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Sócrates, vida e obra, Traduções de Filosofia

texto Sócrates, vida e obra - MATERIAL COMPLEMENTAR

Tipologia: Traduções

2022

Compartilhado em 30/03/2022

alipe-cassio
alipe-cassio 🇧🇷

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SÓCRATES
VIDA E OBRA
Consultoria: José Américo Motta Pessanha
A democracia ateniense assegurava aos cidadãos o exercício da função
legislativa: integrantes da Ekklesia (assembléia popular), podiam e deviam
participar da elaboração das leis que regiam a vida e os destinos da cidade.
Mas o regime democrático impunha também aos cidadãos a obrigação de
defender, como juízes, as leis que eles mesmos votavam, pois, na condição
de membros das cortes populares, assumiam o compromisso através do
juramento heliástico de fazer acatar aquelas leis e de decidir, de acordo
com elas, o que seria justo e o que seria injusto, o que seria bom ou mau para
a cidade-Estado e seu povo.
No ano 399 a.C, o tribunal dos heliastas, constituído por cidadãos
provenientes das dez tribos que compunham a população de Atenas e
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SÓCRATES

VIDA E OBRA

Consultoria: José Américo Motta Pessanha

A democracia ateniense assegurava aos cidadãos o exercício da função legislativa: integrantes da Ekklesia (assembléia popular), podiam e deviam participar da elaboração das leis que regiam a vida e os destinos da cidade. Mas o regime democrático impunha também aos cidadãos a obrigação de defender, como juízes, as leis que eles mesmos votavam, pois, na condição de membros das cortes populares, assumiam o compromisso — através do juramento heliástico — de fazer acatar aquelas leis e de decidir, de acordo com elas, o que seria justo e o que seria injusto, o que seria bom ou mau para a cidade-Estado e seu povo. No ano 399 a.C, o tribunal dos heliastas, constituído por cidadãos provenientes das dez tribos que compunham a população de Atenas e

escolhidos por meio da tiragem de sorte, reuniu-se com 500 ou 501 membros. Difícil tarefa aguardava esses juízes: julgar Sócrates, conhecida mas controvertida figura. Cidadão admirado e enaltecido por alguns — particularmente pelos jovens —, era, entretanto, criticado e combatido por outros, que nele viam uma ameaça para as tradições da polis e um elemento pernicioso à juventude. Indiscutível era seu destemor, de que já dera provas em tempos de guerra, como notória sua independência pessoal, manifestada não apenas em seu modo peculiar e inconvencional de viver, mas também em circunstâncias especiais — como quando se negou à conivência com sórdida trama política urdida pelos Trinta Tiranos que durante algum tempo haviam dominado Atenas. Mas o que sobretudo o caracterizava era a atividade a que vinha se dedicando há anos e que justamente suscitava o deleite e a admiração dos jovens, enquanto noutros despertava ressentimentos: conversar. Despreocupado com os bens materiais — cujo acúmulo era o objetivo da maioria —, usufruindo os prazeres sem se atormentar em viver à sua cata, mas também sem deles fugir em exageros ascetas, Sócrates dedicava-se ao que considerava, desde certo momento de sua vida, sua missão — a missão que lhe teria sido confiada pelo deus de Delfos e que o tornara um "vagabundo loquaz": dialogar com as pessoas. Mas dialogar de modo a fazê-las tentar justificar os conhecimentos, as virtudes ou as habilidades que lhes eram atribuídos. Com esse objetivo inicial, levava o interlocutor a emitir opiniões referentes à sua própria especialidade, para em seguida interrogar a respeito do sentido das palavras empregadas. O resultado das questões habilmente formuladas por Sócrates — que alegava que "apenas sabia que nada sabia" — era, com freqüência, tornar patente a fragilidade das opiniões de seus interlocutores, a inconsistência de seus argumentos, a obscuridade de seus conceitos. Colocados à prova, muitos supostos talentos e muitas reputações de sapiência revelavam-se infundados e muitas idéias vigentes e consagradas pela tradição manifestavam seu caráter preconceituoso e sua condição de meros hábitos mentais ou simples construções verbais sem base racional. Evidenciava-se a ignorância da

um de seus acusadores, Meleto, deixando-o embaraçado quanto ao significado da acusação que lhe imputava — "corromper a juventude". Demonstra que estava sendo acusado por Meleto de algo que o próprio Meleto não sabia bem explicar o que era, já que não conseguia definir com clareza o que era bom e o que era mau para os jovens. Em nenhum momento de sua defesa — segundo o relato platônico — Sócrates apela para a bajulação ou tenta captar a misericórdia daqueles que o julgavam. Sua linguagem é serena — linguagem de quem fala em nome da própria consciência e não reconhece em si mesmo nenhuma culpa. Chega a justificar o tom de sua autodefesa: "Parece-me não ser justo rogar ao juiz e fazer-se absolver por meio de súplicas; é preciso esclarecê-lo e convencê-lo". Embora a demonstração pública da inconsistência dos argumentos de seus acusadores e embora a tranqüila e reiterada declaração de inocência — e talvez justamente por mais essas manifestações de altaneira independência de espírito —, Sócrates foi condenado. Mesmo para uma democracia como a ateniense, ele era uma ameaça e um escândalo: a encarnação, para a mentalidade vulgar, do "escândalo filosófico" que, ali mesmo em Atenas, acarretara a perseguição de Anaxágoras de Clazômena, que se viu obrigado a fugir. Como era de praxe, após o veredicto da condenação, Sócrates foi convidado a fixar sua pena. Meleto havia pedido para o acusado a pena de morte. Mas seria fácil para Sócrates salvar-se: bastava propor outra penalidade, por exemplo pagar uma multa, como chegaram a lhe sugerir os amigos. Afinal, fora difícil obter um veredicto de culpabilidade: havia sido condenado por uma margem de apenas sessenta votos. Qualquer pena moderada que ele mesmo propusesse seria certamente acatada com alívio por aquela assembléia constrangida por condenar um cidadão que, apesar de suas excentricidades e de suas atitudes muitas vezes irreverentes e incômodas, apresentava aspectos de indiscutível valor. Afinal, era aquele o Sócrates que não se havia deixado corromper pelos tiranos, inimigos da democracia, e que lutara bravamente na guerra por sua cidade e por seu

povo. Bastava que declarasse estar disposto a pagar algumas moedas — e todos sairiam dali satisfeitos consigo mesmos, por terem cumprido o "dever" de punir um cidadão suspeito de atividades nocivas à cidade, e mais contentes ainda por se sentirem magnânimos, ao permitirem que continuasse vivendo. Mas Sócrates não faz concessões. Propor-se a cumprir qualquer pena, mesmo pagar uma multa, por menor que fosse, seria aceitar a culpa de que não o acusava a própria consciência. Na segunda parte da Apologia, Platão descreve o momento em que, novamente diante de seus juízes, Sócrates estabelece a pena que julgava merecer. Nem exílio, nem multa. "Ora, o homem (Meleto) propõe a sentença de morte. Bem; e eu, que pena vos hei de propor em troca, Atenienses? A que mereço, não é claro? Qual será? Que sentença corporal ou pecuniária mereço, eu que entendi de não levar uma vida quieta? Eu que, negligenciando o de que cuida toda gente — riquezas, negócios, postos militares, tribunas e funções públicas, conchavos e lutas que ocorrem na política, coisas em que me considero de fato por demais pundonoroso para me imiscuir sem me perder —, não me dediquei àquilo a que, se me dedicasse, haveria de ser completamente inútil para vós e para mim? Eu que me entreguei à procura de cada um de vós em particular, a fim de proporcionar-lhe o que declaro o maior dos benefícios, tentando persuadir cada um de vós a cuidar menos do que é seu do que de si próprio, para vir a ser quanto melhor e mais sensato, menos dos interesses do povo que do próprio povo, adotado o mesmo princípio nos demais cuidados? Que sentença mereço por ser assim? Algo de bom, Atenienses, se há de ser a sentença verdadeiramente proporcionada ao mérito; não só, mas algo de bom adequado a minha pessoa. O que é adequado a um benfeitor pobre, que precisa de lazeres para vos viver exortando? Nada tão adequado a tal homem, Atenienses, como ser sustentado no Pritaneu; muito mais do que a um de vós que haja vencido, nas Olimpíadas, uma corrida de cavalos, de bigas ou quadrigas. Esse vos dá a impressão da felicidade; eu, a felicidade;

para a morte, vós para a vida. Quem de nós segue o melhor rumo, ninguém o sabe, exceto o deus". A execução da pena teve de ser adiada por trinta dias. Como acontecia todos os anos, um navio oficial havia sido enviado ao santuário de Delos para comemorar a vitória de Teseu, o herói mitológico ateniense, sobre o Minotauro, o terrível monstro que habitava o labirinto de Creta e se alimentava de carne humana. Enquanto o navio não regressasse de sua missão sagrada, nenhum condenado podia ser executado. No diálogo Fédon, Platão descreve as conversações que, durante os dias de espera na prisão, Sócrates mantivera com seus discípulos e amigos. Um problema se propunha a todos como urgente e atormentador: a morte, a morte que para Sócrates se tornava cada dia mais próxima. E, do mesmo modo que nas outras circunstâncias de sua atividade filosófica, Sócrates ocupava-se apenas de questões que eram propostas imediata e vivamente à sua consciência e à de seus interlocutores — assim, naqueles dias em que se aguardava o retorno do navio que partira para Delos, somente tinha sentido meditar e dialogar sobre um problema: o do significado da própria morte. Sócrates então debate com os amigos diversos argumentos que poderiam levar à admissão da imortalidade da alma, uma das únicas soluções que já apontara na parte final da Apologia, quando se despedira de seus juízes. Sobre a outra — a morte representar o nada, como longa noite de sono sem sonhos — nada havia a dizer, como nada havia a temer. Restava explorar a única possibilidade na qual o pensamento podia transitar, tecendo argumentos e conjeturas. Mas o barco está prestes a retornar de Delos. Na véspera de sua chegada, um dos amigos avisa a Sócrates: "Amanhã terás de morrer". O mestre não se perturba: "Em boa hora, se assim o desejarem os deuses, assim seja". Suplicam-lhe que aceite a fuga que os amigos haviam preparado. Sócrates recusa. E explica: a única coisa que importa é viver honestamente, sem cometer injustiças, nem mesmo em retribuição a uma injustiça recebida. Ninguém, nem os amigos, consegue convencê-lo a abdicar de sua

consciência. Entra a mulher de Sócrates, Xantipa, trazendo os filhos pára a despedida. Sócrates permanece sereno. Finalmente chega o carcereiro com a cicuta. Imperturbável, Sócrates toma o vaso que lhe é oferecido, de um só gole bebendo todo o veneno. Os amigos soluçam. Mas ele ainda os anima: "Não, amigos, tudo deve terminar com palavras de bom augúrio: permanecei, pois, serenos e fortes". Ao sentir os primeiros efeitos da cicuta, Sócrates se deita. Aquele que sempre indagara sobre o significado das palavras e dos valores que regiam a conduta humana e investigara o sentido dos costumes e das leis que governavam a cidade buscava a consciência nas ações e nas afirmativas, mas não pretendia se subtrair às normas estabelecidas e às exigências dos preceitos e das instituições sociais e políticas. Porque não traíra sua consciência, preferira a morte a declarar-se culpado. Mas porque respeitava a lei não quisera fugir da prisão. Suas últimas palavras teriam sido ainda um testemunho dessa dupla fidelidade: a si mesmo e aos compromissos assumidos. Dirige-se a um dos amigos presentes, lembrando-lhe que deviam um sacrifício ao deus Asclépio. E morre.

O homem e a lenda

"A vida de um grande homem, particularmente quando ele pertence a uma época remota", escreve o historiador A. E. Taylor, "jamais pode ser o mero registro de fatos indiscutíveis. Mesmo quando tais fatos são abundantes, a verdadeira tarefa do biógrafo consiste em interpretá-los; deve penetrar, além dos simples eventos, no propósito e no caráter que eles revelam, o que só consegue fazer mediante um esforço de imaginação construtiva. No caso das duas figuras históricas que exerceram a mais profunda influência na vida da humanidade, Jesus e Sócrates, fatos indiscutíveis são extraordinariamente raros; talvez haja apenas uma afirmativa a respeito de cada um deles que não possa ser negada sem que se perca o direito a ser contado entre os sensatos. É certo que Jesus 'sofreu sob Pôncio Pilatos', e é não menos certo que

discípulos fazem-lhe a defesa póstuma e apresentam-no como modelo da sabedoria e das virtudes humanas: Platão torna-o a figura principal da maioria de seus Diálogos, Xenofonte exalta-o principalmente nas Memoráveis, Esquines, em diversas obras (que se perderam), falou do mestre de quem fora amigo constante. Mas todos eles descrevem um Sócrates de mais de 45 anos. E, possivelmente, um dos motivos da divergência entre os depoimentos que oferecem e o de Aristófanes reside neste fato: eles falavam do Sócrates maduro, o mestre que se considerava imbuído da missão — assumida em face de decisiva declaração do oráculo de Delfos — de despertar os homens para o conhecimento de si mesmos. Já Aristófanes, particularmente n’As Nuvens, teria feito uma caricatura do Sócrates mais jovem, personagem já famosa em Atenas antes mesmo de desempenhar a atividade missionária de que se julgou incumbido mais tarde. Visto em épocas tão diferentes, Sócrates poderia ter permitido retratos tão diversos: o mestre modelar, segundo discípulos, e a personagem apresentada por Aristófanes, cômica mas perigosa, pois, na medida em que investigaria os fenômenos celestes — como os filósofos da Jônia —, lançava o descrédito sobre as tradições religiosas que fundamentavam as instituiçõs políticas, e, enquanto apresentaria "como boa uma causa má" — à semelhança de certos sofistas, professores de retórica —, daria aos jovens um perigoso exemplo de relativismo, capaz de abalar a aceitação dos valores tradicionais, éticos, políticos e religiosos. Defensor desses valores, Aristófanes teria centralizado no ateniense Sócrates a crítica às idéias trazidas de outras terras por pensadores que haviam acorrido a Atenas atraídos pelo apogeu cultural e político da cidade, como Anaxágoras de Clazômena (c.500-428 a.C.) e Protágoras de Abdera (c.490-421 a.C). O próprio Platão, no Fédon, faz Sócrates confessar o entusiasmo inicial que lhe despertou a obra de Anaxágoras; e indiscutivelmente, pelo menos na aparência, a dialogação socrática tinha, por outro lado, muito da surpreendente e embaraçosa habilidade retórica dos sofistas — o que mostra que, embora se apresentando (na versão platônica) como adversário

daqueles mestres de eloqüência e argumentação, Sócrates absorvera-lhes, se não as teses relativistas, pelo menos a arma de combate. O depoimento de Aristófanes sobre Sócrates possui assim — para muitos historiadores — certo fundamento, sobretudo em relação ao Sócrates que ainda não havia sido tocado pela palavra do oráculo. Mesmo porque o efeito de comicidade a que visava Aristófanes não teria nenhum resultado se a caricatura traçada não apresentasse, aos olhos do público, alguma semelhança com o modelo real.

A "questão socrática"

Outros depoimentos antigos importantes sobre Sócrates são o de Aristóteles (384-322 a.C.) — discípulo de Platão — e os provenientes de biógrafos da fase helenística, como Diógenes Laércio (século III d.C). Todavia, a interpretação aristotélica de Sócrates — que o apresenta como iniciador do trabalho de definição de conceitos (relativos ao campo moral) — é vista com reservas pelos historiadores, pois Aristóteles sempre "aristoteliza" o pensamento de seus antecessores, tornando-os momentos preparatórios de suas próprias concepções filosóficas. Por outro lado, as biografias que sobre os pensadores mais antigos da Grécia foram produzidas no período helenístico não apresentam grande exigência crítica. Numa fase marcada pela sombra da perda de liberdade política, o importante para os gregos era descrever a vida daqueles que haviam vivido nos momentos da perdida grandeza política, sem se importar tanto com o rigor das informações e misturando dados históricos com relatos fantasiosos. As fontes mais seguras para a reconstituição da vida e do pensamento de Sócrates continuam sendo, assim, os depoimentos de seus contemporâneos. Do confronto entre os testemunhos deixados por Platão, Xenofonte e Aristófanes é que sobretudo os historiadores têm procurado recompor a verdadeira fisionomia do Sócrates-homem e do Sócrates-filósofo. Se Aristófanes teria focalizado Sócrates na fase anterior a seu magistério filosófico e se, além disso, misturou-lhe os traços com os de cosmólogos

levantar a hipótese da inexistência do Sócrates histórico — pelo menos com as características que lhe foram apontadas pelos relatos dos antigos. Sócrates, chegou-se a afirmar, seria uma criação literária, a serviço do nacionalismo ateniense. Se essa tese não prevalece entre os historiadores, por outro lado é inegável que a recuperação de Sócrates como "fato" histórico defronta-se com a dificuldade da escassez de dados indisputáveis: a objetividade histórica de Sócrates se dilui na teia de depoimentos diversos e às vezes discrepantes. Porém não foi justamente isso o que — segundo a Apologia platônica — ele quis ser: alguém que apontava não para a ciência das coisas e sim para a consciência do próprio homem? A ciência sobre Sócrates — a resolução da "questão socrática", a reconstituição do Sócrates histórico — não poderia assim ser socraticamente reformulada? A escassez de dados objetivos indiscutíveis a seu respeito não o transforma, fundamentalmente, num apelo à consciência do homem que dele se aproxima — como contemporâneo ou como estudioso, em qualquer época, de seu pensamento? Ele, que reiteradamente teria afirmado não possuir ciência alguma, não teria também declarado ter aceito a missão de ajudar os homens a se voltarem para o conhecimento de si mesmos, para o desbravamento da própria subjetividade, tentando a conquista da própria alma? Pois essa consciência e essa subjetividade é que estão desde logo comprometidas com Sócrates, quando se pretende recuperar sua fisionomia autêntica. Tentar decifrá-lo é já decifrar-se um pouco, buscar conhecê-lo é inevitavelmente uma ocasião para reagir ao desafio de seu enigma. Sócrates remete seu decifrador à própria consciência, oferecendo-lhe uma ocasião para se conhecer a si mesmo.

O homem e o oráculo

Nascido em Atenas em 470 ou 469 a.C, na época em que findava a guerra entre os gregos e os persas (guerras médicas) e quando a vitória da Grécia marcaria o início da fase áurea da democracia ateniense, Sócrates era

filho de um escultor, Sofronisco, e de uma parteira, Fenareta. Teria seguido, durante algum tempo, a profissão paterna e é provável que tivesse recebido a educação dos jovens atenienses de seu tempo, aprendendo música, ginástica e gramática. Além disso beneficiou-se da própria atmosfera cultural da época, das mais brilhantes da cultura grega. Era o famoso "século de Péricles", idade de ouro da civilização ateniense. Através de sua frota, Atenas domina os mares e chega a criar uma verdadeira talassocracia. Graças à proteção de Péricles, artistas como os escultores Fídias e Ictino embelezam a cidade com suas obras magistrais, enquanto pensadores de outras regiões do mundo helênico, como Anaxágoras de Clazômena e Protágoras de Abdera, trazem para Atenas os frutos da investigação filosófica e científica que, desde o século VI a.C., vinha se desenvolvendo nas colônias gregas da Ásia Menor e nas cidades da magna Grécia (sul da Itália e Sicília). É o momento também dos grandes autores trágicos: Esquilo morreu quando Sócrates tinha cerca de catorze anos, Sófocles e Eurípides eram aproximadamente mais velhos dez anos que o filho de Fenareta. Centro do mundo grego, "Hélade da Hélade", Atenas é, no tempo de Sócrates, um ponto de convergência cultural e um laboratório de experiências políticas, onde se firmara, pela primeira vez na história dos povos, a tentativa de um governo democrático, exercido diretamente por todos os que usufruíam dos direitos de cidadania. Nessa democracia, a função pública dos oradores torna-se fundamental e, conseqüentemente, a palavra torna-se não apenas um instrumento de ascensão política, como também um problema a preocupar retóricos e pensadores. Preparar o indivíduo para a vida pública, conferir-lhe capacitação ou virtude (aretê) política, representa, basicamente, adestrá-lo na arte da persuasão através da palavra. Atendendo a esses requisitos da ação política da Atenas democrática, para aí acorrem os sofistas, professores de eloqüência que, bem remunerados, se dispunham a ensinar aos jovens atenienses o uso correto e hábil da palavra. Eles próprios, designando-se "sábios" (sofistas), traziam uma mensagem contrária às pretensões dos tradicionais "amigos da sabedoria"

do relativismo de Protágoras de Abdera: manifestava uma situação geral do momento histórico vivido pela Grécia, e particularmente por Atenas, como resultado da progressiva valorização da "medida humana", iniciada alguns séculos antes. O próprio regime democrático — fruto daquela valorização — permitia ao cidadão ateniense a experiência diária de que é o homem que faz ou altera as leis, como resultado do confronto e do acordo entre interesses e pontos de vista diferentes. Embora confundido — como por Aristófanes — com os sofistas, Sócrates desenvolverá, junto aos atenienses, uma atividade sob vários aspectos oposta à dos mestres de eloqüência e da arte de persuasão. Essa atividade ele mesmo considera, como relata Platão na Apologia, a sagrada missão que lhe fora confiada pelo deus de Delfos. Até esse momento, ele havia acompanhado, como pretendem alguns biógrafos, os ensinamentos de sofistas como Hípias (século V a.C.) e Pródicos (c.465-399 a.C). Havia também se encantado provisoriamente — como narra o Fédon de Platão — com a doutrina de Anaxágoras, que afirmava que todas as coisas do universo se tinham organizado devido à ação inicial da Inteligência ou do Espírito (Nous). Teria ainda recebido a influência de duas mulheres, a cortesã Aspásia de Mileto e a sacerdotisa Diotima de Mantinéia (a quem Sócrates, no Banquete de Platão, atribui a concepção de amor que apresenta). Em 432 a.C. explode o conflito entre Atenas e a outra cidade que com ela disputava a hegemonia do mundo grego: Esparta. Sócrates toma parte na guerra do Peloponeso e destaca-se pela bravura e pelas demonstrações de resistência física. Durante o cerco de Potidéia, salva a vida de Alcibíades (c.450-404 a.C), que se tornará político e militar famoso e discutido, além de dedicar a Sócrates — como Platão o faz declarar no Banquete — um exaltado afeto. No mesmo diálogo, Alcibíades revela outro traço da personalidade de Sócrates que o tornava invulgar: certa vez, em Potidéia, ele teria permanecido, durante 24 horas, imóvel e absorto em seus pensamentos, diante da estupefação dos soldados.

Mais tarde (424 a.C), Sócrates teria participado novamente de campanha militar, desta vez em Délio, quando os atenienses foram derrotados pelos tebanos. Teve então a oportunidade de salvar a vida de Xenofonte. Mas também em tempos de paz sua coragem foi demonstrada. Em 406 a.C, enfrentou a ira da multidão que exigia a condenação sumária dos generais tidos como responsáveis pelo desastre de Arginusas — quando a tempestade impediu que fossem recolhidos no mar, como estabelecia a lei, os corpos dos que pereceram no combate. Apesar das ameaças, Sócrates, sorteado para dirigir a assembléia escolhida para julgar os generais,fez prevalecer a lei, impondo que houvesse tantos julgamentos quantos eram os acusados. Noutra ocasião, quando o regime democrático foi provisoriamente interrompido pelo governo dos Trinta Tiranos, Sócrates arrostou a fúria desses oligarcas, ao recusar-se a participar da tentativa de seqüestro dos bens de Leon de Salamina, o que considerava injusto. Diante de qualquer forma de governo e de qualquer autoridade constituída, Sócrates prestava primeiro obediência aos ditames de sua própria consciência. Mas o fato que teria marcado, de forma decisiva, o resto de sua existência foi, segundo ele mesmo afirma na Apologia, a declaração, pelo oráculo de Delfos a seu amigo Querefonte, de que ele era o mais sábio dos homens. Logo ele, sem nenhuma especialização, ele que estava ciente de sua ignorância? Logo ele, numa cidade repleta de artistas, oradores, políticos, artesãos? Sócrates parece ter meditado bastante tempo, buscando o significado das palavras da pitonisa. Afinal concluiu que sua sabedoria só poderia ser aquela de saber que nada sabia, essa consciência da ignorância sobre coisas que era sinal e começo da autoconsciência. E viu nas palavras oraculares a indicação de uma missão a cumprir. "Desde então", conta em seu julgamento, "de acordo com a vontade do deus, não deixei de examinar os meus concidadãos e os estrangeiros que considero sábios e, se me parecerem que não o são, vou em auxílio do deus revelando-lhes sua ignorância."

restrito a suas especializações e embaraçam-se quando levados a opinar sobre outros assuntos, embora de geral interesse para os homens. Isso parece confirmar a Sócrates o sentido da superioridade que lhe fora atribuída pelo oráculo: o reencontro consigo mesmo só pode partir da consciência da própria ignorância. Mas essa ignorância, que é um atributo de Sócrates, não é geralmente assumida pelas outras pessoas, que se julgam na posse de "verdades". Torna-se necessário, portanto, levá-las, de saída, a despojar-se dessas pseudoverdades — única forma de torná-las aptas a caminharem em direção ao conhecimento de si mesmas. A demolição das falsas idéias que fundamentam a falsa imagem que as pessoas têm delas próprias é o que pretende a ironia: momento do diálogo em que Sócrates, reafirmando nada saber, força o interlocutor a expor suas opiniões, para, com habilidade, emaranhá-lo na teia obscura de suas próprias afirmativas e acabar reconhecendo a ignorância a respeito do que antes julgava ter certeza. A ironia socrática tem, assim, a função de propiciar uma catarse: uma purificação da alma por via da expulsão das idéias turvas, das ilusões e dos equívocos que distanciavam a alma de si mesma. Orientado por seu "demônio" (daimon), espécie de voz interior que às vezes lhe freava as iniciativas e impedia-o de dialogar com determinadas pessoas, Sócrates escolhia aqueles com os quais a conversa poderia assumir caráter de reconstrução, após o exorcismo propiciado pela ironia. Nessa outra fase do método socrático, o interlocutor — transformado em discípulo — é levado, progressivamente, pela habilidade das questões propostas, a tentar elaborar ele mesmo suas próprias idéias. Não mais a repetição automática de fórmulas consagradas ou chavões herdados, embora ocos de sentido. Agora, de início timidamente, o interlocutor-discípulo é conduzido ao risco de tentar ser ele mesmo, de ele mesmo conceber idéias. E de ser ele mesmo sua própria alma. Sócrates — dando um exemplo que a pedagogia moderna freqüentemente tenta reviver — reserva-se nessa fase, chamada maiêutica ou parturição das idéias, um papel semelhante ao de sua mãe, Fenareta. Ela ajudava as mulheres a darem à luz seus filhos; Sócrates, que se dizia ele

mesmo estéril — pois só sabia que nada sabia —, procurava auxiliar as pessoas noutra forma de concepção, a das idéias próprias: forma de se ir ao encontro de si mesmo — como prescrevia a inscrição do templo de Delfos — e de fazer de si mesmo seu próprio ponto de partida. Em algumas afirmativas que lhe são atribuídas, Sócrates compara-se aos médicos: como estes, ele submetia, quando necessário, o interlocutor-paciente à purgação da ironia, condição preliminar para a recuperação da saúde da alma, que seria o conhecimento de si mesma. E, na verdade, o sentido da filosofia — que ele identificava com sua sagrada missão — era o de conduzir o indivíduo a pensar como quem se cura: pensando palavras como quem pensa feridas. Na escolha de seus interlocutores, Sócrates não levava em conta fatores de natureza social e econômica. Seu daimon guiava-o no processo seletivo, fazendo-o perceber, com um agudo senso de oportunidade pedagógica, quais as pessoas que ainda não dispunham de condições psicológicas para ser submetidas ao "tratamento" da ironia e da maiêutica. Imbuído de espírito missionário, Sócrates, ao contrário dos sofistas, não cobrava por seu trabalho: considerava-se a serviço do deus. Assim, enquanto a atividade pedagógica dos sofistas tinha como conseqüência política facilitar a ascensão na vida pública daqueles que dispunham de recursos suficientes para pagar suas caras lições — e que, portanto, já detinham em suas mãos o poder econômico —, a de Sócrates, exercida em nome do espírito religioso, abria-se a qualquer um que manifestasse situação psicológica favorável à realização do processo de autoconhecimento. Essa forma de seleção dos interlocutores-educandos tornava democratizadora a pedagogia socrática. Mas, para aquela democracia, que recusava o direito de cidadania às mulheres, aos estrangeiros e aos escravos — portanto, à maioria da população de Atenas —, o Sócrates pedagogo e médico de almas constituía uma denúncia de suas limitações e, conseqüentemente, um perigo. No diálogo Ménon, Platão descreve Sócrates realizando a maiêutica com um escravo e levando-o a conceber noções sobre intrincada questão matemática (relativa aos "irracionais"). Mesmo que não se trate, no caso, do relato de um