou um agente racional. Buscar as condições que permitem conceder a um ato, a uma regra ou à um agente, a qualidade de justo significa determinar os crité- rios do que vale, do que merece ser aprovado, na área da ação social. Como, ademais, toda visão do mundo molda à sua ma- neira os critérios da conduta válida, não se ficará nem um pouco espantado de constatar, ao estudar os textos relativos à noção de justiça”, que esta se encontra imersa na ambigilidade e na confusão, à primeira vista ainda mais irremediáveis por resultarem, a um só tempo, da variedade das ideologias que a modelam e da diversidade dos planos nos quais se encontra desenvolvida uma teoria da justiça. No livro V da Éticaa Nicô- maco, que constitui, pelo que sabemos, o primeiro estudo ana- lítico dessa noção, Aristóteles já chamava a atenção sobre a sua ambigitidade e sobre a multiplicidade de seus aspectos!. Para facilitar a análise, convém, parece-nos, tratar sucessivamente do ato justo, da regra justa e do homem justo, cuja determina- ção comporta exigências específicas, antes de examinar as in- terferências que podem ocorrer entre os diversos planos nos quais se apela ao ideal de justiça. 2. Ficando exclusivamente no plano do ato, da manifesta- ção de uma vontade, nós o qualificaremos de justo se for con- forme à aplicação correta de uma regra. O ideal de justiça ten- de, nesse nível, a modelar-se pelas operações mais elementares da aritmética e da física: querer-se-ia que as decisões justas fossem conformes a uma pesagem, a uma medição ou a um cálculo. O juiz, que atribuísse a cada qual o que lhe cabe se- gundo a lei, seria assimilável a aparelhos aperfeiçoados que in- dicam o montante a pagar, multiplicando a quantidade da mer- cadoria entregue pelo preço unitário. O montante é justo, por- A ÉTICA 69 que a conta é exata e não se contesta a exatidão do aparelho, nem o preço unitário. Nessa concepção, o juiz perfeito seria como uma máquina sem defeito, que dá a resposta quando lhe fornecem os elementos do problema, sem se preocupar em saber o que está em causa e quem seria o beneficiário de um erro'eventual. A venda que cobre os olhos da estátua da Justiça simboliza essa atitude desinteressada: julgam-se não pessoas, que não se vêem, mas seres que se enquadram nesta ou naquela categoria jurídica. O juiz é imparcial, pois não faz acepção das pessoas. O julgamento será o mesmo, em se tratando de ami- gos ou de inimigos, de poderosos ou de miseráveis, de ricos ou de pobres. Todos aqueles aos quais se aplica a mesma regra devem ser tratados da mesma forma, sejam quais forem as con- segiiências. A máquina não tem paixões; não se pode nem inti- midá-la, nem corrompê-la, nem, aliás, despertar-lhe a piedade. Dura lex, sed lex, A regra é a igualdade, ou seja, a permutabili. dade dos indivíduos sujeitos à justiça; suas particularidades não serão levadas em consideração senão na medida em que a lei as torna uma condição de sua aplicação. Essa é a concepção formal da justiça”, à qual seu próprio formalismo confere uma estrutura lógica, que favorece a dedução correta e, mais parti- « cularmente, o uso do silogismo: o que vale para todos os ele- mentos de uma categoria se aplica a tal elemento dessa catego- ria. Nada deveria vir perturbar o desenrolar rigoroso do racio- cínio: é com essa condição que poderá ser preservada uma ordem jurídica que dará uma impressão de segurança a todos que a ela estão sujeitos. O ideal do positivismo jurídico seria uma ordem jurídica tão bem elaborada, leis tão claras e tão completas que, no limite, a justiça pudesse ser administrada por um autômato. Foi a semelhante esforço de aclaramento e de aperfeiçoamento do sistema jurídico que se consagrou a es- cola de exegese. Ficando no plano do ato, a função do juiz é aplicar a lei, tal como é, sem outra consideração; não lhe compete modificar à lei em nome de concepções que julguem as próprias regras. Sua justiça é estática, não dinâmica'. É justo, para ele, o que é conforme à lei. Não tem de perguntar-se, enquanto juiz, se a lei 74 ÉTICA E DIREITO justa constitui o objeto central da filosofia do direito, da filo- sofia moral, social ou política. O Natão de 4 República e de As leis constitui o modelo prestigioso dos pensadores do Ocidente: à justiça concebida como conformidade a normas habituais de conduta, ele prefere a justiça como conformidade a regras ideais; às numerosas definições da justiça que ele des- carta umas depois das outras”, ele opõe aquela que considera racionalmente fundamentada, a saber: “a posse de seu bem próprio e o cumprimento de sua própria tarefa constituem a justiça”*, A justiça não é conformidade a um sistema de regras consuetudinárias ou legais adotadas pelos homens, mas a conformidade dessas próprias regras a uma ordem prévia. O problema da justiça está, nesse caso, subordinado ao problema filosófico da determinação dessa ordem fundamental da qual resultará uma teoria do direito natural ou racional, que deveria guiar o legislador que deseja elaborar um direito positivo justo. Apenas quando a matéria não foi regulamentada por essa ordem fundamental prévia, é que o legislador determina soberanamente as normas do justo e do injusto. Santo Tomás se exprime com toda nitidez a esse respeito: “A vontade huma- na pode, em virtude de uma convenção comum, fazer que seja justa uma coisa dentre aquelas que não implicam nenhum desacordo com a justiça natural. E é aí que há lugar para o direito positivo. Daí a definição do Filósofo referente ao direi- to positivo, a saber: antes de ser estabelecido, não importava que ele fosse assim ou diversamente, mas, uma vez estabeleci- do, importa”. Em contrapartida, uma coisa, que por si só está em desacordo com o direito natural, não pode tornar-se justa por vontade humana, por exemplo, decretar que é permitido roubar ou cometer o adultério. Por isso está escrito em Isaías: “Ai daqueles que fazem leis iníquas””* O direito natural, a que Santo Tomás alude, é preexistente ao direito positivo. Mas nem sempre sucede assim. Em certas sociedades teocráticas, os mandamentos divi- nos não preexistem ao direito positivo, mas O constituem ver- dadeiramente. Depois de haver proclamado o Decálogo, Moisés ordena a seu povo observá-lo por amor e por temor de A ÉTICA 75 J avé: “Guardai os mandamentos de Javé, vosso Deus, as instru- gões e as leis que ele vos prescreveu, e fazei o que é justo e bom aos olhos de Javé” (Deuteronômio, VI, 17-18). As prescrições religiosas, morais e jurídicas, não são distinguidas umas das outras ou, quando o são, é por meio de regras de competência e de procedimento de importância secundária. Trata-se aqui de uma concepção não filosófica, mas profética da justiça, da qual trataremos posteriormente; voltemos aos pontos de vista filo- sóficos. - As escolas clássicas de direito natural assimilam a ativida- de do jurista à do cientista: seu papel, de ambos, seria eviden- ciar estruturas prefiguradas na natureza das coisas. Lembramo- nos, nesse sentido, das célebres observações de Montesquieu: “Antes que houvesse leis feitas, havia relações de justiça possí- veis. Dizer que não há nada justo ou injusto senão o que orde- nam ou vedam as leis positivas é dizer que antes que se houves- se traçado o círculo todos os taios não eram iguais. Logo, cum- pre reconhecer relações de egilidade anteriores à lei positiva que as estabelece.”* As leis justas são as que, deixando claras e formulando as relações de justiça possíveis, lhes conferem sua atualidade e sua positividade; não se trata aqui de uma inven- ção criativa, mas do reconhecimento e da sanção legais de rela- ções objetivas e prévias. Em contrapartida, os partidários de um direito racional o apresentam como uma criação puramente humana, orientada para a realização de fins, quer utilitários, quer ideais. Hume não hesita em dizer que as regras de justiça não são naturais, mas artificiais, o que não quer dizer não-fundamenta- das*, pois são essencialmente úteis. Elas “têm por objetivo remediar inconvenientes oriundos do concurso de certas quali- dades da mente humana e da situação dos objetos exteriores”. Não limitando, como Hume, a justiça à regulamentação das questões de propriedade privada, Jeremy Bentham estabelece- Tá todo um sistema de legislação utilitária em que o legislador deveria inspirar-se para elaborar um direito justo. Para os partidários de um direito racional ideal, de Kant a Del Vecchio, a justiça é fundamentada essencialmente no 76 ÉTICA E DIREITO respeito à autonomia de cada pessoa. Eis como se exprime este último autor: “A justiça requer que cada sujeito seja reconheci- do e tratado por qualquer outro como um princípio absoluto de seus próprios atos. A justiça requer que, no tratamento recípro- co, se tome em consideração essa identidade metaempírica de natureza e que seja excluída, em consequência, toda disparida- de não fundamentada na maneira de ser e de operar efetiva de cada qual, devendo todo comportamento ser reportado objeti- vamente à mesma medida absolutas Essa formulação, inspi- rada por um humanismo universalista, precisa a regra de justi- ça: “Age do modo que desejarias que agissem teus semelhan- tes”, no sentido do imperativo categórico de Kant. Os seme- lhantes, que poderiam limitar-se aos homens da mesma tribo ou da mesma raça, ou englobar todos os seres vivos, se identifi- cam, nesse caso, com todos os seres vivos que supomos dota- dos de autonomia e cuja personalidade deveria ser respeitada. Um direito positivo será tratado como justo se constituir “uma satisfação, parcial e imperfeita, mas indispensável, da 'sede de justiça”, da necessidade de coordenação e de equilíbrio entre os indivíduos que é inata em nós, e que deve, porém, de certa maneira, se traduzir e se valorizar na experiência”. Os pontos de vista em que se colocam os filósofos para determinar se uma regra é justa são, como comprovam as pou- cas amostras apresentadas, extremamente variáveis. Todos procuram, não obstante, limitar, à sua maneira, a arbitrariedade daqueles que imporiam leis unicamente em nome da força de que dispõem. As leis deveriam amoldar-se, quer a uma realida- de prévia, quer a um sistema racional, concebido com o intuito de realizar um fim ideal. Pois uma regra justa não é arbitrária; deve possuir um fundamento justificativo em tazão, mesmo que esse fundamento não suscite um acordo unânime”. ada Partindo da idéia de que é preciso tratar da mesma forma os semelhantes — formulação tão genérica da regra de justiça que não levanta nenhuma objeção —, cada filosofia procurará justificar, de acordo com seu sistema, o fato de que certas dife- renças impedem considerar como semelhantes seres que se distinguem por características julgadas essenciais (seus méri- AÉTICA 7 tos, suas necessidades, suas obras, sua posição, sua origem ou uma combinação qualquer de tais características): cada uma indicará como é preciso proporcionar o tratamento dos seres que fazem parte de categorias diferentes com o valor pesto assim em evidência. É em considerações assim que Aristóteles fundamenta a proporcionalidade — e não a igualdade — que pre- side à determinação racional da justiça distributiva”. Aliás, essa proporcionalidade deve reger todas as formas de justiça cujas categorias podem ser organizadas num sistema que permita compará-las de um determinado ponto de vista. Assim é que, em direito penal, a gravidade da pena deveria ser proporcional à importância da transgressão para que as prescri- ções penais fossem justas, ou seja, desprovidas de arbitrarieda- de, pois justificáveis racionalmente. Mas é evidente que mes- mo sistemas de direito penal racionalmente elaborados podem diferenciar-se uns dos outros, se admitem critérios diferentes para determinar a gravidade de um delito ou se são mais ou menos severos na fixação das penas. Um sistema perfeitamente justo, do qual ninguém teria razão de se queixar, só seria realizável por um legislador de uma racionalidade tal que nenhuma de suas decisões apresen- taria um aspecto discutível; noutros termos, todas as suas deci- sões deveriam ser conformes a critérios universalmente váli- dos. Mas isto ainda não bastaria para fazer reinar uma Justiça absoluta. Pois as distinções de fato, que servem de base para a distribuição em categorias diversas e diversamente tratadas, deveriam igualmente ser não somente dadas, mas também fun- damentadas em razão. Por que um homem seria covarde e o outro corajoso, um imbecil e o outro inteligente, um impulsivo e o outro ponderado? Quer a distribuição dos bens e dos males, das virtudes e dos vícios, se faça ao acaso, quer seja o efeito da graça divina, o sistema, por mais racional que seja, atém-se a sancionar situações que contêm um elemento arbitrário, pro- porcionando às vítimas a ocasião de se queixar. É para responder aessa objeção que os filósofos da Índia desenvolveram a teoria do carma, em que as vantagens e os inconvenientes de uma vida terrestre são a recompensa ou a punição de uma vida ante- rior, teoria em que Platão parece ter-se inspirado”. 78 ÉTICA E DIREITO Parecendo sem esperança a tentativa de eliminar toda arbitrariedade de uma justiça humana, impôs-se à mente o caráter insuficiente, no absoluto, de uma justiça puramente racional. Assim como a egiiidade vem completar a regulamen- tação da ação justa, a caridade se impõe como o complemento indispensável de todo sistema que justifica as próprias regras, numa justiça humana preocupada em não lesar ninguém, em não dar a ninguém um motivo válido para se queixar. 4. O agente justo, homem ou divindade, é em geral defini- do como quem se aplica a proferir decisões justas ou a conhe- cer as regras justas. A justiça do agente constitui nesse caso uma virtude derivada, e não a fonte de toda justiça. A definição tradicional da justiça entre os romanos (Dig., 1, 1. 10) “constans et perpetua voluntas jus suum cuique tri- buendi” apresenta o homem justo sob o aspecto de um juiz íntegro que se empenha sempre em chegar a uma decisão justa. A qualidade do agente depende da justiça do ato, cujos aspec- tos examinamos anteriormente, e não enriquece a própria noção de justiça: Dá-se o mesmo se, concebendo-se a justiça do agente consoante a regra justa, qualifica-se de justo quem se amolda 20 direito natural ou racional, porque aceita os seus ensinamentos e lhe subordina sua conduta, Uma excelente ílus- tração desse ponto de vista é fornecida na célebre carta de “Montesquieu sobre a justiça: “Se há um Deus, meu caro Rhédi, é preciso necessaria- mente que seja justo, pois, se não fosse, seria o mais maldoso € o mais imperfeito de todos os seres. “A justiça é uma relação de conveniência que existe real- mente entre duas coisas: essa relação é sempre a mesma, seja qual for o ser que a considera, quer seja ele Deus, quer seja ele um anjo ou, enfim, quer seja ele um homem. “É verdade que os homens nem sempre vêem essas rela- ções; com fregiiência mesmo, quando as vêem, afastam-se delas, e o interesse deles é sempre o que vêem melhor... Os homens podem fazer injustiças, porque têm interesse em co- metê-las... Mas não é possível que Deus faça algo injusto... “Assim, ainda que não houvesse Deus, deveríamos sem- pre amar a justiça, ou seja, fazer esforços para parecer com A ÉTICA 79 esse ser de quem temos uma idéia tão bela e que, se existisse, seria necessariamente justo” O qualificativo justo aplicado ao agente parece-nos fome- cer uma contribuição original quando, contrariamente às con- cepções de Ulpiano e de Montesquieu, o agente justo se torna a fonte e a medida de toda justiça. Nas sociedades primitivas, os tabus, as proibições e as prescrições são de natureza ou de origem religiosas, e a obe- diência às ordens divinas é o fundamento de toda justiça. A piedade engloba a justiça e, na antiga tragédia grega por exem- Plo, a injustiça se confundia com a impiedade”, O empenho de Platão e, sobretudo, o de Aristóteles foi delimitar a justiça como virtude específica que a distinguiria da virtude em geral=. Aquele que se aplica à justiça é sábio; só é justo no exercício de certas funções. Ora, o que faz a especificidade de nossa civili- zação ocidental é a adição, à corrente formada pela tradição racionalista greco-romana, da tradição religiosa judaico-cristã, que deriva sua espiritualidade do primado concedido ao Deus justo, modelo de conduta perfeita, e ao homem justo, que se inspira nesse modelo divino em seu pensamento e em sua ação”, Em contraste com a concepção jurídica dos romanos e com a concepção filosófica dos gregos, a concepção judaico- cristã da justiça é essencialmente profética, pois é por intermé- dio dos profetas que Deus se revela aos homens. Deus é Retidão e Justiça (Deuteronômio, XXXII, 4; Isaías, XLV, 21), mas sua justiça é caridade e clemência. Apelar à sua justiça significa apelar ao mesmo tempo à sua misericórdia (Salmos, CXLIII, 1), pois nele elas coincidem: “Javé é justiça em todas os seus caminhos, misericórdia em todas as obras” (Salmos, CXLV, 17). Da mesma forma, na tra- dição cristã, a Primeira Epístola de São João vê em Deus, indi- ferentemente, justiça (II, 1, II, 25) e amor (TV, 8). Javé é justo, ama a justiça (Saimos, XI, 7). Todos os que estão em busca de justiça devem escutá-lo e seguir-lhe os man- damentos (Isaías, LI, 1). Assim também, para o cristão, Cristo é o modelo em que deve inspirar-se o fiel: “Aquele que preten- de estar nele, deve também conduzir-se como ele se conduziu” 84 ÉTICA E DIREITO vontade. A justiça não se reduz, para eles, nem a regras, nem a sistemas, mas reside na intenção esclarecida de proceder da melhor maneira possível, inspirando-se num modelo perfeito. Essa intenção se exprime, conforme as épocas, pela piedade do fiel ou pela caridade do sábio. A razão sozinha é insuficiente para nos guiar na ação e, mesmo que fosse possível elaborar uma ordem humana racionalmente satisfatória, por que cum- priria lhe amoldar a nossa conduta? Que é que torna respeitá- veis as conclusões racionais, a não ser o modelo divino em que parecem inspirar-se? Não há justo, senão o coração reto à pro- cura do Absoluto. Os três preceitos de Ulpiano: honeste vivere, aiterum non laedere, suum cuique tribuere (Dig., I, 1, 10) parecem-me, con- venientemente interpretados, resumir a nossa análise da noção de justiça. Esses preceitos foram compreendidos de formas muito variadas. Leibniz vê neles aforismos da justiça universal, da justiça comutativa e da justiça distributiva'. Para Kant, eles resumem nossos deveres jurídicos que comportam uma lex iusti, uma lex iuridica e uma lex iustitiae”. Quanto a nós, que interpretamos o terceiro preceito num sentido puramente legal (atribuir a cada qual o que lhe cabe segundo a lei), vemos nes- ses três aforismos os três aspectos complementares da noção de justiça, os aspectos profético, filosófico e jurídico, corres- pondentes aos planos do agente, da regra e do ato, que acaba- mos de distinguir em nossa análise. A noção complexa de justiça se apresenta assim, no Ocidente, como um campo de encontro onde vêm fecundar-se mutuamente os aforismos bem-cunhados dos juristas romanos, os sistemas racionais dos filósofos gregos, as invocações apai- xonadas dos profetas judeus que, todos eles, contribuíram para a grande tradição cristã, racionalista e, mais tarde, laica, que nos enriquece o pensamento e nos vivifica a consciência. A ÉTICA 85 $3. A regra de justiça! Na medida em que se limita o papel da razão prática a ajustar meios a fins indiscutíveis, sua ação se manifesta pela virtude de prudência. Mas, quando é o todo de uma conduta gue ésubmetido ao crivo da razão, e não somente seus aspectos instrumentais e técnicos, o conceito a que se recorre para quali- ficar um comportamento aprovado é o de justiça. De fato, na tradição filosófica do Ocidente, é a justiça que é considerada a virtude racional por excelência. O sábio não se contenta em seguir seus impulsos, seus interesses e suas paixões, nem, aliás, suas tendências de piedade e de simpatia. Não basta, ao sábio, ser bom e caridoso: sua conduta será justa. A justiça, diz-nos Leibniz, é a caridade do sábio e abrange, segundo ele, além da tendéncia para fazer o bem, aliviando os sofrimentos, a regra da razão”. É por isso que, se há algum uso prático da razão, ele deve manifestar-se na ação justa, que atestaria uma racionalidade, da qual seria desprovido um comportamento injusto. Ora, ao seguir as incessantes controvérsias referentes ao justo e ao injusto, tanto na vida privada como na vida públi- ca, sem que sejamos capazes de fornecer uma regra ou um cri- tério que se imporia a todos, podemos perguntar-nos se não convém renunciar a qualquer esperança de ver a razão guiar- nos a ação. Mas, antes de nos resignarmos a essa conclusão desesperançada, cabe examinar se a regra da razão, à qual alude Leibniz, ao mesmo tempo que permite resolver automa- ticamente todos os conflitos, não poderia fornecer, à maneira do imperativo categórico de Kant, um esquema de ação de caráter formal, que não fosse desprovido de todo alcance e de toda utilidade. É à elaboração desse esquema e a uma reflexão filosófica concernente a ele que será consagrada esta explana- ção sobre a regra de justiça. À noção de justiça sempre foi aproximada da noção de igualdade, e creio que seria útil tentar uma primeira aproxima- são da regra de justiça a partir de uma análise do que é implica- do pela relação de igualdade. Dois objetos, a e b, são iguais, se são permutáveis, ou seja, se toda propriedade de um desses objetos é também uma pro- 86 ÉTICA E DIREITO priedade do outro. Em termos normativos, disso resulta que, se a e b são iguais, tudo o que se diz de um desses objetos deve poder ser dito do outro, pois essas duas afirmações são equiva- lentes, têm o mesmo valor de verdade. Dizendo que é justo tra- tar da mesma forma seres iguais, pois que cada propriedade de um desses seres é também uma propriedade do outro e que não existe, portanto, nenhuma razão que permita justificar seu tra- tamento desigual, o tratamento justo se apresenta como o trata- mento fundamentado na razão, pois conforme ao princípio da razão suficiente. As consegiências normativas que concemem às afirmações relativas a dois objetos iguais poderiam mesmo ser consideradas um caso particular de tratamento justo: se todo tratamento justo de dois objetos iguais deve ser igual, cumpre que se dê o mesmo com afirmações a respeito deles, sendo o dizer um caso particular do fazer. A regra de justiça, que exige o tratamento igual de seres iguais, parece dificilmente discutível, mas seu campo de apli- cação é extremamente reduzido, se não inteiramente nulo. Com efeito, desde Leibniz e seu princípio dos indiscerníveis, e sobretudo desde Frege e sua distinção entre sentido e designa- ção de um nome, os lógicos estão cada vez mais inclinados a. negar a existência de seres de quem todas as propriedades seriam as mesmas. A afirmação de que a é igual a b, concebida como a identidade completa deles, significaria simplesmente que os nomes “a” e ”b” designam um único e mesmo objeto, ainda que o sentido deles, ou seja a maneira pela qual esse objeto é designado, difira em ambos os casos. Se queremos que a regra de justiça possa guiar-nos efetivamente, cumpre, por- tanto, formulá-la de maneira que ela nos indique, não como tratar seres que não diferem um do outro por nenhuma proprie- dade, mas como tratar seres que não são idênticos, ou seja, iguais em todos os pontos de vista. Este é o único problema real concernente à regra de justiça. Quando se ouve pessoas queixarem-se de terem sido tra- tadas injustamente, porque não foram tratadas como o vizinho ou o concorrente, ou porque foram tratados da mesma forma, quando teriam merecido melhor, não acudirá à mente de nin- A ÉTICA 87 guém que essas pessoas eram idênticas àquelas às quais se comparam ou que toda diferença entre elas teria bastado para Justificar um tratamento desigual. Ao contrário, essas pessoas alegarão expressamente todas as espécies de diferenças, dirão que o outro é mais rico ou mais influente, que é parente ou amigo de certo funcionário, que faz parte de um clã, de um grupo político ou religioso próximo do Poder. Mas, se se quei- xam, é porque pretendem que tais diferenças não deveriam ter exercido nenhuma influência sobre a decisão adotada ou por- que algumas diferenças essenciais, que deveriam ter intervin- do em seu favor, ficaram sem efeito. É que pretendem que cer- tos elementos, considerados essenciais, e nada além deles, deveriam ter sido levados em consideração: a decisão seria injusta porque não os levou em conta ou porque foi tomada em função de elementos irrelevantes, alheios à questão. A injusti- ga não resultaria, aqui, do tratamento desigual de seres idênti- cos, mas do tratamento desigual de seres diferentes, cujas diferenças eram irrelevantes no caso: do ponto de vista dos critérios que deveriam ter sido aplicados, os seres eram seme- lhantes e por isso deveria ter-lhes sido reservado o mesmo tra- tamento. Será também considerado injusto o tratamento igual de seres que, conforme os critérios em questão, deviam fazer parte de categorias diferentes às quais era reservado um trata- mento desigual. Mas quais serão as diferenças que importam e quais serão as que não importam em cada situação determinada? A esse respeito, podem manifestar-se divergências e se manifestam efetivamente. Qualifiquemos de essenciais as diferenças que importam e digamos que os seres entre os quais essas diferen- ças essenciais não existem são essencialmente semelhantes. Nesse caso, a regra de justiça exige que sejam tratados da mesma forma aqueles que são essencialmente semelhantes. Mas a regra de justiça, tal como é formulada, foi chamada nou- tra exposição regra de justiça forma?, porque não nos diz quando os seres são essencialmente semelhantes nem como é preciso tratá-los. Ora, a aplicação dessa regra, em casos con- cretos, necessita da especificação dessas duas condições. Se 88 ÉTICA E DIREITO supomos que é a lei positiva que fornece critérios de aplicação, a regra de justiça se precisa e se torna regra de direito (the rule of law), exigindo que sejam tratados de uma forma determina- da pela lei todos os que são semelhantes aos olhos da lei. Amoldando-nos à regra de direito, amoldamo-nos à regra de justiça, precisada segundo a vontade do legislador. A justiça se define, nesse caso, como a aplicação correta da lei. Qual sentido se deve dar à regra de justiça enquanto as suas condições de aplicação não forem determinadas? Ela sig- nifica simplesmente que o indivíduo, em sua ação, deve ser fiel a uma linha de conduta regular. Se um ser foi tratado de certa forma, porque faz parte de certa classe, qualquer outro membro dessa mesma classe deverá ser tratado da mesma forma. Essa concepção, qualificada por Dupréel de justiça estática', exige que se observe uma regra estabelecida, seja ela qual for. A ação justa é a que se amolda a uma regra aceita ou, pelo menos, a um precedente estabelecido. Quando uma decisão autorizada tra- tou de certa forma um caso relevante de certa categoria, é muito justo, e racional, tratar da mesma forma um caso essen- cialmente semelhante. O estabelecimento de uma ordem rácio- nal pressupõe, naturalmente, a conformidade com os preceden- tes (stare decisis). A regra de justiça convida-nos, de fato, a transformar em precedente, ou seja, em caso de aplicação de uma regra implícita, toda decisão anterior emanante de uma autoridade reconhecida. Seuma primeira formulação da regra de justiça permítia aproximá-la da igualdade, concebida como permutabilidade completa, a formulação atual permite aproximá-la da idéia de legalidade, que seria pressuposta por toda indução a partir da experiência. Será necessário, para induzir, ou seja, para passar de um caso particular à regra geral, supor que os acontecimen- tos são regidos por leis objetivas? Bastaria, parece-me, ver na indução apenas a aplicação da mesma tendência racional que nos conduz à regra de justiça: cada fenômeno seria tratado como um precedente, ou seja, como a manifestação de uma regra implícita segundo a qual os fenômenos essencialmente semelhantes manifestam as mesmas propriedades. As tabelas A ÉTICA 89 de Mill, ou qualquer outra técnica da metodologia da indução, só serviriam de meio de controle: cada vez que um fenômeno não se amolda às previsões, cabe modificar, de um modo ou de outro, a categoria de fenômenos essencialmente semelhantes de que este último constitui uma amostra. Não se trata, a esse respeito, de falar de justiça ou de injustiça, já que, a menos que se admita o milagre, supõe-se que os fenômenos se desenro- lam sempre de acordo com regras; trata-se somente de contro- lar, por meio da experiência, as regras elaboradas. Não se poderia sobreestimar, a esse respeito, a importância do caso invalidante que constitui um elemento essencial para o pro- gresso da pesquisa. Nossa sugestão, quanto ao fundamento da indução, apre- senta alguma analogia com as concepções de Kant, assim como com as de Kelsen, Como para eles, é nossa mente que, na minha teoria, impõe aos fenômenos suas exigências de racio- nalidade. Mas, ao passo que, para Kant, se trata, nas analogias da experiência, de mostrar que a experiência só é possível mediante a representação de um nexo necessário das percep- ções, conforme às categorias, a minha concepção, que pressu- põe igualmente um princípio regulador, se abstém ciosamente de lhe precisar excessivamente os termos. Apenas essa flexibi- lidade na formulação permite salvaguardar-lhe a universalida- de na aplicação. Aliás, Kelsen associa, em estudos aprofunda- dos e sugestivos*, o princípio de causalidade ao da justiça ima- nente, mas, enquanto ele acredita que a metodologia das ciên- cias naturais está se emancipando dessa concepção de origem teológica, o nexo que estabeleço entre a regra de justiça e o fundamento da indução não recorre a nenhuma explicação de ordem transcendente e seu aspecto, a um só tempo racional e format, possibilita-lhe adaptar-se a todas as variações da meto- dologia científica. A associação da regra de justiça à afirmação da regulari- dade dos fenômenos nos permitirá lançar luzes sobre o que as distingue uma da outra, e nos fazer compreender melhor o papel da regra de justiça como princípio diretor de nosso pen- samento. Quando um fenômeno estudado não se apresenta de 9 ÉTICA E DIREITO deliberar e argumentar. E, se não tem sentido algum falar de uma deliberação ou de uma argumentação formalmente corre- ta, significará isso que se deve renunciar a estabelecer uma dis- tinção, do ponto de vista racional, entre as deliberações menos ou mais alentadas, entre as argumentações fortes e-as argumen- tações fracas? A própria natureza da argumentação faz que ela não apresente o caráter coercivo das demonstrações, que se possa argumentar pró ou contra uma tese, 40 passo que seria absurdo querer, num sistema coerente, demonstrar um teorema e sua negação. Mas tal situação requer, para aderir às conclu- sões de uma argumentação ou para descartá-las, uma capacida- de de juízo que permita compreender a idéia mesma de decisão razoável. Na tradicional oposição entre a caridade e a justiça, é esta última virtude que parece racional, é ela que pesa, que compara e mede, são as decisões justas que se apresentam como racio- nalmente fundamentadas. É por isso que a hipótese, segundo a qual o que é qualificado de justo manifesta, de certo modo, a influência da razão na ação, não parece temerária. Essa influência se manifesta, antes de mais nada, na regra de justiça, segundo a qual é justo tratar da mesma forma o que é considerado essencialmente semelhante. A aplicação dessa regra implica, antes de mais nada, a importância do preceden- te, isto é, do tratamento anterior de uma situação semelhante, e do qual não convém afastar-se senão fornecendo razões sufi- cientes. Em seguida, a aplicação da regra, quando as situações comparadas não são idênticas, mas somente semelhantes, ne- cessita de um posicionamento quanto ao aspecto essencial ou acessório das características pelas quais elas diferem uma da outra. A justificação de tal posicionamento deverá recorrer não, como se poderia acreditar, a uma lógica dos juízos de valor, mas a todos os recursos de uma argumentação. Essa argumentação será qualificada de racional quando se achar que ela é válida para um auditório universal, constituído pelo con- junto das mentes razoáveis. Mas a idéia que se pode fazer desse auditório não é inteiramente fundamentada, nem na ex- periência, nem numa intuição evidente ou numa revelação A ÉTICA 95 transcendente, mas é, ela mesma, condicionada histórica e socialmente. É por isso que, na medida em que o ideal da razão prática é explicitado pelo recurso à regra de justiça, é possível precisar-lhe o alcance e circunscrever-lhe os limites. 1. Resenha da sessão. A sessão foi aberta às 16h45, na Sorbonne, Sala Cavaillês, sob a presidência do Sr. Jean Wahl, Vice-Presidente da Socie- dade. : Sr. J. Wahl. — Estou muito feliz de cumprimentar aqui meu colega e amigo Perelman. Devo antes de mais nada escusar o nosso Presidente, Gaston Berger, que bem teria gostado de assistir à nossa reunião mas que não poderá encontrar o Sr. Perelman, e em seguida apresentar suas desculpas à assembléia. Encontrei com muita fregiência, agora já nem sei quantas vezes — discutíamos sobre esse número, há um instante -, o Sr. Perelman em sociedades filosóficas, em congressos. Nos con- gressos há presenças pesadas, e também, não direi..., sim há presenças leves, em certo sentido da palavra leve, os pesos pesados e as presenças leves, se os senhores quiserem, e foi entre essas presenças agradáveis que sempre pus a do Sr. Perelman, seja em Atenas ou em Neuchâtel. De fato, lembro- me sobretudo dessas duas cidades, Neuchâtel e Atenas; uma me faz pensar em Rousseau e a outra, em Platão; e, de ambas, podemos, portanto, ir à arte de persuadir e à arte de convencer, se bem que não esteja certo de que Platão sempre tenha tido a arte de convencer, nem Rousseau a arte de persuadir, mas dei- xarei o cuidado de decidir isso à discussão, após a conferência do Sr. Perelman. Lamento ainda mais a ausência do Sr. Berger porque teria sido interessante conhecer os vínculos entre a antiga e nova Tetórica e a caracterologia, e passo imediatamente a palavra ao Sr. Perelman, agradecendo-lhe por estar aqui. Sr. Pereiman. — Senhor Presidente, Senhoras, Senhoritas, Senhores, caros Colegas e Amigos, é para mim uma imensa alegria poder falar à Sociedade Francesa de Filosofia, que ouviu debates tão célebres na história da filosofia. 96 ÉTICA E DIREITO Gostaria de entreter os senhores com um assunto, o da razão prática, que muito me interessa, e que parece bastante fora de moda para o pensamento contemporâneo. Talvez eu pudesse levar esse assunto à consciência dos senhores apresen- tando-lhes algumas sugestões sobre as origens psicológicas da reflexão filosófica. Disseram que ela foi suscitada pelo espan- to, pela angústia, talvez também por um sentimento de revolta, que teria provocado as primeiras dúvidas e as primeiras discór- dias. Pouco importa. O que é essencial é que, sejam quais forem os motivos do início da reflexão filosófica, ela não se concebe, a meu ver, sem uma ruptura da comunhão do homem com o seu meio, sem os primeiros questionamentos daquilo que, até então, era óbvio, tanto na visão do mundo como naquela do lugar que nele ocupamos; primeiros questionamen- tos tanto de nossas crenças como de nossas modalidades de ação. Ora, do questionamento ao desacordo, e do desacordo ao uso da força para restabelecer a unanimidade, a passagem é tão normal que quase não necessita de comentários. O que é excepcional, em contrapartida, e constituiu uma data na histó- ria da humanidade, é que se tenha permitido que, em matérias fundamentais, reservadas à tradição religiosa e aos seus porta- vozes, o uso da força possa ser substituído pelo da persuasão, que se possam formular questões e receber explicações, avan- çar opiniões e submetê-las à crítica alheia. O recurso ao logos, cuja força convincente dispensaria o recurso à força física e permitiria trocar a submissão pelo acordo, constituiu o ideal secular da filosofia desde Sócrates. Esse ideal de racionalidade foi associado, desde então, à busca individual da sabedoria e à comunhão das mentes fundamentada no saber, Como, graças à razão, dominar as paixões e evitar a violência? Quais são as verdades e os valores sobre os quais seria possível esperar o acordo de todos os seres dotados de razão? Eis o ideal confesso de todos os pensadores da grande tradição filosófica do Oci- dente. Sabemos como, muito depressa, esse ideal obteve seus primeiros grandes sucessos na área das ciências matemáticas que forneceram, logo na aurora da filosofia grega, o modelo de A ÉTICA 97 todo pensamento racionalista. Este se pôs à busca de verdades necessárias, ou pelo menos indubitáveis, que pudessem consti- tuir o fundamento absoluto do pensamento e da ação humanos. Assim como apreende intuitivamente as entidades e as opera- ções matemáticas, a razão deveria ser capaz de apreender, pela intuição, os valores nos quais os homens poderiam fundamen- tar sua ação e que se manifestariam com uma evidência irrecu- sável a toda mente suficientemente exercitada. Conhecemos a gloriosa e decepcionante história dessa tentativa racionalista, que desenvolveu no Ocidente a paixão pelo saber objetivo e pela verdade universalmente válida, o gosto do rigor e da preci- são, mas que não deixou de tornar proverbial, ao mesmo tempo, a incerteza da filosofia. Como explicar o fato inegável do progresso das ciências, primeiro matemáticas, depois naturais, e o fato, não menos ine- gável, da diversidade das filosofias, que exclui qualquer pro- gresso orgânico e arrasta periodicamente grandes filósofos à resolução, que a mim me parece desesperançada, de fazer tábu- la rasa do passado e de reconstruir, com novos esforços, um fundamento para a filosofia, que, dessa vez, resistiria à crítica? Seria entretanto permitido, depois do fracasso de tentativas empreendidas por um número tão grande de gênios filosóficos, agarrar-se ainda ao ideal da razão como guia na ação, em vez de ver na idéia da razão prática uma ilusão filosófica indigna de nossa era? Faz mais de dois séculos que Hume reparou que comete- mos paralogismos todas as vezes que, a partir do que é, con- cluímos um dever-ser. Nada de espantoso, pois, no fato de que, no que tange à ação, seja irrealizável um acordo, que se funda- mentaria, não na razão, mas em falhas de raciocínio. Apenas a partir de fins admitidos, que não sejam eles próprios de nature- za racional, é que se poderia, segundo ele, conceber os meios que lhes seriam os mais adequados. Aliás, ninguém negou, nesse sentido, a racionalidade de uma conduta prudente, con- duta que leva em conta vantagens é inconvenientes, chances e riscos, apresentados por cada eventualidade focalizada; a teo- ria dos jogos, o estudo das funções de decisão poderiam nos 98 ÉTICA E DIREITO esclarecer sobre o que se deve entender, nesse caso, por esco- lha razoável. Mas o papel da razão, como o do cálculo, conti- nua sempre subordinado a opções fundamentais que, por sua vez, são de natureza não-racional. Se a razão permite somente ficar de acordo sobre as conclusões de uma dedução correta, a partir de premissas aceitas, ela se reduz à faculdade de racioci- nar logicamente, ou seja, em conformidade com regras previa- mente aceitas da lógica formal. Nessa eventualidade, cumpriria mesmo convir com os positivistas que o ideal da razão prática não passa de um mito, igual ao do paraíso perdido. Se não há dúvida de que as duas concepções clássicas da razão, tanto a dos intuicionistas como a dos formalistas, fracas- sam em atribuir um lugar à razão prática, é porque, parece-me, ambas pretendem que o que é racional deve ser necessário, ou ao menos coercivo. A intuição dos valores deveria apreender estes à maneira de objetos que se impõem a todo ser de razão; mas sabemos que proceder assim é identificar um dever-ser a um ser, e quan- do, às vezes, parece possível realizar, por meio da intuição, um acordo sobre os valores, isso só se dá — creio que a experiência o mostrou suficientemente — mediante a imprecisão quanto ao objeto desse acordo. Quando se parte, por exemplo, de um princípio como Todos os homens buscam a felicidade ou o bem (ou qualquer outro valor), sabemos que se pode ficar de acordo sobre semelhantes proposições enquanto o termo-chave não foi suficientememte definido, mas os desacordos surgem tão logo se trata de precisar o alcance de semelhante afirmação. Compreendemos, assim, por que os intuicionistas tinham de fracassar em sua intenção de fundamentar uma axiologia nas intuições. Por outro lado, o desejo bem legítimo dos formalis- tas de elaborar raciocínios formalmente corretos, ou seja, con- formes a regras previamente dadas, impõe-lhes afastar do campo do racional qualquer raciocínio que não satisfaça a tais exigências, o que sucede toda vez que se esforçam em deduzir valores sem os estabelecer previamente. Querendo tratar os valores como objetos de intuição, que- rendo, por outro lado, encontrá-los como conclusão de raciocí- E A A ÉTICA 99 nios analíticos, só se pode fracassar na tentativa. Mas, em minha opinião, esse fracasso dos intuicionistas e dos formalis- tas resulta de uma concepção por demais estreita da razão. Não podemos perguntar-nos, de fato, se convém identificar esta com a faculdade do raciocínio necessário, ou coercivo, ou, pelo menos, formalmente correto. Será que raciocinar nada mais é senão inclinar-se diante das evidências, deduzir e calcular? Poder-se-á dizer que não se raciocina quando se delibera ou quando se argumenta? Cumprirá pretender que quando o racio- cínio não nos conduz a conclusões necessárias ou coercivas, ou de uma probabilidade calculável, movemo-nos inteiramente na arbitrariedade? O efeito mais imediato de semelhante alternati- va não será aumentar, fora de todas proporções com a realida- de, o campo do irracional na conduta humana? Quando se desenvolvem argumentos em favor de uma tese, mesmo quan- do esses argumentos não são coercivos, pode-se pretender que a tese se apresenta sem o menor fundamento que a justifique? Não se pode qualificar de razoável uma conduta ou uma deci- são que pode ser justificada por meio de argumentos fortes, enquanto seria desarrazoada a que só pode avançar argumentos fracos em seu favor? É verdade que não se pode, quando se trata de argumentação, dizer que ela é correta ou incorreta. De uma demonstração, de um raciocínio formal, diremos que ele é correto, ou seja, conforme às regras, ou incorreto, ou seja, não conforme às regras. Mas, quando se trata da argumentação, esse qualificativo não convém de modo algum, pois argumentar bem não é simplesmente amoldar-se a regras, e argumentar mal não é transgredi-las. Diz-se de uma argumentação que ela é forte ou fraca, que é bem ou mal dirigida; aliás, o grande pro- blema de qualquer metodologia é precisar essas noções relati- vamente a cada disciplina; teremos a ocasião de voltar ao assunto. Podem-se apresentar argumentos pró e contra uma tese, e a organização das argumentações em sentido oposto às vezes constitui mesmo, perante os tribunais, por exemplo, a condição prévia de um julgamento equilibrado. Enquanto num sistema formal utilizável, ou seja, coerente, é impossível demonstrar 104 ÉTICA E DIREITO cia de leis objetivas que, por si sós, teriam condições de justifi- car a indução a partir da experiência, ou seja, a passagem do caso particular para a regra geral. Bastaria, parece-me, não ver na indução senão a aplicação da mesma tendência natural que encontramos operante na regra de justiça. Cada fenômeno seria tratado como um precedente, como a manifestação de uma regra implícita segundo a qual os fenômenos essencialmente semelhantes manifestam as mesmas propriedades. O que distin- gue, porém, a ordem natural de uma ordem jurídica é que, nesta última, os precedentes só são estabelecidos por decisões cuja autoridade é limitada no tempo e no espaço, ao passo que os fenômenos naturais, quase sempre reprodutíveis em seus traços essenciais, podem, na medida em que são reconhecidos por todos os observadores, — sejam quais forem o momento e o local da experiência — servir para o estabelecimento de uma ordem natural universal. Por outro lado, enquanto as normas podem ser seguidas ou transgredidas — o que permite falar, a propósito delas, da responsabilidade e da liberdade do agente a quem os atos são imputáveis —, admitir que um fenômeno possa ou não ser considerado a manifestação de uma regra implícita é reconhecer a possibilidade de um milagre. Se essa eventualida- de for excluída, se supusermos que todos os fenômenos são regulares, cada vez que um deles não se conformar com as pre- visões cumprirá modificar, de um modo ou de outro, a determi- nação dos caracteres essencialmente semelhantes que definem a classe da qual o fenômeno imprevisto constitui um elemento. Toda a metodologia das ciências indutivas se ocupa, de fato, não com o direito que se tem de extrapolar, mas com a forma certa de extrapolar. Ela deve permitir controlar a elaboração das regras. Não se poderia superestimar, a esse respeito, a importân- cia do caso invalidante, que constitui um elemento essencial para o progresso da pesquisa, e isto tanto do ponto de vista psi- cológico como do ponto de vista metodológico”. Quando um fenômeno não se apresenta, ao estudo, de um modo conforme às previsões, podemos perguntar-nos se a ex- periência foi bem conduzida, se seu desenvolvimento não foi falscado em consegiiência da intervenção de elementos que ” rag A ÉTICA 105 não se levaram em conta, ou se, por fim, a observação do fenô- meno não foi laivada de erros. Mas, se estamos trangiiilos em todos esses pontos, só resta modificar pelo menos uma das regras que intervieram na elaboração da previsão desmentida pela experiência, Um aspecto do fenômeno que ainda não havia retido a atenção deverá integrar-se no conjunto dos caracteres essenciais, ou seja, daqueles que se devem levar em conta na formulação da regra. Pois tudo quanto é contrário às previsões estabelecidas graças às regras aceitas deverá expli- car-se pela imperfeição destas. O progresso das ciências natu- rais consiste, de fato, na extensão da rede, conforme à expe- riência, das regularidades no universo. É óbvio que essas regu- laridades podem ser de toda espécie, de caráter causal ou esta- tístico; a própria idéia de regularidade pode ser compreendida diferentemente de acordo com as necessidades da pesquisa científica. A ordem natural é universal, pois é a experiência comum e as previsões que ela autoriza, graças à aplicação da regra de Justiça, que permitem discernir os traços essenciais e distingui- los daqueles que não o são, quando se trata de formular as regularidades e as leis. Mas, quando se trata de normas que regem a ação, sabemos bem que a experiência não basta, nem para indicar quando, numa dada situação, dois seres devem ser considerados essencialmente semelhantes, nem como convém tratá-los. O juiz supremo, nessa matéria, será a nossa consciên- cia, que foi formada por uma dada ordem social, política e eco- nômica, ordem que comporta imperativos diversos, e que desempenhará, na determinação desses elementos essenciais, um papel decisivo. Contudo, o mais das vezes — e isso não é de nos espantar —, nossa reação será conformista e achará normal e racional, ou seja, não exigindo nenhuma explicação suple- mentar, um comportamento conforme aos precedentes. Isto, aliás, é apenas uma forma de seguir a regra de justiça. É apenas a aplicação, na vida da mente, de um princípio a que se poderia chamar princípio de inércia, porque desempenha exatamente o mesmo papel que este em física — segundo o qual o que é con- forme ao que foi aceito não provoca nenhum espanto, devendo, 106 ÉTICA E DIREITO em contrapartida, todo desvio, toda mudança ser justificados. Daí a importância da tradição, da educação e da iniciação, em todos os domínios, que constituem um elemento prévio indis- pensável à elaboração de qualquer pensamento original. Trate- se de direito ou de moral, de ciência ou de filosofia, é sempre de uma certa tradição que partimos, ainda que seja para criticá- la, e é ela que continuamos se não temos razões especiais para dela afastar-nos. É na negação desse ponto que ventos o erro fundamental de qualquer positivismo, na medida em que adota o método cartesiano, segundo o qual se deve partir do zero. Uma filosofia que se pretende conforme às progressões reais de nosso pensamento não pode fazer pouco caso de todas as contingências e declarar que fará tábula rasa de tudo o que não lhe parecer absolutamente fundamentado, pois, numa perspec- tiva antiabsolutista, que é a minha e que descarta qualquer idéia de um fundamento absoluto, uma pretensão dessas só pode rédundar num cepticismo universal. Em vez de subscrever à legitimidade de uma dúvida universal, cumpre, ao contrário, — sendo isso que qualquer homem razoável exige em qualquer circunstância - fornecer razões que justifiquem a dúvida, quando se trata de uma tese admitida em qualquer área que seja. Essas razões deverão ser reconhecidas, antes mesmo de serem pesadas em face das teses que procuram combater, e é nesse momento que se entabulará a discussão referente ao que é essencial e ao que é acessório, ao que importa e ao que não importa, ao que é relevante e ao que é irrelevante. À primeira vista, poder-se-ia crer que é aqui que deveria inserir-se uma lógica dos juízos de valor que indicaria como desempatar os pontos de vista. Uma lógica assim poderia ter cumprido esse papel, e a procurei sem grande sucesso anos a fio. Os elementos que consegui encontrar são muito parcos e só concemem às relações de meios com fim. A lógica dos juízos de valor de Goblot, por exemplo, não contém a menor indica- ção quanto à forma de raciocinar sobre os fins, o que quer dizer que todo raciocínio sobre os valores seria apenas de ordem téc- nica, e não filosófica. Isto nos obrigaria a renunciar a toda fito- sofia da razão prática: foi por isso que, após ter de lavrar esse A ÉTICA 107 auto de carência e, pessoalmente, não querendo renunciar, ins- Pirei-me no lógico Gottlob Frege e no modo como procedeu numa área muito diferente. Frege, para renovar a lógica formal, a lógica matemática, partiu simplesmente do raciocínio dos matemáticos e propôs-se a analisá-lo para descobrir as leis lógicas segundo as quais o matemático raciocina. Por que não seguir o método de Frege no domínio do raciocínio prático, tal como se manifesta em direito, em moral, em filosofia, em polí- tica, e descobrir a maneira pela qual raciocinamos sobre os valores e cuja descrição procurei em vão nos trabalhos contem- porâneos? O resultado da análise foi inesperado: constatei que, quando se trata dos valores, quando se trata de deliberar antes de agir, o raciocínio assume a forma de uma argumentação. Isso me pareceu uma revelação no mesmo momento, pois a teo- ria da argumentação — bem esquecida em nossa época — era, como rapidamente pude constatar, coisa bem conhecida dos Antigos, em especial de Aristóteles. Este mostrara, com efeito, que, ao lado daquilo a que chamava provas analíticas, ou se- ja, as provas formais e apodícticas, havia provas dialéticas, ou seja, provas concernentes ao opinável, à maneira de fundamen- tar as crenças e de chegar à melhor opinião. Mas há argumentação e argumentação, e nem todas as argumentações têm o mesmo valor. O ideal fitosófico mais representativo é servir-se — creio que até se poderia encontrar aí uma definição da filosofia — apenas de argumentos que sejam conformes ao imperativo categórico de Kant: não convi- ria utilizar, num raciocínio filosófico, senão argumentos que pudessem valer para uma universalidade das mentes. Cada ora- dor se dirige, com sua argumentação, a um auditório que pro- cura conquistar para as teses que lhe apresenta. Como toda argumentação, para ser eficaz, deve adaptar-se ao seu auditório, a qualidade da argumentação seria consoante à do auditório que consegue persuadir. Poder-se-ia considerar razoável a argu- mentação que procura convencer 0 auditório formado por todos os homens normais ou competentes. Em vez de partir de uma qualidade definida ou determinada a priori da argumenta- ção, cumpre partir da argumentação tal como vale num méio 108 ÉTICA E DIREITO de pessoas qualificadas para tratar desta ou daquela questão. Partiríamos assim da realidade concreta, da realidade tal como é definida por um determinado meio, o que permitiria precisar a distinção entre argumentos fracos e argumentos fortes. Os argumentos fortes são os que são considerados como tais pelos especialistas de uma disciplina, todas as vezes que se trata dessa disciplina. Note-se, aliás, que, para os filósofos, esse auditório, que é o auditório universal, é muito mais difícil de apreender do que o do cientista, do teólogo, ou do jurista. Entre estes, há sempre um conjunto de convenções, um conjunto de regras sobre as quais se está de acordo, ao passo que tal acordo é muito mais raro em filosofia. Em filosofia, trata-se apenas de uma visão da mente, e a concepção do auditório universal do filósofo permite caracterizar sobretudo o próprio filósofo. Mas admitir-se-á, em todo caso, sem dificuldade, que a argumenta- ção mais crítica que o filósofo possa conceber é aquela que ele apresenta com o intuito de convencer semelhante auditório universal, Se a regra de justiça, que exige que se trate da mesma forma seres essencialmente semelhantes, pode ser facilmente aceita por todos, é porque seu caráter formal lhe confere uma racionalidade dificilmente discutível: vão surgir as contendas quando se tratar de aplicá-la, quando se tratar de delimitar as características que tornam os seres essencialmente semelhan- tes e quando for preciso chegar a um acordo sobre a maneira de tratá-los. As respostas a tais questões são fornekidas em cada civilização pela ciência, quando se trata de saber teórico, e pelas normas jurídicas, morais e religiosas, quando se trata de regrar a conduta. Quando se apresentam razões para duvidar de uma lei ou de uma norma, sejam essas razões fornecidas pela experiência ou pela consciência, deverá ser desenvolvida uma argumentação para justificar a mudança proposta, que parecerá a mais apropriada para sanar os inconvenientes que se perce- bem ou se sentem. O que um filósofo pode almejar é que essas mudanças não sejam impostas pela violência, mas sejam justi- ficadas por argumentos pretensamente válidos para um auditó- rio universal. Esses argumentos não serão coercivos, sendo por dai noso A ÉTICA 109 essa razão que se pode diferir de opinião a respeito deles, mas permitirão formar um juízo, tomar uma decisão. É nesse senti- do que compreendo o empenho permanente dos homens de boa vontade para formar uma sociedade de mentes livres é respon- sáveis, que descarte a violência e se fundamente na razão, ou seja, a um só tempo, nas demonstrações racionais e nas argu- mentações razoáveis. Sr. J. Wahl. — Agradeço muito ao $r. Perelman por sua exposição extremamente clara e pergunto se há pessoas que queiram fazer perguntas. Sra. Parain. - Gostaria de perguntar ao Sr. Perelman qual é seu critério do argumento forte? Sr. Perelman. — Esta é uma das questões mais difíceis levantadas por minha exposição. Isso porque, e vale a pena vol- tar a esse ponto, um argumento forte não é um argumento cor- reto ou válido, cujo valor coercivo se imporia a todos. Se pudéssemos formulá-lo à maneira de uma regra de dedução, reduziríamos a argumentação à demonstração. Isto poderia ser encarado como um ideal, como um caso limite resultante da formalização de uma argumentação, da qual se teria eliminado toda ambigiidade, tanto quanto à sua interpretação como quanto ao seu campo de aplicação. Creio que, para determinar a força de um argumento, cumpre ainda referir-se à regra de justiça": um argumento forte, numa área determinada, é um argumento que pode prevalecer- se de precedentes. Nosso pensamento segue normas análogas às de toda conduta nossa: servimo-nos de precedentes, e servi- mo-nos de regras que constituem a generalização deles, por todo o tempo em que uma razão, de ordem teórica ou prática, não nos estimule a modificá-las, transformando o alcance do precedente. O procedimento é igual, trate-se de ciência ou de direito; parte-se sempre de técnicas de raciocínio que foram admitidas por homens de ciência ou por juristas, em sua espe- cialidade. Se há discussão, é porque esse processo não é des- Provido de posicionamentos, às vezes muito divergentes, quan- to à maneira de servir-se de precedentes. O lógico não deve, em áreas como a metodologia das ciências ou a do direito, querer dar lições aos especialistas. n4 ÉTICA E DIREITO mento, Não se pode esquecer que a retórica foi considerada pelos Antigos como a arte de bem conduzir, não somente a palavra, mas também o pensamento. Falar bem quer dizer falar de modo que se convença. Ora, falar de modo que se convença quer dizer falar de um modo eficaz; mas essa eficácia se apre- senta de formas muito diversas e é obtida por meios diferentes, conforme se adapte a ignorantes ou a pessoas competentes. Sr. Bénézé. — Mas a elogiiência também... Sr. Perelman. — Sim, mas o que eu queria dizer é que não se trata somente de falar, trata-se de raciocinar. Note que houve uma transformação da noção de retórica na qual eu gostaria de insistir. Em primeiro lugar, a retórica foi considerada durante os três últimos séculos a arte da expressão, ou seja, uma forma de expressar o pensamento. É uma relação entre o pensamento e a maneira de expressá-lo, ao passo que entre os Antigos era a maneira de fazer que seu pensamento fosse admitido por ou- trem, e a questão da forma só tinha um papel subalterno que dependia do conteúdo, sendo essa, aliás, a razão por que — e tentamos mostrá-lo longamente em nosso Tratado da argu- mentação* — as figuras de retórica podem ser consideradas argumentos e não, simplesmente, ornamentos. Em segundo lugar, o próprio Platão, que foi tão contrário à retórica dos sofistas, não disse: é preciso descartar a retórica. Diz-nos no Fedro: “Seria mister poder elaborar uma retórica digna do filósofo.” Que é a retórica digna do filósofo? Ele no- jo diz com todas as letras: é a retórica que poderia convencer os próprios deuses. Para elaborar uma retórica filosófica, ele muda a qualidade de seu auditório. Na medida em que não sei como devo falar aos deuses, posso ainda assim tentar fazer o melhor possível para dirigir-me a auditórios da melhor quali- dade. E é esse, creio, o esforço de racionalidade dos filósofos. Quando falam da razão, consideram-na encarnada no que eles poderiam considerar o melhor auditório possível. Sr. Bénézé. — Acho, apesar de tudo, que a sua argumenta- ção diz mais respeito à elogiiência do que à própria racionali- dade. Entendo por eloguência não só a arte de falar bem, mas, de fato, de falar de um modo eficaz, ou seja, ser bem sucedido. A ÉTICA 15 Sr. Perelman. — Ser bem-sucedido para quem? Quando se fala de retórica, opõe-se sempre a persuasão à verdade, mas se esquece muito que não há verdade senão admitida. Pode-se conceber uma realidade desconhecida, mas uma verdade des- conhecida é uma criação de teólogo, pois, se é desconhecida doshomens, é conhecida por Deus. Sr. Bénézé, — Consegiientemente, é um acordo? Sr. Perelman. — Eventualmente o acordo consigo mesmo, Sr. Bénézé. — Este é incontestável. Falo de um acordo com o outro, acordo alheio ao racional. Há outro ponto pelo qual passarei rapidamente, porque gostaria de deixar a palavra aos outros ouvintes; é este: o senhor falou de precedentes. Será que a escolha dos preceden- tes não depende da decisão? Sr. Perelman. — Há interação. As civilizações, as culturas, os homens são diversos pelo modo como foram formados, em virtude de um conjunto de regras, de precedentes que forma o ponto de partida de sua ideologia ou de seu pensamento. Mes- mo quando os homens se insurgem contra sua formação, são influenciados por ela, porque não se pode elaborar um pensa- mento de oposição sem que ele tenha sido formado por aquilo a que se opõe. Sr. Bénézé. — Eu dizia isso porque, em alguns julgamen- tos, pude ver os juízes decidirem que seu aresto não constitui- riaum precedente, que os futuros juízes não alegariam exceção daquilo que eles próprios puderam dizer, para julgar como eles casos até semelhantes. Sr. Perelman. — Isso quer dizer que eles se dão conta do caráter excepcional de sua decisão. Foi nisso que insisti a pro- pósito do milagre: o milagre não forma precedente no estudo dos fenômenos naturais. A maneira de proceder que o senhor assinalou está nos talmudistas. Os talmudistas partem de certo número de decisões que foram tomadas por um Ser perfeito, que é Deus, e as tornam precedentes. Mas quando se encon- tram em presença de uma decisão que não gostam de generali- zar, dizem: eis uma decisão que não formará precedente; é uma situação totalmente extraordinária, parece-se, na área da con- duta, com o que é o milagre no reino da natureza. 116 ÉTICA E DIREITO Sr. Bénézé. — Estou de acordo; tanto mais que o milagre, também ele, é objeto de decisão. Sr. Varet. — O que me inquieta, depois de tê-lo ouvido, é que, aparentemente, para o senhor, toda argumentação tem, eo ipso, um caráter razoável, de sorte que me pergunto o que seria, segundo o senhor, uma argumentação desarrazoada. De um lado, há argumentos fortes — e, se bem o compreendo, são razoáveis — e, depois, há argumentos fracos, e eles são igual- mente razoáveis, mas um pouco menos... Então, o que é grave, até mesmo trágico, às vezes na existência, é que na realidade algumas teses desarrazoadas podem encontrar argumentos for- tes à sua disposição, e teses muito razoáveis podem, ao contrá- rio, só dispor de argumentos fracos. Sr. Perelman. — Uma tese desarrazoada é uma tese susten- tada por argumentos desarrazoados. Não creio que se possa falar da natureza razoável de uma tese in abstracto, sem a vin- cular aos argumentos. Por outro lado, o senhor tem razão, num certo sentido, ao dizer que um argumento fraco também pode ser fracamente razoável. É que, na área do formal, o raciocínio é correto ou incorreto, ou seja, se o senhor quiser, racional ou irracional, Na área da argumentação, pelo contrário, não há diferença de natureza entre o razoável e o desarrazoável, mas há diferença de graus. Mas, quando lhe digo que há diferença de graus, trata-se de uma diferença que importa, que, a meu ver, é essencial; isso quer dizer que não se deve crer que ao transformar a diferença de natureza em diferença de graus, eu a suprima, ao contrário, ela desempenhará o mesmo papel que a diferença de natureza desempenha na demonstração. Agora, de fato, um juiz que se vê diante de duas teses, uma forte e uma fraca, dará razão à mais forte e pronto. Sr. J. Wahl. — Nem sempre... Sr. Perelman. — Pode ser evidentemente um juiz corrupto, intimidado, mas o senhor vai me dizer também... Sr. J. Wahl. — Não disse isso... Sr. Perelman, — O senhor também poderá dizer-me que ele foi convencido pela tese mais fraca. Mas talvez haja desacordo sobre o que é uma tese forte e uma tese fraca, sendo por essa A ÉTICA n7 razão que o juiz deve ser controlado. No domínio do imperfei- to, só podemos instituir um regime de controles humanos; esta- mos aqui no domínio do imperfeito, mas que é perfectível, jus- tamente por ser imperfeito. Sr. Guéroult. — Fiquei encantado com a sua exposição. Havia outrora uma disciplina, a Retórica, que ocupava um lugar considerável na especulação humana. Depois de Ramus, ela desapareceu do céu da filosofia, o senhor a traz de volta. Agradeço-lhe infinitamente. , Gostaria simplesmente de acrescentar uma curta observa- ção a propósito da judiciosa questão, evocada há pouco, refe- rente aos argumentos fortes. O senhor observou que não havia definição universal possível do argumento forte, sendo o mesmo argumento considerado fraco ou forte conforme a filo- sofia que se tem em vista. Penso que essa observação poderia traduzir-se da seguinte forma: a força de um argumento, sendo idêntica às demais condições, depende do valor ou do fim reco- nhecido como valor ou fim supremo por uma filosofia. O senhor citou o exemplo do utilitarismo. Ora, é evidente que os argumentos por ele considerados fortes só são tais aos olhos deles porque combinam com o valor privilegiado que ele erige em absoluto. Se tomarmos uma filosofia que nega a utilidade como valor supremo, todos os argumentos percebidos como fortes serão imediatamente percebidos como fracos. É por isso que, em toda argumentação filosófica que, como tal, se preten- de racionaf, ou pelo menos razoável, associa-se o mais das vezes à tese adversa um juízo subsidiário, que se pode qualifi- car de “infamante” (cf. As “categorias infamantes” levantadas em Platão por M. V. Goldschmidt). Assim, declarar-se-á que, se recusarem tal conclusão, cairão ou na Schwirmerei, ou num misticismo cego, ou num cientificismo empedernido, ou num intelectualismo abstrato, etc., marcando todos esses adjetivos pejorativos a intervenção mais ou menos surda do valor privile- giado que comanda a especulação do filósofo e dá todo o peso ao que ele avalia ser o argumento forte. Penso noutra questão conexa, que concerne à história da filosofia. A argumentação é importantíssima quando se trata 118 ÉTICA E DIREITO de estabelecer o sentido verdadeiro de uma obra. Qual será o argumento forte nesse caso, que já não é o do filósofo tentan- do impor sua doutrina, mas o do historiador que tenta interpre- tá-la? Como definir e avaliar aqui o argumento forte? Em minha opinião, é aquele que, sendo idênticas às demais condi- ções, combina com o valor ou com o fim reconhecido como supremo pela doutrina considerada. Quando a interpretação proposta contradiz esse valor, pode-se considerar como dos mais fracos o conjunto de seus argumentos. Por exemplo, se certa interpretação de uma filosofia eminentemente raciona- lista introduz nesta uma incoerência, sua argumentação pare- cerá ser muito fraca, dado que o valor privilegiado é aqui o rigor do encadeamento lógico; em compensação, o argumento que uma interpretação contrária tiraria do excesso de coerên- cia que ela desvela no sistema será um argumento objetiva- mente muito forte. Esse argumento será muito mais fraco, quando se tratar de uma doutrina que pouco se incomoda com origor lógico. Sr. Perelman. — Agradeço-lhe muito por ter feito essas observações que, aliás, vão na mesma direção de minhas pró- prias teses. Sei muito bem como a idéia de sistema, que lhe é cara, é ligada à idéia de argumentação. A única coisa em que há, talvez, possibilidade de discutir é a determinação do que é motor na elaboração de um sistema. Creio que há ligação entre a força concedida a certos tipos de argumentos € a preeminência que se concede a certas atitudes ou a certos valores; há uma dialética na qual um desses elementos repercute no outro, um sustenta o outro, sendo por essa razão que só se concebe a filosofia sob forma de um sistema; não há filosofia fora do sistema porque, sem ele, tudo se toma arbitrário. Se é indiscutível que há ligação entre os elementos de uma filosofia, podemos perguntar-nos o que deu impulso a tal visão do filósofo: será que foi o tipo de argumentos, será que foi o gênero de valor, será que foi certa situação ou certo ideal, etc.? Mas isso requer um estudo preciso. Creio que seria muito interessante, nos estudos de história da filosofia, mostrar a ligação que existe entre a visão do filósofo e os tipos de argumentos aos quais ele confere importância. Jo ais ci A ÉTICA 119 Quanto à sua segunda questão, que se reporta à interpreta- ção, ela se refere à metodologia da interpretação de textos. Como há uma crítica histórica, há também uma crítica filosófi- ca, e, na medida em que concedemos à coerência a primazia nessa interpretação, o senhor tem toda a razão. Mas é possível retôrquir: Não, o filósofo se assinala em sua singularidade sobretudo quando é incoerente, porque prova com isso que preza certos valores, apesar da incoerência deles; nesse momento, o senhor já não terá razão. A questão é saber jus- tamente qual é nossa metodologia da interpretação dos textos filosóficos e ela pode variar, evidentemente, de filósofo para fi- lósofo. Sr. Riceur. — Quero primeiro felicitá-lo pela importância que deu à probabilidade em filosofia. Bergson já havia pleitea- do pela introdução da probabilidade na argumentação filosófi- ca: o senhor está, portanto, em terreno firme. Gostaria de fazer-lhe duas perguntas no âmbito de sua pró- pria reflexão. Em primeiro lugar, qual é a importância do mode- lo jurídico na argumentação? O senhor disse que os filósofos ficaram excessivamente fascinados pelo modelo matemático. Mas o modelo jurídico cobrirá toda a área da argumentação? Parece-me que se tem o direito de falar de debate jurídico em três situações bem determinadas: na primeira, não se sabe quai regra vale num caso proposto; trata-se, pois, de encontrar a re- gra existente sob a qual o caso deve ser subsumido; na segunda situação, trata-se, para resolver o caso, de inventar uma regra que não contradiga os precedentes e possa fazer jurisprudência: essa é a obra do legislador; há, então, extensão do domínio das regras, invenção jurídica; na terceira situação, a do litígio, en- contramo-nos perante pretensões contrárias e conflitos de re- gras; trata-se, dessa vez, de inventar uma solução singular para dirimir o “caso”; esse é propriamente o ato de julgar. Essas três situações definem o domínio daquilo a que os lógicos da Idade Média chamavam judicium. Minha pergunta é então esta: esse modelo que o senhor opõe ao modelo matemático será absolu- tamente universalizável? Por exemplo, deve-se descartar a teo- ria dos jogos? E que diria o senhor de um modelo como aquele 124 “ ÉTICA E DIREITO Para precisar uma fórmula dela que apresentei num artigo intitulado “A instância da letra no inconsciente”, eu a escreve- rei assim: Sostg) x s A metáfora é, radicalmente, o efeito da substituição de um significante por outro numa cadeia, sem que nada de natural o predestine a essa função de foro, a não ser que se trate de dois significantes, como tais redutíveis a uma oposição fonemática. Para demonstrar isso a partir de um dos exemplos, esco- lhido judiciosamente pelo Sr. Perelman do terceiro diálogo de Berkeley", um oceano de falsa ciência se escreverá assim, — pois é preferível restaurar nele o que a tradução já tende a “adormecer” (para prestar homenagem, com o Sr. Perelman, a uma metáfora encontrada com muito acerto pelos retóricos): an ocean of false > an ocean ( A ) learning ? Com efeito, learning, ensino, não é ciência, e aí sentimos melhor ainda que esse termo não tem mais a ver com o oceano do que os alhos com os bugalhos. A catedral submersa do que se ensinou até então referente à matéria decerto não soará em vão em nossos ouvidos por se reduzir à alternância de sino surdo e sonoro por onde a frase penetra em nós: lear-ning, lear-ning, mas não é do fundo de um lençol tíquido, mas da falácia de seus próprios argumentos. Dos quais o oceano é um deles, e nada mais. Quero dizer: literatura, que cumpre devolver à sua época, pelo que ele su- porta o sentido de que o cosmos em seus confins pode tornar-se um lugar de embuste. Significado portanto, o senhor me dirá, do qual parte a metáfora. Por certo, mas no alcance de seu efei- to, ela passa além do que aí é apenas recorrência para apoiar-se no contra-senso do que não é mais que um termo entre outros do mesmo iearning. A ÉTICA 125 O que ocorre, em contrapartida, no lugar do ponto de interrogação na segunda parte de nossa fórmula, é uma espécie nova na significação, a de uma falsidade que a contestação não apreende, insondável, onda e profundeza de um aneipoç do imaginário onde afunda todo vaso que aí quisesse extrair algo. * Ao ser “despertada” em seu frescor, essa metáfora, como qualquer outra, se mostra o que é entre os surrealistas. A metáfora radical é dada no acesso de raiva, relatado por Freud, do menino, ainda inerme de grosseria, que foi seu caça- dor de ratos antes de acabar neurótico obsessivo, o qual, ao ser contrariado pelo pai o interpela: “Du Lampe, du Handtuch, du Teller usw.” (Tu lâmpada, tu guardanapo, tu prato...., e mais ainda.) No que o pai hesita em autenticar o crime ou o gênio. No que nós mesmos entendemos que não se perca a dimensão de injúria em que se origina a metáfora. Injúria mais grave do que se imagina ao reduzi-la à invectiva da guerra. Pois é dela que procede a injustiça feita gratuitamente a todo sujeito de um atributo pelo qual qualquer outro sujeito é incentivado a empreendê-la. “O gato faz au-au, o cachorro faz miau-miau” Eis como a criança soletra os poderes do discurso e inaugura o pensamento. Podem espantar-se de que eu sinta a necessidade de levar as coisas tão longe no que diz respeito à metáfora. Mas o Sr. Perelman concordará comigo que ao invocar, para satisfazer à sua teoria analógica, os pares do nadador e do cientista, depois da terra firme e da verdade, e de confessar que podemos assim multiplicá-los indefinidamente, o que ele formula manifesta com evidência que estão todos eles igualmente por fora e equi- vale ao que digo: que o fato adquirido de nenhuma significação nada tem que fazer na questão. Claro, falar da desorganização constitutiva de toda enun- ciação não é dizer tudo, e o exemplo que o Sr. Perelman reani- ma de Aristóteles", do entardecer da vida para falar da velhi- ce, indica-nos bem para não mostrar nele somente o recalque do mais desagradável do termo metaforizado para dele fazer surgir um sentido de paz que ele não implica em absoluto no real, 126 ÉTICA E DIREITO Pois se questionamos a paz do entardecer, percebemos que ela não tem outro relevo senão o enfraquecimento dos vocalises: trate-se da toada dos ceifeiros ou do chilreio dos passarinhos. Depois disso, teremos de lembrar que por mais blablablá que seja essencialmente a linguagem, é dela, porém, que pro- cedemotereo ser. Dito isso, brincando com a metáfora por nós mesmos escolhida no artigo citado há pouco”, em especial: “Seu feixe não era avaro nem rancoroso” de Booz adormecido, não é por nada que ela evoca o vínculo que, no rico, une a posição de ter à recusa inserida em seu ser. Pois é esse o impasse do amor. E mesmo sua negação nada mais faria aqui, como sabemos, senão o enunciar, se a metáfora introduzida pela substituição do sujeito por “seu feixe” não fizesse surgir o único objeto cujo ter implica a falta ao ser: o falo, em tomo do qual gira o poema inteiro até seu último verso. Isso quer dizer que a mais séria realidade, e mesmo a única séria para o homem, se consideramos seu papel ao sustentar a metonímia de seu desejo, só pode ser mantida na metáfora. Aonde quero chegar, senão a convencer os senhores de que o que o inconsciente traz de volta ao nosso exame é a lei pela qual a enunciação jamais se reduzirá ao enunciado de algum discurso? Não digamos que escolho nele meus termos seja o que for que tenha de dizer. Se bem que não seja vão lembrar aqui que o discurso da ciência, na medida em que se recomendaria objetividade, neutralidade, mornidão, até mau gosto, é igual- mente desonesto, tem intenções tão negras como qualquer ou- tra retórica. O que é preciso dizer é que o eu dessa escolha nasce em lugar diferente de onde o discurso se enuncia, precisamente naquele que o escuta. Não será dar o estatuto dos efeitos da retórica, mostrando que se estendem a qualquer significação? Que nos objetem que eles param no discurso matemático, estamos tanto mais de acordo sobre isso pois esse discurso, nós o apreciamos ao mais alto grau porque ele nada significa. AÉTICA 127 O único enunciado absoluto foi dito por quem de direito, a saber: que nenhum lance de dados no significante jamais abolirá nele o acaso, — pela razão, acrescentaremos, de que um acaso só existe numa determinação de linguagem, e isso sob qualquer aspecto que o conjuguemos, de automatismo ou de circunstân- cia”, Sr. Perelman. — Agradeço ao Dr. Lacan por sua interven- ção, e estou convencido de que há relações geralmente fecundas entre meu estudo e a psicanálise. Só que, para confessar-lhes uma evolução histórica, parti em minha pesquisa de um fato que me escandalizava, enquanto lógico, a saber: os filósofos não estavam de acordo. Penso que muitos jovens racionalistas fica- ram escandalizados com esse fato: por que há desacordo em filosofia? Além do mais, vi que não havia somente desacordo em filosofia, mas que também havia desacordo em direito, e desacordo em política, e desacordo frequente em ciências hu- manas e em muitas outras áreas; e, então, o objeto próprio de minha pesquisa se ampliou: como explicar o desacordo nessas disciplinas que são consideradas, porém, dependentes da razão. Eis meu ponto de partida. E foi por isso que empreendi análises de raciocínios em direito, em filosofia, em história, em todos os tipos de áreas. Não examinei os raciocínios que poderia ter con- siderado desarrazoados, mas, ao contrário, razoáveis na área das ciências humanas, e vi que, na realidade, tudo devia ser repensado na metodologia dessas ciências. Agora, em que medida a argumentação se prende à psica- nálise, ou o desprezo pela argumentação se prende também a certo recalque psicanalítico? Decerto seria útil empreender pesquisas nessa área, É possível também que a idéia de argu- mentação tenha sido descartada em épocas de monarquia, de poder absoluto e de ditadura. Aludi a isso numa comunicação apresentada, faz alguns meses, sobre os âmbitos sociais da argumentação”. Toda vez que chegamos a regimes monolíti- cos, vemos que se amam as verdades evidentes, as deduções retilíneas e não muito o pró e o contra e a argumentação; é por isso que os elementos sociais podem igualmente intervir. Todos esses estudos são muito apaixonantes, mas creio que seria preciso um grande número de especialistas para os 128 ÉTICA E DIREITO executar com frutos. Não sei se podemos pedir a alguém que seja a um só tempo filósofo, jurista, historiador, sociólogo, psi- cólogo, psicanalista, etc. Pergunto-me se esforços que se esten- dessem a todo o campo das ciências humanas não deveriam ser objeto de trabalho de equipes, de equipes de pessoas que se dessem as mãos, que se ajudassem, que se auxiliassem, que se criticassem; não creio que isso possa ser executado por um homem só. É por isso que fico muito contente de constatar - e já o sabia desde uns meses atrás — que aqui, em Paris, estudam igualmente os usos persuasivos, racionais, razoáveis, desarra- zoados da linguagem, do ponto de vista da psicologia e, em especial, da psicanálise. Fico muito feliz com isso, e se eu pudesse contribuir para o progresso dessas pesquisas, eu o faria com grande prazer. Sr. Shalom. - Eu gostaria de perguntar-lhe se, em sua argumentação, não há que fazer uma distinção entre dois pon- tos de vista bem distintos. O senhor fala, de um lado, uma lin- guagem que é assaz quantitativa; quando fala do ponto de vista da lei, por exemplo, do ponto de vista jurídico, o senhor fala em termos de empirismo, em termos de neutralidade, de tole- rância, vê a coisa largamente. Mas eu me pergunto se não se deve fazer uma distinção entre esse ponto de vista geral, em que se pode falar em termos de estrutura de uma argumenta- ção, e o ponto de vista puramente pessoal; e, deste ponto de vista, creio que o que entra em jogo já não é a questão da estru- tura da argumentação, mas talvez a questão da significação dos termos-chaves utilizados. Então me pergunto qual distinção se deve fazer entre a estrutura de uma argumentação e os termos- chaves utilizados nesta ou naquela argumentação. Quando o senhor fala de valor, pareceu-me que tinha tendência a querer integrar a noção de valor num determinado conceito de estrutu- ta, Ou então, eu o compreendi mal. Sr. Perelman. -- Para hierarquizar os argumentos fortes ou fracos, é evidente que intervém um elemento de valor. Mas creio que há uma tarefa, e que é a tarefa prévia, e que é pratica- mente a única que empreendi: o estudo das estruturas argu- mentativas em que os valores aos quais se aplicam essas estru- turas não intervêm. Há o problema do estudo de tipos de argu- A ÉTICA 129 mentos, como se estudam os raciocínios formais, por exemplo, os raciocínios por transposição, por permutação, etc. Sr. Shalom. — Mas em função do sentido dos termos utili- zados. Os tipos de argumentação não dependem dos conceitos em causa? Não vejo como se pode falar, no abstrato, dos tipos de argumentação sem falar dos conceitos em causa na argu- mentação. Ora, O conceito em causa se torna, então, a chave da estrutura do argumento. Sr. Perelman, — Creio que é preciso distinguir os valores nos quais nos baseamos é os esquemas argumentativos. Por exemplo, tomemos o esquema ato-pessoa. Com muita fregiiên- cia partimos da idéia de que alguém realizou um ato corajoso e concluímos que é um homem corajoso; logo, passamos do ato para a pessoa. Há aí um esquema, um tipo de ligação entre os atos e as pessoas, esquema que é semelhante ao que existe, por exemplo, entre as obras e o estilo de que dependem essas obras; uma obra pode refletir certo estilo; uma instituição pode refletir, quer certa época, quer certo regime, etc. Há aí estruturas inde- pendentes de seu conteúdo. Mas, quando você fala de justo, ou de verdadeiro, ou de bom, não se trata de argumentos; trata-se, aqui, de certos valores que podem servir de ponto de apoio para argumentações, mas não dos próprios argumentos. Tomemos o raciocínio pelo exemplo; é um tipo de argumento dos mais fre- quentes, mas o senhor compreende muito bem que esse tipo de argumentação não é vinculado ao gênero de exemplos que se fornecem, nem à especificidade deles. Mas o que é importante, do ponto de vista filosófico, é que esses tipos de argumentos podem ter valor em certas filosofias e não em outras, indepen- dentemente do conteúdo deles, portanto independentemente do valor ou da realidade à qual esse tipo de argumento é aplicado; há, aí, dois domínios totalmente diferentes. Sr. Bouligand. — Depois de ter admirado a exposição muito rica do Sr. Perelman, eu gostaria de voltar a um ponto cujo interesse já nos foi salientado: ele se refere ao modelo matemático e ao modelo jurídico. Uma aproximação assim toca de perto aos progressos atuais da ciência, quando esta tenta conservar os esforços de racionalização que se realizaram 134 ÉTICA E DIREITO Sr. Perelman. — Não tenho muita coisa a responder às suas observações, exceto talvez que, quando falo do imperativo categórico de Kant, não o considero de modo algum a única regra moral original, uma vez que digo que, na verdade, parti- mos de certas regras que são aceitas em nossa sociedade, e só tentamos modificá-las quando temos condições de apresentar razões para fazê-lo. Mas, essas razões, deveríamos, se somos filósofos, pretender desenvolvê-las de modo que se apresentem como válidas para o auditório universal. Depois, há uma área do imperativo categórico que é valida, aplicada ao pensamento. Há uma regra que é formal, que é a regra de justiça, mas mostrei bem que ela é perfeitamente inapli- cável se não recorre a determinações de natureza concreta. Não partimos do formal; partimos mesmo de regras concretas; o que me interessa é saber quais são as técnicas de que dispomos quan- do, seja a experiência, seja a nossa consciência, no caso da teoria ou no caso da prática, deixam-nos em oposição com as conse- qiiências que podem resultar dessas regras. Nesse momento, as regras deverão ser modificadas e essa modificação deverá ser justificada mediante razões reconhecidas na área determinada. Por outro lado, é verdade que as intuições desempenham um papel importante no pensamento filosófico e que essas in- tuições são determinadas por todas as espécies de elementos, entre outros, pelo caráter do filósofo; mas não são essas intui- ções, em minha opinião, que distinguem um filósofo de al- guém que não é filósofo. A intuição pode ser também a intui- ção de um louco. Sr. Ed. Wolff. — Sou partidário da continuidade do normal ao patológico. Entretanto, via de regra e posto à parte o caso de alguns paranóicos, um louco não sabe empregar argumentos coerentes e fundamentados nos fatos a serviço de sua intuição central, Sr. Perelman. - Pode ser também a intuição de um ilumi- nado. Se pretendo que o papel da filosofia é desenvolver uma abordagem que seja válida para todas as mentes razoáveis, é porque se trata de inserir essa intuição em contexto que a tor- nam admissível, e este é o papel do filósofo. Não direi que a A ÉTICA 135 intuição não tem nenhuma importância; é evidente que tem importância, como a experiência. Mas coloco-me aqui do pon- to de vista do racional: qual a importância do racional em filo- sofia? Digo, ela é essencial. A razão não é tudo, porque não é ela que dará o ponto de partida de nossa filosofia, mas é ela que perrhitirá estruturá-la. Não há filosofia sem estruturação. Sr. Lenoir. — Sua comunicação, senhor, é assaz rica de argumentos e de detalhes para que eu queira atenuar-lhe o inte- resse e o alcance com argúcias. Eu me contentarei, como o Sr. Bouligand, em expressar minha concordância com o senhor. O senhor indicou, no curso da discussão, a intrusão do social na filosofia. Ela é comum ao senhor e ao Sr. Eugêne Dupréei, que tivemos a honra de receber em nossa Sociedade várias vezes. Talvez seja uma das características do pensamento belga. O senhor reconhece aqui, como os sociólogos, a interdependên- cia e a interação da moral e do direito. Isso me permite provo- cá-lo, se assim posso dizer. O mesmo filósofo no senhor reco- nhece a existência de costumes próprios de uma sociedade, de uma época, e postula uma moral universal que assegure a comunidade das mentes. Por conseguinte, não vejo bem em que o senhor se afasta dos positivistas. Comte pôde ser manti- do fora da Universidade e só entrar no ensino por meio da his- tória, Tive a ocasião de relê-lo recentemente. Decerto há mesmo entre Descartes e ele uma filiação que basta para fazer dele um dos representantes mais autorizados do gênio francês. Mas, no Curso de filosofia positiva, a palavra verdade só apa- rece uma vez. Ela se apaga ante as necessidades sociais, a razão pública, a opinião. Abramos o Sistema de política positi- va. Que é a moral universal que ele pretende fundar? De capí- tulo em capítulo, de digressão em digressão, de resumo em resumo, chegamos, e de maneira expressa, a um preceito: “O verdadeiro, o belo, o bem”, Ora, é o preceito de Victor Cousin; e Schuhl mo sugeriu, ele remonta a Plotino. Sr. Perelman, — Gostaria, antes de mais nada, de fazer meu mea culpa; esqueci que estava falando em Paris, e, falando em Paris, quando se fala de positivismo, pensa-se em Comte, mas eu não estava, em absoluto, pensando em Comte. Para mim, 136 ÉTICA E DIREITO Comte não é um positivista, no sentido atual do termo, ele leva muito mais em conta a história; não faz tábula rasa do passado, acho que o Sr. Gouhier poderia também dizer muitas coisas a esse respeito. Sr. Lenoir, — O debate entre civilização e culturas não está encerrado. Pensamos com muita frequência no intemporal. Talvez convenha ajustar a reflexão à história do mundo. Hoje o neopositivismo não domina a América do Sul e o México, sem reabrir o debate e sem caminhar, sem o saber às vezes, na dire- ção da civilização. Sr. Perelman. — Confesso não ter pensado nesses discípu- los de Comte quando fiz alusão ao neopositivismo. Por outro lado, quando o senhor diz que é preciso opor os dados sociais, as culturas, a uma tendência à universalidade, para mim a ten- dência à universalidade é um dos elementos mais característi- cos de nossa cultura e da cultura filosófica. Não sei em absolu- to se todas as civilizações têm essa mesma tendência. Se pode- mos dizer que o mundo ocidental é caracterizado pela filosofia, isso quer dizer pela tendência à universalidade, as duas estão ligadas, e é por essa razão que eu definia por ela a filosofia. Considero que minha concepção está situada inteiramente na linha de nossa cultura. Sr. Heidsieck. — Gostaria de interrogá-lo sobre o auditório universal. Será um ideal, será um mito? Como saber se o audi- tório concreto encarna o auditório universal, e em que medida? Onde está aqui o critério? Creio também que isso me intimida, esse auditório universal, é gente demais, ou gente elitista de- mais. Não seria no diálogo singular, por exemplo, num confli- to, no diálogo de dois combatentes que tentam achar entre si um caminho de paz, que se estabelece a justiça? É a busca da honra mutuamente garantida, como diz Proudhon, que forma aqui o critério. Sr. Perelman. — Creio que haveria muito que dizer sobre essa questão, que é uma questão muito difícil. Pretender, como constatava Sócrates perante Calicles, que basta que estejamos de acordo para que acreditemos ter encontrado a verdade é ainda, em minha opinião, um exagero, porque o acordo de duas A ÉTICA 137 pessoas só vale quando essas duas pessoas representam a razão. Que é a razão? Ela se define, a meu ver, pelo recurso ao auditório universal. Mas, então, que é esse auditório universal? Não é, evidentemente, um auditório efetivo; não passa de uma hipótese que corresponde à idéia de objetividade, mas é uma hi- pótese que é submetida ao controle e à verificação, e é por essa razão que acho que essa idéia pode servir e pode ser perfeita- mente utilizável, enquanto hipótese de trabalho: essa é uma idéia que me formo e a submeto a todos que poderiam ser con- siderados membros desse auditório. Quem é membro desse auditório e quem não é? Os senhores sabem que houve épocas em que os que não estavam de acordo com a opinião dominan- te eram considerados monstros, excluídos, queimados, etc. Temos todos os tipos de concepção atinentes às pessoas que estão no interior desse auditório, e isso, aliás, poderia ser obje- to de outro estudo muito interessante: que é que foi considera- do como encarnação do auditório universal, entre os diferentes filósofos e as diferentes épocas”? A idéia do auditório univer- sal implica, a um só tempo, uma questão de fato e uma norma; e há aí, como sempre em filosofia, uma interação entre os fatos eas normas. Sr. Robinet. — O senhor estabeleceu uma nítida distinção entre o racional, coagido pela necessidade do idêntico, e o razoá- vel, contingentemente aberto para o princípio de razão do seme- lhante. A distinção entre razão e argumentação vem, por isso, a conduzir a uma irredutibilidade entre demonstração e indução. Como, por conseguinte, o senhor pode admitir uma raiz comum à lei lógica e à regra de justiça, a não ser reduzindo o racional ao argumento forte e o razoável ao argumento fraco? Qu então, o senhor mantém a distinção entre razão teórica e razão prática? Essa distinção entre razão e argumentação não deverá ser acompanhada por uma reflexão corolário sobre argumentação e ação? Qual, de fato, a consistência do precedente que funda- menta a regra de justiça, ou, qual é o ser do essencialmente semelhante? Como o senhor absorve os aparentes acidentes que sobrevêm no exercício da prevalência do precedente so- ciológico e do hábito do preceito: seja que se constate uma 138 ÉTICA E DIREITO regressão da ordem do semelhante (profanação, tortura, tira- nia), seja que se assista à sua aceleração (o “herói”, a consciên- cia da humanidade)? Não seria então o mais diferente (o mons- tro ou o sábio) que permitiria à regra de justiça encontrar seu equilíbrio, propondo à espécie humana induções que a expõem à desagregação? Enfim, se o senhor introduz a razão suficiente na definição da razão prática, não deve completar a prevalência dos prece- dentes com uma prevalência não menos efetiva dos consegiien- tes e da finalidade? A precedência sociológica não deverá com- portar, para não ser racionalista, e sim Tazoável, a consideração dialética do futuro? Sr. Perelman. — Considero o racional e o razoável duas manifestações daquilo que deveria valer para o auditório uni- versal. Entre os dois, verei apenas uma diferença de grau; pas- saríamos do razoável para o racional mediante a eliminação dos elementos de ambigiidade, mediante a formalização e a mecanização. Onde pôde se dar o acordo sobre o que se enten- de por essencialmente semelhante, e se esse caráter é reconhe- cível sem ambigiidade — porque se trata de um caráter formal, por exemplo —, encontramo-nos no domínio da razão teórica, porque se eliminou a possibilidade de decisões divergentes. Oporei, assim, não razão a argumentação — porque acredi- to na possibilidade de uma argumentação que deveria valer para o auditório universal —, mas demonstração a argumenta- ção. Esta última é efetivamente ligada à ação, porque visa a exercer uma influência sobre outrem, influência cujo efeito poderia manifestar-se, quer por uma ação imediata, quer pela criação de uma disposição à ação. Toda educação que se mani- feste pela glorificação dos homens do passado e que se expres- se por meio de discursos epidícticos, cria disposições à ação, pelo emprego dos valores. É no gênero epidíctico que a argu- mentação se apresenta melhor como o emprego de uma lógica dos juízos de valor. A regra de justiça, que é fundamental na argumentação, não nos diz quais características devem ser consideradas essen- cialmente semelhantes. O imperativo categórico de Kant preci- A ÉTICA 139 sa que essas características são as dos homens e, com isso, sua filosofia é um humanismo. Mas trata-se de uma opção, que é à opção humanista, que faço minha, mas sem lhe negar a preca- riedade. Em outras circunstâncias, em culturas diferentes, outra determinação das características essenciais, mesmo quan- do se trata de homens, é perfeitamente concebível. A regra de justiça é conciliável com determinações diferentes de suas con- dições de aplicação. Assim é que, entre os lugares de que nos servimos na argumentação, oponho os lugares da qualidade aos lugares da quantidade, o que se pode chamar de lugares românticos aos lugares clássicos. É óbvio que os lugares da qualidade, ou seja, os lugares românticos, vão procurar conferir uma superiorida- de a determinações de ordem qualitativa, ao que é único, por exemplo, ao que não é repetível, ao que é precário, etc. O ponto de vista clássico e o ponto de vista racionalista, ao contrário, procurarão conferir o valor ao que é universal, ao que é quanta- tivamente mais importante, etc.” Essas duas tendências são encontradas em toda a história da filosofia e são encontradas também, aliás de modo permanente, em toda sociedade que tam- bém tem suas tendências caracteriais que se opõem a esse ponto de vista. Há aí valores antiéticos, sendo por essa tazão que uma argumentação que se baseia numa espécie de valores e não noutra jamais é coerciva, porque sempre há o outro tipo de argumentação que se lhe pode opor. A questão é simples- mente saber o que, na mente, tanto do orador como do auditó- rio, terá mais importância, e se intervêm opções. É óbvio que aquilo a que o senhor chama “a consideração dialética do futuro” tem um papel importante na modificação des- sas condições de aplicação: há uma dialética do formalismo e do pragmatismo sem a qual a história da cultura se tornaria incompreensível. Sr. Robinet. - Mas será que nesse momento, tanto forte como fraco, o argumento não desaparece? Sr. Perelman. — Não, ele não desaparece porque é vincula- do a toda uma visão da humanidade. Um argumento nunca é isolado de seu contexto, e só é forte ou fraco no contexto; fora do contexto, não o é. 144 ÉTICA E DIREITO diam dizer verdades válidas para todos ou valores absolutos? O fato de utilizarem palavras como verdade, valores universais ou valores absolutos, prova que seus argumentos ultrapassam esse pequeno grupo, porque, de outro modo, não teriam utiliza- do esses termos. Sr. Ohana. — Mas é uma maneira pretensão à universalida- de que não é fundamentada objetivamente, enquanto o senhor deseja precisamente que seja fundamentada objetivamente. Sr. Perelman. — Não, não. Digo que ela jamais é funda- mentada objetivamente. Digo que sempre há apenas uma pre- tensão, porém ela é mais, ou menos, bem realizada. É uma questão de mais ou de menos. A encarnação do auditório uni- versal varia com os séculos com as épocas, com os progressos da ciência, etc. O que foi considerado normal, válido universal- mente em tal época não o foi mais noutra época; isso quer dizer que essa idéia do auditório universal sempre é uma idéia situa- da histórica, social, psicologicamente; mas há sempre uma dia- lética entre as diferentes concepções que podemos ter desse auditório. Sr. Ohana. — Todo o mundo tem pretensão à universalida- de; o que importa é atualizá-la perante um auditório universal que a reconheça efetivamente. Há uma diferença extremamen- te importante entre o fato de se dirigir a sentimentos universais que se tornam objeto de juízos de valor verdadeiros (porque são precisamente universais) e o fato de se dirigir a sentimen- tos particulares de um auditório sociologicamente fechado para obter-lhe a cumplicidade. Sr. Perelman. — Nesses casos, um filósofo também pode fazer obra de político e também pode fazer obra... Sr. Ohana. — Isso é lamentável, mas o faz. E é por isso que, na minha opinião, o senhor não assinalou o suficiente a distinção entre o que deveria ser a filosofia e o que ela foi amiúde de fato. Sr. Perelman. — Digamos isto: um filósofo pode ter toda espécie de atividades. Digo que faz obra de filosofia quando pretende dirigir-se ao auditório universal, mesmo que a encar- nação desse auditório seja muito limitada. Agora seria preciso ver na práticá como isso se passa. A ÉTICA 145 Sr. J. Wahl. — Creio que isto pode conduzir-nos a uma conclusão, o Sr. Perelman dirigiu-se a um auditório universal... Agradecemos-lhe, assim como a todos que participaram desta bonita sessão. $ 5. Cinco aulas sobre a justiça! Apresentação Faz exatamente vinte anos que terminei a redação de meu primeiro estudo sobre a justiça. Mas, em vez de considerar ter- minada a minha tarefa e de voltar-me para outros trabalhos, não parei de refletir sobre essa noção, nas dificuldades que apresenta seu manejo, no paradoxo resultante de que, aparente- mente racional, ela suscita discussões é divergências de visões tão opostas à idéia tradicional da razão e do racional. Os valores e as normas pressupostos pela execução da jus- tiça poderão ser objeto de um exame racional ou serão apenas a expressão de nossas paixões e de nossos interesses? Como se raciocina sobre os valores e as normas, e como se pode conce- ber a idéia da razão prática? Todas essas questões provocaram minha reflexão filosófica e suscitaram pesquisas cujos resulta- dos foram publicados em diversos estudos, durante estes vinte últimosanos. | O professor Sciacca, que dirige os cursos de aperfeiçoa- mento em filosofia na Universidade de Gênova, convidou-me a apresentar, em cinco aulas, no mês de abril de 1964, uma visão sintética de minhas idéias sobre a justiça e a mostrar como elas se desenvolveram desde o meu primeiro estudo. Aceitei pron- tamente essa oportunidade de aprimorar minhas concepções sobre a matéria e fico feliz de poder apresentar ao público o texto dessas aulas, ligeiramente modificado para a publicação. 146 ÉTICA E DIREITO 1. A justiça e seus problemas A justiça é uma das noções mais prestigiosas de nosso universo espiritual. Seja-se crente ou incréu, conservador ou revolucionário, cada qual invoca a justiça, e ninguém ousa renegá-la. A aspiração à justiça caracteriza as objurgações dos profetas judeus e as reflexões dos filósofos gregos. Invoca-se a justiça para proteger a ordem estabelecida e para justificar as reviravoltas revolucionárias. Nesse sentido, a justiça é um va- lor universal, A sede de justiça que incita os homens a realizarem o ideal da sociedade de seus sonhos, a se revoltarem contra a injustiça de certos atos, de certas situações, fornece uma moti- vação suficiente tanto para os mais sublimes sacrifícios como para os piores delitos. O mesmo ímpeto entusiasta que os lança na perseguição de um mundo melhor pode varrer sem piedade tudo quanto lhe faz obstáculo: pereat mundus, fiat justítia. Mas a justiça está longe de ser um valor exclusivamente revolucionário. Os tribunais de justiça e toda a administração da justiça são escudos que protegem a ordem estabelecida cujos guardiões são os juízes, pois seu papel é aplicar a lei e punir os que a transgridem. Para os conservadores, o fato de não violar a lei, e de amoldar-lhe a ação, é a manifestação usual do sentimento de justiça. Cada vez que um conflito opõe adversários, tanto nos tri- bunais como nos campos de batalha, os dois campos reclamam a vitória da causa justa. E, se uma voz neutra pleiteia o fim do conflito, graças a uma decisão justa ou pela conclusão de uma paz justa, ninguém a acusará de parcialidade, pois cada qual está convencido de que a justiça triunfará com a vitória de sua própria causa. Essa situação paradoxal não deve incentivar-nos a con- cluir imediatamente que, em todos os conflitos, pelo menos um dos adversários age de má-fé. Outra explicação é não só possí- vel, mas também a mais verossímil, a saber: os campos opostos não têm a mesma concepção da justiça. Após ter mostrado que a justiça é um valor universal, ou seja, universalmente admiti- do, urge assinalar que é também uma noção confusa. na e ai, pie A ÉTICA 147 Em seu Traité de Morale, Eugêne Dupréel insistiu longa- mente nesse aspecto da questão: “Como uma noção moral não * corresponde nem a uma coisa que basta observar para verificar o que dela se afirma, nem a uma demonstração perante a qual basta render-se, mas na verdade a uma convenção para defini- la de uma certa maneira, quando um adversário tomou a ofen- siva, pondo de seu lado as aparências da justiça, a outra parte ficará inclinada a dar da justiça uma definição tal que sua causa fique-lhe conforme”? . Opondo-se ao realismo platônico das idéias e negando a existência de uma única verdadeira justiça, Dupréel adota um ponto de vista convencionalista, que é a expressão de seu nominalismo. Cada qual seria livre para definir a justiça como lhe aprouvesse, como conviesse aos seus interesses pessoais, daí a irremediável confusão da noção. Deveremos então concluir que as concepções da justiça são puramente arbitrárias, e terá Pascal razão de afirmar que a força sempre pode dar, à míngua de critério objetivo na maté- ria, as aparências da justiça, sem recear ser contradita, pois “é a força que faz a opinião"? Mas será realmente preciso que, em matéria de justiça, como em tantas outras matérias, oscilemos constantemente entre uma concepção realista, objetiva e dogmática, e uma con- cepção nominalista, subjetiva e arbitrária? Haverá meios de escapar a esse dilema, cujos dois ramos nos parecem igual- mente ruinosos? Seja qual for a resposta a esta última pergunta, é um fato inegável que a justiça assume rostos diversos, adaptados todas as vezes às teses dos adversários confrontados. E, se dizem que, há milênios, nos conflitos públicos e privados, nas guerras e nas revoluções, nos processos e nas disputas de interesses, todos os antagonistas declaram e se empenham em provar que a justiça está de seu lado, que se invoca a justiça todas as vezes que se recorre a um juiz ou a um árbitro, percebe-se a confu- são, à primeira vista inextricável, que os usos múltiplos dessa noção não deixaram de provocar. É por isso que a primeira tarefa que se impõe é uma análi- se científica do conceito de justiça que permita, tal como a 148 ÉTICA E DIREITO decomposição da luz branca num prisma, distinguir a varieda- de de seus sentidos e de seus usos. Um início de análise nos foi apresentado por Aristóteles, no livro V de sua Ética a Nicômaco. Aristóteles constata que a idéia de justiça, bem como a dê injustiça, é equívoca, pois, segundo o uso “o homem injusto é aquele que viola a lei e é também o cúpido. Por conseguinte, salta aos olhos que o homem justo é aquele que respeita a lei é é também aquele que salvaguarda a igualdade. Logo, pode“se concluir que a noção do justo corresponde às noções de legal e de igual, e a noção de injusto às de ilegal e desigual”, Continuemos o exame do texto de Aristóteles e veremos quão diferentes são os dois sentidos que ele distinguiu. “As leis”, diz-nos Aristóteles, “determinam todas as coi- sas, visando ao interesse comum.”* Por isso, no sentido em que justo é sinônimo de legal, chamamos de justo “o que produz e conserva a felicidade e as partes constituintes da felicidade para a comunidade política”. Daí resulta que se será justo sendo corajoso, temperante, plácido, numa palavra, fazendo o bem que a lei ordena e evitando o mal que ela veda. Assim, compreendida, diz-nos ele, “a justiça não é uma parte da virtu- de, mas a virtude em sua integridade”. A justiça não seria senão a virtude considerada em relação a outrem. O propósito de Aristóteles, no quinto livro consagrado à justiça, não é o de examinar esta enquanto virtude em geral, mas como virtude específica, distinta das outras virtudes e definível em função da igualdade, de certa racionalidade na ação. Se, portanto, ao interpretar a noção de “justiça” num sen- tido lato, pode-se dizer que é justo ser caridoso e injusto ser cruel, ao tomar essa noção num sentido estrito, pode-se conce- ber que a justiça coincide com a crueldade e a caridade com a injustiça. Com efeito, se o ato justo é aquele que reserva um tratamento igual a todos os que são iguais, e injusto aquele que favorece ou desfavorece um destes, o comportamento de um diretor de escola que trata com a mesma dureza de coração todos os seus alunos será justo, porém cruel; em contrapartida o juiz que, por piedade, absolve um réu culpado de um delito, será formalmente injusto, ainda que seja caridoso. A ÉTICA : 149 Essa mesma distinção que Aristóteles faz entre a justiça como virtude em geral e a justiça como virtude específica, nós a encontramos nos debates contemporâneos sobre a justiça das instituições políticas. Certos teóricos identificam a sociedade justa com a socie- dade ideal. Assim é que o professor Irede!l Jenkins, no volume de Nomos dedicado à idéia de justiça, escreve que cada socie- dade deve formular as metas e 0 programa que ela persegue e importa pouco que essas metas e esse programa sejam apresen- tados em nome da justiça, do interesse público, do progresso, da democracia ou do comunismo; a justiça não passa do nome do bem comum. Ao contrário, noutro artigo publicado na mesma coletâ- nea, o professor Rawls insiste no fato de que “a justiça não passa de uma das numerosas virtudes das instituições políticas e sociais, pois uma instituição pode ser ultrapassada, ineficaz, degradante, ou muitas outras coisas ainda, sem ser injusta”. É esse também o parecer do professor Frankena que, num ensaio consagrado ao conceito de justiça social, considera esta uma das características de uma sociedade ideal. “As sociedades”, escreve ele, “podem ser amoráveis, eficazes, prósperas ou boas, assim como justas, mas podem ser justas sem se distinguir por essas outras qualidades."'º Para Rawls e Frankena, de fato, a justiça das instituições sociais, da mesma forma que a dos comportamentos em Aris- tóteles, deveria poder ser definida por meio de critérios pura- mente racionais. Isto exige, segundo eles, que a consideremos uma virtude específica, e não a qualidade global de toda socie- dade ideal que as diversas ideologias e utopias poderiam apre- sentar-nos. Efetivamente, quando se considera a justiça, num sentido estrito, virtude específica de certos comportamentos, de certas regras, de certas instituições, parece mais fácil defini-la por meio de critérios racionais. Mas estará ausente toda racionali- dade no conceito de justiça concebido como virtude global de uma sociedade ideal? Eis o problema à cuja exposição gosta- ríamos de consagrar o fim deste capítulo. 154 ÉTICA E DIREITO Ao lado das leis naturais, que regem o curso dos fenômenos, existiriam prescrições racionais que ordenam agir em confor- midade com a natureza das coisas; essas prescrições são justas e obrigatórias. Bastará que o pensamento cristão, tal como o encontramos expresso no decreto de Graciano (cerca de 1140) identifique o direito natural, descrito por Cícero, com as prescrições das Escrituras e do Evangelho (o direito natural é o que está contido na Lei e nos Evangelhos)", para que se desenvolva a teoria escolástica do direito natural. O decreto de Graciano afirma que a lei natural prevalece de forma absoluta sobre os costumes e as constituições. Tudo quanto foi reconhecido pelo uso, ou posto por escrito, se contradiz a lei natural, deve ser considerado nulo e inexistente", Aqui o direito natural não serve somente, como para O pretor romano, para estender ou para completar uma lei positiva, mas para julgar e, se for o caso, para condenar. Na perspectiva de Santo Tomás, o direito natural nada mais é que a participação das criaturas racionais na lei etema que Deus impõe ao universo. Deus nos esclarece a razão e nos permite discernir o bem do mal. O homem, decaído desde o pecado original, é incapaz de se conduzir de um modo justo sem o auxílio da graça, mas isso não o impede de distinguir o bem do mal graças apenas à sua razão. Um passo a mais, e passaremos para as teorias clássicas e laicas do direito natural, que se desenvolveram nos séculos XVII e XVII, notadamente em Grotius, Pufendorf e Montesquieu. Grotius afirma, nos prolegômenos de seu De jure belli ac pacis, que o direito natural é fundamentado na evidência racio- nal, Seus princípios são claros e evidentes como princípios ma- temáticos. Mesmo Deus seria incapaz de modificá-los: “Assim como Deus não poderia fazer que dois mais dois não sejam quatro, ele não pode fazer que o que é intrinsecamente mal não seja um mal"! Essa comparação será retomada por Montesquieu: “Dizer que não há nada de justo ou de injusto além do que ordenam ou vedam as leis positivas é dizer que antes que se houvesse traça- do o círculo, nem todos os raios eram iguais. Logo, cumpre re- sim, % Eri pm ão A ÉTICA 155 conhecer relações de egiiidade anteriores à lei positiva que as estabelece.”!é Como essas relações não dependem da vontade divina, elas continuariam idênticas quer Deus. exista, quer não. É a conclusão lógica que Montesquieu tira dessas premissas em suzrcélebre carta sobre a justiça: “Se há um Deus, meu caro Rhédi, urge necessariamente que seja justo, pois, se não fosse, seria o pior e o mais imperfei- to de todos os seres. - “A justiça é uma relação de conveniência que se encontra realmente entre duas coisas; essa relação é sempre a mesma, seja qual for o ser que a considere, quer seja Deus, quer seja um anjo, quer seja, enfim, um homem. “É verdade que os homens nem sempre vêem essas rela- ções; muitas vezes mesmo, quando as vêem, afastam-se delas, e seu interesse é sempre o que vêem melhor... Os homens podem fazer injustiças, porque têm interesse em cometê-las... Mas não é possível que Deus jamais faça algo injusto... “Assim, ainda que não houvesse Deus, deveríamos sem- pre amar a justiça; ou seja, fazer esforços para nos assemelhar a esse ser de que temos uma tão bela idéia e que, se existisse, seria necessariamente justo ”” Para os racionalistas, a justiça é uma relação objetiva in- dependente da vontade divina. No entanto, Deus, se existe, só pode ser justo, e os homens deveriam tomá-lo como modelo de sua conduta: devem obedecer à voz de Deus em nós, que é a voz da consciência. Se a razão nos faz conhecer as regras jus- tas, a consciência nos ensina, em cada circunstância, como agir moralmente. Devemos tomar como modelo, dirá Kant, “a con- duta desse homem divino que trazemos em nós e com o qual nos comparamos para nos corrigir assim, mas sem nunca poder atingir a sua perfeição”, Segundo os partidários do direito natural, a razão é, pois, uma faculdade capaz de nos fazer conhecer não só o que é objetivamente verdadeiro ou falso, mas também o que é justo ou injusto. Será esse realmente o caso? Haverá normas de ação justas, porque conformes à razão? Outra tradição duas vezes 156 ÉTICA E DIREITO secular, que vai de Hume a Kelsen, se opõe à idéia da razão prática. Ela nega a existência de um direito natural, acessível a - todos pela razão apenas, que nos forneceria normas de conduta justas para guiar nossa vontade. Cumprirá dar razão aos partidários ou aos adversários do direito natural? A razão prática não seria senão aparência? Se, pelo contrário, nós lhe reconhecermos um papel na ação, como se deverá compreendê-lo, pois que os homens não estão de acor- do sobre o que é justo? O problema é essencial para a filosofia. O ideal tradicional da filosofia como mestra da sabedoria, como guia da comunidade, será uma mera ilusão, um mito análogo ao do paraíso perdido? Se a filosofia não é uma atividade puramen- te teórica e crítica, mas pode cumprir uma função construtiva na conduta dos indivíduos e das sociedades, determinando racio- nalmente as normas e os valores, cumpre-nos apresentar, com mais precisão, as relações entre a justiça e a razão. 2. A regra de justiça e a egiiidade Dentre todas as virtudes que nos deveriam guiar a condu- ta, duas delas foram desde sempre consideradas racionais, a saber: a prudência e a justiça". A prudência é a virtude que nos faz escolher os meios mais seguros e menos onerosos de alcançarmos nossos fins. Se apenas o nosso interesse devesse nos importar, a prudência nos aconselharia a agir de forma que nossos atos fossem os mais úteis, apresentassem o máximo de vantagens e o mínimo de in- convenientes, Mas em que medida deveremos levar em conta apenas o nosso interesse ou o dos outros, quais são os nossos direitos e as nossas obrigações, como agir para que nossa conduta seja não só eficaz, mas também justa, a prudência sozinha não nos pode ensinar, Quando se submete o conjunto de uma conduta ao crivo da razão, e não somente seus aspectos instrumentais e puramente técnicos, cumpre recorrer ao conceito de justiça, a justiça é que é a virtude característica do homem razoável, A justiça, diz-nos Leibniz, é a caridade do sábio e abran- ge, segundo ele, “além da tendência para fazer o bem, alivian- A ÉTICA 157 do os sofrimentos, a regra da razão”?, A ação justa deve dar provas de uma racionalidade que faltaria ao ato que fosse ape- nas caridoso. Mas em que consiste essa racionalidade e em que medida a regra da razão será realmente capaz de nos guiar a ação? Nunca foi possível fornecer um critério de justiça que obtives- se a adesão, se não de todos, pelo menos de todos aqueles cuja inteligência e moralidade apreciamos. A profusão de contro- vérsias referentes a esse conceito e a suas aplicações deve dei- xar-nos muito cireunspectos na questão. Leibniz precisa que a regra da razão exige que proporcio- nemos o bem que queremos propiciar a todos com as necessi- dades e com os méritos de cada qual”. Mas haverá outro crité- rio além dos méritos e das necessidades? A definição mais fre- qiente da justiça não é cuigue stum, a cada qual o que lhe cabe, sendo os direitos e as obrigações de cada qual determina- dos pela lei? Acha-se justo conceder aos homens exatamente o que a lei lhes atribui. Não será justo também às vezes tratar todos da mesma forma? Ou às vezes proporcionar seu trata- mento com suas obras ou com sua posição? Nenhum desses pontos de vista é inteiramente irrelevante, mas, na prática, con- duzem fregientemente a consegiiências diferentes, até incom- patíveis. Que fazer então? O problema está longe de ser simples e, para não deixar nada na sombra, procedamos passo a passo em nossa análise. Um comportamento ou um juízo humano só pode ser qua- líficado de justo se puder ser submetido a regras ou a critérios. Assim, a estima pode ser justa, se estiver proporcionada com os méritos da pessoa estimada, mas a idéia de um amor justo nos parece ridícula. Com efeito, o amor é dirigido a um ser que é considerado único e incomparável, trate-se de uma pessoa ou de uma entidade, tal como a pátria, eventualmente personificada. Esse amor não pode resultar simplesmente de uma avaliação justa de suas qualidades e de seus defeitos, das vantagens e dos inconvenientes que ela propicia. Nada de mais alheio ao amor do que semelhante pensamento. Se dizemos que o amor é cego é porque ele se desinteressa de ver tais como são, e a fortiori de pesar, os defeitos do ser amado. 158 ÉTICA E DIREITO Para a justiça, apenas a pesagem conta. A venda que tradi- cionalmente cobre os olhos das estátuas da justiça atesta que “ esta só levará em conta o resultado da pesagem. Não se deixará impressionar por outras considerações. O amor concede favores, a justiça se preocupa com a imparcialidade. O amor é estritamente pessoal, mas a justiça não faz acepção das pessoas. O comportamento justo é regular. Conforma-se a regras, a critérios. Poderá a razão ajudar-nos a determiná-los? Desde os antigos gregos, foi esse o problema essencial daqueles que viam na razão, expressa pela filosofia, um guia capaz de escla- recer-nos o juízo e dirigir-nos a ação. Desde Aristóteles, como vimos, o conceito de justiça foi aproximado da igualdade. Uma análise da relação de igualdade decerto projetará alguma luz sobre a idéia de justiça. Diz-se de dois objetos, a e b, que são iguais se são permu- táveis, ou seja, se toda propriedade de um é também uma pro- priedade do outro. Logo, é justo tratar da mesma forma seres iguais, porquanto nada justifica seu tratamento desigual. Em consegiiência, o que se diz de um deve poder ser dito do outro, o que é a formulação pragmática do princípio de identidade. Assim, numa primeira aproximação, a regra de justiça estabelece a exigência do tratamento igual de seres iguais. Essa regra é indiscutível, mas qual será seu alcance? Seu campo de aplicação parece, de fato, extremamente reduzido. Ele é mesmo inteiramente nulo, se admitimos o princípio dos indiscerníveis de Leibniz, segundo o qual não existem dois se- res idênticos, ou seja, dois seres cujas propriedades sejam todas iguais, Se fosse assim, a afirmação de que « e b são idên- ticos seria uma contradição em termos. Entretanto, uma célebre análise do lógico alemão Gottlob Frege mostrou” que se pode, sem se contradizer, afirmar a identidade de a e b; isso significaria que “a” e “b” são dois nomes de um mesmo objeto, que é designado de diversas ma- neiras, como na afirmação de que a estrela da manhã é idêntica à estrela da noite. Se não há seres idênticos, a regra de justiça só tem interes- se se nos diz como tratar seres que não são idênticos. uai cos Nas: AÉTICA 159 E, efetivamente, é apenas isso que importa. Ao ouvir pessoas se queixarem de uma injustiça, porque não receberam o mesmo tratamento que o vizinho ou o concor- rente, ninguém pensará que essas pessoas são idênticas àquelas com quem se comparam ou que, aos olhos delas, qualquer dife- rença teria bastado para justificar um tratamento desigual. Ao contrário, citarão expressamente diferenças: dirão que a outra é mais rica ou mais influente, que é parente ou amigo de tal fun- cionário, que faz parte de um clã, de um grupo político ou reli- gioso próximo do Poder. Queixam-se ainda mais por causa disso, persuadidas de que essas diferenças não deveriam ter influenciado a decisão. Pode também acontecer que se queixem de um tratamento igual e que, em nome da justiça, reivindiquem um tratamento preferencial. Enumerarão, para justificar suas pretensões, as diferenças essenciais que foram desprezadas e que deveriam ter sido levadas em consideração. Quem se crê injustamente tratado pretende que apenas cer- tos elementos, pertinentes no caso, deveriam ter influenciado a conclusão; é injusto desprezar esses elementos, assim como é injusto levar em conta elementos irrelevantes, alheios à situação. A injustiça, assim concebida, jamais resulta do tratamento desigual de seres idênticos. No primeiro caso, queixam-se do tratamento desigual de seres diferentes: com efeito, se as dife- renças não concernem a características essenciais, as partes de- veriam ter sido tratadas igualmente, como se fossem semelhan- tes. Inversamente, no segundo caso, acham injusto um trata- mento igual ou não-diferenciado, reservado a seres que, con- soante os critérios adotados, são essencialmente diferentes e fazem parte, portanto, de categorias diferentes. Mas quais serão as diferenças que importam e as que não importam, em cada situação particular? Eis o ponto em que dei- xam de entender-se. Suponhamos que se estabeleça um sistema de raciona- mento de víveres em período de penúria. Cumprirá tratar da mesma forma todos os habitantes do país? Cumprirá, ao con- trário, adaptar esse tratamento à situação particular deles e levar em conta necessidades dos idosos, dos doentes, das crian- 164 ÉTICA E DIREITO Europa depois da Primeira Guerra Mundial). Geralmente, a lei não deixa ao juiz uma liberdade tão grande de apreciação, mas ainda assim o juiz se empenhará em interpretá-la de forma que se evitem as consequências iníquas. Dá-se o mesmo com o juiz federal, nos Estados Unidos, que deve interpretar os termos da Constituição americana, assim como com o juiz da common law anglo-saxã que, presume-se, se atém aos precedentes”. Não se deve esquecer, de fato, que nem as leis nem os pre- cedentes são aplicados mecanicamente. Obrigado a julgar em todos os casos que entram em sua competência, o juiz dispõe, para o tanto, do poder de interpretação. Com efeito, o art. 4º do Código de Napoleão — e existem prescrições similares em todos os sistemas de direito nacionais, sendo conhecidas exce- ções apenas em direito intemacional público — afirma que o juiz não pode recusar-se a julgar a pretexto do silêncio, da obs- curidade ou da insuficiência da lei. O juiz deve dizer o direito, ainda que não possa motivar sua decisão pela invocação de uma lei indiscutida e cujos termos são todos eles claros. Note- se, a esse respeito, que existe uma relação inversa entre a clare- zae a precisão da lei e o poder de interpretação do juiz. Eis alguns exemplos que permitem compreender melhor como o juiz não se contenta em aplicar a regra de justiça, mas se serve de seu poder de interpretação e de apreciação para que suas decisões se conformem ao seu senso de egiiidade. O art. 11 do Código Civil francês (e belga) diz que “o estrangeiro usufruirá na França (na Bélgica) direitos civis iguais aos que são ou serão concedidos aos franceses (aos bel- gas) pelos tratados da nação à qual esse estrangeiro pertence”. Qual será a situação do apátrida? Dever-se-á recusar qualquer direito civil ao estrangeiro cuja nação não concluiu nenhum tratado de reciprocidade com a Bélgica? O problema se apre- sentou com uma acuidade particular em 1880, quando o Código Civil estava em vigor na Bélgica há cerca de meio século. Como a aplicação normal do art. 11 devia conduzir a consegiiências moralmente inaceitáveis, a Corte de Cassação da Bélgica decidiu, por seu aresto de 1º de outubro de 1880 (Pasicrisie belge, 1880, I, 292), interpretar o texto da lei de A ÉTICA 165 forma que lhe fossem eliminados os efeitos iníquos. Ela deci- diu que a expressão “direitos civis”, que figura no art. 11, designa unicamente os direitos ctvis que viessem a juntar-se aos direitos naturais (como o direito à assistência pública em caso de necessidade), mas não tem em vista os direitos natu- rais, tais como o direito de casar-se, o de litigar em juízo, os di- reitos de propriedade e de sucessão, que o estrangeiro usufruirá em qualquer circunstância. . Outro eminente exemplo de trabalho criativo, em matéria Jurisprudencial, é fornecido pelas sucessivas interpretações do art. 1.382 do Código de Napoleão, que se contenta em afirmar que “Todo e qualquer ato do homem que causa a outrem um dano obriga aquele por, cuja culpa ele ocorreu, a repará-lo”. Através de sucessivas interpretações, a jurisprudência belga e francesa pôde estender e até transformar o sentido dos termos “causa” e “culpa” de modo que se imputasse a responsabilidade de um dano não só àquele que cometeu um erro, mas também àquele que deu origem a um risco. Essa extensão levou de modo natural ao seguro obrigatório dos riscos comportados pelo uso de um automóvel ou pela exploração de uma indústria. Assim também, o juiz da common law, que parece atado pelos precedentes (stare decisis) pôde, não obstante, escapar a uma rigidez excessiva, geradora de injustiças, limitando o al- cance dos precedentes à ratio decidendi, que ele esclarece à sua moda, e introduzindo distinções quando se faz sentir a necessidade”. Em vez de adaptar uma lei mediante a interpretação de seus termos, pode-se modificá-la atuando sobre o campo de aplicação de seus termos, mediante o uso da qualificação! Ao decidir incluir um caso particular no campo de aplicação da lei, ou ao decidir excluí-lo dele, o juiz pode modificar os efeitos da lei, Essa era a técnica utilizada pelo pretor romano para esten- der aos estrangeiros a aplicação de uma lei referente apenas aos cidadãos romanos; é a uma ficção igual que o juiz, sobretu- do o juiz de primeira instância, pode recorrer, negando, por exemplo, contra a evidência, que os fatos puníveis tenham ocorrido. Tendo de julgar uma mãe, culpada de ter matado, 166 ÉTICA E DIREITO com a ajuda de seu médico, um filho monstruoso ao nascer, em consegiiência da absorção de um calmante perigoso, o softe- non, o júri belga não alegou circunstâncias atenuantes. Para obter a absolvição desejada pela opinião pública, o júri pura e simplesmente negou os fatos de que a mãe era acusada, respon- dendo negativamente à primeira pergunta relativa a estes. O papel da egilidade na aplicação da lei não nos permite afirmar que, para que uma decisão seja justa, cumpre e basta que ela se conforme à regra de justiça. Esta nos ensina simples- mente que um ato é formalmente justo se trata um membro de uma determinada categoria de um modo conforme à maneira pela qual devem ser tratados todos os membros dessa catego- ria. O ato é formalmente justo porque é conforme à conclusão de um silogismo judiciário. Mas a eqiiidade pode prevalecer sobre a segurança, e O desejo de evitar conseguências iníquas pode levar o juiz a dar nova interpretação à lei, a modificar as condições de sua apli- cação. Mesmo recusando ao juiz o direito de legislar, é-se obri- gado a deixar-lhe, em nosso sistema, o poder de interpretação. Graças ao uso que dele fizer, o juiz poderá, em certos casos, não se contentar com a interpretação tradicional e com a apli- cação correta da lei, em conformidade com a regra de justiça. Mas, para evitar a arbitrariedade na matéria, ele terá de motivar especialmente as decisões que se afastam da jurisprudência habitual. Se a regra de justiça nem sempre basta para uma aplicação justa da lei, ela é totalmente impotente quando se trata de jul- gar a própria lei, de dizer se a lei é justa ou injusta. Ela nada nos ensina, de fato, quanto ao próprio conteúdo das regras. Quem puder modificar as regras como bem entender poderá escapar à acusação de injustiça formal, mesmo agindo como bem lhe apetecer, da forma mais arbitrária. Bastar-lhe-á, de fato, introduzir na regulamentação algumas distinções que sirvam aos seus desígnios. Se não desejar aplicar a regra, tal como é formulada, a alguém que se pode subsumir sob uma categoria determinada pela lei, bastar-lhe-á introduzir uma condição suplementar que terá por efeito distinguir duas clas- A ÉTICA 167 ses diferentes no seio dessa categoria. Enquanto a lei prescreve que “Todos os M devem ser P”, bastará decidir que, doravante, “Todos os M nascidos antes de 1900 devem ser P”, ou que “Todos os M nascidos na Europa devem ser P”, ou, em geral, que “Todos os M tendo a qualidade Q devem ser P”. Com isso, a lei já não se aplica a todos os M nascidos depois de 1900, a todos que nasceram fora da Europa, a todos que não têm a qua- lidade Q; não exigindo desses M que sejam P, já não se pode ser acusado de violar a lei e de infringir a regra de justiça. Um exemplo possibilitará ilustrar claramente o modo como aquele que tem liberdade para elaborar regras novas pode contravir o espírito de justiça, mesmo respeitando a letra, mesmo amoldando-se à regra de justiça. Suponhamos que, em virtude de um tratado de comércio, a Dinamarca se beneficia no Estado E da cláusula de nação mais favorecida, que obriga o Estado E a conceder à Dinamar- cao benefício de toda redução dos direitos aduaneiros concedi- da a qualquer outro Estado para qualquer produto que seja. O Estado E está disposto a conceder à Suíça uma redução dos direitos aduaneiros sobre a manteiga suíça, mas não queria be- neficiar a Dinamarca com essa concessão. Tampouco deseja tornar-se culpado de uma violação flagrante de seu tratado com o último país. Para conciliar essas exigências, normalmente incompatíveis, decide especificar que a diminuição dos direi- tos aduaneiros só se aplicará à manteiga proveniente de vacas cujos pastos ficam a mais de mil metros de altitude. A mantei- ga dinamarquesa não preenche, é claro, essas condições. Tudo foi resolvido, os termos do acordo com a Dinamarca foram res- peitados. Mas poder-se-á pretender que esse modo de agir é conforme aos compromissos assumidos pelo Estado £ para com a Dinamarca? Esse exemplo mostra que a regra de justiça, cuja impor- tância é inegável para julgar da aplicação correta, portanto for- malmente justa, das regras vigentes a situações particulares, não esgota todo o conteúdo da idéia de justiça. Desejamos, de fato, que o ato justo não se defina simplesmente pela aplicação correta de uma regra, seja ela qual for, mas pela aplicação de uma regra justa. 168 ÉTICA E DIREITO Há critérios racionais que permitiriam distinguir as regras justas daquelas que não o são? A razão será capaz de ir além das exigências puramente formais da regra de justiça para nos guiar na busca das regras justas? Os teóricos do direito natural se empenharam em fornecer uma resposta positiva a essa pergunta, sem obter, porém, a prova convincente da maior parte dos princípios de justiça, tão indiscutíveis quanto os princípios matemáticos? Se assim não fosse, dever-se-ia considerá-los racionalmente arbitrários? Po- der-se-á, descartando essas posições extremas, chegar a um acordo sobre critérios razoáveis de uma regra justa? À conti- nuação de nossa análise se empenhará em responder a essas questões fundamentais. 3, Da justiça das regras A observância da regra de justiça assegura a regularidade, a segurança e a imparcialidade na administração da justiça. Mas ela é incapaz de julgar as próprias regras. Existirão crité- rios racionais para nos guiar nessa matéria, para nos permitir qualificar de justas ou de injustas as leis e as regras de toda espécie? Com efeito, é contra a arbitrariedade e a injustiça das leis que se insurgem aqueles que querem modificar ou revisar a ordem estabelecida. É muitas vezes contra o abuso do poder dos governantes, em especial dos legisladores, que os teóricos do direito natural recorrem à razão justa, à natureza das coi- sas. Mas serão suas teorias fundamentadas noutra coisa além de intuições incomunicáveis e de posicionamentos controverti- dos? Será isso que nos empenharemos em examinar. Vimos que a regra de justiça não indica quais são as distin- ções que se devem ou não levar em conta no estabelecimento das categorias de seres essencialmente semelhantes, nem de que maneira convém tratar esses seres. Ora, é sobre um ou outro desses pontos que incidirá a crítica de uma lei considera- da injusta: dirão que as distinções que a lei estabelece, que os tratamentos que impõe, são arbitrários e injustificados. Suponhamos que, numa legislação, o conjunto dos seres por ela abrangidos seja dividido em três categorias, 4,B e C, e A ÉTICA 169 que ela prescreva que “Todos os A devem ser P”, “Todos os B devem ser R” e “Todos os € devem ser S”. O crítico que com- bate, quer o princípio da classificação, quer o gênero de trata- mento reservado aos membros de cada categoria, procurará modificar um ou outro, e às vezes esses dois elementos da le- giskação. Suponhamos que uma legislação que consagra um sistema de abonos familiares seja apresentada como a expressão de uma aspiração de satisfazer às necessidades fundamentais dos trabalhadores. Um crítico poderia atacar o próprio princípio dessa legis- lação e as classificações que ela determina, achando injusto que, na determinação do salário dos operários, se leve em conta outra coisa além do trabalho fomecido ou do seu rendimento. Brandindo o aforismo “a trabalho igual, salário igual”, cumpre de fato achar irrelevantes, não essenciais e arbitrárias, todas as distinções e as classificações fundamentadas no sexo, na idade, na raça ou no estatuto familiar dos trabalhadores. O fato de não desprezar essas diferenças, mas de nelas fundamentar uma escala de salários diferenciada, pode parecer a alguns profun- damente injusto. Outros, ao mesmo tempo que aderem ao princípio mesmo da legislação, podem criticá-la por outras razões. Mesmo admi- tindo que se tem de levar em conta encargos familiares para fixar o salário dos operários, podem achar perfeitamente injusto que o abono concedido para o quarto filho, por exemplo, seja o triplo do montante outorgado para o primeiro, quando é este que aumenta de modo mais sensível os encargos do casal. As duas críticas têm um alcance muito diferente. A pri- meira recusa misturar considerações de natureza social ou po- lítica com o que lhe parece ser uma contribuição puramente econômica, para a qual apenas considerações referentes à qua- lidade, à duração e ao rendimento do trabalho podem fornecer os elementos pertinentes de uma classificação aceitável. A se- gunda crítica, em contrapartida, aceita colocar-se do ponto de vista adotado pela legislação, mas critica-lhe a execução. Eis outro exemplo. Proudhon critica com paixão as leis penais francesas: 174 ÉTICA E DIREITO As regras assim instituídas seriam, segundo o professor Rawils, as de um sistema justo, pois seriam regras de um siste- ma imaginado por alguém que sabe que seu inimigo tem o direito de lhe destinar seu lugar dentro do sistema”. Em que medida os princípios e as regras de procedimento, apresentadas pelo professor Rawis, podem ser consideradas racionais, eficazes e suficientes para que, pautando-nos por elas, possamos estar certos de tornar cada vez mais justo o fun- cionamento das instituições humanas? É isso que nos propo- mos examinar. Observe-se, para começar, que toda sociedade organizada é regida por leis e regulamentos que se referem não só ao fundo, mas também aos procedimentos reconhecidos para mo- dificar e aplicar suas leis, Daí resulta que, como o professor Rawls não quer fazer tábula rasa do passado mas unicamente melhorar as instituições existentes, é preciso que as três regras de procedimento que preconiza, se já não são admitidas na so- ciedade que se deve reformar, sejam aceitas em conformidade com as leis e regulamentos atualmente em vigor. + Assinale-se, a esse respeito, que quase todos os sistemas de direito modernos aceitam o valor do precedente no solucio- namento dos conflitos, ainda que o estatuto do precedente pos- sa variar de um sistema para outro. No entanto, são indispensá- veis juízes para decidir se um caso novo é ou não é essencial- mente semelhante a um caso anteriormente julgado. Se a primeira regra de procedimento é, pois, geralmente admitida, a segunda exige um aprimoramento indispensável. Com efeito, o professor Rawls exige que todos estejam de acordo com os procedimentos adotados. Tomado ao pé da letra, esse princípio é inaplicável, pois é evidentemente impos- sível pedir o acordo dos bebês que acabaram de nascer, ou dos alienados mentais incapazes de raciocinar sadiamente. Esse modo de proceder é, aliás, conforme às exigências do professor Rays, cujo sistema só pode funcionar com a colaboração de seres eminentemente razoáveis. Mas, então, não cumprirá himi- tar o direito de voto e, em geral, o de participar ativamente dos negócios públicos, mesmo numa sociedade relativamente igua- A ÉTICA 175 litária? Cumprirá recusar o exercício dos direitos políticos uni- camente às crianças abaixo de certa idade ou igualmente àque- les que não teriam passado com sucesso por testes de inteligên- cia e de conhecimento, e os conceder, em contrapartida, aos estrangeiros que habitam no país? E que fazer quando, a pre- texto de que apenas os seres razoáveis podem exercer seus direitos políticos, denega-se o direito de voto a classes inteiras da sociedade? Essa é, como se sabe, a pretensão de qualquer paternalismo político. . Cumprirá conformar-se aos procedimentos vigentes nu- ma sociedade, ainda que pareça profundamente iníquos, ou uma revolução justa poderá esforçar-se em modificar o estado de coisas existente? Por outro lado, a exigência da unanimidade, mesmo limi- tada aos que exercem seus direitos políticos, leva ao liberum veto e, portanto, à anarquia. Logo, é indispensável, à míngua de conquistar a adesão de cada qual, elaborar técnicas que per- mitiriam, à maioria simples ou a uma maioria qualificada, que se supõe representar a vontade geral, chegar a uma decisão. Poder-se-á, sem risco de enganar-se, ter certeza de que o fun- cionamento de uma democracia, mesmo fundamentada no sufrágio universal igualitário, nunca conduzirá à injustiça na aplicação das duas regras fundamentais que o professor Rawls considera essenciais e suficientes para a elaboração de institui- ções justas? Mas, suponhamos resolvidas todas essas dificuldades pré- vias e admitamos que existe um acordo sobre as regras de pro- cedimento que permitem levar em consideração as queixas e as reivindicações de todos. Teremos certeza, nesse caso, de que as instituições serão progressivamente melhoradas para se torna- rem tão justas quanto o possível? Quem nos diz que não chega- remos muito rápido a uma sociedade, tal como queriam insti- tuí-la os teóricos do liberalismo clássico, em que o funciona- mento das leis econômicas do mercado, embora podendo ser perfeitamente correto, fair, no sentido do professor Rawis, re- dundaria, não obstante, numa distribuição muito desigual das riquezas? 176 ÉTICA E DIREITO Isso constitui a objeção fundamental formulada pelo pro- fessor Chapman contra a concepção da justiça como fairness”. Confrontando o sistema imaginado pelo professor Rawls com o utilitarismo, o professor Chapman mostra que este último, ao levar em conta consegiiências dos atos, mais do que sua con- formidade com certos procedimentos considerados justos, por- que corretos, apresenta a vantagem de buscar uma melhor dis- tribuição dos bens, o que permitiria estabelecer mais justiça nas possibilidades de satisfazer as necessidades fundamentais de todos os membros da sociedade”. É essa, aliás, a inspiração profunda do liberalismo moderno, tal como é defendido por Lorde Beveridge. O professor Rawls presume, ao elaborar seu sistema, que seres racionais, capazes de prever as conseguiências de seus atos, elaborarão regras que, igualitárias no início, funcionarão de modo que se mantenha essa igualdade indefinidamente. Mas que fazer se essa esperança não se realizar? Tendo os membros de uma sociedade aceitado certas regras de fundo e de procedimento, seus filhos e seus netos estarão ligados para sempre por convenções de seus antepassados, como parece exigir a terceira regra introduzida pelo professor Rawls para o solucionamento dos conflitos? Cumprirá, ao contrário, que cada geração seja convidada, em intervalos regulares, a con- cluir um novo contrato social ou, pelo menos, que seja livre para apalavrar novos procedimentos em questão de adoção e de modificação das regras, sem levar em conta procedimentos existentes? Cumprirá que cada geração restabeleça, de novo, um ponto inicial igualitário, em conformidade com o segundo princípio do professor Rawls, suprimindo, por exemplo, o direito à herança? Mas, uma vez nessa via, não cumpriria tam- bém limitar de mil maneiras o direito de dispor da propriedade privada, mesmo em vida, a fim de eliminar as desigualdades arbitrárias no seio da sociedade? A experiência nos ensina, de fato, que procedimentos, que se queria igualitários, podem levar-nos a consegiiências que, com o tempo, podem mostrar-se iníquas. Sabemos que se su- punha que a Revolução Francesa, ao abolir todos os pri AÉTICA 177 do Antigo Regime, ia estabelecer um novo regime condiciona- do pela liberdade e pela igualdade, mantendo ao mesmo tempo o direito de propriedade e de sua transmissão hereditária. As desigualdades flagrantes que daí resultaram suscitaram a opo- sição socialista e alimentaram seus ataques contra a proprieda- de privada dos meios de produção. Essa história bem conheci- da nos ensina que mesmo a idéia de privilégio, concebida como desigualdade injustificada, é suscetível de interpretações variadas. O que não pareceu à burguesia liberal causar danos ao princípio da igualdade pode parecer, a outros, a base de todas as desigualdades e a raiz de todas as injustiças. Às questões que acabamos de evocar, as dificuldades por elas reveladas, mostram-nos a insuficiência do modelo forneci- do por um jogo corretamente conduzido para responder a todas as exigências dos que aspiram a mais justiça social, Regras de fair-play são fáceis de estabelecer quando se trata de um jogo, em que cada qual começa, por conta própria, em condições de igualdade relativa, em que os lances permiti- dos e proibidos são conhecidos de antemão, em que é fácil prever todos os desenvolvimentos possíveis, assim como todas as situações que determinam o ganho ou a perda. Todos os jogadores, antes de começar, conhecem as regras do jogo, aceitam-nas, e a presença de um árbitro permite, em caso de necessidade, garantir a sua observância pontual. Ninguém é obrigado a participar de um jogo cujas regras recusa, e jamais, em nome dessas regras, impor-lhe-ão uma coerção contrária às suas convicções mais íntimas. Mas, quando se trata do fun- cionamento das instituições sociais e políticas e das regras que as regem, o problema da justiça se situa num contexto deveras diferente. As regras de uma sociedade constituída, as pessoas que nela exercem os direitos políticos bem como suas respectivas situações, seus direitos e suas obrigações, são, em sua maioria, produtos de um passado histórico. Cumprirá, em nome de prin- cípios de justiça abstrata, não fazer caso desse passado e deci- dir apagar tudo, em intervalos regulares, e recomeçar do zero? É uma ambição dessas que encontramos em pensadores racio- 178 ÉTICA E DIREITO nalistas, tais como Descartes, que, depois de fazer tábula rasa dos preconceitos, das tradições, dos.costumes de seu meio, se propõem reconstruir ab ovo um novo saber. Mas eles dispõem, pelo menos assim crêem, de um método novo que, fundamen- tando-se na evidência racional, lhes permitiria reconstruir sobre a rocha uma ciência que seria digna desse nome. Para recons- truir, da mesma forma, uma sociedade perfeitamente justa, seria preciso que seus membros reconhecessem com evidência que é justo renunciar às vantagens que a situação histórica lhes proporcionou, que logrem encontrar regras evidentes que justi- ficarão as desigualdades sociais assim como aquelas a que terão de amoldar-se para encontrar uma solução justa para os conflitos que os opõem. Mas, se é justo e razoável renunciar às situações historica- mente adquiridas, por que procurar melhorar as instituições de uma sociedade politicamente organizada que é, também ela, um produto da história, e não estabelecer, já no início, uma jus- tíça igualitária entre os homens que vivem na terra, suprimin- do, na medida do possível, as desigualdades na distribuição das riquezas e das competências entre as diversas regiões do globo, das quais algumas conhecem uma penúria permanente? Sem sombra de dúvida, as leis e os regulamentos justos não podem ser arbitrários, mas cumprirá admitir como eviden- te, e não necessitando de nenhuma justificação, o princípio de igualdade completa de todos os que participam do funciona- mento de uma instituição, e como arbitrária toda desigualdade que não é justificada pelas vantagens que cada qual dela retira? Essa igualdade ideal, reconhecida no início, deverá, ade- mais, ser negativa ou positiva? Deverá ela consistir no fato de que cada qual usufruirá um direito igual à vida, uma liberdade igual de consciência, de palavra, de imprensa, de associação e de trabalho, no sentido de que o Estado não limitará, sem razão suficiente, nenhuma dessas liberdades e lhes protegerá o exer- cício? Cumprirá, ao contrário, que a igualdade exigida seja po- sitiva, no sentido de que o Estado deixará cada qual capaz, mediante a criação de instituições de toda espécie, tais como hospitais, escolas, fábricas ou igrejas, de exercer efetivamente os direitos que são assim garantidos? A ÉTICA 179 O professor Rawls parece, antes, partidário da concepção liberal, ou seja, negativa, da igualdade, pois só gostaria de limi- tar a liberdade individual na medida em que essa limitação se justificar por vantagens que proporcionará a cada qual, e não ao maior número. O princípio que ele apresenta como eviden- te, cuja racionalidade se imporia a todos os que aspiram a uma sociedade justa, sofre dos equívocos da noção de igualdade, cujas interpretações diametralmente opostas são apresentadas pelas ideologias liberais e socialistas. Aos. que reclamam o mínimo de intervenção do poder político no que consideram seus negócios privados, opõem-se, em quase todos os domí- nios, os que reclamam uma intervenção maior da coletividade, esperando que dessa forma será possível satisfazer, às expen- sas da comunidade, um número crescente das necessidades de cada qual. A menor experiência da vida política deixa patente a vaidade de qualquer esperança de acordo espontâneo de todos os membros da sociedade nessas matérias essencialmente con- troversas. Aliás, é por isso que, em vez de se fundamentarem num acordo garantido pela evidência, as instituições políticas foram organizadas de modo que pudessem funcionar, mesmo na ausência de semelhante acordo. Numa sociedade demdcrática e pluralista, cada qual é livre para adotar uma moral, para elaborar regras de vida, para inspi- rar-se num ideal e para viver a vida, como a entende, contanto que não transgrida regras de ordem pública. Mas não se dá o mesmo quando se trata de regras jurídicas, que determinam os direitos e as obrigações de cada qual, em conformidade com os desejos e as aspirações da coletividade politicamente organiza- da, ou pelo menos tais como os concebem e os interpretam seus representantes e seus funcionários. Como é vão esperar que a expressão desses desejos e a formulação dessas aspira- ções sejam objeto de um acordo sempre unânime, mesmo entre os representantes eleitos da nação, o direito de cada Estado tem de tomar precauções para que as questões controversas não sejam resolvidas por um recurso à violência. Portanto, ele deverá prever regras de procedimento relativas à elaboração e à modificação das leis, bem como regras de competência para o