Baixe Princípios do Direito Penal e Processual Penal: Análise Histórica e Interpretação e outras Notas de aula em PDF para Processo Penal, somente na Docsity! PRINCÍPIOS DO DIREITO PENAL E PROCESSO PENAL Revista dos Tribunais Nordeste | vol. 4/2014 | p. 117 - 133 | Mar / 2014 DTR\2014\9637 Jorge André de Carvalho Mendonça Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com curso sobre o Sistema Judiciário Americano, pela Universidade da Georgia (UGA), em Athens, EUA. Especialista em Direito Processual Público pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Ceton - Curso online para concursos. Juiz Federal na 5.a Região. Área do Direito: Penal; Processual Resumo: Nosso estudo faz uma breve análise a respeito dos princípios do direito penal e processo penal. Isso é feito, porém, apresentando alguns aspetos gerais, apreciando seu surgimento e desenvolvimento ao longo do tempo. O objetivo é de mostrarmos um visão que entendemos mais realista a respeito dos direitos individuais. Finalmente, entramos na abordagem específica do princípio que veda a produção de provas ilícitas, interpretando-o de acordo com nosso momento histórico e com a necessidade de maior eficiência penal, sem perder de vista as garantias conquistadas há anos. Palavras-chave: Princípios penais e processuais - Direitos Individuais - Interpretação histórica - Provas ilícitas - Eficiência. Abstract: Our study makes a brief analysis on the principles of criminal law and criminal procedure. However, it is done by introducing some general aspects, analyzing its appearance and development over time. The purpose is showing one view that we understand more realistic about the individual rights. Finally, we approach the specific principle that prohibits illegally obtained evidence, interpreting it according to our historical moment and the need for more criminal efficiency, without forgetting the guarantees won several years ago. Keywords: Principles of Criminal Law and Criminal Procedure - Individual rights - Historical interpretation - Illegally obtained evidence - Efficiency. Sumário: I.Introdução - II.Do surgimento dos princípios aos direitos fundamentais - III.A realidade histórica da 1.ª geração - IV.Interpretação histórica da Constituição de 1988 - V.A colisão entre princípios - VI.As provas ilícitas - VII.Conclusão - VIII.Bibliografia I. Introdução Tema que à primeira vista parece pacífico, mas que ainda é da mais alta controvérsia, em especial na prática judicial diária, diz respeito aos princípios do direito penal e do processo penal. A importância do assunto vem crescendo à medida que a criminalidade aumenta, principalmente a organizada. A sociedade clama por instrumentos que permitam uma maior eficiência penal. A grande missão, no entanto, é conciliar a postulada eficiência, com o direito constitucional de defesa dos indivíduos. José Roberto Moraes, ao iniciar uma palestra, mencionou ser muito complicado analisarmos um tema completamente despidos da ótica imposta por nossa atividade profissional. A atividade do dia a dia faz com que o pensamento de todos nós acabe se voltando, acabe se tendendo para esta ou aquela posição (MORAES, p. 66, 2003). Não obstante sua colocação estivesse se referindo a outro ramo do direito, é bastante apropriada, servindo perfeitamente para o assunto ora examinado. Não que haja má-fé do profissional ao sustentar esta ou aquela corrente. Mas, na realidade, qualquer um, depois de investido em alguma atividade, incorpora a mesma como uma consequência natural do seu trabalho, passando a imaginar o que defende como verdade quase que absoluta. É por isso que a maioria dos advogados criminalistas defende um forte rigor processual, pretendendo a nulidade dos processos não raramente por motivos irrelevantes, enquanto alguns membros do Ministério Público, de outro lado, ainda que em menor escala, algumas vezes defendem condenações olvidando os direitos individuais conquistados ao longo de anos. O presente trabalho irá analisar alguns aspectos gerais a respeito dos princípios penais e Princípios do Direito Penal e Processo Penal Página 1 processuais penais, sempre sob o foco constitucional. Para tanto, partiremos da evolução do conceito de princípios, seguindo a uma visão que entendemos mais realista sobre o desenvolvimento dos chamados direitos individuais – ou fundamentais de 1.ª geração. Finalizando, efetuaremos uma abordagem geral da matéria, levando em conta os preceitos constitucionais brasileiros, sem esmiuçar o estudo isolado de cada princípio, à exceção daquele que veda a produção de provas ilícitas, ponto central da exposição, tudo buscando uma maior eficiência penal, principal objetivo da reforma do Código de Processo Penal de 2008,1 mas mantendo a conquista garantista de anos. II. Do surgimento dos princípios aos direitos fundamentais Em um primeiro momento os princípios gerais do direito penal e processual penal não estavam positivados. Nas três primeiras etapas históricas, seja a antiga, a da origem divina ou da base racional, vinham do direito natural. Após sua positivação, consolidada pelas Declarações Americana e Francesa do século XVIII, os princípios originaram os chamados direitos fundamentais. Através deles os burgueses pretendiam nada mais que afastar qualquer intromissão que impedisse o seu lucro excessivo, ainda que em prejuízo da grande massa da população. Seus ideais receberam a influência do liberalismo. Eles constituíam um mínimo essencial, anteriores e superiores ao Estado, o que o impossibilitaria de limitá-los. (GRANDINETTI, p. 11, 2009). Mas também tiveram aspectos bastante positivos. Dentre eles, o prestígio da regra da liberdade, que formaria o pilar do sistema jurídico. A sua ofensa deveria ser considerada uma exceção, a qual teria que se basear em lei – princípio da legalidade. A tais direitos fundamentais aplicou-se a conhecida denominação de 1.ª geração, justamente por serem os primeiros que surgiram na história. Um período posterior, no entanto, passou a exigir uma grande evolução nos direitos fundamentais. Os de 1.ª geração, voltados mais para o individualismo, não eram suficientes para satisfazer, sozinhos, as necessidades populares. As mazelas que vários povos sofreram com a 1.ª Guerra exigiram uma compensação do Estado, que teria que exercer um papel mais ativo na ordenação social (GRANDINETTI, p. 11, 2009). Apareceram, então, os direitos sociais, culturais, econômicos e coletivos, tidos como de 2.ª geração. Mas isso ainda não foi suficiente. O século XX pugnou por uma 3.ª geração de direitos fundamentais, agora ligados à fraternidade e à solidariedade. Por ela houve uma pretensão de ampliação do espaço geográfico de irradiação de seus efeitos na medida em que não há como fracionar os interesses por eles alcançados (GRANDINETTI, p. 12, 2009). São os direitos de natureza difusa, como o desenvolvimento, a paz, o meio ambiente, a comunicação.2 Há quem efetue uma ligação entre direitos fundamentais e direito público subjetivo. Este se define como o poder de querer que tem o homem, reconhecido e protegido pelo ordenamento jurídico, mas enquanto seja dirigido a um bem ou a um interesse (GRANDINETTI, p. 15, 2009). Está a favor de um titular, que pode manifestar sua vontade individualmente, desde que revele, no entanto, o interesse de toda a sociedade. A relação, todavia, vem sendo criticada por Ferrajoli. Para ele, os direitos fundamentais não podem ser afastados sob o argumento de não serem do interes-se do Estado, já que são concebidos como naturais, identificados como um prius em referência a ele, completamente independentes das relações de poder. Propõe, assim, apenas a defesa da ideia de direitos fundamentais, anteriores, superiores e absolutos em relação ao Estado, além de serem universais. Isso torna insensato, segundo ele, a associação entre direitos fundamentais e direitos subjetivos (FERRAJOLI, p. 838-840, 2006). De fato, não há uma aproximação total entre direitos fundamentais e direitos subjetivos. Não obstante, não há que se negar a existência de alguma relação, ainda mais na época do seu surgimento. Além disso, data venia, parte da crítica de Ferrajoli não é apropriada. Primeiro porque rechaçamos a noção de que os direitos fundamentais são independentes das relações de poder, estando fortemente relacionados ao poder econômico, pelo qual o Estado se submeteu à burguesia, como iremos demonstrar. De outra parte, estamos com Grandinetti quando diz ser possível admitir-se, em linhas gerais, a limitação dos direitos fundamentais, mesmo no campo processual penal, com apoio da teoria da ponderação de bens constitucionais (GRANDINETTI, p. 17, Princípios do Direito Penal e Processo Penal Página 2 tem a função restritiva de proteger os indivíduos, não alcançando as pessoas públicas no exercício das suas funções, em razão do princípio da publicidade e transparência que devem reinar na aludida área. Depois, o intérprete deve verificar se o legislador já estabeleceu uma ponderação, caso em que restará pouco espaço para a ponderação judicial. Citando Canotilho, defende que a ponderação legislativa não pode ser afastada por decisão judicial, salvo se incompatível com os valores constitucionais (GRANDINETTI, 2009, p. 21). Em quarto lugar, admite que a ponderação judicial de bens constitucionais seja efetuada, mas desde que haja realmente uma colisão de direitos fundamentais e que inexista a solução legislativa mencionada no parágrafo anterior. Isso com base na teoria dos limites imanentes dos direitos fundamentais, através da qual nenhuma liberdade pública é absoluta (GRANDINETTI, 2009, p. 21-22). O quinto e último passo está ligado à maneira pela qual a ponderação judicial deve ser realizada. Para tanto, aponta três subpassos. O primeiro é o mais questionável. Por meio dele o professor Grandinetti sustenta a necessidade de confronto genérico do peso que a Constituição atribui aos direitos em colisão. Defende, assim, que mesmo abstratamente há princípios que prevalecem sobre outros (GRANDINETTI, 2009, p. 22). É exatamente isso o que se questiona. Será que o peso de dois princípios colidentes não pode ser invertido, a depender das peculiaridades de dois casos concretos distintos? Importante, sim, é o segundo subpasso por ele traçado. Na ponderação judicial, superados os quatro primeiros passos, deve haver confronto do peso específico que a Constituição atribui aos direitos em colisão, com os olhos postos no caso concreto. Por fim, o terceiro subpasso. Para encerrar o processo, deve-se estabelecer não só o valor preponderante no caso concreto, mas também o grau de restrição ao direito afastado, o que deve ser feito por intermédio dos conhecidos subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (GRANDINETTI, 2009, p. 22). Seguindo todas essas etapas, pode-se perfeitamente solucionar a colisão de princípios dentro da maior objetividade possível. Ainda assim, a última etapa recairá, sempre, na valoração subjetiva do intérprete. Por isso, a finalidade do método apontado é apenas de controlar a valoração para que seja a mais transparente e racional possível (GRANDINETTI, 2009, p. 23). VI. As provas ilícitas VI.1 Da inadmissibilidade das provas ilícitas Tradicional a distinção que a doutrina sempre fez entre prova ilegal, ilícita e ilegítima. Sustenta-se que a primeira é gênero, dividindo-se em ilícita e ilegítima, estas relacionadas à violação de regra de direito processual, aquelas quando produzidas em contrariedade as normas de direito material.5 Agora, a nova redação conferida pela Lei 11.690/2008 ao caput do art. 157 do CPP expõe que são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. De acordo com Luiz Flávio Gomes dizia-se que a CF/1988, no art. 5.º, LVI, somente seria aplicável às provas ilícitas, ou ilícitas e ilegítimas ao mesmo tempo, ou seja, não se aplicaria para as provas (exclusivamente) ilegítimas. Para esta última valeria o sistema da nulidade, enquanto para as primeiras vigoraria o sistema da inadmissibilidade. Segundo ele, essa doutrina já não pode ser acolhida diante da nova regulamentação legal do assunto. Quando o art. 157 do CPP fala em violação as normas constitucionais ou legais, não distingue se a norma legal é material ou processual. Qualquer violação ao devido processo legal, em síntese, conduz à ilicitude da prova (GOMES, 2008). A nova disposição legal atende perfeitamente ao inc. LVI do art. 5.º da Carta Magna, segundo o qual são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. Aqui apenas fazemos algumas observações: a primeira é que a ilicitude acarretará apenas o desentranhamento da prova, sem, contudo, gerar qualquer nulidade integral do processo; a segunda é que a previsão pode ser Princípios do Direito Penal e Processo Penal Página 5 afastada quando em jogo interesse coletivo superior, aplicando-se ao caso as explicações traçadas no item V supra. Outra ressalva é muito bem exposta por Andrey Borges de Mendonça. Para ele “não é qualquer violação às normas processuais que transformará a prova em inadmissível. Somente quando forem desrespeitadas as disposições processuais que possam refletir no devido processo legal é que se poderá falar em inadmissibilidade da prova. Assim, uma prova testemunhal obtida em juízo sem a presença do defensor deverá ser considerada inadmissível (ilícita), por violação à ampla defesa e, portanto, ao devido processo legal. No entanto, o desrespeito a uma disposição de caráter nitidamente procedimental, que não interfira em qualquer garantia relacionada ao devido processo legal, não pode ser reputada ilícita e, portanto, inadmissível (por exemplo, uma testemunha inquirida pelo sistema presidencialista e não diretamente pelas partes). Portanto, para as violações em que não houver lesão ao princípio do devido processo legal, o sistema deve continuar a ser o das nulidades” (MENDONÇA, 2008, p. 171). Pensamento contrário implicaria na revogação ou não recepção de todo o sistema de nulidades previsto nos arts. 563 e ss do Diploma Processual Penal, o que nunca foi sustentado. O Doutor Grandinetti, em mais um excelente ensinamento, muito bem resume as correntes sobre a admissibilidade ou não das provas ilícitas. Enquanto uma corrente não admite, de forma nenhuma, a prova ilícita, com fundamento na unidade do ordenamento, outra aceita a sua produção, apenas defendendo a aplicação de sanções penais, civis ou administrativas que acaso tenha incorrido aquele que a obtém de forma ilícita (GRANDINETTI, 2009, p. 96). Esta última é seguida na França e na Inglaterra, onde as provas obtidas ilicitamente são utilizadas no processo, punindo-se, porém, os responsáveis pela sua produção (OLIVEIRA, 2008, p. 321). Mas há ainda a terceira corrente. Ela busca no direito constitucional o ponto de equilíbrio do sistema, admitindo a prova ilícita se ela for a única forma de proteger outro valor fundamental, se ela for indispensável para a salvaguarda de outro interesse tutelado e mais valioso (GRANDINETTI, 2009, p. 96-97). A despeito de o professor Grandinetti afirmar em certa passagem que a Constituição proibiu, de modo absoluto, a produção de prova ilícita, não havendo que se discutir as diversas correntes acima mencionadas (GRANDINETTI, 2009, p. 97), efetua algumas ressalvas que, na verdade, o fazem aderir à terceira corrente acima exposta. De fato, mais adiante conclui dizendo que continuam possíveis, como sempre o foram, as restrições advindas do embate entre valores constitucionais, devidamente ponderados caso a caso, e em caráter excepcional, afastando a inadmissibilidade quando houver concreta ameaça ou violação de outros valores constitucionais em casos limites (GRANDINETTI, 2009, p. 103). São esses os casos que pretendemos abordar a seguir. VI.2 Do aproveitamento excepcional de provas ilícitas A vedação de provas ilícitas tem por fim preservar direitos individuais da população. Pretende proteger a intimidade, a vida privada, a honra, a imagem, a inviolabilidade do domicílio, o sigilo da correspondência e das comunicações. Todos esses direitos encontram-se previstos nos incs. X a XII do art. 5.º da Carta Magna, sendo necessário saber o correto enquadramento e regulamentação da cada um, para que percebamos quais são os requisitos exigidos para a sua limitação no caso concreto. Para que não haja dúvidas, segue a transcrição das normas constitucionais: “X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;”6 Uma análise apressada das disposições poderia levar à equivocada conclusão no sentido de que apenas a inviolabilidade domiciliar e o sigilo das comunicações telefônicas poderiam ser afastados, o mesmo não acontecendo com os demais direitos individuais. Contudo, tendo em vista que nenhuma Princípios do Direito Penal e Processo Penal Página 6 liberdade pública é absoluta, todos eles podem ser limitados, cedendo espaço para outros direitos tidos como mais importantes no caso concreto. A melhor interpretação, por conseguinte, é a de que a violação do domicílio, fora as hipóteses de flagrante, desastre e socorro, exige ordem judicial, a qual deverá ser fundamentada (art. 93, IX, da CF/1988), in casu nos arts. 240 e ss do CPP. O mesmo se diga quanto à quebra do sigilo das comunicações telefônicas, a qual não prescinde de autorização judicial, que deverá estar baseada na Lei 9.296/1996. Porém, o constituinte originário sequer reclamou ordem judicial para o afastamento dos demais direitos individuais, de maneira que, nos casos e hipóteses previstas em lei razoável, que regule o conflito entre os valores protegidos na Constituição Federal, outras autoridades poderão fazê-lo. Se não houver lei razoável, aí sim, será necessária ordem judicial, considerando que somente ao Judiciário seria cabível a ponderação entre os valores em jogo. Em tais situações não poderemos falar em ilicitude. Além disso, sempre há a ressalva da possibilidade de utilização da prova ilícita mediante aplicação do método de ponderação de bens, explicado no item V.7 Nisso não há nenhum absurdo. Eugênio Pacelli de Oliveira, em importante explicação sobre o aproveitamento de prova ilícita no direito comparado, anota que “o princípio da proporcionalidade vem sendo utilizado pela jurisprudência da Alemanha e de alguns países da Europa para fins de permitir, sempre excepcionalmente, o aproveitamento de provas obtidas ilicitamente”. E mais adiante afirma que “o Direito norte-americano, de onde, aliás, importamos a vedação constitucional de admissibilidade de provas ilícitas, apesar da reconhecida tecnologia de provas ali existentes, também admite, excepcionalmente, as provas ilícitas, com base em um critério de razoabilidade” (OLIVEIRA, 2008, p. 320-321). Ora, se nos países mais desenvolvidos do mundo, ditos mais democráticos e protetores dos direitos humanos, permite-se o afastamento excepcional de direitos individuais para a preservação de outros, não há razão para acharmos equivocada uma solução similar no Brasil, em especial se partirmos da ideologia do surgimento da proteção no nosso país. A doutrina tem apresentado algumas situações específicas nas quais os direitos individuais poderiam ser licitamente afastados. Seriam os casos, por exemplo, de provas obtidas em excludente de ilicitude, durante flagrante delito ou sua utilização indistinta em favor do réu.8 Acreditamos, no entanto, que tudo se resume a um único ponto crucial: à aplicação das regras de ponderação traçadas no item V deste trabalho. As provas (i)lícitas obtidas em excludente de antijuridicidade, então, devem ser aceitas quando a causa de justificação for mais importante que o direito individual violado. Se alguém intercepta uma ligação telefônica realizada entre sequestradores para saber onde a vítima do sequestro foi escondida, não haverá que se falar em ilicitude. No confronto entre o direito ao sigilo telefônico dos infratores e a liberdade ou mesmo a vida do ofendido, ninguém irá preferir ficar com o primeiro. Com fulcro nas mesmas razões, pensamos, ao contrário da douta maioria, que as provas obtidas ilicitamente podem ser utilizadas no processo sempre que o crime descoberto for drasticamente mais grave que a violação do direito individual. No conflito entre preservar o direito individual do delinquente ou punir a macrocriminalidade, ficamos com a última opção. O sistema penal brasileiro já protege os direitos individuais no seu conceito de bem jurídico. Já é punível criminalmente a indevida quebra de sigilo bancário, telefônico, de correspondência, etc. Pode até ser que o momento brasileiro atual exija nova discussão a respeito do aumento da pena para tais condutas, embora entenda que o problema esteja mais relacionado à pouca aplicação da referida legislação na prática, tamanha a incapacidade do nosso sistema estatal. De qualquer modo, se atualmente o legislador pune outra conduta muito mais severamente, como o tráfico de entorpecentes, não vemos como deixar de reprimi-la em face de eventual violação de um direito individual, tido pelo mesmo legislador como muito menos grave. Não faltarão duras críticas a tal posição, dizendo que ela incentivaria a violação dos direitos individuais, que seria vantajosa para um Estado arbitrário. Não pensamos, data venia, da mesma forma. Cremos que seria muito melhor que o violador da garantia individual também fosse punido pela violação que cometeu. Aplicar-lhe efetivamente uma sanção penal proporcional ao direito individual violado teria a finalidade preventiva especial e geral, evitando, ou pelo menos minorando, a ofensa futura a outros direitos individuais. Porém, sem afastar a repressão da conduta daquele Princípios do Direito Penal e Processo Penal Página 7 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2006. FREITAS, Ricardo de Brito A. P. As Razões do Positivismo Penal no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. História do Direito Penal. São Paulo: Malheiros, 2005. GOMES, Luiz Flávio. Lei 11.690/2008 e provas ilícitas: conceito e inadmissibilidade. Disponível em: [http://www.jusbrasil.com.br/noticias/26339/lei-11690-2008-e-provas-ilicitas-conceito-e-inadmissibilidade-luiz-flavio-gomes]. Acesso em: 28.08.2008. GRANDINETTI, L. G. Castanho de Carvalho. Processo Penal e Constituição: Princípios Constitucionais do Processo Penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2009. GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal. 7. ed. São Paulo: Ed. RT, 2001. LUHMANN, Niklas. La Sociedad de la Sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrete. Cidade do México: Herder, 2007. MENDONÇA, Andrey Borges de. Nova Reforma do Código de Processo Penal. 1. ed. São Paulo: Método, 2008. MORAES, José Roberto de. As Prerrogativas e o interesse da Fazenda Pública. In: SUNDFELD, Carlos Ari; BUENO, Cássio Scarpinella (coord.). Direito Processual Público. 1. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 2003. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2007. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2008. SCHWANITZ, Dietrich. Cultura Geral: Tudo o que se deve saber. Trad. Beatriz Silke Rose; Eurides Avance de Souza; Inês Antonia Lohbauer. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, p. 130, 2007. 1 Na mensagem de veto 350, de 09.06.2008, ao rejeitar a inclusão de um § 4.º no art. 157 do CPP pela Lei 11.690/2008, o Presidente da República disse que o objetivo primordial da reforma processual penal é imprimir celeridade e simplicidade ao desfecho do processo. Disponível em: [www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Msg/VEP-350-08.htm]. Acesso no dia: 28.08.2008. 2 Há ainda aqueles que apontam para a existência dos direitos fundamentais de 4.ª geração, equivalentes à democracia, ao pluralismo e à informação (BONAVIDES, p. 571, 2008). 3 Bem afirma Nilo Batista, fazendo suas as palavras de Muñoz Conde, que o direito e o estado não são expressões de um consenso geral de vontades, e sim reflexões de um modo de produção, formas de proteção de interesses de classe, da classe dominante no grupo social ao qual esse direito e esse estado pertencem. (BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 56). 4 Se o liberalismo teve um conteúdo voltado não apenas, mas sobretudo, para facilitar o desenvolvimento capitalista, é certo que a expansão dos chamados direitos civis constituiu, em maior ou menor medida, um claro progresso, bastando recordar o processo de extensão de direitos aos filhos ilegítimos, estrangeiros e judeus; a tendência a igualar o tratamento legal a homens e mulheres; a redução da extensão dos direitos dos pais sobre os filhos (restrição ao pátrio-poder enquanto conjunto de direitos paternos) e a facilitação do divórcio. Compreende-se, assim, a razão pela qual na relação entre cidadania e Estado liberal-burguês, admite-se que a extensão dos direitos civis beneficia os setores inarticulados da população, dando um significado libertário positivo ao Princípios do Direito Penal e Processo Penal Página 10 reconhecimento legal da individualidade. Neste sentido, portanto, o Estado liberal-burguês de direito foi claramente progressista, o que não implica deixar de reconhecer as suas carências. (FREITAS, 2002, p. 57). 5 Segundo Ada Pellegrini Grinover a prova era tida como ilegal toda vez que sua obtenção caracterizasse violação de normas legais ou de princípios gerais do ordenamento, de natureza processual ou material. Quando a proibição fosse colocada por uma lei processual, a prova seria ilegítima (ou ilegitimamente produzida); quando, pelo contrário, a proibição fosse de natureza material, a prova seria ilicitamente obtida. (GRINOVER, 2001, p. 133). 6 Incisos do art. 5.º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 7 Discordamos, portanto, da diferença de graus de proteção traçada por Grandinetti. Para ele, no topo da escala ficaria a inviolabilidade de correspondência e das comunicações de dados, que não seriam passíveis de restrição. Abaixo estariam a inviolabilidade do domicílio, das comunicações telefônicas, e os sigilos bancário, financeiro e fiscal, cuja quebra dependeria sempre de ordem judicial. Depois a proteção da intimidade, vida privada, honra e imagem, cuja proteção adviria do caso concreto, a demandar maior ou menor tutela jurisdicional, mediante uma adequada ponderação de bens (GRANDINETTI, 2009, p. 104-105). 8 Grandinetti faz referência a duas situações particulares. A primeira é a possibilidade de o réu, no processo penal, produzir prova considerada ilícita, por prevalecer o direito à liberdade e à ampla defesa sobre o direito à privacidade. A segunda diz respeito ao seu uso, mesmo pelo autor da ação penal, para salvaguardar outro direito fundamental, como ocorre na proteção da vida da vítima de um sequestro, cuja libertação dependesse eventualmente de uma interceptação ilícita (GRANDINETTI, 2009, p. 98-99). 9 A questão da doutrina dos frutos da árvore envenenada (Fruits of the poisonous tree): a questão da ilicitude por derivação. “– Ninguém pode ser investigado, denunciado ou condenado com base, unicamente, em provas ilícitas, quer se trate de ilicitude originária, quer se cuide de ilicitude por derivação. Qualquer novo dado probatório, ainda que produzido, de modo válido, em momento subsequente, não pode apoiar-se, não pode ter fundamento causal nem derivar de prova comprometida pela mácula da ilicitude originária” (STF, HC 93050/RJ, rel. Min. Celso de Mello. Disponível em: [http://www.jf.jus.br/juris/?]. Acesso no dia: 28.08.2008. 10 Pacelli observa que a Lei 11.690/2008 cometeu um equívoco técnico no § 2.º do art. 157 do CPP, chamando de fonte independente o que, na realidade, corresponde à teoria da descoberta inevitável. De fato é esta que admite a produção da prova que, por si só, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova (OLIVEIRA, 2008, p. 310). 11 Um exemplo dessa segunda vertente do Direito Penal Máximo está no exemplo dado por Maximiliano Roberto Ernesto Führer. Segundo ele em 26.11.2003, no outro lado do Atlântico, no Hemisfério Norte, a rainha Elizabeth II, da Inglaterra, na sua tradicional Fala do Trono, na abertura do novo período legislativo, anunciou projeto de lei (Lei da Contingência Civil) ampliando enormemente os poderes das forças de segurança, tendo em vista o terrorismo. O referido projeto prevê proibição de reuniões, toque de recolher, isolamento de regiões inteiras, confisco e suspensão das garantias individuais. (FÜHRER, 2005, p. 104). 12 BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. 4. ed. São Paulo: Edipro, 2008, p. 50. Princípios do Direito Penal e Processo Penal Página 11